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CONTRATO DE ARRENDAMENTO NÃO HABITACIONAL
TRANSMISSÃO DE POSIÇÃO SOCIAL DA SOCIEDADE ARRENDATÁRIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DENÚNCIA DO CONTRATO
Sumário
I - Os contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes da Lei n.º 257/95, de 30/09, sendo a arrendatária uma sociedade, e ocorrendo transmissão inter vivos da posição ou posições sociais determinante da alteração da titularidade da mesma em mais de 50%, podiam ser extintos, com a antecedência de cinco anos, por denúncia do senhorio mediante comunicação efectuada até à entrada em vigor da Lei n.º 13/2019, de 12/02, ainda que os efeitos se viessem a produzir depois desta data. II - Subordinando a A. o pedido de entrega da fracção autónoma ao pedido de resolução do contrato de arrendamento, a improcedência deste não impede o conhecimento e a procedência daquele pedido caso seja válida e legítima a denúncia do contrato de arrendamento alegada para o sustentar.
Texto Integral
Proc. n.º 18697/22.9T8PRT.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível do Porto – Juiz 1
Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
2.º Adjunta: Teresa Maria de Sena Fonseca
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório.
Recorrente: A..., Lda.
Recorrida: AA
AA instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra A..., Lda., pedindo que seja resolvido o contrato de arrendamento que identifica e que, por consequência, a R. seja condenada no despejo imediato e entrega do locado livre de pessoas e bens e que seja declarada a mora desta desde a data em que operou a denúncia, 13.07.2022, e a sua condenada a pagar à A. uma indemnização correspondente ao dobro da renda até à data em que fizer cessar a mora entregando o locado.
Para o efeito, alegou, em síntese, que é proprietária de uma fracção autónoma objecto de um contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado em 1974, de que, na sequência de sucessivos trespasses do estabelecimento comercial aí instalado, é arrendatária a sociedade R., cujas quotas foram cedidas aos actuais sócios, em mais de 50% do capital social, a 31/12/2013, e, na totalidade do capital social, em 4/03/2014, sem qualquer comunicação, e, portanto, sem autorização da senhoria a quem, assim, assiste o direito de denunciar o contrato com a antecedência de 5 anos, que, apesar de exercido e reiterado atempadamente, não foi respeitado pela R. que, assim, se encontra em mora desde 13/07/2022, dia em que deveria entregar o locado livre de pessoas e bens, e, por consequência, lhe deve o dobro do valor das rendas entretanto vencidas.
Citada, a R. contestou, defendendo que a A. é proprietária do imóvel desde 23/06/2016, pelo que não tinha que lhe comunicar a alteração em 2013 do seu capital social, que foi partilhada com os representantes da senhoria à data, passando estes a reconhecê-lo desde então como o novo sócio da R., nos diversos contactos e conversações mantidos a propósito do arrendado, a que acresce o facto de, no caso, não serem aplicados os normativos convocados pela A. para justificar a denúncia do arrendamento que, de todo o modo, não foi confirmada de forma atempada, e constitui um abuso de direito porquanto, a A., além de reconhecer um dos novos sócios, aceitou o pagamento de rendas e a realização de obras de valor significativo, encetou consigo negociações com vista à continuidade do arrendamento e promoveu a comunicação com vista ao aumento da renda para o ano de 2023. Por fim, em reconvenção, pediu, subsidiariamente, a condenação da A. a pagar-lhe a quantia de 92.825,87 € a título de benfeitorias realizadas no locado, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Em Resposta, a A. impugnou a matéria da reconvenção.
Admitido o pedido reconvencional e corrigido o valor da acção, os autos passaram para a competência do Juízo Central Cível do Porto.
Na sequência da audiência prévia, a A. pronunciou-se sobre a sua invocada ilegitimidade, cujo conhecimento, por se ter entendido que se tratava de questão de natureza material, foi relegado para sentença.
Procedeu-se à elaboração de despacho saneador, fixando-se o objecto do litígio e os temas de prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção e improcedente a reconvenção, nos termos do segmento decisório que segue:
“Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente por provada e condena-se a Ré no pedido.
Mais se julga o pedido reconvencional improcedente por não provado, e consequentemente, absolve-se a Autora/reconvinda do pedido.
Custas da acção e da reconvenção a cargo da Ré”.
Inconformada com tal sentença, dela apelou a R., com o objectivo de a sentença ser revogada e proferida e substituída por outra que julgue a acção improcedente ou, em alternativa, que julgue o pedido reconvencional procedente, concluindo as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
(…)
A A. apresentou contra-alegações, defendendo que a sentença recorrida deve ser mantida, e que o presente recurso deve ser julgado improcedente.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art. 5.º, n.º 3 do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes:
i) da impugnação da decisão da matéria de facto sob os pontos 11 e 20 dos factos provados e o ponto 1 dos factos não provados.
ii) da alteração da decisão de mérito.
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III. Fundamentação 3.1.Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos (destacando-se a negrito a matéria de facto ora impugnada):
“1. A A. é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra F que corresponde ao rés do chão do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ... no Porto, inscrita na matriz urbana sob o artigo ... e descrito na conservatória do registo predial do Porto sob o número ... da união de freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ... com código de certidão permanente ....
2. Fracção que faz parte do prédio em propriedade horizontal sito na Rua ... cuja propriedade plena adquiriu em 2016 à herança de seu Tio, BB e da qual detinha uma quota de 25%.
3. Em 04.01.1974, por escritura publica lavrada no 1º cartório notarial do Porto, foi a fracção supra descrita objecto de um contrato de arrendamento não habitacional, de duração indeterminada, pelo prazo de um ano, renovado por igual período, nos termos da escritura publica que se anexa e que se considera reproduzido para todos os efeitos legais como documento 03.
4. Em 02.07.1987, por escritura publica lavrada no 1º cartório notarial do Porto, foi alterado o contrato de arrendamento nos termos que se anexam e que se consideram reproduzidos para todos os efeitos legais como documento 04.
5. Ali está instalado um estabelecimento comercial que foi objecto de sucessivos trespasses.
6. Por escritura publica de 17.02.1988, outorgada no 8º cartório notarial do Porto, a aqui R. adquiriu por trespasse o estabelecimento comercial instalado no locado e já supra identificado, pelo que é a actual locatária da fracção sub judice.
7. O objecto social da Ré é o comércio de confeitaria e pastelaria, com fabrico e snack-bar, restaurante, café e salão de chá.
8. E o capital social era de 400.000,00 escudos conforme certidão da Conservatória do Registo Comercial em anexo como documento 06.
9. De acordo com a AP... constante da referida certidão da Conservatória do Registo Comercial anexa como documento 06, eram sócios da sociedade comercial, os seguintes sócios, titulares de 5 quotas no valor de 80.000,00 escudos cada:
1. CC, casado com DD.
2. EE, casado com FF.
3. GG casado com HH
4. II casado com JJ.
5. KK e LL, em comum e sem determinação de parte ou direito,
10. De acordo com a AP... (aumento de capital no montante de 3.004,80€), em 15/05/2008, o capital social da Ré foi aumentado para 5.000,00 euros, com os seguintes sócios e quotas:
1. CC, casado com DD – titular de uma quota de 1.000,00€.
2. EE, casado com FF – titular de uma quota de 1.000,00€.
3. GG casado com HH – titular de uma quota de 1.300,48€.
4. II, divorciado – titular de uma quota de 399,04€ e de uma quota de 300,48€.
5. KK e LL, em comum e sem determinação de parte ou direito – titulares de uma quota de 1.000,00€. 11. Sucede que, em 2017 e na sequência das pesquisas efetuadas junto do Serviço de Finanças do Porto e na conservatória do registo Comercial do Porto, a A. tomou conhecimento de que no dia 31 de dezembro de 2013 foi feito um contrato de divisão e cessão de quotas da sociedade Ré.
12. Em 31.12.2013, a sociedade foi alterada na forma seguinte,
a) CC e mulher DD cederam a sua quota no valor de 1.000,00€ a MM pelo valor de 5.000,00€.
b) EE e mulher FF cederam a sua quota valor de 1.000,00€ a NN pelo valor de 5.000,00€.
c) E KK e LL dividiram a sua quota no valor de 1.000,00€ em duas novas quotas no valor nominal de 500,00€ cada cederam cada uma destas novas quotas no valor nominal de 500,00€ a MM e a NN, pelo valor de 2.500,00€ a cada um dos cedentes, o que perfaz o valor global de 5.000,00€.
13. Desde essa data e por consequência do referido contrato de divisão de cessão, os cessionários/novos sócios MM e NN passaram a deter em conjunto 60% do capital social da sociedade Ré.
14. Em 31.12.2013, MM e NN, passaram a ser titulares de quotas na sociedade em causa no valor de 3.000,00€ (1.000,00€ + 1.000,00€+500€+500€) sendo o capital social sociedade Ré de 5.000,00€.
15. Posteriormente, foi outorgado um novo contrato de cessão de quotas e os novos sócios MM e NN adquiriram a totalidade do capital social (3.000,00€ + 2.000,00€ = 5.000,00€) da sociedade Ré, o que também consta das actas da sociedade Ré com o nº 32 e nº 35 que se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidas como documentos 08 e 09.
16. A nova sócia MM adquiriu a JJ (quotas que pertenceram ao ex-marido II) uma quota no valor de 399,04€ e uma outra quota no valor de 300,48€ - doc.07.
17. O novo sócio NN adquiriu a GG uma quota no valor de 1.300,48€ - doc.07.
18. Em 24/07/2014, de acordo com a referida ata nº ..., foram nomeados gerentes os novos sócios da sociedade em causa MM e NN.
19. Pela Ap. ..., encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Comercial do Porto, um aumento do capital social de 5.000,00€ para 40.000,00€, sendo o aumento de 35.000,00€ subscrito em dinheiro por ambos os sócios MM e NN na proporção das suas quotas. 20. Todas as alterações foram feitas sem qualquer comunicação e, por consequência, sem autorização da senhoria.
21. Por carta registada com AR datada de 07.07.2017, a A. comunicou à R. a denuncia do contrato de arrendamento, com a antecedência de 5 anos, tudo nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 1101º al. C) do Código Civil por aplicação do disposto nos artigos 27º e 28º nº 3 al. B) da Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro ao tempo aplicáveis.
22. A renda mensal actual é de 873,22€.
23. Sucede que, em 10.08.2017, a Ré remeteu à A. uma carta com a expressa declaração de oposição à denuncia, logo ali deixando claro que não iria entregar o locado que não pela via judicial.
24. Respondeu a A. dizendo que nunca havia sido concedida autorização para a operada cessão contratual, que inexiste qualquer direito a reembolso por alegadas benfeitorias – que desconhece porque não são sequer concretizadas – e mais mantendo a denuncia com efeitos à data de 13.07.2022.
25. Um ano depois, em 17.07.2018, por carta registada com AR, a A. veio reiterar à R. a denuncia do contrato de arrendamento e a data dos seus efeitos para 13.07.2022.
26. Um ano depois, em 12.07.2019, por carta registada com AR, a A. veio reiterar à R. a denuncia do contrato de arrendamento e a data dos seus efeitos para 13.07.2022.
27. Um ano depois, em 02.03.2020, por carta registada com AR, a A. veio reiterar à R. a denuncia do contrato de arrendamento e a data dos seus efeitos para 13.07.2022.
28. Um ano depois, em 19.07.2021, por carta registada com AR, a A. veio reiterar à R. a denuncia do contrato de arrendamento e a data dos seus efeitos para 13.07.2022.
29. Um ano depois, em 05.01.2022, por carta sob registo simples e por carta simples, a A. veio interpelar a R. para a entrega do locado livre de pessoas e bens respectivas chaves, bem como agendar visita ao locado. (doc 19).
30. A ré apresentou uma proposta para renovação do contrato em termos que não foram aceites pela A. quer quanto ao valor da renda quer quanto à duração contratual.
31. A A. solicitou à R. a revisão da proposta para termos que permitissem a manutenção do arrendamento, o que foi recusado pela R.
32. É o sócio da Ré, NN, que estabelece todos os contactos com os representantes da senhoria.
33. Sendo por todos reconhecido e aceite, em tais contactos e comunicações, como sócio e legal representante da Ré.
34. Em momento algum, anterior à comunicação de 7 de julho de 2017, foi suscitada qualquer questão relativa às alterações societárias.
35. Em 2014 foram feitos de novos revestimentos (chão, paredes e tectos), renovadas a instalação eléctrica e iluminação, rede de abastecimento de águas, as casas de banho (novas louças, torneiras e canalização) e realizadas pinturas no imóvel.
36. Os trabalhos realizados obtiverem a concordância do Senhorio.
37. A globalidade dos trabalhos executados no imóvel ascendeu a €92.825,87.
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Factos não provados:
Não se provaram mais factos alegados com relevo para a boa decisão da causa,
nomeadamente que: 1. Todas as alterações societárias foram transmitidas, no devido tempo, aos representantes da Senhoria, sem qualquer oposição.
2. Em 1987 foram realizadas benfeitorias necessárias no imóvel, cujo valor ascendeu a 34.915,85€”.
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3.2. Fundamentação de direito
Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões a decidir, é o momento de as apreciar.
3.2.1. Da impugnação da decisão de facto
Como decorre do acima exposto, a recorrente invoca erro no julgamento quanto aos pontos 11 e 20 dos factos provados e ao ponto 1 dos factos não provados.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Para o efeito, o art. 640.º, n.º 1 do CPC impõe que o recorrente especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Da leitura das alegações e conclusões do recurso, constata-se que a recorrente discorda da decisão no que se refere aos supra identificados pontos da matéria de facto, assentando a sua divergência na apreciação de determinados meios de prova que identifica em conjugação com factualidade que destaca do elenco dos factos provados.
A este respeito, afigura-se-nos que a recorrente cumpre os aludidos ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pelo que importa dela conhecer por via da reapreciação dos meios de prova disponíveis no processo, posto que, como escreve Abrantes Geraldes, embora “a modificação da decisão da matéria de facto esteja dependente da iniciativa da parte interessada e deva limitar-se aos pontos de facto especificadamente indicados, desde que se mostrem cumpridos os requisitos formais que constam do art. 640.º, a Relação já não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (art. 413.º), sem exclusão sequer da possibilidade de efetuar a audição de toda a gravação se esta se revelar oportuna para a concreta decisão” (in “Recursos em Processo Civil”, 7.ª Edição, Almedina, pág. 341).
O art. 607.º, n.º 5 do CPC, de que outros preceitos legais como os arts. 389.º, 381.º e 396.º do CC, a propósito, respectivamente da prova pericial, da inspecção judicial e da prova testemunhal, dão eco, consagra o princípio de que o juiz aprecia livremente a prova segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, excluindo desta livre apreciação os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Na verdade, as provas, dispõe o art. 341.º do CC, têm por função a demonstração da realidade dos factos, o que, como ensinam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, não se consegue “visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente), como é por exemplo, o desenvolvimento de um teorema nas ciências matemáticas”. Esclarecendo, os mesmos autores escrevem que “A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estudo de convicção, assente na certeza relativa do facto”, e que “O resultado da prova traduz-se assim, as mais das vezes, num efeito psicológico, embora a demonstração que a ele conduz no espírito do julgador, envolva a cada passo operações de carácter lógico” (in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, págs. 435/436).
Daí que, na fundamentação da sentença, o art. 607.º, n.º 4 do CPC imponha que o juiz declare quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Os supra citados autores salientam que “Além do mínimo traduzido na menção especificada (relativamente a cada facto provado) dos meios concretos de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova” (in loc. cit., pág. 653).
Verdade que, como sublinha Abrantes Geraldes, “existem aspectos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador.
O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância a perceção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os fatores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo.
Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção formada acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos” (in loc. cit., págs. 348 e 349).
Em todo o caso, sublinha este autor que “a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado…se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão. E para isso, tem de pôr em prática as regras ditadas acerca da impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto provada e não provada” (in loc. cit., págs. 348 e 350).
Efectivamente, a questão que se coloca relativamente à prova, quer na 1ª Instância quer na Relação, é sempre a da valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação, pois que, em ambos os casos, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios.
Retomando o caso dos autos, vejamos os concretos pontos da matéria de facto cuja decisão foi impugnada pela recorrente, o que será feito em conjunto, posto que todos os três pontos impugnados, 11 e 20 dos factos provados e ponto 1 dos factos não provados, dizem respeito à mesma realidade factual, o conhecimento pela senhoria das alterações societárias da recorrente e respectivas circunstâncias de tempo e modo.
Por facilidade de exposição, transcrevemos o teor dos pontos impugnados:
Ponto 11 dos factos provados: “Sucede que, em 2017 e na sequência das pesquisas efetuadas junto do Serviço de Finanças do Porto e na conservatória do registo Comercial do Porto, a A. tomou conhecimento de que no dia 31 de dezembro de 2013 foi feito um contrato de divisão e cessão de quotas da sociedade Ré”. Ponto 20 dos factos provados: “Todas as alterações foram feitas sem qualquer comunicação e, por consequência, sem autorização da senhoria”. Ponto 1 dos factos não provados: “Todas as alterações societárias foram transmitidas, no devido tempo, aos representantes da Senhoria, sem qualquer oposição”.
A pretensão recursória é a de que os pontos 11 e 20 sejam eliminados do elenco dos factos provados e que o ponto 1 dos factos não provados seja considerado provado.
A motivação da convicção do tribunal recorrido acerca do ponto 11 dos factos provados (apesar de certamente por lapso se ter incluído o mesmo no grupo dos factos não impugnados) assentou em particular no depoimento da testemunha OO, filho da A., que “referiu que não conhecia o café antes de 2014, pois só o conheceu em meados de 2016 e que a ajuda a mãe na gestão do património e que só no decurso de negociações com sociedade ré que se lograram, é que tiveram conhecimento da transferência de quotas (2017)”
Ouvida a gravação deste depoimento verifica-se que a referida testemunha pormenorizou ainda mais o contexto em que a A. sua mãe teve conhecimento da transferência de quotas da sociedade arrendatária, dizendo que tal sucedeu depois da aquisição da fracção – o que sucedeu em 2016 (cfr. ponto 2 dos factos provados) - e na sequência das malogradas negociações encetadas com a R. para a transição do contrato para o novo RAU, altura em que, não tendo sequer o contrato- “o contrato não existia na posse da herança”- a “mãe fez diligências no sentido de obter o contrato e de perceber um pouquinho mais o que se passava com esta empresa” e conseguiu-se obter o contrato, e “já em 2017 apurou-se que tinha havido uma transferência de quotas da sociedade”.
Que a herança não saberia do contrato de arrendamento é um dado suportado pelo email de 15/07/2013 enviado por NN ao cabeça de casal PP em que aquele comunica a este que “relativamente ao contrato da sociedade “A..., Lda.” tem-se revelado difícil a obtenção do contrato, pois o direito ao arrendamento foi adquirido por sucessivos trespasses. Ao contrário do que pensavamos, o arrendamento não foi celebrado com a “B..., Lda.”. Já esta última o adquiriu por trespasse a outra sociedade e também essa o tinha adquirido por trespasse” (cfr. Doc. 1 da contestação).
Ora, esta circunstância corroborante do depoimento da testemunha OO reforça a sua credibilidade, sustentada também pelo facto de inexistir qualquer tipo de documento escrito, contemporâneo ou posterior, que ateste a comunicação ao senhorio, no caso aos seus herdeiros representados pelo cabeça de casal PP - visto que o proprietário da fracção faleceu a 25/02/2007 (cfr. certidão junta a 19/05/2023) -, das transmissões das quotas da recorrente a que se referem os pontos 12, 14, 15, 16, e 17 dos factos provados, que, atenta a natureza comercial e não meramente particular dos interesses da recorrente, seria o mais expectável que sucedesse, inclusive por ser a forma corrente de, no âmbito de actividades profissionais, como é o caso, demonstrar o cumprimento de obrigações legais.
Acresce que se dos depoimentos das testemunhas PP e QQ ora indicadas pela recorrente se colhe claramente que um e outro, sucessivamente cabeça de casal da herança a que pertencia a fracção em causa - o primeiro desde o falecimento do tio até Agosto de 2014 e o segundo desde então -, identificavam NN como gerente da recorrente, ou até como sócio, a verdade é que esses depoimentos já não permitem extrair que quer um quer outro soubessem que este mesmo NN não fosse um sócio originário, ou, dito de outro modo, que fosse um novo sócio em consequência das cessões de quotas levadas a cabo em 2013 e 2014 por força do que todo o capital social foi transmitido a si e a MM. Apesar de admitir que RR se apresentou perante si como gerente, como sendo da sociedade, intitulando-se sócio, não disse a testemunha PP que este se apresentou como novo sócio. Em todo o caso disse, que se tratava de um arrendamento já recebido de anteriores proprietários e que não sabia quem eram os outros sócios. O mesmo em relação à testemunha QQ que afirmou que apesar de imaginar que “as pessoas que apareciam” não eram as mesmas pessoas que tinham celebrado o contrato de arrendamento porque o contrato era muito antigo, não fazia a mínima ideia se quem aparecia como representante da sociedade o era há muito ou pouco tempo; não era um assunto que se colocasse ou alguém tivesse perguntado.
Não permitem, assim, esses depoimentos nem permite a correspondência trocada entre as mencionadas testemunhas e NN a respeito de assuntos relativos à fracção, ao estabelecimento nele explorado pela recorrente ou ao respectivo contrato de arrendamento - sejam eles, entre outros, as obras autorizadas por PP ou as comunicações efectuadas e recebidas por QQ a respeito da nova senhoria ou do direito de preferência - a conclusão de que quem representava a herança sabia que NN era um novo sócio da recorrente. A dita correspondência, reforçando a convicção de que este era reconhecido por aqueles como legal representante da recorrente, em nada revela que a transferência de capital em discussão lhes tenha sido comunicada ou que, por qualquer outra forma, fosse do conhecimento dos mesmos. Tampouco, a testemunha SS, empregado da confeitaria da recorrente, forneceu, com interesse, qualquer informação adicional a esse respeito, posto que a existência do escritório do autor da herança e depois da herança no mesmo prédio onde se situa a fracção arrendada e o pagamento da renda pessoalmente por NN nesse local, não se mostra reveladora de que os representantes da herança tenham sabido, antes de 2017, da transmissão do capital social da recorrente para NN e para a outra actual sócia.
Nestes termos, a pretensão recursória da recorrente, nesta parte, tem de improceder, e, como tal, mantém-se a decisão da matéria de facto impugnada.
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3.2.3.Reapreciação da decisão de mérito da acção
Inalterada a factualidade julgada provada e não provada pelo tribunal a quo, verifica-se que as questões colocadas em sede de enquadramento jurídico provenientes da pretendida mas não conseguida alteração da matéria de facto ficam prejudicadas, e, como tal, a exigir a apreciação deste tribunal de recurso subsistem apenas as seguintes questões apresentadas pela recorrente:
- a aplicação do n.º 3 do art. 28.º da Lei n.º 6/2006, decorrente da Lei n.º 79/2014, só ocorrerá quando os factos denunciativos ocorram depois da entrada em vigor do diploma;
- o exercício do direito da recorrida é ilegítimo por abuso de direito, e
- a recorrente deve ser ressarcida do valor das obras por si realizadas na fracção.
Recordemos os factos essenciais que estão em causa:
A fracção que é propriedade exclusiva da recorrente desde 2016 havia sido, em 1974, objecto de um contrato de arrendamento para fins não habitacionais de duração indeterminada, que, na sequência dos sucessivos trespasses do estabelecimento comercial aí instalado, tem desde 1988 como arrendatária a sociedade recorrente, cujas quotas em 2013 e 2014 foram na totalidade cedidas pelos anteriores sócios a NN e a MM. Conhecedora em 2017 desta transmissão das participações sociais da recorrente, a recorrida, no mesmo ano, mais concretamente em 7/07/2017, comunicou-lhe a denúncia do contrato de arrendamento com a antecedência de cinco anos, ao que a recorrente respondeu por carta de 10/08/2017 com expressa declaração de oposição à denúncia, deixando claro que não iria entregar o locado que não pela via judicial.
Vejamos.
O contrato de arrendamento dos autos é um contrato de arrendamento não habitacional celebrado antes do DL n.º 257/95, de 30/09, e, portanto, necessariamente de duração indeterminada, a que, apesar de abrangido pelo novo regime do arrendamento urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27/02 (NRAU), se aplica, de entre as normas relativas ao regime transitório do arrendamento urbano previsto por este diploma legal, o disposto nos arts. 26.º a 29.º do NRAU.
Das disposições conjugadas dos arts. 27.º, 2.ª parte, e 28.º, nºs 1 e 2 do NRAU, com a redacção da referida Lei n.º 31/2012, resulta que aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do DL n.º 257/95 de 30/09 não se aplica o disposto na al. c) do art. 1101.º do CC, o que significa que esses contratos, por regra, não são livremente denunciáveis pelo senhorio (neste sentido vide com interesse acórdão do STJ de 20/12/2018, proc. 325/15.0T8TMR.E1; rel. Francisco Xavier com citação de doutrina e jurisprudência variada, in www.dgsi.pt).
E diz-se por regra porque nas situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 28.º do NRAU, na versão conferida pela Lei n.º 31/2012 (correspondentes às als. a) e b) do n.º 6 do art. 26.º do NRAU na versão originária), esses contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes do DL n.º 257/95 já serão denunciáveis.
Especificamente, da conjugação do art. 1101.º, al. c) do CC (versão conferida pela Lei n.º 31/2012) com o citado art. 28.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do NRAU, colhe-se que o senhorio pode denunciar o contrato de arrendamento para fins não habitacionais de duração indeterminada mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação quando, sendo o arrendatário uma sociedade, ocorra, após a entrada em vigor do NRAU, transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine a alteração da titularidade em mais de 50%.
Note-se que, como supra se aludiu, e como melhor explica Maria Olinda Garcia, a respeito da redacção do art. 28.º do NRAU conferida pela Lei n.º 31/2012: “Na sua anterior redação, o artigo 28.º limitava-se a remeter para o disposto no artigo 26.º, pois as limitações em matéria de direito de denúncia por iniciativa do senhorio nos contratos mais antigos eram praticamente idênticas às que vigoravam para os contratos previstos no artigo 26.º. Como na sua actual versão o artigo 26.º deixa de estabelecer as anteriores limitações à denúncia por iniciativa do senhorio, tais limitações passam agora a ser expressamente referidas no artigo 28.º, já que se mantêm em vigor para os arrendamentos mais antigos” (in “Arrendamento Urbano Anotado – Regime Substantivo e Processual (Alterações Introduzidas pela Lei n.º 31/2012), 3.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 134/135). De igual modo, as situações excepcionadas da proibição da livre denúncia deste tipo de contratos pelo senhorio contempladas no art. 28.º, n.º 3, versão Lei n.º 31/2012, já existiam, mas previstas no art. 26.º, n.º 6 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, na sua versão originária, e, portanto, é por referência à entrada em vigor desta lei que terá de se verificar a sua ocorrência com relevância para a denúncia pelo senhorio. Em todo o caso, nos autos, a situação que motivou a denúncia pela recorrida, transmissão inter vivos das quotas sociais da recorrente, ocorreu em 31/12/2013 e em 2014, após a entrada em vigor da Lei n.º 31/2012 de 14/08 (cfr. art. 65.º), pelo que se mostra irrelevante a data da entrada em vigor da Lei 79/2014, de 19/12, que a este respeito não introduziu alterações de relevo no NRAU.
Assim sendo, a denúncia do presente contrato de arrendamento para fins não habitacionais celebrado antes do DL n.º 257/95 efectuada pela recorrida, enquanto senhoria, mediante comunicação à recorrente arrendatária por carta registada datada de 7/07/2017 para ter efeitos em 13/07/2022, tendo por motivo a circunstância, não conhecida dos seus antecessores e por aquela conhecida nesse ano de 2017, de que as participações sociais desta haviam sido transmitidas inicialmente em mais de 50% do capital social e depois na totalidade, encontra cobertura legal nos termos sobreditos.
Verdade que a Lei n.º 13/2019, de 12/02, revogou, além do mais, o n.º 3, al. b), do citado artigo 28.º, deixando, assim, a circunstância que motivou a comunicação de denúncia dos autos, de ter esta relevância jurídica. Neste contexto, existe um conflito de leis no tempo, porquanto a denúncia motivada do contrato dos autos foi efectuada em 2017 ao abrigo de uma norma jurídica que, por força de uma lei nova de 2019 já não estava em vigor quando essa denúncia produziu efeitos em 2022. Não dando o art. 14.º da mencionada Lei n.º 13/2019, disposição transitória de carácter formal, ou qualquer norma de carácter material contida nesse diploma legal, resposta ou solução para o presente conflito, a sua resolução faz-se com recurso ao art. 12.º do CC, cujo princípio geral é o da não retroactividade da lei, que no caso tem aplicação, posto que o facto extintivo do contrato de arrendamento foi a declaração de denúncia por motivos a que, em 2017, o art. 28.º, n.º 3, al. b) do NRAU conferia essa relevância jurídica (com interesse Baptista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina. Coimbra, 1987, págs. 229 a 231). Daí, a Lei n.º 13/2019, de acordo com o art. 12.º, n.ºs 1 e 2, 1.ª parte, e 2.ª parte, a contrario, do CC, não se aplicar aos factos extintivos verificados antes do seu início de vigência. À semelhança do que sucedeu com a situação descrita no acórdão do STJ de 23/03/2021 (Proc. 6208/19.8t8prt.P1.S1; rel. Maria João Vaz Tomé), que se cita: “Quando a Lei n.º 13/2019 entrou em vigor, já se havia constituído na esfera jurídica do senhorio o direito de denúncia do contrato, e este já o tinha adequadamente exercido. A denúncia rege-se, pois, pela lei em vigor ao tempo da sua comunicação ao arrendatário (art. 1101.º, al. c), na redação da Lei n.º 31/2012)” – www.dgsi.pt.
Sendo, portanto, legítima a denúncia efectuada pela recorrida, o contrato de arrendamento em discussão extinguiu-se em 13/07/2022, pelo que, não tendo, como, de acordo com os arts. 1038.º, al. i); 1079.º e 1081.º, n.º 1 do CC, era sua obrigação, restituído a fracção naquela data, que, de resto continuou a ocupar, a recorrente, atento o disposto nos arts. 1045.º, n.ºs 1 e 2; 804.º, n.º 2; 805.º, n.º 2, al. a) e 799.º, n.º 1 do CC, incorreu em mora a partir de então, tendo de indemnizar a recorrida até ao momento da restituição através do pagamento das rendas devidas elevadas ao dobro (com interesse vide acórdão da RL de 7/10/2021, rel. Teresa Sandiães, proc. 12886/20.8LSB.L1-8; acórdão da RP de 7/02/2022, rel. Joaquim Moura, proc. 18617/18.5T8PRT.P1; acórdão da RP de 13/11/2023, rel. Anabela Morais, proc. 6887/21.6T8VNG.P1 e acórdão do STJ de 16/01/2025; rel. Nuno Pinto Oliveira, proc. 893/23.3T8FAR.E1.S1).
De onde, cessado nos termos sobreditos o contrato de arrendamento em apreço, a desocupação do local e a sua entrega, por força do citado art. 1081.º, n.º 1 do CC, torna-se imediatamente exigível, o que, aliás, foi pedido com base em factualidade correspondente que veio a revelar-se fundada. E uma vez extinto, o contrato de arrendamento deixou de ser passível de resolução, que, justamente, pressupõe, a sua manutenção. Assim, o recurso pela própria A./recorrida à resolução contratual para enquadrar o efeito jurídico pretendido, sem outro fundamento, afigura-se-nos incorrecto, desnecessário e supérfluo, e, como tal, o respectivo pedido não pode deixar de ser julgado improcedente. Em todo o caso, pese embora o pedido de entrega da fracção tenha sido subordinado ao pedido de declaração da resolução contratual, afigura-se-nos que, havendo fundamento para aquele pedido, como sucede no caso, em virtude da validade e legitimidade da denúncia, que não carece de reconhecimento judicial, o tribunal não está impedido de o conceder à A./recorrida (com interesse Pedro Romano Martinez, in “Da Cessação do Contrato”, 2017, 3.ª Edição, Almedina, págs. 312/313).
A este respeito, veja-se o acórdão da RE de 8/02/2024 (rel. Isabel Matos Peixoto Imaginário, proc. 716/22.0T8ELV.E1), em que se pode ler: “Não obstante o princípio do dispositivo ser um princípio norteador do processo civil, determinativo na configuração do objeto do processo, certo é que pode conceber-se “um entendimento mais flexível que – com base, desde logo, em relevantes considerações de ordem prática – consente, dentro de determinados parâmetros, o suprimento ou correção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, admitindo-se a convolação para o decretamento do efeito jurídico ou forma de tutela jurisdicional efetivamente adequado à situação litigiosa”[3], prosseguindo uma visão substancialista, acolhida, designadamente no Assento do STJ de 28/3/95[4] e o Acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2001[5], conforme se enuncia no Ac. STJ de 07/04/2016.[6]
Seguindo de perto o referido aresto, há que atentar no efeito prático-jurídico que se pretende alcançar através da propositura da ação. “Considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica,convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado. Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objeto do pedido e o objeto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspetivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida. E daqui decorre que não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica.” No que respeita ao âmbito em que pode ter lugar a reconfiguração ou reconstrução normativa pelo juiz da pretensão efetivamente formulada pela parte ali se sustenta que “é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efetivamente, na sua estratégia processual, curou de formular” (in www.dgsi.pt).
Acresce que, de facto, como escreveu o tribunal recorrido, “as negociações tendentes à celebração de um novo contrato (com nova renda e duração) para repor o equilíbrio contratual existente, não configura uma situação de abuso de direito”. O mesmo em relação à comunicação do aumento da renda, que, estando legitimada pela vigência do contrato de arrendamento, não é idónea a criar no arrendatário expectativas quanto ao não exercício de outros direitos substancial e temporalmente compatíveis do senhorio. Com efeito, o abuso de direito que a recorrente reclama na modalidade de venire contra factum proprium, também chamado de comportamento contraditório, é caracterizado, segundo a doutrina, de que se cita Heinrich Ewald Hörster, como sendo “adoptado pelo titular do direito um comportamento positivo no sentido de não querer exercer o mesmo, tendo esta atitude como consequência as correspondentes disposições da outra parte” (in “A Parte Geral do Código Civil Português Teoria Geral do Direito Civil”, 1992, Almedina, Coimbra, pág. 285).
No caso, as comunicações do aumento da renda ou as negociações com vista à celebração de um novo contrato, com nova renda e duração, em nada contrariam a declaração, coeva ou subsequente, da denúncia legítima do velho contrato e, como tal, não se mostram passíveis de criar na parte contrária expectativas fundadas quanto ao não exercício deste direito extintivo. De onde, à luz do art. 334.º do CC, a denúncia em causa não constitui abuso de direito.
Finalmente, quanto ao pedido reconvencional, que consiste no pedido de condenação da recorrida a pagar à recorrente a quantia de 92.825,87 € a título de benfeitorias realizadas no locado, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Da matéria de facto, o que consta a este respeito é que em 2014 foram feitos na fracção autónoma novos revestimentos (chão, paredes e tectos), renovadas a instalação eléctrica e iluminação, rede de abastecimento de águas, as casas de banho (novas louças, torneiras e canalização) e realizadas pinturas no imóvel, os trabalhos realizados obtiverem a concordância do senhorio e que a globalidade dos trabalhos executados no imóvel ascendeu a €92.825,87.
De acordo com o art. 29.º, n.º 1 do NRAU, salvo estipulação em contrário, a cessação do contrato dá ao arrendatário direito a compensação pelas obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas por possuidor de boa-fé.
Ora, como bem salienta o tribunal a quo, e a recorrente reconhece, resulta da economia da cl.ª 4.ª do contrato de arrendamento que quaisquer obras efectuadas no locado (sejam de conservação, limpeza, adaptação dele ao fim a que se destina “…ou quaisquer outras…” (§ único dessa cl.ª) não conferem à arrendatária o direito a qualquer indemnização. Trata-se de uma cláusula inserida e mantida num contrato de arrendamento para indústria e comércio de confeitaria, snack-bar, bufete, café e a qualquer outro ramo da indústria hoteleira, em que a necessidade de obras de adaptação e de actualização são previsíveis quer para os contraentes originários quer para os subsequentes que, como a recorrente, adquiriu este tipo de estabelecimento sujeito a desgaste e à concorrência dos pares. Não se nos afigura, pois, que a previsão de uma cláusula do género não tenha contemplado esta realidade, e, como tal, a sua interpretação, à luz do art. 236.º do CC, deve ser a correspondente a esse sentido expresso pelas partes na responsabilização do arrendatário pelas obras por si realizadas no locado, sem direito a indemnização.
Conclui-se desta forma pela procedência parcial da apelação, revogando-se a declaração de resolução do contrato de arrendamento dos autos, e mantendo-se, no mais, inclusive na condenação da recorrente a entregar à recorrida o local livre de pessoas e bens.
As custas do recurso são pela recorrente e pela recorrida na proporção do respectivo decaimento que se fixa em 90% para a primeira e em 10% para a segunda (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a declaração de resolução do contrato de arrendamento dos autos, e mantendo-se, no mais, inclusive na condenação da recorrente a entregar à recorrida o local livre de pessoas e bens.
As custas do recurso são pela recorrente e pela recorrida na proporção do respectivo decaimento que se fixa em 90% para a primeira e em 10% para a segunda.
Notifique.
Porto, 4/6/2025
Carla Fraga Torres
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo [Voto de vencido:
Julgaria a acção totalmente improcedente, com a procedência da apelação (pedido principal), por considerar, com o devido respeito pelo entendimento que fez vencimento, que não assiste à A. o invocado direito de denúncia do contrato, porque resultante de alterações societárias ocorridas (até 2014) antes de ela, como actual senhoria, ter adquirido a propriedade sobre o imóvel (2016) e com os seguintes fundamentos jurídicos:
1) A transmissão do direito de denunciar o contrato a favor da actual senhoria apenas poderia ocorrer por força do disposto no art. 1057.º do Código Civil. Todavia, para além de tal regra ter o propósito de proteger o locatário, através do princípio da subsistência da locação (emptio non tollit locatum), apenas produz, em princípio, efeitos ex nunc, por força dos quais o adquirente “sub-roga-se na posição dele [locador] unicamente desde a data da aquisição” (cfr. J. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 2.ª ed., p. 482). De modo que, “havendo, e. g., rendas ou alugueres em dívida à data da morte do locador, não caberá ao legatário a quem o bem locado tenha sido legado exigir o seu pagamento” e “da mesma forma, a falta de pagamento de rendas ou alugueres em período anterior ao óbito não será causa justificativa bastante para a resolução do contrato ou eventual despejo do locatário inadimplente pelo legatário” (cfr. Nuno Alonso Paixão, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em especial, UCP, p. 462; no mesmo sentido, cfr. ainda P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª ed., p. 401). O que, valendo para a resolução do contrato com base em facto ilícito do locatário (falta de pagamento das rendas), constitui orientação que, por igualdade ou maioria de razão, deve ter igualmente aplicação, segundo creio, para os casos, como o dos autos, em que a cessação do arrendamento é pretendida por alterações societárias manifestamente lícitas que a R. operou no seu seio.
2) A procedência da acção, no essencial, fundou-se no disposto no art. 28.º/3, al. b), do NRAU, emergente da Lei nº6/2006, de 27-2, mantido pelas Leis nº31/2012, de 14-8, e nº79/2014, de 19-2, e revogado pela Lei nº13/2019, de 12-2, a qual, como bem se salienta no acórdão, retirou relevância jurídica ao facto que motivou a denúncia contratual destes autos. Essa norma do art. 28.º/3 permitiu, até 2019, a denúncia de tradicionais arrendamentos vinculísticos, de duração indeterminada (contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, e contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro), em caso de trespasse, locação do estabelecimento ou cessão do arrendamento para o exercício de profissão liberal, na al. a), e sendo o arrendatário uma sociedade, de transmissão inter vivos de posição ou posições sociais que determine a alteração da titularidade em mais de 50 %, na al. b).
Em ambos os casos, creio que o fundamento subjacente à solução legal, o seu elemento racional, apenas poderia ser o de não impor ao senhorio, naquelas específicas situações (que em parte não abrangiam todos os arrendamentos para o comércio, mas apenas para o exercício de profissão liberal, o que não deixa de causar fundada perplexidade a respeito do princípio constitucional da igualdade), por mais de cinco anos, um arrendatário diferente daquele com quem contratou. Em consequência, parece perder todo o fundamento material a aceitação da denúncia e do despejo por parte de um novo senhorio que adquiriu tal posição contratual já depois do trespasse ou, como no caso dos autos, já após as alterações das posições sociais terem sido operadas na sociedade arrendatária. Por isso, perfilha-se como justificada, salvo o devido respeito por outra opinião, a interpretação restritiva daquela norma (já revogada) no sentido de, e em conformidade com o que se deixou escrito sobre o art. 1057.º do CC, não ser aplicável aos casos em que o trespasse ou a alteração da posição social tenha ocorrido perante senhorio diverso daquele que pretende o despejo. E da qual resultaria a inaplicabilidade do referido art. 28.º/3, al. b), ao processo em apreço.
Estas são, em síntese, as razões pelas quais não acompanho o douto entendimento que fez vencimento.]
Teresa Fonseca