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PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
ROL DE TESTEMUNHAS
ALTERAÇÃO
Sumário
O princípio do inquisitório não está consagrado para que o juiz, subvertendo as normas legais sobre a disciplina processual, vá admitindo aditamentos ao rol de testemunhas à medida que as partes vão alterando as suas opções em matéria probatória.
Texto Integral
Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
A … instaurou acção declarativa comum em 10/03/2027 contra Deutsche Bank Aktiengesellschaft - Sucursal em Portugal pedindo:
«a) Deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência;
b) Deve o tribunal, no caso de se vir a considerar a existência de um contrato verbal de intermediação financeira entre o Autor e o Réu, declarar a nulidade de tal contrato, com todas as consequências legais;
c) Deve o tribunal, ainda, declarar a nulidade das declarações e contratos vertidos nos documentos n.ºs 7 a 9 e 12 da presente Petição Inicial, nos termos do previsto nos artigos 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro;
d) Deve também o tribunal declarar a nulidade das cláusulas apostas no documento n.º 7 da presente Petição Inicial, relativas ao estabelecimento da obrigação imutável de ser a sucursal londrina do próprio Réu o agente do cálculo para a liquidação do produto, e a possibilidade do banco Réu poder deter informação não pública sobre os constituintes do cabaz, não tendo a obrigação de divulgar essa informação aos investidores, por serem ambas violadoras da alínea c) do n.º 1, e do n.º 4 do artigo 22.º do RGCC;
e) Mais deve o tribunal condenar o Réu a pagar ao Autor, na decorrência da verificação das nulidades acima peticionadas, a quantia de € 74.200,00 (setenta e quatro mil e duzentos Euros), relativa ao reembolso integral do valor de capital próprio investido pelo Autor;
Ou, alternativamente,
f) Deve o tribunal condenar o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 92.129,49 (noventa e dois mil, cento e vinte e nove Euros e quarenta e nove Cêntimos), a título da liquidação correta do produto financeiro complexo em causa nos autos e reembolso do valor de juros erroneamente calculados pelo Réu e cobrados ao Autor em outubro de 2013;
g) Deve ainda o tribunal condenar o Réu a pagar ao Autor, por conta do ressarcimento dos danos morais acima descritos, de uma indemnização equivalente a € 50,00 por cada dia decorrido desde a data em que o Réu lhe comunicou a perda do seu capital próprio - 17 de Agosto de 2015 - e até efetivo e integral restituição ao Autor pelo Réu desse capital, quantia que se liquida, até ao final do mês de março de 2017, no montante de € 28.500,00 (vinte e oito mil e quinhentos Euros;
h) Deve o Réu, por fim, ser condenado no pagamento de juros de mora à taxa legal sobre as quantias acima reclamadas, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento»
Alegou, em síntese:
- no ano de 2013 subscreveu um produto financeiro que lhe foi apresentado por funcionários do réu, fazendo-lhe acreditar que não comportava risco de perda do capital investido;
- em Agosto de 2015 uma funcionária do réu comunicou-lhe que essa aplicação financeira estava com perdas superiores a 40% e por isso teria perdido todo o seu capital próprio (74.200 €) e estaria já em dívida ao réu;
- apesar de contactos entre o autor e o réu com vista à recuperação das suas perdas, perdeu todo o capital próprio que investiu, o que lhe provocou ansiedade e depressão,
- além de que foi abandonado pela sua companheira de há 23 anos, B …,
que por sua recomendação se tornou cliente do réu – e que foi apresentada pelo autor à gestora de conta C … - e não lhe perdoou ter sido por si levada a investir também as suas poupanças junto do réu.
*
No final da petição inicial apresentou o rol de testemunhas.
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O réu contestou e, findos os articulados foi realizada audiência prévia em 15/10/2029, lendo-se na acta, além do mais:
«(…)
Nos termos do art. 596.º, n.º 1, do C.P.C., fixa-se:
- o objeto do processo:
a) saber se assiste ao autor o direito à restituição do valor por si investido e com que fundamento e, bem ainda, a ser indemnizado pelos danos não patrimoniais emergentes da conduta do réu; em alternativa
c) apurar se o réu está obrigado a pagar ao autor o valor de € 92.129,49, correspondente ao valor da liquidação do produto investido e, bem ainda, a ressarcir o autor dos danos morais sofridos.
**
- os temas da prova:
Considerando a posição das partes vertida nos respetivos articulados, considera-se que constituem temas a provar os seguintes pontos:
1) a informação que foi prestada ao autor e o (des)conhecimento do mesmo quanto às caraterísticas do produto financeiro subscrito;
2) as circunstâncias em que o autor subscreveu o questionário de avaliação e falta de entrega dos duplicados dos documentos subscritos (designadamente declaração manuscrita de investidor, boletim de subscrição, informação fundamental do investidor);
3) o momento em que o autor se apercebeu das características do produto e da possibilidade de perda do capital investido;
4) a ordem de venda da notes e a suspensão da mesma e as condições/soluções apresentadas para a venda/recuperação do capital investido;
5) o valor real da liquidação das notes;
6) os danos decorrentes para o autor da conduta do réu.
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Dada a palavra aos Il. Mandatários das partes, pelos mesmos foi dito não terem qualquer reclamação a apresentar relativamente ao despacho que antecede.
*
Dada a palavra aos Il. Mandatários para se pronunciarem sobre os meios de prova, pelos Il. Mandatários das partes foi dito nada terem a alterar aos requerimentos probatórios apresentados nos articulados.
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Após, pela Mma. Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
IV. Prova
Nos termos do art. 423.º, n.º 1, do C.P.C., por tempestivos, admitem-se os documentos juntos pelas partes nos seus articulados.
Defere-se, ainda, o requerido pelo autor no ponto C da prova documental indicada na p.i., determinando-se que seja oficiada a CMVM, solicitando a remessa aos autos de cópia certificada da totalidade da documentação relativa ao produto "Notes db Cabaz Global Jun. 2016" ISIN: X … 46.
Admite-se as declarações de parte do autor à matéria indicada, nos termos do art. 466.º do C.P.C..
Mais, se admitem os róis de testemunhas, nos termos do art. 507.º do C.P.C., ordenando-se a notificação das mesmas para comparecer em Tribunal, conforme requerido.
No que respeita à prova pericial requerida pelo autor, por não se julgar a mesma impertinente nem dilatória, vai a mesma deferida.
(…)».
*
Em 13/09/2024 foi realizada a 1ª sessão da audiência final.
Em 17/09/2024 o autor, invocando o art. 598º nº 2 do Código de Processo Civil), requereu alteração do seu rol de testemunhas, com a substituição da testemunha D … por E …, o que foi indeferido por despacho de 03/10/2024 nestes termos:
«Requerimento do A. datado de 17.09.2024 (Refª … 06):
Considerando que a audiência final já se iniciou, não se admite a alteração ao rol de testemunhas apresentado pelo A., ao abrigo do disposto no art. 598º, nº2 do CPC.»
Esse despacho não foi impugnado.
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Na sessão da audiência final de 27/02/2025, após as declarações de parte do réu, foi por este apresentado o seguinte requerimento:
«O artigo 526. °, n.º 1 do Código de Processo Civil prevê que "1 - Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor."
O Autor entende existirem razões para presumir que a cidadã B …, titular do Cartão de Cidadão … 67, Advogada, Chefe da Unidade … e residente na Rua … Faro, que não foi oferecida nos autos como testemunha (mas, constando mencionada nos artigos 59.° e 120.° a 125.° da Petição Inicial), tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, designadamente acerca da informação que terá sido ou não prestada ao Autor pelo Réu e o conhecimento ou desconhecimento do mesmo quanto às caraterísticas do produto financeiro subscrito (1.° dos Temas da Prova), e, ainda, o momento em que o Autor se apercebeu das características do produto e da possibilidade de perda do capital investido (3.° dos Temas da Prova), devendo o tribunal ordenar que tal cidadã seja notificada para depor nos presentes autos.
Acresce que, quanto ao 1º dos Temas da Prova, as declarações de parte agora prestadas pelo Autor se mostram em "oposição com o sentido e alcance do depoimento da testemunha C …, na parte em que invocou que o Autor teria estado presente na reunião de explicação do produto financeiro contratado por B … junto do Deutsche Bank, o que, no entender do Autor não é verdade, revelando-se, em consequência, a inquirição da referida B … como necessária e útil para a descoberta da verdade e boa composição do litígio, consubstanciando, por fim, a concretização de tal inquirição, um verdadeiro dever do julgador, pelo que se requer ao tribunal a inquirição, por sua iniciativa, da identificada cidadã, devendo a mesma ser notificada para depor.»
*
O réu respondeu nestes termos:
«Veio o autor oferecer aos autos um requerimento sustentando que, nos termos do art. 526º, deveria ser inquirida por iniciativa do Tribunal, a Ssa. B …. Sucede que esta iniciativa prevista no artigo 526º, deverá ser promovida como diz o referido artigo pelo próprio juiz e não a requerimento das partes.
De facto, e como bem refere o autor, a sra. D.ª B … já consta da factualidade que vem descrita na petição inicial que é datada de 2017.
Assim caso o autor pretendesse ouvir a testemunha ou considerasse que a mesma era imprescindível para a descoberta da verdade nestes autos, deveria por sua livre iniciativa requerer a sua inquirição dentro dos limites do CPC.
Nessa medida parece-nos não só que, pela inaplicabilidade do artigo 526º mas também por ser manifestamente extemporâneo, o pedido agora formulado, ainda para mais depois de já ouvido o autor, deverá ser liminarmente indeferido.»
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De seguida foi proferido o seguinte despacho:
«Considerando que o artigo 526ºdo CPC prevê a inquirição por iniciativa do Tribunal, entende-se que o requerimento ora formulado pelo A. não tem enquadramento legal, pelo que se indefere o mesmo.»
*
Inconformado, apelou o réu, terminando a alegação com estas conclusões:
«A. O princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente, pois, de solicitação das partes;
B. Destarte, não se excluem, para o despoletar, alertas, sugestões e, mesmo, requerimentos, a apresentar pela parte nelas interessadas, tendo, cada uma delas o direito de influenciar o Tribunal em busca de decisão, a si, favorável;
C. O art. 526º, do CPC, materializando aquele princípio, visa salvaguardar a possibilidade de se inquirir uma pessoa sobre quem se gerou a convicção de o seu depoimento se revelar importante para a boa decisão da causa, por dos autos (dos articulados da causa ou de qualquer meio de prova produzido ao longo do processo e não, meramente, em audiência de julgamento) decorrer a presunção de conhecer os factos em discussão, impondo-se, nesse caso, ao juiz que ordene a sua notificação para depor;
D. Tal imposição é independente e autónoma da posição que as partes tenham tomado quanto à seleção de meios de prova e da possibilidade, que tenha havido, de indicação do concreto meio em causa, bastando que objetivamente se revele necessário à realização dos referidos fins;
E. A inobservância do inquisitório, a gerar nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC - porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa –, pode, validamente, ser suscitada no recurso da decisão interlocutória de não audição, apelação autónoma e imediata da decisão de rejeição de meio de prova (al. d), do nº2, do art. 644º, do CPC);
F. A decisão recorrido, ao interpretar e aplicar ao caso dos autos o disposto no artigo 526.º do CPC de modo contrário ao sentido e alcance das conclusões supra, viola os princípios basilares de direito adjetivo do inquisitório e da descoberta da verdade material, e, bem assim, o artigo 411.º do mesmo compêndio legal.
TERMOS EM QUE, se requer a Vs. Ex.ªs:
Pelos fundamentos expostos, deve esse TRL julgar a presente Apelação procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando-se que a testemunha seja, ao abrigo do nº 1, do art. 526º, do CPC, notificada para depor em audiência de julgamento.»
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Não há contra-alegação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, sem prejuízo de questões que sejam de conhecimento oficioso, pelo que a questão a decidir é:
- se deve ser notificada B … para depor como testemunha
*
III – Fundamentação
Segundo o apelante, a decisão da 1ª instância viola o princípio do inquisitório consagrado nos art. 411º e 526º do CPC (Código de Processo Civil) dizendo, designadamente que «Apesar de a cidadã B … constar mencionada nos artigos 59.º e 120.º a 125.º da Petição Inicial e, bem assim, de o Autor ter tido a possibilidade de a indicar como testemunha e o não ter feito, tal não constitui impedimento de, apesar de o Autor a já não poder indicar, vir alertar, sugerir ou mesmo requerer ao Tribunal que, lançando mãos dos seus poderes inquisitórios, proceda à sua inquirição».
Prevê o CPC:
Art. 410º
«A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova.»
Art. 411.º
«Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.»
Art. 526º
«1 - Quando, no decurso da ação, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.
2 - O depoimento só se realiza depois de decorridos cinco dias, se alguma das partes requerer a fixação de prazo para a inquirição.»
Art. 552º
«(…)
6 - No final da petição, o autor deve apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova; caso o réu conteste, o autor é admitido a alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, podendo fazê-lo na réplica, caso haja lugar a esta, ou no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação.
(…)»
Art. 598º
«1- O requerimento probatório apresentado pode ser alterado na audiência prévia quando a esta haja lugar nos termos do disposto no artigo 591.º ou nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 593.º.
2 - O rol de testemunhas pode ser aditado ou alterado até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias.
3 - Incumbe às partes a apresentação das testemunhas indicadas em consequência do aditamento ou da alteração ao rol previsto no número anterior.»
Como se vê no relatório deste acórdão, na audiência prévia o apelante declarou não pretender alterar o seu requerimento probatório apresentado na petição inicial; posteriormente, invocando o art. 598º nº 2 do CPC, requereu alteração do seu rol de testemunhas, mas viu a sua pretensão indeferida por despacho de 03/10/2024 transitado em julgado; optou por não arrolar como testemunha B …, apesar de na petição inicial ter alegado que essa pessoa era a sua companheira na altura dos factos e que por influência do apelante investiu poupanças no apelado, tendo até estado os dois numa reunião com a testemunha C ….
Portanto, não foi depois da apresentação da petição inicial e muito menos no decurso da audiência final, iniciada sete anos depois da instauração da acção, que surgiu o conhecimento de que essa pessoa tem conhecimento dos factos a que respeitam os temas da prova.
Mas agora já tem interesse no depoimento de B … e, na impossibilidade legal de aditar o rol de testemunhas, pretende obter o que lhe está vedado por lei, valendo-se da invocação do princípio do inquisitório para impor ao tribunal que proceda à sua audição.
Ora, o princípio do inquisitório não está consagrado para que o juiz, subvertendo as normas legais sobre a disciplina processual, vá admitindo aditamentos ao rol de testemunhas à medida que as partes vão alterando as suas opções em matéria probatória.
Concluindo, o despacho recorrido nenhuma norma legal violou.
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IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelo apelante.
Lisboa, 05 de Junho de 2025
Anabela Calafate
Nuno Lopes Ribeiro
Vera Antunes