DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
TÍTULO CONSTITUTIVO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL
ALTERAÇÃO
NULIDADE
Sumário

Sumário: (elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7 do CPC)
Incorre no vício de nulidade a deliberação da assembleia de condomínio, tomada por maioria, que procedeu à distribuição/afetação das arrecadações no sótão por determinadas frações, por constituir uma alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal, em violação da norma imperativa do artº 1419º, nº 1 do CC.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

JJ e LL instauraram ação declarativa sob a forma de processo comum contra o Condomínio do prédio sito na Rua …, pedindo a anulação das deliberações tomadas em Assembleia de Condomínio Extraordinária datada de 29 de dezembro de 2022 referentes aos Pontos 1, 2, 3, 4 e 5 da referida Assembleia, com as inerentes consequências legais. Requereram a intervenção principal provocada do Banco Santander Totta, S.A., por ser o proprietário da fração autónoma em questão, tendo celebrado com os autores, em 13.12.2019, um contrato de locação financeira.
O R. apresentou contestação, excecionando a ilegitimidade dos AA e a prescrição. Mais pugnou pela improcedência do pedido.
Após convite pelo tribunal, os AA. responderam às exceções, concluindo pela sua improcedência.
Foi proferida decisão que julgou procedente o incidente de intervenção principal provocada do Banco Santander Totta, S.A., ao lado dos Autores.
O chamado limitou-se a juntar procuração forense aos autos.
Realizada audiência prévia foi proferido despacho saneador, julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade e prescrição. Foi delimitado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após realização da audiência de julgamento foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente, e, em conformidade:
i) decide-se pela nulidade da deliberação tomada pela Assembleia de Condóminos realizada em 29 de Dezembro de 2022, relativa ao ponto 4 da ordem de trabalhos elencados na respectiva convocatória;
ii) julga-se improcedente o pedido de declaração de anulabilidade da(s) deliberação(ões) correspondentes aos pontos 1, 2, 3 e 5 da ordem de trabalhos elencados na respectiva convocatória;
iii) condena-se as partes ao pagamento das custas da acção, na proporção de 70% e 30%, respectivamente.
Valor da acção: € 30.000,01.”
O R. interpôs recurso da sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“1 - Sentença recorrida padece da nulidade suprarreferida, tendo sido igualmente violado o disposto no citado art.º 660.º, n.º 2 do C.P.C.
2 – A sentença violou o artigo 668.º do C.P.C.
3 - Dúvidas não restam que desde pelo menos 2003 que a situação se mantém conforme depoimento da testemunha SS.
4 - Ora entende a recorrente que da prova testemunhal que se encontra gravada a reproduzir e que consta dos autos, deveriam ter sido ainda dados como provados, factos alegados que considera relevantes para a sua pretensão:
- Os autores nunca tiveram acesso às arrecadações existentes no sótão, ou seja,
- As arrecadações não existem conforme projeto apresentado na camara, e as mesmas, desde o acordo de compra efetuado entre o antigo proprietário do 2.º piso e o antigo proprietário do 1.º piso, em 31 de janeiro de 2003, foram transformadas em escritórios.
- Encontrando-se na posse total do antigo proprietário.
- O proprietário BB visitou sempre com o antigo proprietário, as referidas arrecadações atualmente transformadas em escritórios sempre estiveram na posse do antigo proprietário, sem quaisquer bens moveis no seu interior e interligadas entre si.
- Em momento alguns os autores manifestaram ter direito a qualquer espaço no sótão.
- A escritura de compra e venda das frações, realizou -se no dia 27 de março de 2020.
- As referidas arrecadações só existiram no projeto inicial de construção do edifício.
- A arrecadação 1 e 4 são escritórios interligados entre si, e as arrecadações 2 e 3 foram transformadas em wc,
- O fornecimento de água e luz estava a ser feito pelas frações do 2.º piso.
- Na conservatória do registo predial, constava que todas as 4 frações (1.º dto, 1.ºesq, 2.º dto e 2.º esq.) tinham uma arrecadação no sótão;
4- Nao existia registo na Conservatória do Registo Predial nem na propriedade horizontal, teria de ser definida em assembleia de condomínios a questão das arrecadações.
5 - A Câmara Municipal de … informou que teria de existir uma votação em assembleia de condomínio.
6 - O título constitutivo da propriedade horizontal consiste na escritura notarial que define o edifício como tal, isto é, divide-o em frações autónomas e independentes e determina as suas partes comuns.
7 - Nos termos do no nº 1 do artigo 1418º do Código Civil “no título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.”
8 - A escritura de constituição de propriedade horizontal contempla as seguintes informações acerca do edifício:
• Composição de cada fração autónoma.
• Valor relativo a cada fração face ao valor total do prédio, em percentagem ou em permilagem;
• Fim a que se destina cada fração (habitação, comércio, indústria, etc.) e as partes comuns.
9 - É ainda mencionado no artigo 1415º do Código Civil que “só podem ser objeto de propriedade horizontal as frações autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.”
10- O tribunal a quo errou na análise dos fatos e dos documentos juntos aos autos.
11- Não existe nenhum documento que atribuía determinada arrecadação a uma determinada fração.
12- O que a constituição da propriedade horizontal diz e que a fração tem uma arrecadação no sótão, não individualizando qual a arrecadação que corresponde aquela fração em concreto.
13 - Pelo que, não tendo a escritura de constituição sido elaborada corretamente, individualizando em concreto qual a fração e qual a arrecadação que lhe pertence.
14 - Nao podia o tribunal a quo dizer que a fração tinha adstrita aquela arrecadação.
15 - O longo período de inação dos condóminos gerou a confiança justificada do Réu, condomínio que a utilização daquela arrecadação era pacífica, sendo divisável um investimento de confiança por parte da reu a partir do momento em que a reu passou a utilizar a arrecadação apos a aquisição da mesma ao Sr SS, que desde 2003 o fazia.
16 - Pelo que o tribunal a quo deveria ter decidido que a arrecadação dos autos e utilizada pelo proprietário BB, e não pelos autores, pelo que a pretensão dos Autores está neutralizada pelo abuso de direito na modalidade da supressio.
17 - Pelo que o tribunal a quo deveria ter decidido que a arrecadação dos autos e utilizada pelo proprietário BB, e não pelos autores, pelo que a pretensão dos Autores está neutralizada pelo abuso de direito na modalidade da supressio.
Nestes termos e nos demais de direito, sempre com mui douto suprimento de V. Exas. deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a decisão preferida pelo tribunal de primeira instancia no que concerne a atribuição das arrecadações”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
“1. Através da apresentação n.º …, de 13 de Dezembro de 2019, foi registada a aquisição, a favor da chamada Banco Santander Totta. S.A., por compra, da fracção autónoma designada pela letra “C” sito na Rua ..., descrito no Serviço de Finanças …. sob o registo n.º XXX daquela freguesia e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 0022.
2. Através de escrito particular, intitulado de “Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ….”, celebrado a 13 de Dezembro de 2019, a chamada cedeu aos autores o gozo do bem imóvel identificado em 1.
3. Ainda no decorrer do mês de Dezembro de 2019, os autores mudaram o seu escritório para estas instalações, onde, desde então, exercem advocacia e nas quais se encontram placas identificativas do seu escritório.
4. Desde a data referida em 3. que os autores utilizam a arrecadação no 3.º andar (identificada como n.º 4 da planta de atribuição apresentada na Assembleia).
5. No que respeita à utilização da arrecadação, os autores vêm usufruindo da mesma sem necessidade de qualquer adaptação, sendo que, o referido espaço possui fornecimento de energia eléctrica que provém da fracção C, a qual controla o respectivo abastecimento, porquanto a arrecadação não possui abastecimento de energia próprio e independente da referida fracção.
6. No que diz respeito à constituição do prédio, temos que, de um lado encontra-se a sociedade M. CONSTRUÇÕES, LDA., proprietária das fracções A, E e F, sendo os sócios dessa sociedade BB e CC.
7. Quanto à fracção B, a mesma é propriedade da sociedade HH & BB, CONSTRUÇÕES E OBRAS PÚBLICAS, LDA., a qual tem igualmente como seus sócios BB, CC e HH.
8. No que concerne à fracção D, a mesma mostra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial a favor do BANCO …, S.A.
9. Os condóminos M. CONSTRUÇÕES, LDA. e HH & BB, CONSTRUÇÕES E OBRAS PÚBLICAS, LDA. detêm, conjuntamente, a permilagem global de 840 ‰.
10. Do outro lado encontra-se a fracção C, da qual são locatários os ora autores, a qual tem a permilagem de 160 ‰.
11. Ainda no que concerne à composição do prédio, o mesmo é composto pelas seguintes fracções:
i. Fracção A, localizada no R/C Dt.º, composta por loja no R/C e arrecadação na cave, tendo a mesma a permilagem de 250 ‰ e à qual foi atribuída aquando da constituição da propriedade horizontal o valor de 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos);
ii. Fracção B, localizada no R/C Esq.º, composta por loja no R/C e arrecadação na cave, tendo a mesma a permilagem de 210 ‰ e à qual foi atribuída aquando da constituição da propriedade horizontal o valor de 1.260.000$00 (um milhão e duzentos e sessenta mil escudos);
iii. Fracção C, localizada no 1.º andar Dt.º, composta por escritório localizado no 1.º andar e arrecadação no sótão, tendo a mesma a permilagem de 160 ‰ e à qual foi atribuído aquando da constituição da propriedade horizontal o valor de 960.000$00 (novecentos e sessenta mil escudos);
iv. Fracção D, localizada no 1.º andar Esq.º, composta por escritório localizado, respectivamente, no 1.º andar e arrecadação no sótão, tendo a mesma a permilagem de 110 ‰ e à qual foi atribuído aquando da constituição da propriedade horizontal o valor de 660.000$00 (seiscentos e sessenta mil escudos);
v. Fracção E, localizada no 2.º andar Dt.º, de composição e valor atribuído aquando da constituição da propriedade horizontal iguais à Fracção C;
vi. Fracção F, localizada no 2.º andar Esq.º, de composição e valor atribuído aquando da constituição da propriedade horizontal iguais à Fracção D.
12. No dia 29 de Dezembro de 2022, pelas 10h00, teve lugar a Assembleia de Condóminos Extraordinária do prédio identificado.
13. Sendo que, na respectiva ordem de trabalhos, constavam os seguintes temas:
“Ponto 1 – apresentação, discussão e votação dos orçamentos para peritagem do edifício”;
“Ponto 2 – apresentação, discussão e votação do orçamento para obra urgente da cobertura”;
“Ponto 3 – apresentação, discussão e votação de orçamento para as obras de conservação e beneficiação de fachadas do edifício”;
“Ponto 4 – discussão e votação quanto à atribuição do usufruto das arrecadações”;
“Ponto 5 – nomeação da administração do condomínio para o ano de 2023.”;
“Ponto 6 – Outros assuntos de interesse do condomínio.”
14. A convocatória para a Assembleia referida em 12., datada de 19.12.2022, foi assinada pela Dr.ª RR, Advogada, a qual se intitulou como representante da Administração, tendo o seguinte teor:
“Nos termos do número 1 do artigo 1432.°, todos do Código Civil, o administração do prédio sito na Rua …, convocam os senhores condóminos do mesmo edifício para a assembleia geral de condóminos extraordinária, a realizar no dia 29 de Dezembro do 2022, pelas 10 h, através de meios do comunicação à distância. por via telemática com recurso a videoconferência, com a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto 1 - apresentação, discussão e votação dos orçamentos para a peritagem do edifício
Ponto 2 - apresentação, discussão e votação do Orçamento para Obra urgente da cobertura
Perito 3 - apresentação, discussão e votação de orçamento para obras de conservação c beneficiação de fachadas do edifício
Ponto 4 - discussão e votação quanto à atribuição do usufruto das arrecadações
Ponto 5 - nomeação da administração do condomínio para o ano de 2023.
Ponto 6 - Outros assuntos de interesse do condomínio.
A Assembleia Geral destina-se exclusivamente a Condóminos ou seus representantes, os quais, para efeitos de participação na Assembleia e exercício dos respetivos direitos, deverão entregar o respetivo documento de suporte para o email (…@.pt) até ao início dos trabalhos.
Para participar na Assembleia Geral através de videoconferência os Senhores Condóminos devem confirmar à Administração de Condomínio a sua intenção de participar, após o que esta fará chegar a cada um link que permitirá a aceder à reunião.
Cada link será pessoal e intransmissível devendo anda o Condómino garantir que nenhuma pessoa sem direito a participar na Assembleia Geral assista à mesma.
Na confirmação da intenção de participar na Assembleia, desde já solicitamos que cada condómino se identifique indicando a sua fração e se irá estar presente ou representado e, neste caso, por quem.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2022
P’los Administradores
(…)”
15. A referida convocatória foi recebida, pelos autores, a 22 de Dezembro de 2022.
16. No envelope no qual foi endereçada a referida convocatória constava identificada como remetente a sociedade comercial por quotas “HH & BB, Construções e Obras Públicas, Lda.” e a morada “Rua …”.
17. A referida Assembleia de Condóminos decorreu através de videoconferência, sendo que “(…) Fizeram-se representar os condóminos proprietários das fracções correspondentes ao r/ch lojas direita (A) e esquerda (B), primeiro andar esquerdo (D) e segundos andares direito (E) e esquerdo (F), conforme procuração anexa à presente acta e o primeiro andar direito (D), representando assim a totalidade da permilagem (…)”.
18. A chamada Banco Santander Totta. S.A. emitiu a favor da autora LL documento datado de 12.10.2022, com o seguinte teor:
“Assunto: Representação em Assembleia de Condóminos - prédio sito na Rua ….
BANCO SANTANDERTOTTA, S.A., sociedade anónima, com sede em Lisboa, na Rua Áurea, n.° 88,1100- 063 Lisboa, com capital social de € 1.391.779.674,00, registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o número único de matrícula e pessoa colectiva 500844321, condómino do prédio sito Rua …. (Fracção autónoma designada pela letra "C"), confere á Exma Sra LL (locatária da fração autónoma designado pela letra "C") todos os poderes necessários para o representar nas reuniões e assembleias de condóminos, que se realizem no decurso da vigência do contrato de Locação Financeira Imobiliária que tem por objecto a fração autónoma designada pela letra "C", podendo nelas intervir, deliberar e votar todas as matérias que venham a ser discutidas, nos termos e condições que entenderem convenientes, desde que em obediência aos princípios, normas legais e disposições contratuais aplicáveis com excepção, das matérias que possam envolver qualquer alteração à fração locada, nomeadamente o tipo, a descrição, a composição, os direitos e vantagens, a permilagem, as áreas, o destino ou a afetação da mesma, as quais ficarão sempre dependentes da prévia avaliação, análise e decisão do Banco SantanderTotta, S.A..
O Banco confere poderes para representação na assembleia extraordinária caso venha a existir, bem como para deliberar a demandar judicialmente a administração vigente.”
19. Na Assembleia de Condóminos Extraordinária referida em 12., foi deliberado o seguinte:






20. Relativamente ao ponto 3. da convocatória para a aludida Assembleia de Condóminos, a Administração apenas procedeu ao envio de um orçamento, em momento anterior à sua realização, o qual se encontra em nome de SS, UNIPESSOAL, LDA., no montante de € 46.450,00 (quarenta e seis mil quatrocentos e cinquenta euros).
21. No dia 29 de Dezembro de 2022, a Dra. RR remeteu para os autores outros dois orçamentos para o efeito, um em nome de AA CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA., no montante de € 44.250,00 (quarenta e quatro mil duzentos e cinquenta euros) e outro em nome de M. CONSTRUÇÕES, LDA., no valor de € 52.700,00 (cinquenta e dois mil e setecentos euros).
22. A sociedade AA CONSTRUÇÕES, UNIPESSOAL, LDA. foi constituída pelo senhor BB, tendo este cedido a sua quota a 24 de março de 2022.
23. Relativamente ao ponto 4. da convocatória para a aludida Assembleia de Condóminos, a Dra. RR remeteu, no decurso da Assembleia em apreço e via correio eletrónico, a proposta de atribuição das arrecadações,
24. A qual atribuía a Arrecadação identificada como n.º 2 na planta de atribuição apresentada na aludida Assembleia, à fracção C.
25. A Acta da Assembleia Extraordinária realizada a 29 de Dezembro de 2022 foi remetida, por via eletrónica, a 30 de Dezembro de 2022,
26. Sendo que, não obstante a referida assembleia ter ocorrido no dia 29 do mês de Dezembro de 2022, na ata consta que “Aos vinte e nove dias do mês de Março de dois mil e vinte e dois, pelas dez horas, reuniu através de meios de comunicação à distância, por via telemática com recurso a videoconferência, a Assembleia Geral Extraordinária de Condóminos”.
27. As procurações assinadas pelos proprietários das frações A, B, D, E e F e nas quais estes conferiam poderes de representação na Assembleia à Dr.ª RR, não foram remetidas aos autores, nem anexadas à Ata da Assembleia Extraordinária realizada a 29 de Dezembro de 2022.
28. Em 30 de Janeiro de 2003, foi outorgado documento denominado de “Acordo” , tendo como intervenientes AA- Comércio e Assistência a veículos Motorizados, Lda. e DD - Sociedade de Construções, Lda., com o seguinte teor:
“1° Outorgante - AA - Comércio e Assistência a Veículos Motorizados. Lda., com sede na Avd. …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais sob o n.° 00.
2° Outorgante – DD - Sociedade de Construções, Lda., com sede na Rua …, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … sob o n.° 0007,
é celebrado o presente acordo que se regerá pelas seguintes cláusulas:

A 1ª Outorgante é dona das fracções A, B, C e D, correspondentes ao rés do chão direito, rés do chão esquerdo, 1º andar direito e 1º andar esquerdo respectivamente, do prédio urbano sito na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.° 0099/ Cacém, inscrito na matriz predial sob o art. 0011.

A 2ª Outorgante é dona das fracções E e F, correspondente ao 2º andar direito e 2º andar esquerdo, respectivamente, do mesmo prédio.

A cada uma das fracções "C" e "D" atrás referidas, corresponde para além de um escritório, uma arrecadação no sótão.

Pelo presente acordo, a 1ª outorgante vende á 2ª Outorgante, que lha compra, pelo preço de € 9.975,96 (nove mil novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos) já pagos e recebidos, as referidas 2 arrecadações.

Como as arrecadações referidas fazem parte integrante das fracções autónomas designadas pelas letras "C" e "D", a 1ª Outorgante obriga-se a diligenciar a modificação do titulo constituído da propriedade horizontal, nos termos do art. 1419 Código Civil, de modo a integrá-las nas fracções "E" e "F".
Sintra, 31 de Janeiro de 2003”
29. As arrecadações identificadas como 2 e 3 na planta de atribuição apresentada na aludida Assembleia foram transformadas em casas de banho.
30. Em data não concretamente apurada, mas no ano de 2021, e quando os funcionários do senhor BB executavam obras nas fracções sua pertença, a PSP foi chamada ao prédio pelos autores.
31. De seguida, foi chamada ainda a fiscalização da Câmara Municipal de ….
32. Em 7 de Junho de 2021, foi informado pelo senhor MM, Fiscal municipal especialista principal da Câmara Municipal de … que:
“Assunto: PEDIDO DE FISCALIZAÇÃO REFERENTE A OBRAS DE CONSTRUCÃO - RUA … .
DPM 0005/2021
Informação: Para o prédio localizado na Rua …, foi emitida em 9 de junho de 1995 a licença de utilização n.° …/95- Processo n.° …/…/1993, para duas lojas, quatro escritórios e quatro arrecadações.
Conforme verifiquei no local, não há nesta data, qualquer perfuração da laje superior nem há qualquer transformação das arrecadações do referido prédio em residência duplex.
As arrecadações estão devolutas e de acordo com o indivíduo que se intitulou como sendo o proprietário, o Sr. BB, “as mesmas em tempos foram utilizadas como escritórios, tendo sido demolidas as paredes interiores tornando-se um espaço amplo com ligação entre as quatro arrecadações”.
Obras essas consideradas de escassa relevância urbanística, isentas de controlo prévio, onde não há indícios nem são visíveis outras alterações que tenham interferido com a estrutura do prédio.
Relativamente à utilização (arrecadação) por parte do referido senhor "num espaço privado que não lhe pertence” como é denunciado pela Sr.a LL, é um assunto entre privados, que ultrapassa o âmbito desta fiscalização e que eventualmente deverá ser apresentada queixa no Tribunal Judicial”.
33. No dia 9 de Novembro de 1994, no 1.º Cartório Notarial de …, foi outorgada escritura pública denominada de “Propriedade Horizontal”, com o seguinte teor:




34. Em 07.09.2021, foi enviada uma mensagem de correio eletrónico por parte da Dra. RR para o endereço eletrónico cc@ldc.pt, com o seguinte teor:
“Exmos Senhores,
Acuso a recepção da ata da última assembleia de condóminos.
No seguimento do que ficou deliberado, cumpre-nos esclarecer que não fomos contactados pelos condóminos do primeiro andar.
Acresce, ainda, que tomámos conhecimento que alguém efectuou alterações no sótão, sem que para tal estivesse autorizado.
Assim e não pretendendo adiar por mais tempo a resolução deste processo, vimos, por este meio, solicitar a V. Exas., como administradores do condomínio, que nos coloquem em contacto com os condóminos do primeiro andar, de forma a agendarmos uma reunião.
Com os melhores cumprimentos,
RR”.
A sentença recorrida considerou como não provada a seguinte matéria de facto:
“a. Os autores nunca tiveram acesso às arrecadações existentes no sótão.
b. As arrecadações foram, desde 31 de Janeiro de 2003, transformadas em escritórios.
c. O senhor BB quando efectuou as visitas às fracções, as mesmas não tinham qualquer bem móvel no seu interior.
d. Em Junho de 2021, existiu alguma disponibilidade de tempo por parte dos funcionários da empresa propriedade do senhor BB e deu-se inicio a obras de pequenas reparações nas respectivas fracções do 2.º e 3.º piso.
e. Foi efectuado por parte do senhor BB, através da sua empresa, um investimento no valor de € 5.000,00, comportando esse valor pinturas efectuadas, reparação de infiltrações, pavimento e limpezas finais, nas fracções do 3.º piso.
f. No dia 02.09.2020, foi convocado pelos autores uma assembleia de condóminos extraordinária a fim de formalizar o condomínio e outros assuntos de interesse geral.
g. No dia 16.10.2021 foi realizada assembleia de condómino com a acta n.º 1 em que foi deliberado adjudicar a administração de condomínio à empresa DC, Lda.
h. A nova gestão de condomínios, a pedido dos autores, contactou com o réu, por diversas vezes, para se elucidar como é que o 3.º piso estava na posse dos réus.
i. O aqui réu, enviou à gestão de condomínios os documentos fornecidos pelo antigo proprietário, nomeadamente a escritura de compra e venda supra-referida e documentos entregues pelo mesmo na Câmara Municipal de …, para alteração da PH e registo da totalidade do 3.º piso, a favor do 2.º piso.
j. Inclusivamente a informação de que a Câmara Municipal de … solicitara alguns elementos ao antigo proprietário, sendo que este não terá concluído o processo, nomeadamente o registo na conservatória.
k. Após esta informação enviada pelo réu, a gestão de condomínios, agendou uma nova assembleia de condomínios no dia 21/05/2021, por forma a analisar a propriedade horizontal, e a colocar a votação a atribuição das arrecadações.
l. No entanto, na referida assembleia no dia 01 de Junho de 2021, assim que os autores e a administração se aperceberam que o réu possuía procurações em representação de outros condóminos perfazendo a maioria do quórum do condomínio, não levaram a votação a questão das arrecadações.
m. Tendo sido solicitado pelos autores uma conversa informal com o proprietário do 2.º piso.
n. O réu solicitou junto do departamento de urbanismo da Câmara Municipal de … a informação no que concerne as arrecadações e sua adjudicação, uma vez que as mesmas não estavam esplanadas em sede de propriedade horizontal e na respectiva conservatória do registo predial.
o. Tendo sido informados que nesses casos, procede-se a votação em assembleia de condomínio.
p. O réu, no inicio de Setembro de 2021, deslocou-se ao local e reparou que a porta de uma das fracções no 3.º piso tinha sido arrombada e a fechadura trocada.
q. O reu teve conhecimento que os autores efectuaram a divisão das arrecadações 1 e 4 através de pladur colado nas portas de vidro, danificando as mesmas (as referidas portas têm um custo de € 3.500,00).
r. Os autores só tiveram acesso a uma das arrecadações em Setembro de 2021, que nesse momento já não era uma arrecadação, mas sim um escritório.
s. Em Setembro de 2021, os autores retiraram o fornecimento eléctrico do 2.º piso e efectuaram uma ligação à sua fracção (1.º dto).
t. As caixas de correio não foram alvo de intervenção por parte do condomínio, mas sim reparadas e o custo suportado pelo proprietário do 2.º piso, uma vez que as mesmas foram danificadas.”
*
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do CPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do CPC).
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1. Da nulidade da sentença
2. Da impugnação da decisão de facto
3. Da nulidade da deliberação e do abuso de direito
1. Da nulidade da sentença
Defende o apelante que a sentença recorrida incorreu em nulidade por omissão de pronúncia uma vez que “a prova produzida em audiência e o depoimento das testemunhas evidenciam claramente o contrário da matéria dada como provada no que concerne as arrecadações. Pelo que, cabia ao Tribunal recorrido pronunciar-se sobre a questão que concretamente lhe foi colocada, proferindo uma decisão fundamentada a esse respeito.”
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas no artº 615º, nº 1 do CPC (o recorrente, certamente por lapso, cita a norma correspondente do CPC revogado) que estabelece:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. (…)
A nulidade de decisão por omissão de pronúncia apenas ocorre quando o Tribunal deixe por decidir qualquer questão temática principal, para o que relevam as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Constatamos que a imputada omissão de pronúncia incide sobre a decisão de facto (não se ter dado como provada determinada factualidade sobre as arrecadações), não constitui o vício previsto na d) do nº 1 do artº 615º do CPC, sendo fundamento da impugnação de facto.
Improcede a nulidade invocada.
2. Da impugnação da decisão de facto
Estabelece o art. 640º do CPC:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
Como refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, 2018, pág. 165 a 169):
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. (…)
A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a. Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artºs. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b));
b. Falta de especificação, nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artº 640º, nº 1, al. a));
c. Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios de prova constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.)
d. Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e. Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação. (…)
Defende o apelante que da prova testemunhal deveriam ter sido ainda dados como provados, factos alegados que considera relevantes para a sua pretensão e que enunciou (por nós numerados):
“1. Os autores nunca tiveram acesso às arrecadações existentes no sótão, ou seja,
2. As arrecadações não existem conforme projeto apresentado na camara, e as mesmas, desde o acordo de compra efetuado entre o antigo proprietário do 2.º piso e o antigo proprietário do 1.º piso, em 31 de janeiro de 2003, foram transformadas em escritórios.
3. Encontrando-se na posse total do antigo proprietário.
4. O proprietário BB visitou sempre com o antigo proprietário, as referidas arrecadações atualmente transformadas em escritórios sempre estiveram na posse do antigo proprietário, sem quaisquer bens moveis no seu interior e interligadas entre si.
5. Em momento alguns os autores manifestaram ter direito a qualquer espaço no sótão.
6. A escritura de compra e venda das frações, realizou-se no dia 27 de março de 2020.
7. As referidas arrecadações só existiram no projeto inicial de construção do edifício.
8. A arrecadação 1 e 4 são escritórios interligados entre si, e as arrecadações 2 e 3 foram transformadas em wc,
9 O fornecimento de água e luz estava a ser feito pelas frações do 2.º piso.
10. Na conservatória do registo predial, constava que todas as 4 frações (1.º dto, 1.ºesq, 2.º dto e 2.º esq.) tinham uma arrecadação no sótão.”
Tal elenco consta da conclusão 4, bem como da motivação do recurso.
Nesta, logo após o elenco destes factos, consta o seguinte:
“4º O título constitutivo da propriedade horizontal consiste na escritura notarial que define o edifício como tal, isto é, divide-o em frações autónomas e independentes e determina as suas partes comuns.
5º Nos termos do no nº 1 do artigo 1418º do Código Civil “no título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.”
6º A escritura de constituição de propriedade horizontal contempla as seguintes informações acerca do edifício:
• Composição de cada fração autónoma.
• Valor relativo a cada fração face ao valor total do prédio, em percentagem ou em permilagem;
• Fim a que se destina cada fração (habitação, comércio, indústria, etc.) e as partes comuns.
7º É ainda mencionado no artigo 1415º do Código Civil que “só podem ser objeto de propriedade horizontal as frações autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.”
8º Ora dúvidas não restam que o tribunal a quo errou na análise dos fatos e dos documentos juntos aos autos.
9º Não existe nenhum documento que atribuía determinada arrecadação a uma determinada fração.
10º O que a constituição da propriedade horizontal diz e que a fração tem uma arrecadação no sótão, não individualizando qual a arrecadação que corresponde aquela fração em concreto.
11º Pelo que, não tendo a escritura de constituição sido elaborada corretamente, individualizando em concreto qual a fração e qual a arrecadação que lhe pertence,
12º Não podia o tribunal a quo dizer que a fração tinha adstrita aquela arrecadação.
13º No fundo, a propriedade horizontal é o que define, legalmente, a divisão de um prédio em vários apartamentos fazendo com que este possa ter inúmeros proprietários das frações que o constituem.
14º Atente-se no depoimento das testemunhas: (…)”
De seguida foi efetuada transcrição de excertos dos depoimentos das testemunhas GG, SS e JJ. No final das transcrições são feitas as seguintes afirmações:
-“Não podia o tribunal concluir e dar como provado o fato de que a fração C tem aquela arrecadação e não outra, pois da análise da escritura nada consta nesse sentido.” (após transcrição do depoimento de GG);
- “A própria testemunha refere claramente que as arrecadações não estavam individualizadas corretamente. (após transcrição do depoimento de SS);
- “Este depoimento não deixa margem para dúvidas que há muitos anos que estavam definidos os espaços, não podendo o tribunal a quo decidir de modo diferente.
23º A prova produzida em audiência e o depoimento das testemunhas evidenciam claramente o contrário da matéria dada como provada no que concerne as arrecadações.
24º Pelo que, cabia ao Tribunal recorrido pronunciar-se sobre a questão que concretamente lhe foi colocada, proferindo uma decisão fundamentada a esse respeito.
25º Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do C.P.C., a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questão de que não podia tomar conhecimento.“ (após transcrição do depoimento de JJ);
Os depoimentos indicados destinam-se a questionar o que alegadamente foi considerado provado: a arrecadação da fração C não é a que consta do desenho anexo à ata. Tal asserção não consta dos factos provados. Sucede que alguns dos factos que pretende ver aditados aos provados foram considerados não provados, os quais não foram impugnados.
Verifica-se pelo exposto que o apelante indicou os meios de prova em que funda a impugnação, designadamente depoimentos de três testemunhas, sem distinguir cada um dos factos impugnados e cada um dos depoimentos, aludindo a um bloco de factos (sendo que nem todos respeitam a uma mesma realidade factual) e às três testemunhas.
O ónus imposto pela al. b) do nº 1 do artº 640º do CPC determina que a concretização dos meios probatórios seja feita relativamente a cada um dos factos e com indicação dos respetivos meios de prova.
“III. Limitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do nº 1 do artº 640º do CPC.
IV. Ou seja, o apelante deve fazer corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto o(s) segmento(s) dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundou as mesmas, sob pena de se tornar inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.” (Ac. STJ de 14/07/2021, proc. nº 65/18.9T8EPS.G1.S1, in www.dgsi.pt).
Face ao exposto, rejeita-se o recurso da decisão de facto, por inobservância do ónus exigido pelo artº 640º, nº 1, al. b) do CPC.
3. Da invalidade da deliberação e do abuso de direito
Insurge-se o apelante por ter a sentença considerado provado que a arrecadação em causa pertence à fração C e, contraditoriamente, por ter o tribunal omitido pronúncia sobre questão que concretamente lhe foi colocada (aludindo ao uso feito da arrecadação ao longo dos anos).
Percorrida a matéria de facto provada não é possível retirar aquela ilação.
Afigura-se que o apelante olvida ser o objeto da ação (cfr. pedidos e causa de pedir) a invalidade de deliberações do condomínio.
A sentença qualificou de nula a deliberação que versou sobre o ponto 4 da ordem de trabalhos, sob o título “discussão e votação quanto à atribuição do usufruto das arrecadações”, por versar sobre assuntos sobre os quais a assembleia não tem competência, designadamente porque dizem respeito à propriedade individual ou própria de qualquer proprietário ou porque representam ou extravasam o domínio da administração individual que qualquer condómino tem sobre a sua fracção autónoma.
Dispõe o art. 1430º, nº 1 do Código Civil que a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador.
A propriedade horizontal tem como órgãos administrativos a assembleia de condóminos (órgão deliberativo) e o administrador (órgão executivo), sendo este último, fundamentalmente, um executor das deliberações da assembleia, não lhe assistindo qualquer poder decisório.
É à assembleia, órgão colegial composto por todos os condóminos, que compete decidir sobre os problemas do condomínio que se refiram às partes comuns, encontrando soluções para os resolver, delegando no administrador a sua execução e controlando o modo como este dela se desempenha – Aragão Seia, Propriedade Horizontal, pág. 153.
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 447-448, sobre a delimitação do campo de aplicação do artº 1433º do CC afirmam: “… no âmbito desta disposição não estão compreendidas nem as deliberações que violem preceitos de natureza imperativa, nem as que tenham por objecto assuntos que exorbitam da esfera de competência da assembleia de condóminos.
Quando a assembleia infrinja normas de interesse e ordem pública (suponha-se, por ex., que a assembleia autoriza a divisão entre os condóminos de alguma daquelas partes do edifício que o n.º 1 do art. 1421.º considera forçosamente comuns; que suprime, por maioria, o direito conferido pelo n.º 1 do art. 1428.º; que elimina a faculdade, atribuída pelo art. 1427.º a qualquer condómino, de proceder a reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício; que suprime o recurso dos actos do administrador a que alude o art. 1438.º; ou que dispensa o seguro do edifício contra o risco de incêndio, diversamente do que se dispõe no n.º 1 do art. 1429.º), as deliberações tomadas devem considerar-se nulas, e como tais, impugnáveis a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do art. 286.º. (…)
Quando a assembleia se pronuncie sobre assuntos para que não tenha competência (tal será o caso em que, por exemplo, a assembleia sujeite ao regime das coisas comuns, sem o consentimento do respectivo titular, uma parte do prédio pertencente em compropriedade exclusiva a um dos condóminos), a deliberação deve considerar-se ineficaz: desde que a não ratifique, o condómino afectado a todo o tempo pode arguir o vício de que ela enferma, ou por via de excepção, ou através de uma acção de natureza meramente declarativa.”
Nos termos do disposto no artº 1418º, nº 1 do CC. “no título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.”
Decorre do título constitutivo da propriedade horizontal (escritura pública outorgada em 09/11/1994) que cada uma das frações C, D, E e F (1.º dto, 1.ºesq, 2.º dto e 2.º esq.), é composta por divisão ampla (quanto às frações C e D menciona ser escritório) e instalação sanitária e uma arrecadação no sótão.
Dúvidas não restam que é parte integrante de cada uma das referidas frações uma arrecadação no sótão. Ou seja, as arrecadações não constituem parte comum.
Como se refere no ac. RE de 13/01/2022, proc. nº 3730/19.0T8ENT.E1, in www.dgsi.pt, que versou sobre identificação e localização de garagens:
“Antes de mais, importa referenciar que estando o imóvel constituído em propriedade horizontal há que atentar ao prescrito no artigo 1418.º, n.º 1, do Código Civil, do qual decorre que naquele instrumento são «especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas (…).», tendo tal requisito como escopo a individualização e localização das frações proporcionando ao titular de cada uma delas através do simples exame do título a identificação inequívoca e exata do que pode usufruir individualmente, a título exclusivo, e aquilo que pode usufruir coletivamente como comproprietário.
As frações autónomas são aquelas que obedecem ao disposto no artigo 1415.º do Código Civil, ou seja, as que constituem «unidades independentes» (critério da autonomia), «distintas e isoladas entre si» (critério do isolamento) e que tenham «saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública» (critério da acessibilidade). No que concerne à composição de cada fração, para além da unidade fisicamente autónoma com referenciação à identificação e localização da fração (a fração é normalmente identificada por uma determinada letra e pelo andar onde se situa, com explicitação das várias frações em cada piso se for o caso), o título constitutivo da propriedade horizontal pode abranger partes do edifício que seriam presuntivamente comuns (cfr. artigo 1421.º do Código Civil), não fosse aquele estatuto convencional de condomínio, o que sucede, por exemplo, com as arrecadações na cave ou no sótão e com as garagens.
Se assim for, apenas com a menção dessa parte que passa a integrar a fração se encontra individualizada a fração.
Dito isto, importa referir que de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal junto aos autos, cada fração autónoma (excetuando a fração A que apenas é composta por uma garagem na cave) é composta por um determinado «andar» ou «fogo» e uma garagem (para além da arrecadação).
(…)
A questão que nos parece ser aflorada nestas conclusões prende-se com a identificação e localização de parte das frações autónomas H e I, ou seja, na parte concernente às respetivas garagens que integram cada uma daquelas frações.
Já antes se referiu que a lei não prescinde da individualização das frações e das suas componentes de modo claro e inequívoco, em ordem a evitar conflitos como o presente, como decorre do artigo 1418.º do Código Civil, sendo tal individualização essencial para a validade do título constitutivo da propriedade horizontal.
Acrescentando-se ainda que existem regras administrativas no que diz respeito à identificação e individualização das frações que têm de ser cumpridas para que possa ser emitido o título constitutivo da propriedade horizontal.
Como prescreve o artigo 1417, n.º 1, do Código Civil, a constituição da propriedade horizontal pode sê-lo por várias formas jurídicas, mormente por negócio jurídico unilateral típico, embora inominado, mediante o qual o proprietário ou o comproprietário do edifício, sejam pessoas singulares ou coletivas, declaram a sua vontade de o submeter ao regime da propriedade horizontal, operando o seu parcelamento jurídico em frações autónomas para serem objeto de propriedade singular a favor de diversas pessoas, seja de imediato por já se verificar a pluralidade de condóminos, seja em momento ulterior quando ocorrer a condição da pluralidade de proprietários, desde que o prédio tenha sido projetado para a transmissão em frações autónomas.
Estando assim prevista a construção e alienação das frações, o projeto tem de evidenciar essa realidade, que tem de ter aprovação camarária, ou seja, tem de constar do projeto a identificação das frações autónomas que satisfaçam os requisitos legais para assim serem qualificadas.
Trata-se de pressuposto necessário à constituição da propriedade horizontal, como decorre do artigo 59.º do Código do Notariado (Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, posteriormente alterado) ao prescrever que os instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as frações autónomas satisfazem os requisitos legais (n.º 1), ou, tratando-se de prédio construído para transmissão em frações autónomas, o documento a que se refere o número anterior pode ser substituído pela exibição do respetivo projeto de construção e, sendo caso disso, dos posteriores projetos de alteração aprovados pela câmara municipal (n.º 2).
O que decorre do regime legal supra referido é que a individualização das frações (incluindo todas as suas componentes) consta, desde logo, do projeto de construção e qualquer alteração tem de ser avalizada pela entidade camarária.
Ora o documento camarário junto em audiência vem precisamente revelar a identificação das frações do prédio por tipologia, áreas bruta, habitável e útil, as varandas e sacadas, o número de terraços, o número e áreas das arrecadações, o número e áreas das garagens privativas e a numeração das garagens, identificando cada número com o respetivo fogo, ali mencionado como fração identificada por letras, bem como a correção que foi pedida de modo a fazer coincidir a fração H com a garagem n.º 7 e a fração I com a garagem n.º 5.
Por conseguinte, a atribuição de números às garagens, a sua identificação por áreas e integração nas frações decorre do projeto de construção e da licença de utilização passada pela Câmara Municipal do Entroncamento, podendo ser identificada com todo o rigor e assertividade qual a garagem que integra qualquer uma das frações do prédio em causa.
Qualquer circunstância que tenha determinado num concreto momento a alteração factual desta realidade não pode ser oposta aos titulares do direito de propriedade das frações.”
À data da outorga da escritura de constituição da propriedade horizontal vigorava o DL. 445/91, de 20/11 (regime de licenciamento de obras particulares), o qual previa nos artºs 15º, 26º e 28º os elementos de individualização da constituição da propriedade horizontal nos projetos de construção e licenças de utilização. Na escritura fez-se menção à exibição do projeto de construção.
Dispõe o artº 1419º do CC, na redação introduzida pela Lei 8/2022, de 10/01:
“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1422.º-A e do disposto em lei especial, o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos.
2 - A falta de acordo para alteração do título constitutivo quanto a partes comuns pode ser suprida judicialmente, sempre que os votos representativos dos condóminos que nela não consintam sejam inferiores a 1/10 do capital investido e a alteração não modifique as condições de uso, o valor relativo ou o fim a que as suas frações se destinam.
3 - O administrador, em representação do condomínio, pode outorgar a escritura ou elaborar e subscrever o documento particular a que se refere o n.º 1, desde que o acordo conste de ata assinada por todos os condóminos. (…)“
Na assembleia de condóminos realizada em 29/12/2022, em que estiveram presentes (ou representados) a totalidade dos condóminos, foi deliberado por maioria, com a aprovação dos condóminos das frações A, B, D, E e F e voto contra da fração C, distribuir as arrecadações do sótão pelas frações C, D, E e F de acordo com esboço apresentado, anexado à ata, nos termos do qual à fração C foi afetada a arrecadação 2, à fração D a arrecadação 3, à fração E a arrecadação 4 e à fração F a arrecadação 1.
Incidindo a deliberação sobre frações autónomas, quer por via da constituição de usufruto (designação dada ao ponto 4 da ordem de trabalhos) ou por distribuição das arrecadações do sótão pelas frações C, D, E e F, a deliberação tem por objeto a afetação do direito de propriedade exclusivo de cada um dos condóminos visados, constituindo uma alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal, em violação da norma imperativa do artº 1419º, nº 1 do CC, pelo que a deliberação incorre no vício de nulidade.
Defende o apelante que o tribunal a quo deveria ter decidido que a arrecadação dos autos é utilizada pelo proprietário BB, e não pelos autores, pelo que a pretensão destes está neutralizada pelo abuso de direito na modalidade da supressio.
Para tanto, alegou que “desde pelo menos 2003 a arrecadação é utilizada como escritório, pelo Sr. SS e atualmente pelo Sr BB; o longo período de inação dos condóminos gerou a confiança justificada do Réu, condomínio de que a utilização daquela arrecadação era pacífica, sendo divisável um investimento de confiança por parte do reu a partir do momento em que o reu passou a utilizar a arrecadação apos a aquisição da mesma ao Sr SS, que desde 2003 o fazia, pelo que o tribunal a quo deveria ter decidido que a arrecadação dos autos é utilizada pelo proprietário BB, e não pelos autores, pelo que a pretensão dos autores está neutralizada pelo abuso de direito na modalidade da supressio.”
Salienta-se que no trecho ora reproduzido (assim como noutras partes da alegação de recurso, tal como sucedido na contestação apresentada) se confunde o R., que é o Condomínio, com o Sr. BB, sócio das sociedades proprietárias das frações A, B, E e F.
Está em causa uma distribuição de arrecadações existentes no sótão pelas frações C, D, E e F, efetuada em deliberação da assembleia de condóminos, por maioria, em violação do artº 1419º do CC, ferindo-a de nulidade, o que desde logo afasta o abuso de direito que, de resto, não se verifica.
Referindo-se ao abuso de direito na modalidade da supressio, no Ac. RC de 24/11/2020, proc. nº4472/18.9T8VIS-A.C1, www.dgsi.pt, pode ler-se: “com essa designação pretende-se abarcar as hipóteses em que, devido ao titular de um direito não o ter exercido durante um lapso de tempo significativo, as circunstâncias que rodearam essa inação criaram na contraparte a confiança que o mesmo já não viria a ser exercido, merecendo essa confiança a proteção da ordem jurídica através de um impedimento a esse exercício tardio ou da atribuição à contraparte de um direito subjetivo obstaculizador (a surrectio, como tradução latina da Erwirkung alemã, e que constitui com a suppressio as duas faces da mesma moeda). (…)
É opinião corrente entre nós que a suppressio abrange situações próximas ou que constituem uma modalidade da figura do venire contra factum proprio, em que o exercício de um direito se revela contraditório com um anterior comportamento de inação prolongada, que, atentas as circunstâncias que caracterizam o caso concreto, induzem o sujeito obrigado por esse direito a, legitimamente, confiar que o mesmo já não será exercido, pelo que a sua ativação ofende os ditames da boa fé.
Costumam ser enunciados como requisitos de aplicação desta figura:
- um não exercício prolongado do direito;
- uma situação de confiança daí derivada para a contraparte, coadjuvada por elementos circundantes que a sustentem;
- uma justificação para essa confiança;
- um investimento de confiança;
- a imputação ao não exercente da confiança criada.”
Em primeiro lugar, não resultou provado que a arrecadação que foi “atribuída” à fração E, fosse pelo mesmo desde 2003 utilizada como escritório pelo anterior proprietário dessa fração e posteriormente pelo Sr. BB (?!) – pelo que não é possível afirmar que tal ocorre há mais de 20 anos, nem consequentemente determinar qual o período da imputada inação dos condóminos.
Em segundo lugar, a posição assumida pelos AA. decorre da deliberação impugnada – e não de qualquer utilização consentida da arrecadação.
Em terceiro lugar, os AA. exercem advocacia na fração C, desde o mês de dezembro de 2019, bem como utilizam a arrecadação no 3.º andar (identificada como n.º 4 da planta de atribuição apresentada na Assembleia).
Assim, ainda que o caso dos autos fosse suscetível de configurar abstratamente uma situação de supressio – o que, como vimos, não sucede -, não se mostram verificados os respetivos pressupostos, não incorrendo a atuação dos AA. em abuso de direito.

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo do apelante.

Lisboa, 5 de junho de 2025
Teresa Sandiães
Fátima Viegas
Carla Matos