PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
REVOGAÇÃO
ASSÉDIO NO ARRENDAMENTO
Sumário

I. Tendo sido proferida sentença e recorrendo-se da mesma arguindo, além do mais, a sua nulidade por constituir uma decisão-surpresa, declarando-se no despacho previsto no artº 617º nº 2 a procedência desta, deixa de subsistir a decisão;
II. Surgindo a dúvida sobre o alcance de tal procedência de nulidade e mantendo-se interesse no prosseguimento do recurso, a dúvida deixa de subsistir face à consideração pelo Tribunal Superior da inexistência de decisão recorrível;
III. Assentando o procedimento especial de despejo num contrato de arrendamento com prazo indeterminado e no acordo de revogação do mesmo, provando-se que foi celebrado posteriormente outro contrato de arrendamento com prazo certo, será este que deve ser atendido como estando em vigor, não suportando o pedido formulado a eventual revogação deste, por não constituir o objecto da acção, nem as AA. terem manifestado nos autos a eventual alteração da causa de pedir.
IV. Quando a subscrição pela arrendatária do acordo de revogação do contrato de arrendamento foi feita sob ameaça de cessação dos contratos de água e luz da titularidade do senhorio, haverá que apreciar tal questão com base nos vícios da vontade e ainda da figura do assédio no arrendamento prevista no artº 13º A do NRAU.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
A Ata&Ep – Investimentos Imobiliários, Lda e a K-Motion Lisbon Invest Unipessoal, Lda, apresentaram requerimento de despejo contra AA, com fundamento em caducidade por celebração de acordo de revogação do contrato de arrendamento, juntando documento comprovativo da celebração do contrato de arrendamento para fins habitacionais e de acordo de revogação do contrato de arrendamento.
A Requerida AA apresentou oposição, alegando em suma que foi celebrado mais do que um contrato de arrendamento e mais do que um acordo de revogação do contrato de arrendamento, tendo após a celebração do contrato de arrendamento sido pressionada a sair, sendo que se mantém no locado a pagar renda até à presente data, entendendo que o segundo contrato de arrendamento celebrado se encontra em vigor, pelo que não poderão os Requerentes como novos proprietários exigir o despejo da fração.
As Requerentes Ata&Ep – Investimentos Imobiliários, Lda e a K-Motion Lisbon Invest Unipessoal, Lda, não responderam à factualidade alegada pela Requerida, que nessa medida se considerou provada.
Foi proferida uma primeira decisão julgando reconhecido o fundamento da caducidade do contrato, mas na sequência da arguição de nulidade por omissão de produção da prova indicada no recurso intentado desta decisão e a falta de cumprimento do contraditório, com a conclusão de constituir uma decisão surpresa, a nulidade foi declarada procedente e no seu suprimentoda e foi ordenada a produção de prova, nos seguintes termos: “No que tange à alegação de que o despacho-saneador sentença não se pronunciou sobre as excepções suscitadas pela Requerida, é contraditório nos seus fundamentos e constitui uma decisão-surpresa, cumpre salientar que a oposição apresentada não destacou ou enunciou qualquer excepção, em violação clara do art. 572.º, alínea c) do CPC, tendo sido o julgador, que lido o articulado de oposição, extraiu da mesma, a possibilidade de no quadro das soluções plausíveis de direito, a factualidade alegada, poder constituir uma excepção peremptória, o que constitui uma interpretação favorável à Requerida.
Neste conspecto, o tribunal julgou provada a matéria alegada na “excepção” dando como provada a celebração de dois contratos consecutivos sobre a mesma fração, mas considerou que tal não alterou o objectivo visado pelas partes, que apesar dessa circunstância, pretenderam manter a relação jurídica de arrendamento existente, não tendo considerado provado qualquer vicio de vontade, mas apenas uma pressão para o cumprimento do acordo de revogação assinado.
O tribunal pronunciou-se deste modo sobre a “excepção” alegada pela Requerida, ainda que não atribuindo os efeitos alegados pela Requerida, não existindo aqui portanto qualquer omissão de pronúncia.
No entanto, somos sensíveis ao argumento da “decisão-surpresa” de que a Requerida, poderia efectivamente ter produzido prova sobre esta matéria, tanto mais que arrolou desde logo três testemunhas, a qual poderia dentro do quadro da matéria alegada levado a decisão diversa, numa factualidade em que o julgador apesar de não considerar relevante, posteriormente a veio a considerar na sua decisão, o que constitui inequivocamente um raciocínio que conduz a uma nulidade, da qual agora, mais à distância, se verifica que foi cometida, e pela qual desde já nos penitenciamos.
Por conseguinte, a Requerida deve poder produzir prova sobre esta matéria, a qual se deverá assim considerar controvertida, devendo, porém, concretizar oportunamente, qual a figura jurídica de erro vício que considera preenchida, o que não resulta claro da oposição apresentada.
Pelo supra exposto, julgo procedente a nulidade arguida por motivo de decisão surpresa e dou sem efeito a decisão proferida, admitindo a prova da Requerida.
Mais convido ambas as partes, nos termos do art. 547.º CPC, a no prazo de 10 dias, indicarem os meios de prova que pretendem produzir em audiência de discussão e julgamento, sobre a matéria do alegado vício de vontade.
O presente despacho implicará a preclusão do habitual momento de apresentação de meios de prova no início da audiência (art. 15.º-I, n.º 6 NRAU) sendo a apresentação posterior de documentos possível, mas sujeita a multa (art. 423.º CPC). Desde já se alertando as partes que as testemunhas nesta forma de processo especial são a apresentar (art. 16.º-I, n.º 6 NRAU) salvo alegação justificada de motivo pelo qual não as possam apresentar (art. 7.º, n.º 4 CPC). (…)
Notifique, sendo ainda o recorrente, para nos termos do art. 617.º, n.º 4 CPC, querendo, desistir ou manter o recurso, face ao suprimento de uma das nulidades arguidas.
Foi inicialmente pela recorrente apresentado a desistência do recurso, mas face a um despacho de aclaração, foi intentado recurso da decisão.
Recebidos os autos neste Tribunal de recurso (8ª secção) foi proferido o seguinte despacho: “No despacho que admitiu o recurso (de 19/8/2024), o Sr. Juiz a quo pronunciou-se quanto às nulidades invocadas, ao abrigo do art. 617º, nº 4 do CPC.
Assim, indeferiu a arguida nulidade por falta de notificação do despacho de 31/5/24, na medida em que este era dirigido apenas à Requerente e para o exercício de faculdades processuais que a ela lhe incumbiam e por entender que a eventual irregularidade cometida pela secretaria tenha influído no exame e decisão da causa, nos termos do art. 195º do CPC.
No que toca à “inadequação do título apresentado para o procedimento”, entendeu o tribunal a quo que na oposição não foi aduzido esse argumento, sendo o mesmo suscitado apenas em sede de recurso, pelo que considerou prejudicada esta alegação posterior, com diferentes fundamentos de defesa devido ao princípio da concentração da defesa (art. 573º CPC), razão pela qual considerou não existir omissão de pronúncia e, consequentemente, a nulidade arguida.
Mais decidiu a respeito das outras nulidades invocadas no recurso “(…)a Requerida deve poder produzir prova sobre esta matéria, a qual se deverá assim considerar controvertida, devendo, porém, concretizar oportunamente, qual a figura jurídica de erro vício que considera preenchida, o que não resulta claro da oposição apresentada.
Pelo supra exposto, julgo procedente a nulidade arguida por motivo de decisão surpresa e dou sem efeito a decisão proferida, admitindo a prova da Requerida.
Mais convido ambas as partes, nos termos do art. 547.º CPC, a no prazo de 10 dias, indicarem os meios de prova que pretendem produzir em audiência de discussão e julgamento, sobre a matéria do alegado vício de vontade.
O presente despacho implicará a preclusão do habitual momento de apresentação de meios de prova no início da audiência (art. 15.º-I, n.º 6 NRAU) sendo a apresentação posterior de documentos possível, mas sujeita a multa (art. 423.º CPC). Desde já se alertando as partes que as testemunhas nesta forma de processo especial são a apresentar (art. 16.º-I, n.º 6 NRAU) salvo alegação justificada de motivo pelo qual não as possam apresentar (art. 7.º, n.º 4 CPC). (…)
Notifique, sendo ainda o recorrente, para nos termos do art. 617.º, n.º 4 CPC, querendo, desistir ou manter o recurso, face ao suprimento de uma das nulidades arguidas (…)”.
Notificada, a Requerida declarou manter o recurso apresentado.
A 4/9/2024 foi, então, proferido o seguinte despacho:
Req.ref.ª 26117436 (recurso de apelação), Req.ref.ª 26177026 (contra-alegações): O recorrente notificado para querendo desistir ou manter o recurso face ao suprimento de uma das nulidades arguidas, declarou manter o recurso, não tendo o recorrido respondido à alteração ou pretendido recorrer da parte da decisão alterada.
Atento a manutenção da instância de recurso e existência de outras nulidades que não foram supridas, o recurso deverá subir, não se mostrando infelizmente possível manter a indicação para realização de julgamento na parte atinente ao vício de vontade, a qual foi ordenada na pressuposição dessa eventual desistência, pelo que caberá ordenar a subida do recurso.
Pelo supra exposto, extraia-se cópia integral dos presentes autos, para remessa ao Tribunal da Relação de Lisboa.
Diligências necessárias (DN).
Sem prejuízo da subida do recurso, apreciar-se-á, seguidamente, os requerimentos sobre os meios de prova apresentados sobre esta questão. (…)”.
Ao contrário do que é entendimento da primeira instância, pensamos que não é possível conhecer do objecto do recurso, desde logo porque foi dada sem efeito a decisão de que a Apelante pretende recorrer. Essa é, aliás, a decorrência normal da verificação da nulidade invocada e cuja existência veio a ser reconhecida no despacho de 18/9/2024.
Efectivamente, foi reconhecido nesse despacho que houve uma “decisão surpresa”, pois a Apelante poderia ter produzido prova sobre a matéria de facto alegada na oposição e que aos olhos do tribunal podia constituir uma excepção peremptória, que valorada de uma outra perspectiva e depois de produzida prova testemunhal podia conduzir a uma decisão diversa da proferida.
E assim é.
Não vemos como possível que esta decisão, dada sem efeito, possa ser cindível do conhecimento das outras nulidades que o tribunal entendeu por bem decidir no mesmo despacho.
Note-se que depois de realizar a produção de prova, o tribunal a quo terá de proferir nova decisão, que poderá, ou não, ser favorável à Apelante. Se este for o caso, a Apelante poderá recorrer da nova decisão. E, se entender que nessa decisão se verificam as mesmas nulidades poderá invocá-las pois, como é natural, o seu direito não estará precludido na medida em que foi dado sem efeito o despacho que delas conheceu.
Assim, entendendo que não se pode conhecer do objecto do recurso, por inexistência de decisão recorrível (art. 652º, nº 1, b) do CPC), determino o cumprimento do disposto no art. 655º nº 1 do CPC.”
Finda tal notificação de cumprimento do contraditório foi proferido nesta relação o seguinte despacho: “Na sequência do despacho proferido no dia 11/11/24, por se entender que não se pode conhecer do objecto do recurso, por inexistência de decisão recorrível (art. 652º, nº 1, b) do CPC), determino a devolução dos autos a primeira instância.”.
No prosseguimento dos autos e realizada audiência final, foi na sequência proferida sentença com o seguinte dispositivo: ”Pelo supra exposto e decidindo, o Tribunal julga o presente procedimento especial de despejo improcedente por não provado, por motivo de invalidade do título de revogação apresentado.”.
Inconformadas vieram as AA. recorrer apresentando as seguintes conclusões:
«Ora inexiste fundamentos para absolvição
Pois que incumpriu o assumido em acordos foi a recorrida
A qual assumiu que os assinou
E nunca disse que tinha sido coagida, antes por respeito a amizade a outrem
Não se pode a decisão recorrido sobrepor se as partes
As testemunhas vieram apenas falar sobre as condições socio económicas da recorrida
O processo já havia ter sido julgada
Tendo depois sem que se entenda alterada a decisão
Quando a Tribunal Relação não considerou a reclamação
Passando uma diligencia de audição de testemunhas sobre as condições socio económicas das recorrida para audiência final
Quando a prova é bastante para ser proferida decisão inversa sendo que remete os recorrentes para interposição de nova acção
Salvo melhor opinião os factos e o direito foram mal interpretados
Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que V. Exa,
Venerandos Desembargadores suprirão, deve o presente Recurso obter Provimento e, em consequência ser a decisão recorrida revogada e ser decretado o despejo requerido».
A ré respondeu em contra alegações, concluindo que:
«I- A sentença proferida não merece qualquer censura, devendo ser mantida nos seus exactos termos, sendo que as Recorrentes nenhuma razão têm nos argumentos usados no recurso interposto, pois bem andou o Tribunal “a quo” perante os factos ocorridos e provados em audiência de discussão e julgamento ao decidir pela improcedência da ação especial de despejo intentada pelas aqui Recorrentes.
II- As Recorrentes no seu recurso invocam um conjunto de facto que bem sabem não corresponder à verdade, tentando lançar a ideia que a presente sentença foi proferida sem qualquer fundamento, contudo, tal sentença proferida pelo Tribunal “a quo” respeitou a Lei vigente e a prova testemunhal e documental realizada nos autos.
III- Efectivamente existiu uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 578/24.3YLPRT-A.L1 da 8ª secção, no qual foi proferido um despacho notificado às partes a 13/11/2024 e uma Decisão Singular notificada às partes 06/12/2024, que decidiu que não existia decisão recorrível, pois o Tribunal de 1ª instância tinha dado sem efeito a decisão por si proferida, tendo mandado baixar os autos à 1ª instância para a realização do julgamento e posteriormente ser elaborada nova sentença sobre toda a matéria, o que foi cumprido pelo Tribunal “a quo”.
IV- A Reclamação falada pelas Recorrentes é manifestamente inócua para os presentes autos, pois incidiu sobre outro recurso apresentado pela aqui Recorrida nos autos, o qual não foi admitido, ou seja, existiram nos autos dois recursos anteriormente ao presente, um que considerou que não existia decisão recorrível e que os autos tinham que baixar à 1ª instância para ser realizado o julgamento e posteriormente elaborada nova sentença e outro recurso que não foi sequer admitido.
V- O Tribunal “a quo” agendou os dias 20 e 27 de fevereiro de 2025 para a realização das audiências de discussão e julgamento relativamente à Oposição ao Despejo e também para apurar as condições económicas da Recorrida, pelo que não corresponde à verdade o referido pelas Recorrentes no seu recurso, quando referem que a audiência era só sobre as condições económicas da Recorrida.
VI- Foi provado em audiência de discussão e julgamento de uma forma clara e inequívoca que os ditos Acordos de Revogação do Contrato de Arrendamento foram outorgados contra a vontade da Recorrida, por pressão de BB, que a ameaçou de cortar a água e a luz, que não estava em seu nome, e sem ter para onde ir com uma filha pequena e que lhe garantiu que não teria de sair de casa.
VII- Foi claramente provado em Tribunal que a Recorrida foi ameaçada para assinar as tais ditas Revogações e também que lhe tinham garantido que poderia aí continuar a residir e caso não assinasse tais revogações, aí sim é que iria ter problemas e ficaria sem lugar para residir.
VIII- Importa salientar, que apesar das assinaturas de tais documentos, a Recorrida sempre continuou a residir no arrendado e a pagar pontualmente a renda, sendo que na consciência da Recorrida o facto de ter assinado tais dois Acordos não implicava a obrigatoriedade de sair do arrendado, antes pelo contrário.
IX- Tendo também ficado claramente provado, que as Recorrentes quando compraram o prédio onde se situa o anexo em que a Recorrida e a sua filha, estudante, residem, tentaram assinar um novo Acordo de Revogação do Contrato de Arrendamento, tendo inclusivamente as Recorrentes oferecido uma compensação monetária à Recorrida, sendo que também ficou claramente provado que a Recorrida só não assinou tal novo acordo, porquanto este, ao contrário dos anteriores, exigia a saída do arrendado.
X- De realçar que as Recorrentes no recurso apresentado não impugnaram, nem requereram a alteração da matéria dada como provada – Factos Provados – da sentença.
XI- O contrato de arrendamento por prazo indeterminado e que deu origem ao presente procedimento especial de despejo datado de 15/08/2014 já não estava em vigor, pois tinha sido tacitamente revogado pelo contrato de arrendamento com prazo certo outorgado entre as partes em 01/09/2014, sendo que sobre tal último contrato não foi junto aos autos qualquer comprovativo do pagamento do imposto de selo ou do rendimento das rendas em sede IRS/IRC.
XII- O alegado acordo de revogação do contrato de arrendamento que serviu de base ao procedimento especial de despejo foi datado de 18/02/2020 e referia que a Recorrida deixaria o arrendado a 31/12/2020, sendo que em 01/01/2021 foi outorgado outro dito acordo de revogação do contrato de arrendamento com efeitos a 31/06/2021, ou seja, o dito acordo usado nos autos para fundamentar o despejo não foi o último a ser assinado, apesar da pressão e de ter sido assinado contra a vontade da Recorrida.
XIII- Bem andou o Tribunal “a quo” ao julgar improcedente o procedimento especial de despejo, pelos fundamentos referidos na sentença, ao que acresce o facto de ter sido violado o artigo15º n.º 2, alínea a) e n.º 5 do Novo Regime do Arrendamento Urbano, Lei 6/2006 de 27 de fevereiro.
XIV- O recurso apresentado, com as suas alegações e conclusões, não deverá merecer qualquer acolhimento por parte do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa
XV- Não existe qualquer fundamento legal para a sentença ser alterada, nem o recurso apresentado pelas Recorrentes trás aos autos qualquer facto que possa determinar qualquer revogação da sentença proferida.».
Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- Se é de considerar a decisão anteriormente proferida, devendo a decisão limitar-se ao conhecimento da matéria atinente ao deferimento da desocupação, mas mantendo a decisão que determinou o despejo;
- Se a ré incumpriu o acordo de revogação convocado na acção especial de despejo, sem que se comprove a coacção na realização deste.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos com a indicação de serem do:
1.1. Do requerimento inicial:
1. Em 15.08.2014 por intermédio de documento particular denominado “contrato de arrendamento de duração indeterminada”, BB, na qualidade de senhoria e AA, na qualidade de inquilina, celebraram entre si o contrato de arrendamento com duração indeterminada, com início a 15.08.2014.
2. Em 01.09.2014 por intermédio de documento particular denominado “contrato de arrendamento para habitação”, BB, na qualidade de senhoria e AA, na qualidade de inquilina, celebraram entre si o contrato de arrendamento pelo prazo de dois anos, com início a partir de 15.08.2014 e termo em 30.08.2018, sendo renovável por iguais períodos.
3. Por carta datada de 09.01.2020, os herdeiros de CC, vieram comunicar a AA a oposição da renovação do contrato de arrendamento de fração a que correspondente o anexo R/c traseiro da Vivenda ... sito no Largo ..., União das Freguesias de Cascais e Estoril, Concelho de Cascais.
4. Em 18.02.2020 por documento particular denominado “acordo de revogação de contrato de arrendamento”, BB, na qualidade de senhoria e AA, na qualidade de inquilina, acordaram em revogar o contrato celebrado a 15.08.2014, com efeitos a 31.12.2020, acordando na entrega devoluta de pessoas e bens do locado.
5. A Ré subscreveu o documento aludido em 4) contra a sua vontade, por pressão de BB, que a ameaçou de cortar a água e a luz que não estava em seu nome e sem ter para onde ir com uma filha pequena e que lhe garantiu que não teria de sair de casa.
6. Em 20.11.2020 EE comunicou a AA, que sem detrimento da revogação do contrato de arrendamento, as rendas deveriam começar a ser pagas para conta do Novo Banco.
7. Em 01.01.2021 por documento particular denominado “acordo de revogação de contrato de arrendamento”, BB, na qualidade de senhoria e AA, na qualidade de inquilina, acordaram em revogar o contrato celebrado em 15.08.2014, com efeitos a 31.08.2021.
8. A Ré subscreveu o documento aludido em 7) contra a sua vontade e por pressão de BB, por pressão de BB, que a ameaçou de cortar a água e a luz que não estava em seu nome, sem ter para onde ir com uma filha pequena e que lhe garantiu que não teria de sair de casa.
9. Em 17.02.2022 EE, veio comunicar à Requerida, que o contrato terminou em 31.06.2021, pelo que solicitava a entrega do locado até ao dia 31.03.2022.
10. Em 04.03.2022 por intermédio de carta registada com aviso de recepção, AA comunicou a EE que não concordava com o teor da mesma e que iria obter apoio jurídico, passando a depositadas as rendas na CGD à ordem do proprietário.
11. Mostra-se inscrita pela ap. 6518 de 28.06.2022 a aquisição da propriedade da fração objecto do contrato de arrendamento aludido em 1) a favor de Ata&Ep – Investimentos Imobiliários, Lda, por compra a EE, único herdeiro de BB.
12. Mostra-se inscrita pela ap. 5838 de 14.09.2022 a aquisição da propriedade da fração objecto do contrato de arrendamento aludido em 1) a favor de K-Motion Lisbon Inves, Unipessoal, Lda, por compra a de Ata&Ep – Investimentos Imobiliários, Lda.
13. A Ré continuou a habitar o locado até à presente data, nunca tendo recebido qualquer denúncia do contrato de arrendamento celebrado em 01.09.2024.
1.2. Do pedido de diferimento da desocupação:
14. O imóvel dos autos é casa de morada de família, há 10 anos.
15. Ali vive a arrendatária com a sua filha FF, de 18 anos, estudante, NIF ....
16. A casa é modesta, com apenas uma cozinha casa de banho e uma divisão, com uma área de 56 m2.
17. Ambas vivem unicamente do salário da Arrendatária, com rendimento anual ilíquido de € 11.480,00 euros.
18. E desse valor paga a renda da casa, água luz e tenta fazer face a todas as outras despesas dela e da filha.
19. Ambas vivem com sérias dificuldades económicas.
20. Sendo muito difícil no actual panorama do mercado imobiliário conseguir uma habitação condigna pagando os mesmos valores, já que não conseguem arrendar uma casa com uma renda igual ou semelhante.
21. A arrendatária, a ter de sair, precisa de tempo para ela e a sua filha procurarem uma casa que possam efectivamente pagar.
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III. O Direito:
As recorrentes pretendem que seja revogada a decisão e seja mantido o despejo anteriormente decidido, argumentando que tal decisão permanece incólume nos autos, pois, no entender das apelantes, a prova incidiu apenas sobre as condições sócio económicas da recorrida, dizendo que no mais o “o processo já havia ter sido julgado”, sem que “se entenda alterada a decisão”.
Claramente não lhes assiste razão quanto a tal argumento.
Com efeito, na procedência da nulidade da sentença anteriormente proferida deixou a mesma de ter validade nos autos, no seu todo, pois entendeu o Tribunal que tal decisão anterior tinha sido proferida sem que tivesse sido dada à parte oportunidade para produzir prova sobre a matéria de facto alegada na oposição, a qual, aliás, valorada de uma outra perspectiva e depois de produzida prova testemunhal podia conduzir a uma decisão diversa da proferida. Tal veio a ocorrer nos autos, pelo que nada releva a sentença anteriormente proferida, havendo sim que aferir da aplicação do direito aos factos considerados e aferir da justeza ou não da decisão. E nesses factos a subsumir ao direito em nada releva se advêm ou não da prova testemunhal produzida nos autos, pois na apreciação do direito invocado pelos AA. o Tribunal terá de considerar os mesmos, considerando a causa de pedir invocada e o pedido que lhe corresponde.
Donde, será irrelevante para a decisão a considerar que a prova testemunhal apenas tenha incidido sobre as condições sócio económicas da ré. A sentença proferida e ora sob recurso terá de aferir dos pressupostos em que assentava o alegado direito das AA., bem como do alegado em termos de defesa pela ré, assistindo-lhe liberdade na aplicação do direito. Na verdade, ao tribunal incumbe proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artº 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido. Nos termos de tal preceito o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Pelo que não subsistindo a anterior sentença, ferida que estava de nulidade, nenhum efeito pode decorrer da mesma.
Haverá, assim, que aferir dos demais argumentos do recurso.
Focam-se as recorrentes, quanto ao que sustenta a ausência de fundamentos para a absolvição, no incumprimento do acordado pela recorrida, bem como na assunção pela mesma da assinatura de tais acordos, sem que a recorrida tenha aludido que tenha sido coagida a subscreve-los, mas sim, no dizer das recorrentes apenas antes “por respeito a amizade a outrem”.
De tais conclusões não resulta que as recorrentes contrariem a existência de um contrato de arrendamento celebrado posteriormente, este pelo prazo de dois anos, e a improcedência do pedido que decorre de tal situação.
Importa ter ainda presente que as apelantes intentaram o presente procedimento especial de despejo com base no contrato celebrado a 15.08.2014, por intermédio de documento particular denominado “contrato de arrendamento de duração indeterminada”, BB, na qualidade de senhoria e AA, na qualidade de inquilina, mediante o qual celebraram entre si o contrato de arrendamento com duração indeterminada, com início a 15.08.2014.
O Tribunal recorrido indica toda a matéria factual de 1. a 13. como sendo “do requerimento inicial”, o equívoco em tal enunciação é evidente.
Dos autos resulta que os requerentes basearam o procedimento de despejo no contrato referido, datado de 15.08.2014, e no documento particular denominado “acordo de revogação de contrato de arrendamento”, datado de 18.02.2020, convocando assim, a caducidade do arrendamento com a consequente devolução do locado. A par de tais factos e documentos juntos foi ainda junto com o requerimento de despejo a interpelação levada a cabo a 17/02/2022, para entrega do locado até 31/03/2022, invocando que o contrato cessou a 31/06/2022. Foi ainda junto cópia da caderneta predial do imóvel, bem como do registo na conservatória do mesmo imóvel.
Daqui resulta que os únicos factos que advém do “requerimento inicial”, são os elencados e descritos sob os nºs 1. (contrato de arrendamento de 15.08.2014), 4. (acordo de revogação de 18.02.2020), 9. (carta de interpelação de 17.02.2022), 11. e 12. (registo de propriedade de aquisição pelas requerentes). Donde, todos os demais factos foram invocados pela recorrida em sede de oposição e resultam de documentos juntos pela mesma. Frisando-se que quanto a esses factos e recebidos os autos no Tribunal, foi proferido o seguinte despacho: “Atento a apresentação de contestação, com dedução de factualidade relativa a eventual vício da vontade na assinatura do acordo de revogação que serve de fundamento ao presente procedimento e à celebração de vários contratos de arrendamento, o que é susceptível de ser considerado como excepção peremptória, nos termos do art. 15.º-H, n.º 3, parte final, convido o(a) Autor(a), a no prazo de 10 dias, pronunciar-se sobre as mesmas (art. 3.º, n.º 4 CPC).
Consigna-se que o presente convite, ao abrigo da adequação formal, precludirá a faculdade de o(a) Autor(a) responder às mesmas no início da audiência final. “.
Não foi apresentada resposta pelas requerentes.
Assim, a prova dos demais pontos resultou da documentação junta com a oposição e ausência de impugnação por parte das AA., sendo que relativa a tal ausência será de considerar o efeito cominativo e preclusivo previsto no artº 574º do Código de Processo Civil, ex vide artº 587º nº 1 do mesmo diploma.
Os AA. delinearam o despejo requerido tendo por base o contrato de arrendamento de 15.08.2014, e acordo de revogação de 18.02.2020.
O princípio do dispositivo é ainda prevalente no processo civil e, como seu corolário, cabe às partes definir o objecto do litígio (através da dedução das suas pretensões) e alegar os factos que integrem a causa de pedir ou que sirvam de fundamento à dedução de eventuais excepções, de tal modo que o juiz só pode fundar a decisão nestes, sem prejuízo de poder investigar factos instrumentais e de os poder utilizar quando resultem da instrução e julgamento da causa.
Como refere José Lebre de Freitas (in “Introdução ao Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, pág. 136) o princípio dispositivo traduz-se na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da acção, sobre os exactos limites do seu objecto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às excepções peremptórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transaccionar).
O princípio do dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal. O interesse público, neste âmbito, limita-se à correcta aplicação do seu Direito para que haja segurança e paz nas relações privadas. O exacto limite da intervenção estadual é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a acção (e de se defender), como delimitam o seu objecto ( cf. Mariana França Gouveia in “O Princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: A incessante procura da flexibilidade processual” - Texto escrito para os Estudos em Homenagem aos Professores Palma Carlos e Castro Mendes, pág. 602 e ss.). Logo, às partes cabe iniciar o processo e fixar o seu objecto. Ao juiz cabe decidir dentro desse objecto, tendo liberdade (com cumprimento do contraditório) para aplicar regras de direito não alegadas pelas partes ( cf. Artº 5º nº 3 do CPC).
Posto isto o que importa aferir é se perante o contrato de arrendamento invocado pelos AA. se se verifica ou não a causa de cessação do mesmo, decidindo-se em conformidade com o pedido formulado – o despejo.
Ora, da análise dos factos, o que resulta evidente é que entre as partes foram celebrados dois contratos de arrendamento sucessivos, o primeiro em 15.08.2014 por tempo indeterminado e o segundo em 01.09.2014, por dois anos.
Como bem se alude na decisão recorrida, “(…) de acordo com o princípio da autonomia da vontade (art. 405.º do Cód. Civil), é admissível às partes celebrarem entre si vários contratos, e incluírem entre si as cláusulas que lhe aprouverem, é lícito presumir, que sendo os contratos celebrados entre os mesmos intervenientes, os mesmos sabiam e não podiam ignorar a existência de contratos anteriores. Logo, deve entender-se que o contrato de 15.08.20214 foi revogado pelo contrato de 01.09.2014 que é o que se encontra em vigor e como tal era sobre este último contrato que deveria ter sido apresentado o acordo de cessação, com vista a fundamentar o procedimento especial de despejo por caducidade.”.
Na verdade, a causa de pedir dos AA. assentava na revogação do contrato de arrendamento celebrado em 15.08.2014, e era relativamente a este que incidia a causa de pedir e, logo, o pedido. Pelo que provando-se que entre as partes, tendo por objecto o mesmo locado, foi celebrado um contrato posterior, é este que se mantém em vigor, não competindo nos autos apreciar a eventual caducidade deste, pois os AA. perante a alegação da ré não vieram ampliar a causa de pedir, limitando-se a admitir, por ausência de impugnação, tal matéria alegada.
Deste modo, soçobraria desde logo o pedido dos AA., pois face à causa de pedir constante dos autos não assiste aos mesmos o direito que pretendiam fazer valer.
Do exposto resultaria prejudicado o demais alegado pela ré como facto impeditivo do direito alegado pelos AA.
Todavia, na apreciação dos acordos de revogação, sempre importará referir que ambos os acordos diziam respeito ao contrato celebrado a 15.08.2014 e não ao celebrado a 1.09.2014, pelo que não colheria a possibilidade de o senhorio poder invocar como causa extintiva deste a revogação por mútuo acordo.
E que dizer do demais provado quanto a ambos os acordos, no sentido de resultar que a Ré subscreveu tais documentos contra a sua vontade, por pressão de BB, que a ameaçou de cortar a água e a luz que não estava em seu nome e sem ter para onde ir com uma filha pequena e que lhe garantiu que não teria de sair de casa?
O Tribunal recorrido, depois de enunciar que ainda que se possa entender que os referidos acordo são referentes ao contrato em vigor, o que, salienta, não se afigura ter sustentáculo na matéria de facto provada, entende que tal comportamento da ré ao subscrever tais acordos não foi fruto de uma vontade livre e esclarecida, mas de uma pressão que é suscetível de consistir um caso de assédio no arrendamento.
A Lei 12/2019, de 12 de fevereiro, veio proibir e punir o assédio no arrendamento, através do aditamento ao NRAU, aprovado pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, sucessivamente alterada pelas Leis 31/2012, de 14 de agosto, 79/2014, de 19 de dezembro, 42/2017, de 14 de agosto e 43/2017, de 14 de agosto, do artigo 13,°-A com a seguinte redacção: artigo 13.º-A - "É proibido o assédio no arrendamento ou no subarrendamento, entendendo-se como tal qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado".
A propósito de tal temática, decidiu-se e sumariou-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20/06/2024 ( porc. nº 1/23.0TSIMA.P1, in www.dgsi.pt) que: I - Os artigos 13.º-A e 13.º-B da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), foram aditados ao Novo Regime do Arrendamento Urbano pela Lei 12/2019, de 12 de fevereiro, constituindo uma secção também aditada com a designação “Assédio no Arrendamento”. II - De acordo com os preceitos em causa passou a ser expressamente proibido qualquer comportamento ilegítimo do senhorio com o objectivo de provocar a desocupação do locado, que perturbe, constranja ou afecte a dignidade do arrendatário, o sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante ou que impeça gravemente a fruição do locado.
III - Perante tais comportamentos o arrendatário pode, além do mais, intimar o senhorio a tomar as providências adequadas a corrigir situações de facto que impeçam a fruição do locado, incluindo o acesso à rede de água. IV - E caso o senhorio não responda ao arrendatário ou não lhe comunique a realização das diligências necessárias à normalização da fruição do locado no prazo de trinta dias e se mantenha injustificadamente por corrigir o constrangimento denunciado pode o arrendatário, além do mais, requerer uma injunção contra o senhorio, destinada a corrigir a situação exposta na intimação, e exigir ao senhorio o pagamento de uma sanção pecuniária de valor (base) de vinte euros por cada dia a partir do final do prazo até que o senhorio lhe demonstre o cumprimento da intimação ou, em caso de incumprimento, até que seja decretada a injunção que for requerida em montante agravado.
Tal questão foi igualmente apreciada no âmbito do Acórdão da Relação do Porto
( Proc. nº 2/23.9TSIMA.P1, endereço da net a que vemos fazendo referência ), no seguinte sentido: I - O assédio no arrendamento previsto no art.º 13.º A do Novo Regime do Arrendamento Urbano (N.R.A.U.) tem uma natureza intencional, tratando-se de atos ou omissões empreendidas com o objetivo de levar o inquilino a desocupar o locado, tratando-se de um comportamento ilegítimo e integrado por um dolo específico. II – Não se verificando a situação de assédio prevista no art.º 13.º A, falece a aplicabilidade do disposto no art.º 13.º B e no art.º 15 T do N.R.A.U., pois que estas duas normas são procedimentais, como que uma estatuição (adjetiva) para a hipótese (substantiva) de se verificar o descrito na primeira. III – Não se verificando um comportamento de assédio, as questões atinentes à condição em que se encontra o locado (e responsabilidade por tal, se do senhorio, se do inquilino ou se de ambos), determinante da impossibilidade de utilização do mesmo em condições de segurança e salubridade, tendo em conta o fim a que o mesmo se destina (habitação), deverão ser decididas em ação declarativa com processo comum.
Relativamente a uma decisão concreta de aplicação de tal instituto, importa ter ainda presente o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20/04/2023 ( Proc. nº 16073/21.0T8PRT.P1, in www.dgsi.pt): I – No silêncio do contrato, o senhorio – na hipótese de pretender vender o locado, na vigência, ou quando findar, o contrato de arrendamento, mas não queira esperar que o mesmo fique vago – não tem o direito de exigir que o inquilino seja obrigado a aceitar as visitas de potenciais compradores do locado. II – Não tem o direito de, invocando a obrigação do locatário em lhe facultar o exame da coisa locado, pretender que o inquilino faculte o acesso ao locado dos potenciais compradores do mesmo. Nem ao abrigo da previsão da dita alínea b) do artigo 1038.º, nem de qualquer outra. III – Se não há incumprimento, fica afastada, desde logo, a possível verificação da causa de resolução do contrato, estruturada no preenchimento da cláusula geral contida no artigo 1083.º/2 Ccivil. IV – A verificação de uma situação susceptível de integrar a noção de assédio, proibido e punido nos termos da Lei 12/2019 de 12FEV, através do aditamento ao artigo 13.º-A ao NRAU, tem as consequências previstas no, também, aditado artigo 13.º-B. V – Sem a virtualidade, o efeito, de que a conduta se possa traduzir num facto modificativo, impeditivo ou extintivo do alegado direito do senhorio, à resolução do contrato de arrendamento, consabidamente, estruturado em incumprimento por parte do inquilino – salvo, porventura, numa situação de abuso de direito, por parte do senhorio. VI – Não é inconstitucional, por violação dos artigos 20.º e 62.º da Constituição, a interpretação extraída da conjugação das normas contidas nos artigos 1038.º alínea b) e 1081.º/3 e 4 Ccivil, segundo a qual, - nada se estipulando no contrato de arrendamento, ao senhorio e/ou terceiros interessados na aquisição da coisa locada, - está vedado o seu exame, tendo em vista a transmissão da sua propriedade, - quer porque tal pretensão não se encontra abrangida pelo estatuído na alínea b) do artigo 1038.º CCivil, - quer porque o arrendatário apenas está obrigado a facultar o pretendido acesso nos termos do artigo 1081.73 e 4 do mesmo diploma.
Com efeito, é certo que a figura agora inserida no NRAU visa essencialmente comportamentos do senhorio que perturbe, constranja ou afecte a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado, sempre com o objectivo de provocar a desocupação do mesmo.
Acresce que ao contrário do referido na decisão recorrida a lei dá desde logo resposta caso se verifique tal situação, prevendo-se no artº artigo 13.º-B, do mesmo diploma que:1 - Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou contraordenacional decorrente dos atos e omissões em que se consubstancie o comportamento previsto no artigo anterior, o arrendatário pode intimar o senhorio a tomar providências ao seu alcance no sentido de:
a) Cessar a produção de ruído fora dos limites legalmente estabelecidos ou de outros atos, praticados por si ou por interposta pessoa, suscetíveis de causar prejuízo para a sua saúde e a das pessoas que com ele residam legitimamente no locado;
b) Corrigir deficiências do locado ou das partes comuns do respetivo edifício que constituam risco grave para a saúde ou segurança de pessoas e bens;
c) Corrigir outras situações que impeçam a fruição do locado, o acesso ao mesmo ou a serviços essenciais como as ligações às redes de água, eletricidade, gás ou esgotos.
2 - A intimação prevista no número anterior é feita nos termos do artigo 9.º e deve conter a exposição dos factos em que se fundamenta.
3 - Independentemente da apresentação da intimação prevista no n.° 1, o arrendatário pode requerer à câmara municipal competente a realização de uma vistoria ao locado para verificação das situações previstas no n.° 1, a qual possui natureza urgente e deve ser realizada no prazo máximo de 20 dias, devendo o respetivo auto ser emitido até 10 dias após a sua realização.
4 - No prazo de 30 dias a contar da receção da intimação prevista nos n.os 1 e 2, o senhorio deve, mediante comunicação a enviar ao arrendatário nos mesmos termos, demonstrar a adoção das medidas necessárias para corrigir a situação visada ou expor as razões que justifiquem a não adoção do comportamento pretendido pelo arrendatário.
5 - Em caso de falta de resposta nos termos previstos no número anterior, ou caso a situação se mantenha injustificadamente por corrigir, sem prejuízo da responsabilidade civil ou criminal que possa resultar dos mesmos factos e da possibilidade de recurso aos demais meios judiciais ou extrajudiciais ao seu dispor, o arrendatário pode:
a) Requerer uma injunção contra o senhorio, destinada a corrigir a situação exposta na intimação; e
b) Exigir ao senhorio o pagamento de sanção pecuniária no valor de 20 (euro) por cada dia a partir do final do prazo previsto no número anterior, até que o senhorio lhe demonstre o cumprimento da intimação nos termos do artigo 9.º ou, em caso de incumprimento, até que seja decretada a injunção prevista na alínea anterior.
6 - A sanção pecuniária prevista na alínea b) do número anterior é elevada em 50 /pret. quando o arrendatário tenha idade igual ou superior a 65 anos ou grau comprovado de deficiência igual ou superior a 60 /pret..
7 - A intimação prevista nos n.ºs 2 e 3 caduca, extinguindo-se a respetiva sanção pecuniária, se a injunção prevista na alínea a) do n.° 5 não for requerida no prazo de 30 dias a contar do termo do prazo previsto no n.° 4, ou se for indeferida".
No entanto, apesar de a ré não ter lançado mão de tais possibilidades, pois estas não surtiriam qualquer efeito face à actuação concreta do senhorio, entendemos que não deixa de ser intimidativo o comportamento da senhoria que, socorrendo-se dessa sua qualidade e da circunstância de os contratos de água e luz estarem na sua titularidade, ameaçar com a sua cessação, assim impedindo a ré e sua filha de habitar condignamente no locado. Acresce que com tal ameaça é certo que não provocou a desocupação, o que poderia ter ocorrido concretizada que fosse tal ameaça, porém, a assinatura de um “acordo de revogação” do contrato” teria o mesmo efeito prático.
No caso concreto, sem necessidade de maior análise, somos em concordar com o Tribunal recorrido quando expõe que: “Neste conspecto, não poderemos deixar de considerar as condutas de assédio no arrendamento como como uma figura suscetível de ser integrada, quer no abuso de direito (art. 334.º do Cód.Civil), quer nos vícios da vontade (art. 240.º e segs) consoante o fundamento que vier invocado como causa de pedir no procedimento especial de despejo.
A verificação determina a anulação da declaração nos termos do art. 287.º, n.º 2 do Cód.Civil, a qual pode ser efetivada por via de ação ou de exceção, como foi o caso.
Logo, no caso vertente, não poderemos deixar de considerar a pressão a que foi submetida a Requerida por parte da anterior proprietária como um caso claro de coação moral (art. 255.º Cód.Civil), pois foi assinada sob a pressão de corte da água e da luz e de saída do imóvel, o que constitui uma ameaça grave de mal importante, sendo a ação de ameaçar a causa do ato de assinatura da declaração, verificando-se aqui o que no dizer de Pedro Pais Vasconcelos ( Teoria Geral do Direito Civil, 2005, 3.º Edição, Almedina, Coimbra, pág. 516.), o que se denomina a dupla causalidade, sendo a pressão a causa do medo e o medo a causa da assinatura, pelo que o referido acordo de cessação deveria ser declarado anulado, motivo pelo qual não se poderá constituir como título executivo de despejo.
Por conseguinte, o título que serve de fundamento ao presente procedimento especial de despejo não é válido, devendo o senhorio mesma, caso pretenda fazer cessar o contrato com a Requerida, efetuar comunicação de oposição à renovação, por referência ao contrato de 01.09.2014 e tendo em conta os prazos de renovação do art. 1096.º do Cód.Civil.”.
Por tudo o exposto, improcede a apelação.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos AA. e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelos apelantes.
Registe e notifique.

Lisboa, 12 de Junho de 2025
Gabriela de Fátima Marques
Jorge Almeida Esteves
Nuno Lopes Ribeiro