Quer a jurisprudência, quer a doutrina, têm estabelecido critérios flexíveis que têm por objetivo equilibrar, por um lado as garantias de defesa do arguido, e por outro lado as especificidades de crimes, como violência doméstica, admitindo a indicação de períodos temporais ao invés de datas específicas. Desta forma, têm-se admitido que a acusação delimite temporalmente os factos através de períodos específicos ou lapsos temporais delimitados. Tais períodos, no entanto, têm que permitir ao arguido o exercício do seu direito de defesa e contraditório. E, nos crimes habituais, tem-se entendido que a descrição concreta dos factos, o seu contexto e a indicação do período em que ocorreram (ainda que extenso) são, em princípio, suficientes para que essa defesa possa ser eficaz. Tal terá, porém, que ser apreciado em função do caso concreto.
Nos autos: Na acusação diz-se que arguido e ofendida iniciaram relação de namoro em dezembro de 2020 e começaram a viver juntos em março de 2021. Os factos descritos nos pontos 4 a 7 terão ocorrido na residência comum (ponto 5), do que decorre que o seu início foi em março de 2021 (início da coabitação) e duraram até 7 de julho de 2024 (data do termo). Estão delimitados no tempo, embora se esteja a falar de mais de 3 anos, no espaço (casa do casal) e devidamente concretizados (discussões, insultos concretos, ameaças concretas, partir objetos). Pese embora o espaço temporal delimitado seja amplo, entende-se que o arguido consegue, perfeitamente, defender-se deles: ou praticou algum desses atos durante esse período ou não, se o fez saberá em que contexto e porque motivo, se durante esse período esteve ausente de casa por um período longo saberá que assim foi, entre muitas outras hipóteses. É que, em bom rigor, é indiferente para a verificação do crime em causa, os atos terem sido praticado num dia ou noutro, dentro desse período temporal. O que importa é apurar se foram praticados nesse período concreto. Entende-se desta forma que, os factos mencionados se mostram delimitados no tempo em conformidade com o estatuído no citado art.283º. Porém, mesmo que o nosso entendimento fosse distinto, realça-se que os factos constantes dos pontos 10 a 15 da acusação se mostram perfeitamente concretizados, constando deles a data exata em que ocorreram. E, a provarem-se (e ainda que nada mais se prove) são suficientes para, pelo menos para parte significativa da jurisprudência e doutrina, integrar o crime de violência doméstica.
1.1 Decisão recorrida
Por decisão de 12 de janeiro de 2024, foi rejeitada a acusação deduzida contra o arguido, na parte em que lhe é imputada a prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, al. a), 2, 4 do Código Penal, contra a pessoa de AA, por se considerar a mesma, nessa parte, manifestamente infundada.
*
1.2 Recurso
Inconformado com tal decisão, o MP interpôs recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1- Por despacho de 12-01-2025, o Tribunal a quo rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido BB, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152, nº 1, b), nº 2, a) e nº 4 do Código Penal.
2- O tribunal a quo ancorou-se no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e 3 d), do Código de Processo Penal.
3- Entendeu o Tribunal a quo que os factos descritos na acusação não integram a prática do crime de violência doméstica, mas antes consubstanciam a prática de crimes de injúria (art. 181 do Código Penal), a prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples (art. 143 do Código Penal) e um crime de ameaça (art. 153 do Código Penal).
4- No referido despacho o Tribunal a quo considerou que os factos descritos nos pontos 4, 6, 7, 8, 9, 22 e 23 da acusação não se encontram concretizados no tempo, o que não permite o contraditório.
5- Considerou, ainda, que os factos descritos nos pontos 6 a 12 da acusação são genéricos.
6- Não concordamos com tal entendimento do Tribunal a quo.
7- Com efeito, os factos descritos na acusação encontram-se concretizados no tempo e não são genéricos.
8- Os factos descritos nos pontos 1, 2, 4, 8, 9 e 10 da acusação, concretizam suficientemente os factos no tempo.
9- Os factos descritos nos pontos 6 a 12 não são genéricos, encontrando-se sobejamente concretizados.
10- No ponto 6 da acusação consta que o arguido partia objectos, atirando-os ao chão, contudo não consta ali descrito quais eram esses objectos.
11- Ora, entendemos que pese embora não conste da acusação a descrição dos objectos que o arguido partia, atirando-os ao chão, tal em nada descarateriza o tipo legal de crime de violência doméstica, antes pelo contrário, tal facto é ilustrativo da forma como o arguido intimidava a ofendida, causando-lhe sentimentos de medo, bem como da forma como a humilhava.
12- Da análise dos factos descritos na acusação, no seu conjunto, não restam dúvidas de que os mesmos integram a prática do crime de violência doméstica.
13- Basta atentar aos factos da acusação descritos nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 22 e 23, para se concluir pela subjugação da ofendida, tendo esta sido vítima de maus tratos e violência, quer física, quer psicológica, por parte do arguido, vendo a sua dignidade afectada.
14- O tribunal a quo violou as normas do art. 152, nº 1, b), nº 2, a) e nº 4 do Código Penal e do art. 311, nº 2, a) e nº 3, d) do Código de Processo Penal.
Termina pedindo a revogação do despacho proferido e a sua substituição por outro que admita a acusação deduzida.
1.3 Resposta/Parecer
O arguido apresentou resposta na qual, no essencial, se pronunciou sobre a manutenção da decisão recorrida.
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador Adjunto afirmou concordar com o teor do recurso interposto, emitindo parecer no sentido do seu provimento.
*
2. Questões a decidir no recurso
A questão a apreciar é apenas a de saber se a situação descrita nos autos constitui um caso de acusação manifestamente infundada e, consequentemente, sujeita a rejeição ao abrigo do disposto no art. 311º, nº2, al.a) do Cód. Proc. Penal.
*
3. Fundamentação
3.1. Decisão recorrida
1 - É o seguinte, o teor da decisão recorrida, na parte que releva:
« (…) DA ACUSAÇÃO PÚBLICA INFUNDADA
O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido, imputando-lhe, além do mais, a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nºs 1, al. b), 2, al. a), do Código Penal, contra a pessoa de AA.
Dispõe o art. 311º, nº 2, al. a), do Código de Processo Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
A acusação é manifestamente infundada quando, além do mais, os factos não constituírem crime (cfr. al. d) do nº 3 do preceito legal supra citado).
Ora, parece-nos, que a acusação deduzida contra o arguido é, na parte em que lhe imputa a prática do crime acima referido, manifestamente infundada porquanto, em nosso entender, os factos nelas descritos não integram a prática do tipo de crime de violência doméstica.
Salvo devido respeito por melhor opinião, os factos descritos na acusação apenas consubstanciam a prática de crimes de injúria (art 181º do Código Penal) a prática de dois crimes de ofenda à integridade física simples (art 143º do Código Penal) e um crime de ameaça (art 153º do Código Penal)
O bem jurídico que se pretende proteger é a saúde, encontrando-se a ratio do tipo na proteção da pessoa humana individualmente considerada e na sua dignidade humana a que acresce a integridade pessoal contra tratos cruéis, degradantes ou desumanos.
Conforme refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-05-2010, processo n.º 258/08.7GDLRA.C1, “O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação conjugal ou análoga e atualmente, mesmo após cessar essa coabitação.”
A reforma do Código Penal efetuada pelo Decreto- Lei nº 48/95 de 15 de Março introduziu importantes alterações ao regime até aí existente, passando a incriminar também os maus tratos psíquicos.
Conforme refere Taipa de Carvalho, in Código Penal Conimbricense, Coimbra, Tomo I, pág. 332, “a ratio do tipo não está na proteção da comunidade familiar, conjugal, ( ... ), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que lesam esta dignidade”.
Após a última revisão legislativa levada a cabo no tipo legal de crime em causa, esclareceu-se que basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime de violência doméstica, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado.
Este consubstanciar-se-á, pois, na realização de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de várias espécies:
- maus tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples);
- maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, entre outros);
- tratamento cruel, isto é, desumano.
Nos casos em que não ocorra reiteração da conduta a mesma tem de se restringir a casos de especial violência.
A ratio deste tipo de crime não está, pois, na proteção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
Este crime basta-se com a consolidação no estado vivencial da vítima de um estado de compressão na sua liberdade e de um apoucamento da dignidade que a um qualquer ser humano é devida (v. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27.06.2007, proferido no Processo nº 256/05.2GCAVR.C1, visualizável em www.dgsi.pt).
Como se diz no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.02.2008, proferido no Processo nº 1702/2008-3, visualizável em www.dgsi.pt, os maus-tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe «a normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar».
Não são os simples atos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal (v. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.01.2010, proferido no Processo nº 361/07.0GCPBL.C1, visualizável em www.dgsi.pt).
Ora, no caso em apreço, salvo devido respeito por melhor opinião, a conduta que vem imputada ao arguido não integra o tipo de crime de violência doméstica.
É que, a descrição dos acontecimentos feita nos pontos acima indicados sob os números 4, 6, 7, 8, 9, 22 e 23, dada a indefinição temporal que encerra, não permite o contraditório, impossibilitando qualquer defesa. Até pode estar em causa a intempestividade da queixa.
Acresce que os factos descritos em 6 e 12 são genéricos (objetos).
Como se diz no douto Ac. do TRP, de 30.09.2015, proferido no Processo nº 775/13.7GDGDM.P1 (in www.dgsi.pt), «As imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no art.32.º, n.º1, da CRP, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.»
No mesmo sentido, vejam-se os seguintes acórdãos, todos em www.dgsi.pt:
- Ac. do STJ, de 05.04.2006, Processo nº 05P2932: «O STJ tem vindo a decidir que não são factos suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado».
- Ac. STJ, de 21.02.2007, Processo nº 06P3932: «O arguido só pode contrariar a acusação ou a pronúncia, de forma adequada e eficaz, se naquelas peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, isto é, o caso concreto ou particular submetido a julgamento. De outro modo, ou seja, perante uma acusação ou uma pronúncia constituídas por factos genéricos, não individualizados, fica ou pode ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender.»
Como se afirma no Ac. do TRP, de 08.07.2015, proferido no Processo n.º 1133/13.9PHMTS.P1 (in www.dgsi.pt) «O crime de violência domestica não é, nem pode ser, um crime que no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando, retroativamente o que foi a vivência conjugal ou familiar, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de “regime”. Nem tão pouco é um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime específico ou especial. Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados/imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos».
No crime de violência doméstica, «o tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus tratos que são passíveis de ativar a reação penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado. (…) a comissão de crime de maus tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de atos de violência, ou a prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade» (cfr. Ricardo Bragança de Matos, in “Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima”, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, págs.100-101).
Nos factos indicados de 4 a 22 da douta acusação, relata-se uma realidade que não se consubstancia em maus tratos de tal gravidade e de violência exponencial que colocam a vitima em subjugação do arguido afetando a sua dignidade.
Nem da acusação constam factos que traduzam a subjugação, referindo apenas que a vitima terá ficado intimidada, causou-lhe incómodos e tristeza.
Note-se que da própria acusação resulta que a vítima até impõe a sua vontade ao arguido, pois opôs-se à sua expulsão de casa, o que revela a ausência de subjugação.
O que temos nesta acusação não é mais que um relato triste de uma história de vida de um casal que, no seu entremeio, teve crimes de injúria, um crime de ofensa à integridade física simples, crimes de ameaça, porquanto os factos 6 e 12 são genéricos e os factos números 4, 6, 7, 8, 9, 22 e 23 dado que os baliza num tempo que até pode ser anterior a 6 meses antes de a vítima ter efetuado queixa.
Face ao exposto, ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d) do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar a acusação deduzida contra o arguido, na parte em que lhe imputa a prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo art. 152º, nºs 1, al. a), 2, 4 do Código Penal, contra a pessoa de AA, por se considerar a mesma, nessa parte, manifestamente infundada.»
2 – Os factos constantes da acusação são os seguintes:
1. O arguido BB e AA (doravante ofendida) iniciaram uma relação de namoro cerca dezembro de 2020,
2. Tendo iniciado uma relação análoga à dos cônjuges, passando a viver juntos, em março de 2021, na morada situada no …, …
3. A ofendida é mãe de CC (nascida em … 2003, filha de DD).
4. Desde o início da relação, o arguido levava a cabo discussões com a ofendida, com uma frequência, pelo menos, semanal, ocasiões em que se dirigia à ofendida e lhe dizia:
a. «puta, vaca, ordinária, gananciosa», «parva, estúpida, só pensas em dinheiro, hipócrita», humilhando a ofendida,
b. «vou fazer com que percas o emprego», «vou-te destruir a vida», «não vai haver ninguém que te olhe para a tromba», «tu queres dar cabo de mim», «o que tu queres é ver-me no cemitério», «eu ainda cometo uma loucura e mato-me», amedrontando a ofendida,
5. Expressões que o arguido proferia na residência comum e na presença da filha da ofendida, CC.
6. Também no âmbito daquelas discussões, o arguido partia objetos, atirando-os ao chão, intimidando a ofendida.
7. Ainda no âmbito das discussões, após as mesmas, o arguido ficava fechado no quarto, sujeitando a ofendida a ter de dormir na sala.
8. Desde o início da relação, quando a ofendida não estava junto do arguido este efetuava telefonemas à ofendida, para saber onde é que a mesma se encontrava, controlando-a.
9. Em data não apurada, mas que ocorreu antes do dia 07.07.2024 o arguido desferiu um empurrão no peito da ofendida, causando-lhe incómodo e tristeza.
10. No dia 7 de julho de 2024, na residência comum, depois de jantar, o arguido iniciou uma discussão com a ofendida, relacionada com a mota do irmão do arguido,
11. Ora, naquela ocasião, o arguido disse à ofendida:
a. «só pensas em dinheiro», «és uma gananciosa», «andas a amealhar», «hás de ficar sozinha», «ninguém te olha para a tromba», «ordinária», «vaca», «puta», «porca», humilhando a ofendida.
12. Ainda naquelas circunstâncias, o arguido partiu objetos no interior da residência,
13. E bem assim agarrou nas roupas da ofendida e colocou-as no exterior da residência.
14. Em seguida, o arguido agarrou a ofendida, pelo braço direito, e arrastou-a té à porta, com o intuito de expulsar a ofendida da residência,
15. Contudo, o arguido não conseguiu colocar a ofendida fora de casa, uma vez que esta se agarrou à porta.
16. Em seguida, o arguido saiu da residência, deslocando-se em veículo automóvel da ofendida,
17. Sendo que, a ofendida, na sequência das condutas do arguido, decidiu terminar a relação e sair de casa.
18. Pouco depois, o arguido regressou à habitação e pediu à ofendida «que regressasse a casa», o que a ofendida recusou,
19. Assim, a ofendida saiu de casa, passando a viver com a sua filha noutro local.
20. Na sequência das condutas levadas a cabo pelo arguido, no dia 07.07.2024, a ofendida ficou com dores e ferimentos, apresentando:
a. «no membro superior direito: equimose arroxeada, com halo amarelado, no terço distal da face anterior do braço, medindo 1 centímetro por 0,8 centímetros» (cfr. Relatório da Perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, de fls. 44 e seguintes, para onde, desde já e integralmente se remete).
21. E recebeu assistência no Hospital ….
22. O arguido, pelo menos em duas ocasiões distintas, deslocou-se junto da nova morada da ofendida, controlando-a e intimidando-a.
23. Não se conformando com o final da relação, o arguido passou a efetuar várias chamadas telefónicas para a ofendida, controlando-a.
24. A ofendida padece de sofre de urticaria nervosa espontânea, desde 2022.
25. Em data não apurada, mas anterior a 13.08.2024 o arguido e a ofendida reataram a relação e voltaram a viver juntos.
26. As agressões físicas, verbais e psicológicas que o arguido dirigia à ofendida ocorriam no interior da residência comum do casal.
27. O arguido agiu com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, maltratar a ofendida, ofendendo-a na sua integridade física e psicológica, provocando-lhe dor, ferimentos e sofrimento.
28. O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, insultar e ofender a ofendida na sua honra e consideração, bem sabendo que as expressões que utilizou eram adequadas e suscetíveis de as atingir e ofender, humilhando-a na sua qualidade de mulher e de esposa, o que pretendia, e levando-a a manter uma baixa autoestima.
29. O arguido agiu com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, ameaçar a ofendida, bem sabendo que as expressões por si proferidas eram idóneas a causar, como causaram, receio e intranquilidade à ofendida nomeadamente de que viesse a sofrer ato atentatório da sua integridade física, não obstante quis agir da forma descrita.
30. O arguido agiu com a intenção expressa de molestar a saúde e o corpo da ofendida e de lhe provocar as dores e lesões verificadas, o que quis e concretizou.
31. O arguido agiu sempre com o propósito, reiterado, de, através das condutas descritas supra, deslocando-se junto da ofendida, das imediações da sua residência, lhe provocar medo e a prejudicar e limitar nos seus movimentos, bem sabendo que desse modo a lesava na sua liberdade pessoal, como pretendeu e conseguiu.
32. Com as condutas supra descritas, o arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava física, verbal e psiquicamente a ofendida, debilitando-a psicologicamente, prejudicando o seu bem-estar e ofendendo-a na sua honra e dignidade humanas, bem sabendo que esta era sua companheira, e que por isso lhe devia respeito e consideração.
33. Com as descritas condutas, efetuando os mencionados telefonemas e enviando as mensagens à ofendida, o arguido quis e conseguiu perturbar a vida privada, a paz e o sossego da ofendida, provocar-lhe medo, prejudicar e limitar os seus movimentos, bem sabendo que desse modo lesava a ofendida na sua liberdade pessoal, perturbava a sua paz e a sua tranquilidade, como pretendeu e conseguiu.
34. O arguido bem sabia que atuando da forma descrita, colocava a ofendida sujeita ao seu humor, provocando-lhe humilhação, angústia e medo.
35. O arguido bem sabia que debilitava física e psicologicamente a ofendida, prejudicando a sua saúde física, psíquica e mental, o seu bem-estar e ofendendo-a na sua honra e dignidade humanas, sendo que, com as suas condutas, assumiu uma posição de controlo e dominação sobre a mesma e revelou desconsideração e desprezo pela mesma.
36. O arguido bem sabia que, atuando das formas descritas, corrompia a relação de confiança existente entre si e a ofendida, enquanto casal, inviabilizando uma convivência familiar e doméstica pacífica.
37. O arguido agiu sempre de modo consciente, livre e voluntário, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal.
*
3.2 – Apreciação da questão
O Tribunal recorrido rejeitou a acusação por entender, por um lado, que alguns dos factos (pontos 6 e 12) são genéricos, não se mostrando concretizados e outros (4, 6, 7, 8, 9, 22 e 23) não têm definição temporal que permita o contraditório, podendo estar em causa a tempestividade da queixa. E, por outro lado, mesmo conjugando toda a factualidade descrita, esta não é apta a integrar o tipo legal de violência doméstica.
Vejamos.
Dispõe o art. 311º, do Cód. Proc. Penal, na parte que aqui releva:
« 2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) (…)
3 – Para efeitos do número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) (…)
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) (…)
d) Se os factos não constituírem crime».
Por seu turno, o art. 283º, nº3, al.b), do mesmo diploma, estatui que a acusação contém, sob pena de nulidade, «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
No que respeita à concretização temporal dos factos importa salientar que o crime de violência doméstica consubstancia um “crime habitual”, que tem por objeto a prática reiterada da mesma ação e cuja consumação se prolonga no tempo, sendo constituída por uma multiplicidade de atos reiterados.
A habitualidade caracteriza-se pela prática continuada de atos similares que, no seu conjunto, configuram um único crime, distinto de uma pluralidade de crimes instantâneos. Esta caraterística tem influência na forma como devem/podem ser descritos os factos na acusação, permitindo uma abordagem temporal mais flexível, que manifeste a realidade continuada dos “pequenos atos” praticados ao longo do tempo. E, como se vê, o que é exigido pelo art. 283º, nº3, b), do Cód. Proc. Penal, é a indicação se possível do tempo. Este preceito tem sido entendido no sentido de que embora a acusação deva ser, por princípio, precisa em relação à data da prática do crime, tal não significa que tenha necessariamente que mencionar datas concretas. Tal entendimento reconhece as limitações práticas decorrentes da investigação e prova dos crimes habituais onde, com frequência, é impossível determinar com precisão todas as datas específicas dos atos de violência (são tantos, tão semelhantes, repetidos muitas vezes diariamente, ao longo que tanto tempo que acabam por se tornar parte integrante da rotina/quotidiano de quem os vive e, como tal, excecionando algumas datas marcantes, a própria vítima não consegue dizer em que dias concretos ocorreram). Quer a jurisprudência, quer a doutrina, têm estabelecido critérios flexíveis que têm por objetivo equilibrar, por um lado as garantias de defesa do arguido, e por outro lado as especificidades deste tipo de crimes, admitindo a indicação de períodos temporais ao invés de datas específicas. Desta forma, têm-se admitido que a acusação delimite temporalmente os factos através de períodos específicos ou lapsos temporais delimitados. Tais períodos, no entanto, têm que permitir ao arguido o exercício do seu direito de defesa e contraditório. E, nos crimes habituais, tem-se entendido que a descrição concreta dos factos, o seu contexto e a indicação do período em que ocorreram (ainda que extenso) são, em princípio, suficientes para que essa defesa possa ser eficaz. Tal terá, porém, que ser apreciado em função do caso concreto.
Nos autos: Na acusação diz-se que arguido e ofendida iniciaram relação de namoro em dezembro de 2020 e começaram a viver juntos em março de 2021. Os factos descritos nos pontos 4 a 7 terão ocorrido na residência comum (ponto 5), do que decorre que o seu início foi em março de 2021 (início da coabitação) e duraram até 7 de julho de 2024 (data do termo). Estão delimitados no tempo, embora se esteja a falar de mais de 3 anos, no espaço (casa do casal) e devidamente concretizados (discussões, insultos concretos, ameaças concretas, partir objetos). Pese embora o espaço temporal delimitado seja amplo, entende-se que o arguido consegue, perfeitamente, defender-se deles: ou praticou algum desses atos durante esse período ou não, se o fez saberá em que contexto e porque motivo, se durante esse período esteve ausente de casa por um período longo saberá que assim foi, entre muitas outras hipóteses. É que, em bom rigor, é indiferente para a verificação do crime em causa, os atos terem sido praticado num dia ou noutro, dentro desse período temporal. O que importa é apurar se foram praticados nesse período concreto. Entende-se desta forma que, os factos mencionados se mostram delimitados no tempo em conformidade com o estatuído no citado art.283º. Porém, mesmo que o nosso entendimento fosse distinto, realça-se que os factos constantes dos pontos 10 a 15 da acusação se mostram perfeitamente concretizados, constando deles a data exata em que ocorreram. E, a provarem-se (e ainda que nada mais se prove) são suficientes para, pelo menos para parte significativa da jurisprudência e doutrina, integrar o crime de violência doméstica.
Acresce que a questão de não se conseguir apurar se existiu queixa tempestiva – como é mencionado no despacho recorrido – não assume, neste momento processual, qualquer relevo pois o que está em causa é um crime de violência doméstica, o qual reveste natureza pública.
Por outro lado, é afirmado no despacho recorrido que os pontos 6 e 12 da acusação se tratam de afirmações genéricas, não concretizadas. Tais pontos relatam que o arguido partia objetos, atirando-os ao chão, no interior da residência.
Os factos em causa nada têm de genéricos. Pelo contrário, são bem específicos na sua afirmação: partia objetos. A circunstância de não serem descritos quais os objetos concretos, não torna o facto em si vago ou impreciso, ele é claro e bem determinado. Os objetos concretos que terão sido partidos, não se tratam de um elemento essencial nem do tipo de crime, nem do objeto do processo. Poderão sempre, caso venham a ser determinados, ser concretizados. Mas, caso tal não ocorra, não determinarão, por si só, a procedência ou improcedência da ação.
De qualquer modo, sempre se dirá, ainda que tais alegações fossem genéricas e imprecisas, tal não retiraria a natureza devidamente concretizada de todos os demais factos constantes da acusação. E, porque no âmbito do disposto no art. 311º, do Cód. Proc. Penal, não existe lugar à rejeição parcial de factos, sempre inexistiria lugar à rejeição com base nesse fundamento.
Desta forma, conclui-se que a acusação não padece de qualquer nulidade como, embora de forma não expressa, parece resultar do despacho recorrido.
No que respeita à rejeição da acusação por manifestamente infundada cumpre salientar que a Lei nº59/98, de 25 de agosto, que aditou o nº3, ao art. 311º, do Cód. Proc. Penal, pretendeu excluir definitivamente a possibilidade da rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária. E, desse modo, estabeleceu de modo taxativo, as situações em que a acusação é manifestamente infundada e, como tal, pode ser rejeitada.
No caso concreto foi entendido que os factos constantes da acusação não constituem o crime imputado ao arguido.
Nas palavras de Paulo Pinto Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed., pag.817): «Assim, o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante». Tal significa que, para que se entenda que uma acusação é manifestamente infundada, os factos que dela constam têm que ser, no seu conjunto, totalmente irrelevantes em termos penais. Ou seja, deve ser manifesto, evidente, indiscutível que os factos elencados não integram, sob nenhuma interpretação jurídica, os elementos típicos de um qualquer crime. Existindo divergências jurídicas, o tribunal não poderá rejeitar a acusação com o aludido fundamento. Tal faculdade apenas lhe assiste após o julgamento, após o debate e pleno contraditório que este proporciona. Esta é a posição unânime na jurisprudência, como se pode ver, entre outros, nas seguintes decisões: Ac. TRE de 23/6/2020, Relatora Laura Maurício; Ac. TRE de 15/10/13, Relatora Ana Brito; Ac. TRC de 27/4/2011, Relatora Isabel Valongo; Ac. TRL de 11/10/22, Relator Jorge Gonçalves; Ac. TRC de 12/7/2011, Relator Mouraz Lopes. No caso concreto, a acusação foi rejeitada por se entender que os factos nela descritos não integram o crime de violência doméstica imputado ao arguido.
Ora, como se viu, entre os factos elencados constam os seguintes: - o arguido levava a cabo discussões com a ofendida, pelo menos semanalmente, nas quais a apelidava de puta, vaca, ordinária, gananciosa, parva, estúpida, hipócrita; - dizia-lhe: «vou fazer com que percas o emprego», «vou-te destruir a vida», «não vai haver ninguém que te olhe para a tromba», «tu queres dar cabo de mim», «o que tu queres é ver-me no cemitério», «eu ainda cometo uma loucura e mato-me», amedrontando a ofendida;
- obrigou a ofendida a dormir na sala;
- telefonava frequentemente à ofendida para saber onde estava
- desferiu um empurrão no peito da ofendida
- colocou as roupas da ofendida na rua e agarrou no seu braço, arrastando-a até à porta a fim de expulsá-la de casa.
Da mera leitura destes factos é evidente que, de acordo com uma corrente jurisprudencial significativa, os mesmos são aptos a integrar os elementos objetivos do tipo de crime de violência doméstica. E, realce-se, relativamente aos elementos subjetivos nenhuma questão é suscitada, sendo que os mesmos se encontram descritos na peça acusatória. Desta forma, não sendo incontroversa a questão – pelo contrário, sobre ela existem diversas posições – o tribunal não pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada. O processo deve prosseguir e, só após o julgamento, poderá apreciar a questão da qualificação jurídica dos factos que aí se demonstrarem.
O recurso procederá.
*
4 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da Seção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido e determinar que o mesmo seja substituído por outro que receba a acusação, com os subsequentes termos do processo.
Sem custas.
*
Évora, 3 de junho de 2024
Carla Oliveira (Relatora)
Carla Francisco (1ª Adjunta)
Manuel Soares (2º Adjunto)