FACTOS PROVADOS
DESISTÊNCIA DE QUEIXA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
INJÚRIA
Sumário

Sustenta o arguido que deve ser aditado ao rol dos factos provados a declaração da ofendida, prestada em audiência de julgamento, no sentido de que pretende desistir da queixa apresentada.
Não lhe assiste qualquer razão. Essa declaração foi prestada em audiência de julgamento e, como tal, ficou registada no sistema de gravação pelo que, caso se entendesse, ou se venha a entender nesta sede, que os factos praticados pelo arguido integram a prática de crimes de natureza particular e/ou semi pública, será necessariamente considerada. E, para tanto, além de não dever constar do elenco dos factos provados, não se mostra necessário (tal como a queixa ou a dedução de acusação particular, nos casos em que é necessária, não consta desse elenco). Com efeito, a matéria provada respeita exclusivamente a factos concretos que ocorreram e que são relevantes para efeitos de integração ou de exclusão dos elementos objetivos e subjetivos do crime (e bem assim da determinação da sanção, se for esse o caso), e que respeitam à decisão da causa. A declaração de desistência de queixa não consubstancia um facto com relevo para a decisão de facto. Trata-se apenas de uma manifestação de vontade unilateral que, em determinadas circunstâncias assume relevo processual. Mas, para tal, basta estar registada no processo, como no caso ocorre (sendo certo que, em bom rigor, deveria constar expressamente da ata. Porém, tratando-se de declaração que ficou gravada, nada obsta ao seu aproveitamento).
Do art.152º, nº1, do Cód. Penal resulta desde logo que, para que a conduta do arguido integre a sua previsão, necessário é a existência de “maus tratos”, os quais podem ser reiterados ou consistir apenas num ato isolado.
Os crimes de ofensa à integridade física e de injúria previstos, respetivamente, no art. 143º e 181º, do Cód. Penal, por seu turno, têm em vista a proteção da integridade física e da honra e consideração pessoais. A violência doméstica encontra-se, deste modo, numa relação de concurso aparente, especialidade, com ambos.
Assim, para verificar se a conduta concreta do agente integra o crime de violência doméstica ou, como é defendido pelo aqui recorrente, os de ofensa à integridade física e de injúria, cumprirá, antes de mais, avaliar os atos concretos, os bens jurídicos violados e a intensidade dessa violação. E essa avaliação será feita tendo em conta, quer a reiteração, quer a gravidade e características especificas das ofensas praticadas. Importa saber se se verificou uma especial violação dos direitos da vítima, de tal forma grave, que extravase o desvalor próprio e o âmbito de aplicação da norma penal típica, tornando esta inadequada e insuficiente para a proteção do bem jurídico afetado.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1 Decisão recorrida

Por sentença de 11 de março de 2025, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152°, n° 1, alínea b) e c), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, com sujeição a um regime de prova, assente num plano de reinserção social, elaborado e vigiado pelos serviços da DGRSP (determinando-se a inclusão em programa para agressores de violência doméstica (PAVD)).

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1.2 Recurso/Parecer

Inconformado com a decisão, o arguido apresentou recurso do qual extraiu, em síntese, as seguintes conclusões (resumo nosso):

DO ERRO DE JULGAMENTO E DA INCORRECTA APRECIAÇÃO E VALORAÇÃO DA PROVA PRODUZIDA EM JULGAMENTO

A ofendida BB, em audiência de discussão e julgamento declarou que pretendia desistir do procedimento criminal contra o arguido, pelo que o tribunal deveria ter declarado tal facto como provado. Tal omissão gera a nulidade da sentença.

DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA

A factualidade provada não evidencia a prática pelo Recorrente de maus tratos psíquicos e maus tratos físicos, que nem pela sua gravidade, nem pela sua reiteração, se coadunem com a integração no crime de violência doméstica – no essencial, os atos praticados não assumem a particular gravidade que se exige por forma a poder concluir-se que, por via dela, o arguido atentou contra a dignidade da pessoa humana da ofendida; não revela o tal elemento de adequação à afetação do cerne da dignidade da ofendida exigido pelo tipo penal da violência doméstica.

Os factos que resultaram provados são aptos a integrar o crime de injúria sob a forma continuada e o crime de ofensa à integridade física simples. Porém, tratando-se o primeiro de crime de natureza particular, carece o MP de legitimidade para o procedimento criminal – sendo que a ofendida não apresentou queixa, não se constituiu assistente nem deduziu acusação particular. Deve por isso ser declarado extinto o procedimento criminal contra o arguido. E, revestindo o crime de ofensa à integridade física simples natureza semi pública, deverá ser homologada a desistência de queixa apresentada pela ofendida em audiência de julgamento.

DA MEDIDA DA PENA

A medida concreta da pena mostra-se excessiva, tendo em consideração as circunstâncias concretas do caso, designadamente as condições sociais e pessoais do arguido, o seu arrependimento, o ter aceite definitivamente o fim do relacionamento com a ofendida e manter já uma relação com outra pessoa. Acresce que, embora disponha de condenações anteriores, nenhuma delas é por crime de idêntica natureza.

A pena concreta deve por isso situar-se no mínimo legal.

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1.3 Resposta/Parecer

O Ministério Público apresentou resposta na qual, em síntese, se pronunciou pelo não provimento do recurso por entender que a decisão recorrida não padece de qualquer vício ou erro.

Neste Tribunal da Relação, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta apôs visto.

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2. Questões a decidir no recurso

Assim, as questões a apreciar e a decidir – e delimitadas pelas conclusões apresentadas – são as seguintes:

- Do erro de julgamento;

- Do enquadramento jurídico dos factos provados: crime de ofensa à integridade física e de injúrias ou de violência doméstica;

- Da medida da pena.

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3. Fundamentação

3.1. Factualidade provada na sentença

Factos provados (transcrição)

1) AA e BB iniciaram relacionamento amoroso em fevereiro de 2022.

2) Entre o início de março de 2022 e finais de novembro de 2022 residiram em comunhão de cama, mesa e habitação na Rua …, na freguesia de …, em ….

3) Fruto do relacionamento de ambos nasceu CC, em … de 2023.

4) Após separação, a ofendida mudou a residência para a Av. …, em …, juntamente com CC, permitindo as visitas do arguido ao filho de ambos mediante contacto prévio com a mesma.

5) Porém, o arguido não aceitou o término do relacionamento amoroso.

6) No fim de novembro de 2023, no período compreendido entre as 18.00h e as 19.00h, aquando da visita de CC, encontrando-se com a ofendida no corredor do prédio, o arguido apodou-a de “puta” e disse-lhe “sei que andas com outros”.

7) Ato contínuo, desferiu-lhe uma bofetada que a atingiu no lado direito da face.

8) No dia 12 de dezembro de 2023, já depois das 19.00h, o arguido dirigiu-se novamente à residência da ofendida, a fim de ver o filho de ambos.

9) Como a ofendida demorou um pouco a dar banho e vestir CC, o arguido, que aguardava no exterior, nas escadas do prédio, ficou chateado.

10) Após, quando a ofendida já se encontrava no exterior da habitação, o arguido alcançou o pescoço da ofendida, com uma mão, empurrando-a1.

11) Em simultâneo, apodou-a de “puta”.

12) A ofendida chamou pela sobrinha, DD, com a mesma residente no aludido apartamento2.

13) Após a ofendida afastou-se e disse ao arguido que ia contactar a polícia e apresentar queixa, tendo regressado ao apartamento.

14) DD confrontou o arguido, tendo-o, ainda, ouvido dizer à ofendida “qualquer dia vou-te matar”.

15) No dia 29 de fevereiro de 2024, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida e, no exterior da residência3, acusou-a de o querer “tramar” e disse-lhe que se continuasse o processo contra ele, iria ver o que ia acontecer.

16) Ato contínuo, puxou-lhe os cabelos, após o que se ausentou, de imediato, do local.

17) O arguido proferiu e profere as expressões referidas com a consciência e o conhecimento do seu significado objetivo e de que são ofensivas da honra e consideração de BB, atuando com a intenção de atingir a ofendida no seu bom nome e dignidade, resultado que conseguiu e consegue alcançar.

18) Agiu o arguido com o propósito logrado de maltratar a ofendida, sua ex-companheira e mãe do seu filho, ofendendo-a na sua honra e consideração, seviciando-a fisicamente, atingindo-a no corpo e na saúde, ciente ainda de que as expressões que lhe dirigiu eram adequadas a fazê-la recear pela sua integridade física e vida.

19) O arguido agiu em tudo de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

Resultou, igualmente, provado

20) A ofendida não tem receio do arguido.

Das condições pessoais e económicas e antecedentes criminais do arguido

21) O arguido nasceu em …1992 e é solteiro.

22) O arguido reside com os progenitores.

23) O arguido tem um filho, com dois anos de idade, que reside com a ex-companheira.

24) O arguido trabalha numa empresa de …, auferindo, pelo desempenho da sua atividade profissional, o valor correspondente ao salário mínimo nacional, € 870,00 (oitocentos e setenta euros).

25) Atualmente o arguido está de baixa médica, na sequência de um acidente de trabalho, auferindo um subsídio de cerca de € 490,00 (quatrocentos e noventa euros) mensais.

26) O arguido despende € 87,00 (oitenta e sete euros) mensais com a prestação bancária referente à aquisição de um motociclo.

27) O arguido despende cerca de € 400,00 (quatrocentos euros) mensais em despesas referentes à sua alimentação e despesas com o seu filho.

28) Como habilitações académicas o arguido tem o 8.º ano de escolaridade.

29) O arguido sofreu as seguintes condenações no âmbito de processos criminais:

∙ Por sentença datada de 14.04.2011 e transitada em julgado em 23.05.2011, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 589/09.9…, do ….º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de …, o arguido foi condenado, pela prática, em 16.04.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante total de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros);

∙ Por acórdão datado de 24.07.2012 e transitado em julgado em 13.08.2012, proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 1650/11.5…, do ….º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de …, o arguido foi condenado, pela prática, em 09.12.2011 e em concurso efetivo, de um crime de ofensa à integridade física qualificada e de um crime de roubo, na pena única de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e com sujeição a regime de prova, suspensão essa que foi revogada em 25.05.2015, havendo tal pena única sido já declarada extinta pelo cumprimento em 02.06.2017;

∙ Por acórdão datado de 03.12.2013 e transitado em julgado em 29.05.2014, proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 24/13.8…, do ….º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de …, o arguido foi condenado, pela prática, em 07.01.2013 e 14.01.2013 e em concurso efetivo, de dois crimes de detenção de arma proibida e de um crime de roubo, na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, havendo tal pena única sido já declarada extinta pelo cumprimento em 28.06.2021;

∙ Por acórdão datado de 12.07.2021 e transitado em julgado em 31.03.2022, proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 130/18.2…, do Juízo Central Criminal de … – J…, o arguido foi condenado, pela prática, em 2020, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

∙ Por sentença datada de 20.12.2022 e transitada em julgado em 01.02.2023, proferida no âmbito do processo comum n.º 192/22.8…, do Juízo Local Criminal de … – J…, o arguido foi condenado, pela prática, em 18.01.2022, de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada agravada, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante total de € 1000,00 (mil euros), havendo tal pena sido já declarada extinta pelo pagamento em 18.02.2023.

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Factos Não Provados

Com relevância para a boa decisão da causa, ficou por provar que:

a) O bloco correspondente à residência da ofendida seja o ….

b) O arguido ainda não tenha aceite o fim do relacionamento amoroso com a ofendida.

c) As visitas do arguido ao filho CC ocorressem no interior da residência da ofendida.

d) Nas visitas ao filho CC, na residência da ofendida, o arguido apodasse a ofendida de “puta” e dissesse que esta “anda com todos”.

e) O descrito em 6) tivesse ocorrido no dia 28 de novembro de 2023.

f) Na ocasião mencionada em 6), o arguido tivesse dito em tom de voz alto “Sei que andas a sair com rapazes e a falar com rapazes. Eu sei que é verdade. Tu vais ver”.

g) Em consequência direta e necessária da atuação do arguido descrita em 7), a ofendida tivesse sofrido dores.

h) Na circunstância descrita em 9) o arguido tivesse ficado chateado por a ofendida não ter atendido de imediato a chamada e tivesse, assim que viu o CC e a ofendida, ordenado à ofendida que lhe entregasse o filho.

i) O arguido tivesse dito à ofendida que estava chateado porque havia sido despedido, culpabilizando-a.

j) Na sequência das palavras proferidas pelo arguido, descritas em i), a ofendida lhe tivesse pedido para ter calma.

k) Nas circunstâncias espaciotemporais descritas em 10) o arguido tivesse apertado o pescoço da ofendida, exercendo pressão.

l) Como consequência direta e necessária da atuação do arguido descrita em k) e 10), a ofendida tivesse sofrido dores.

m) Na sequência do descrito em 13) o arguido tivesse ido no encalço da ofendida, dito “Toma lá o miúdo antes que eu te desfaça toda em frente à tua sobrinha” e entregue o CC a DD.

n) Nas circunstâncias descritas em 14), e após confrontado por DD, o arguido tivesse respondido “Para a próxima vai ser pior” e depois, dirigindo-se à ofendida, tivesse dito “Estragaste a minha vida. Para a próxima vou-te rebentar. Vou-te matar”.

o) Nas circunstâncias descritas em 6) a 16) o arguido estivesse na residência da ofendida e/ou na presença de CC, que bem sabia ser o filho menor de ambos.

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3.2 – Erro de julgamento

Sustenta o arguido que deve ser aditado ao rol dos factos provados a declaração da ofendida, prestada em audiência de julgamento, no sentido de que pretende desistir da queixa apresentada.

Não lhe assiste qualquer razão.

Essa declaração foi prestada em audiência de julgamento e, como tal, ficou registada no sistema de gravação pelo que, caso se entendesse, ou se venha a entender nesta sede, que os factos praticados pelo arguido integram a prática de crimes de natureza particular e/ou semi pública, será necessariamente considerada. E, para tanto, além de não dever constar do elenco dos factos provados, não se mostra necessário (tal como a queixa ou a dedução de acusação particular, nos casos em que é necessária, não consta desse elenco). Com efeito, a matéria provada respeita exclusivamente a factos concretos que ocorreram e que são relevantes para efeitos de integração ou de exclusão dos elementos objetivos e subjetivos do crime (e bem assim da determinação da sanção, se for esse o caso), e que respeitam à decisão da causa. A declaração de desistência de queixa não consubstancia um facto com relevo para a decisão de facto. Trata-se apenas de uma manifestação de vontade unilateral que, em determinadas circunstâncias assume relevo processual. Mas, para tal, basta estar registada no processo, como no caso ocorre (sendo certo que, em bom rigor, deveria constar expressamente da ata. Porém, tratando-se de declaração que ficou gravada, nada obsta ao seu aproveitamento).

Em suma, a decisão da matéria de facto não padece de erro de julgamento nos moldes apontados.

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3.3 - Do enquadramento jurídico dos factos provados: crime de ofensa à integridade física e injúria ou violência doméstica

O arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica. Porém, face à factualidade que resultou provada, entende o mesmo que a sua conduta integra antes um crime de ofensa à integridade física e um crime de injúrias na forma continuada.

Apreciando.

Dispõe o art. 152º, nº1, do Cód. Penal, que pratica o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos próprios ou comuns a (no que agora nos interessa) pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges.

Deste preceito resulta desde logo que, para que a conduta integre a sua previsão, necessário é a existência de “maus tratos”, os quais podem ser reiterados ou consistir apenas num ato isolado.

Embora não exista uma noção exata e totalmente abrangente do conceito de “maus tratos”, podemos descrevê-los, em termos genéricos, como todos os atos de abuso, de poder, de violência, crueldade ou de intimidação que se mostrem aptos a gerar, no seu destinatário, lesões, dor, medo, constrangimento, humilhação, vergonha, sofrimento físico ou psicológico ou uma incapacidade de satisfazer as necessidades entendidas como essenciais de qualquer ser humano.

O bem jurídico protegido com a incriminação é, como se pode ver, a pessoa individualmente considerada, a sua dignidade enquanto pessoa humana e a sua saúde física, psicológica e mental.

Desta forma, os “maus tratos” previstos no preceito em causa pressupõem a prática de ato/atos que, independentemente da sua natureza, se mostrem aptos a atingir e colocar em causa a dignidade humana.

Os crimes de ofensa à integridade física e de injúria previstos, respetivamente, no art. 143º e 181º, do Cód. Penal, por seu turno, têm em vista a proteção da integridade física e da honra e consideração pessoais. A violência doméstica encontra-se, deste modo, numa relação de concurso aparente, especialidade, com ambos.

Assim, para verificar se a conduta concreta do agente integra o crime de violência doméstica ou, como é defendido pelo aqui recorrente, os de ofensa à integridade física e de injúria, cumprirá, antes de mais, avaliar os atos concretos, os bens jurídicos violados e a intensidade dessa violação. E essa avaliação será feita tendo em conta, quer a reiteração, quer a gravidade e características especificas das ofensas praticadas. Importa saber se se verificou uma especial violação dos direitos da vítima, de tal forma grave, que extravase o desvalor próprio e o âmbito de aplicação da norma penal típica, tornando esta inadequada e insuficiente para a proteção do bem jurídico afetado.

Em termos práticos, para que a ofensa física e a injúria se “transformem” em violência doméstica, o ato único ou os atos reiterados, têm que assumir uma relevância e gravidade tal que não atinjam apenas a integridade física da vítima e a sua honra, mas também a sua dignidade enquanto pessoa humana. O ato/atos tem que constituir “maus tratos”, revelar desprezo, crueldade, domínio ou mesmo total insensibilidade relativamente à vítima e evidente intenção de a inferiorizar, humilhar e retirar-lhe dignidade.

No caso concreto, o arguido e a vítima residiram em comunhão de cama, mesa e habitação entre início de março de 2022 e finais de novembro do mesmo ano. O arguido não aceitou o fim do relacionamento e, nessa sequência, e nesse contexto, por três ocasiões distintas, num espaço de cerca de 3 meses, agrediu a ofendida (numa das vezes desferiu-lhe uma bofetada, noutra agarrou-lhe o pescoço e empurrou-a e, na terceira, puxou-lhe o cabelo). Nas duas primeiras situações apodou-a de “puta”, sendo que numa delas lhe disse também: “sei que andas com outros” e, na outra, lhe disse “qualquer dia vou-te matar”. Na terceira ocasião acusou-a também de o querer tramar e disse-lhe que se continuasse o processo contra ele “iria ver o que ia acontecer”.

Estamos, pois, perante três situações distintas, ocorridas num espaço de tempo curto, nas quais o arguido agrediu a ofendida, a insultou e a ameaçou. Todos esses atos foram praticados, sem que existisse uma específica razão ou justificação (na medida em que seja possível encontrar uma qualquer explicação para que estas situações ocorram, e não no sentido das mesmas serem, de algum modo, justificadas, que não são, salienta-se). O mesmo é dizer que tais atos ocorreram fora de um qualquer contexto de discussão ou desentendimento concreto, ocorrido entre arguido e ofendida, e apenas porque sim, porque o arguido assim o quis.

Tais atos, considerado na sua globalidade, excedem a violação própria dos bens jurídicos próprios e protegidos pelos crimes de ofensa à integridade física e injúria (e até de ameaça, embora o recorrente não se refira a este). Vão além da mera ofensa à integridade física e à hora.

Com efeito, os atos concretos aqui em causa, atendendo o contexto e a forma como foram praticados são reveladores de uma vontade de dominar, humilhar, desconsiderar e desprezar a vítima ou diminui-la enquanto pessoa. Tratam-se de uma manifestação de poder/superioridade do arguido (perante a vítima) que, desse modo, quer mostrar que dispõe de autoridade e domínio sobre ela, podendo maltratá-la quando quiser. E, além do mais, tal atitude decorre de forma clara da relação de coabitação que mantiveram e ocorre por causa dela.

Por tudo isto, entende-se que os mencionados atos, embora tenham ocorrido apenas em três ocasiões (a lei basta-se, com um ato isolado, note-se) são aptos a atingir de modo forte e intenso a dignidade da vítima, enquanto pessoa humana.

Estamos por isso no âmbito do crime de violência doméstica, tal como decidido pelo Tribunal de Primeira Instância.

Assim, nesta parte, improcede a pretensão do recorrente.

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3.3 – Da medida da pena

Invoca o recorrente que a medida concreta da pena se mostra excessiva devendo ser fixada no mínimo legal. Fundamenta a sua pretensão no arrependimento manifestado, nas suas condições pessoais e sociais e também na circunstância de já ter aceitado o fim do relacionamento com a ofendida, com quem não mantém contacto. E, afirma ainda, não dispõe de condenações anteriores pela prática de crime de idêntica natureza.

Cumpre apreciar.

A determinação da medida concreta da pena deve ser efetuada com recurso aos critérios gerais estabelecidos no art. 71º, do Cód. Penal, ou seja, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. E, tal como estipula o art. 40º, nº2, do mesmo diploma, “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, sendo esta o patamar máximo da pena a aplicar.

Na sentença recorrida pode-se ler-se o seguinte, a este propósito:

“ Há assim que ponderar:

Contra o arguido depõem:

- o dolo, como direto que é, encontrando-se no expoente máximo do seu grau de intensidade;

- as necessidades de prevenção geral são elevadas, atenta a crescente consciencialização da comunidade acerca do flagelo que a prática do crime em apreço se tem vindo a tornar, assumindo enorme premência a necessidade de se acautelarem as referidas necessidades de prevenção geral, quer positiva (no sentido de que os prevaricadores são exemplarmente punidos e destarte neutralizados, permitindo que se crie um sentimento de segurança e confiança na comunidade) quer negativa (no sentido de que existe uma efetiva intimidação e neutralização, não só dos prevaricadores em particular mas, igualmente, da comunidade em geral na qual se encontrem outros, não atuais, mas potenciais);

- as necessidades de prevenção especial que são muito relevantes, na medida em que o arguido (cf. descritos no ponto 29) em atenção ao certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 227 a 232), tem 8 (oito) crimes averbados no seu certificado de registo criminal, o que é já revelador de uma personalidade algo indiferente ao direito, pois que o arguido vem revelando uma postura demonstrativa da não interiorização do desvalor das suas condutas passadas, na medida em que, tendo estas sido entretanto punidas, tais punições revelaram-se infrutíferas, no que concerne à sua ressocialização ou à sua dissuasão da prática de novos ilícitos, conforme se comprova pelos presentes autos [cumpre ainda destacar que os crimes pelos quais o arguido foi já condenado são os seguintes: condução sem habilitação legal (1), ofensa à integridade física qualificada (1), roubo (2), detenção de arma proibida (2) tráfico de estupefacientes (1) e perturbação da vida privada (1)]. Importa ainda sublinhar que os factos objeto dos presentes autos foram práticos no período em que decorre a pena suspensa na sua execução na qual foi condenado no âmbito do processo comum coletivo n.º 130/18.2…, o que é, igualmente, revelador de um preocupante desprezo pelas penas que lhe vão sendo sucessivamente aplicadas.

A favor do arguido depõem:

- o grau de ilicitude dos factos, que se tem por médio baixo, atendendo ao modo de execução dos mesmos, nos termos supra descritos (não obstante a gravidade das condutas perpetradas pelo arguido sobre a ofendida, afigura-se a este Tribunal estarmos perante condutas contidas dentro da infeliz normalidade daquilo que consubstancia a prática do crime em apreço);

- as suas condições pessoais, laborais e sociais, designadamente, o facto de o arguido se encontrar totalmente integrado profissional e familiarmente, mantendo um relacionamento amoroso tido por ambas as partes como equilibrado e desempenhando uma atividade profissional que gosta e na qual é reconhecido pelos superiores hierárquicos;

- a conduta posterior aos factos, o arguido mostrou-se arrependido da factualidade que admitiu e não estabelece contactos com a ofendida (à exceção dos respeitantes ao filho que têm em comum).

Sopesados estes elementos, considera-se justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido AA, pela prática de um crime de violência doméstica, de uma pena de 3 (três) anos de prisão”.

Concorda-se inteiramente com tal decisão.

Com efeito, verifica-se que todos os fundamentos invocados pelo arguido nesta sede foram considerados pelo Tribunal recorrido. E, tal foi feito de forma adequada e correta.

Salienta-se, em concreto, que passado criminal do arguido assume bastante relevo, pese embora não conte com nenhuma condenação pela prática de crime de idêntica natureza. Estamos a falar da condenação pela prática de 8 crimes (alguns dos quais bastante graves), o que é claramente revelador da adoção de uma conduta desconforme ao direito vigente, pelo qual, aliás, manifesta profunda indiferença. Só isso justifica que, depois de tais condenações, o arguido tenha continuado a praticar novos crimes. Para mais, e como ocorre no caso concreto, no decurso do período de suspensão da execução de pena de prisão anteriormente aplicada.

Pode-se, pois, concluir que o arguido revela uma forte tendência para o crime o que torna as necessidades de prevenção especial muito elevadas.

Desta forma, considerando todas as circunstâncias concretas já mencionadas, afigura-se que a pena concreta aplicada não se mostra em nada exagerada, não merecendo por isso qualquer reparo.

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4 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso e, em consequência, em confirmar, nos seus precisos termos, a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (arts. 513º, nº1, do Cód. Proc. Penal e art.8º, nº9, do Reg. Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).

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Évora, 3 de junho de 25

Carla Oliveira (Relatora)

Laura Goulart Maurício (1ª Adjunta)

Moreira das Neves (2º Adjunto)

..............................................................................................................

1 A factualidade descrita no presente ponto, assim como noutros, e que não se mostra vertida na peça acusatória (concretamente, o facto de o arguido ter empurrado a ofendida) não careceu de despacho de alteração não substancial de factos para ser considerada e feita constar no elenco dos factos provados, na simples medida em que adveio ao conhecimento do Tribunal por meio das declarações prestadas pelo próprio arguido, logrando assim aplicação o disposto no artigo 358.º, n.º 2, do CPP.

2 Idem, tal facto adveio ao conhecimento do Tribunal (e convencimento, dado estarmos perante factos corroborados pela testemunha DD e, bem assim, que não desfavorecem a posição do arguido ou que apenas relevam enquanto informação descritiva) por meio das declarações prestadas pelo próprio arguido, logrando assim aplicação o disposto no artigo 358.º, n.º 2, do CPP.

3 Idem. O convencimento de que tal ocorreu no exterior da residência da ofendida, foi corroborado pela própria ofendida que mencionou que o arguido esperou-a, no prédio, depois não a deixou passar e após lhe puxar o cabelo virou-lhe as costas e foi-se embora. No mais, este facto não desfavorece a posição do arguido e foi confirmado por meio das declarações por si prestadas – uma vez que o próprio elencou os concretos momentos em que entrou na residência, no qual este não se inclui – logrando assim aplicação o disposto no artigo 358.º, n.º 2, do CPP.