CONTRADIÇÃO
TRIBUNAL DE RECURSO
SANAÇÃO
ERRO NOTÓRIO
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PELA RELAÇÃO
HOMICÍDIO SOB A FORMA TENTADA
DOLO EVENTUAL
Sumário

É possível ao Tribunal de recurso sanar uma contradição verificada entre os factos provados e os não provados, se a análise cuidada da motivação de facto da decisão recorrida o permitir, através do que resulta da descrição aí efectuada das declarações do arguido, do ofendido e das testemunhas, com apelo às regras da prova indirecta e da experiência comum.
Há erro notório na apreciação da prova quando o Tribunal recorrido dá como provada a quase totalidade dos factos apurados com fundamento no depoimento de uma testemunha, a quem conferiu grande credibilidade, por a mesma ter deposto de forma objetiva, imparcial, espontânea, tranquila, segura e coerente, mas depois não retira deste depoimento todas as consequências no que concerne ao preenchimento do elemento subjectivo do crime de homicídio pelo arguido, com recurso à prova indirecta.
A alteração da matéria de facto efectuada pelo Tribunal de recurso impõe que o mesmo extraia dessa alteração as necessárias consequências ao nível da qualificação jurídica dos factos e da pena a aplicar ao arguido.
É possível a punição de um arguido pela prática de um crime de homicídio sob a forma tentada com dolo eventual, se o mesmo decidiu praticar actos de execução do crime, mas apenas representou como possível que desses actos podia advir o resultado morte da vítima, com o qual se conformou.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1– Relatório

No processo nº 63/23.0GDARL do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Cível e Criminal de …- Juiz …, consta da parte decisória do acórdão datado de 18/10/2024, o seguinte:

“Pelo exposto e no âmbito do quadro legal traçado, acordam as juízas que constituem este Tribunal Coletivo:

a) Absolver o arguido AA, como autor material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, nºs. 1 e 2, alíneas e), 22.º e 23.º do Código Penal e convolando a acusação, condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com regime de prova assente em plano social a elaborar e acompanhar pelos serviços de reinserção social que vise a sua inserção social e a sujeição a tratamento de dependência do consumo de bebidas alcoólicas.

b) Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente BB contra o arguido/demandado, e em consequência, condenar o arguido AA a pagar-lhe a título de indemnização a quantia total de € 1.353,07 (mil trezentos e cinquenta e três euros e sete cêntimos), absolvendo o demandado do demais peticionado;

c) Julgar totalmente procedente por provado o pedido de reembolso deduzido pelo Unidade Local de Saúde de …, EPE e, consequentemente, condenar o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de €112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, contados desde data da notificação do demandado para contestar o pedido cível, até integral e efetivo pagamento..(…)”

*

Inconformado com a decisão condenatória, veio o Ministério Público interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

“1.ª Incorre no vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, o Acórdão que, simultaneamente, dá como provada uma dinâmica dos factos que o Tribunal Coletivo considerou como provada — marcada por uma agressão em que o arguido transformou uma garrafa numa arma de agressão perfurante e cortante partindo-a e, depois, golpeou o ofendido no pescoço, onde sabia encontrar-se veias e artérias cuja perfuração implica, por regra a morte, tal como se alcança do descrito em 4. a 7. dos factos provados — que é incompatível com considerar-se como não provado que o arguido agiu com a intenção de tirar a vida do ofendido BB;

2.ª Incorre igualmente no vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal o Acórdão que considerada o depoimento de certa testemunha (CC) como credível e objetiva acima das demais, a qual relatou uma dinâmica dos factos onde ressalta a clara intenção de o arguido querer atingir o ofendido com um instrumento perfurante e cortante em zonas vitais (a cabeça) e que este (ofendido) só não sofreu lesões mais graves, quiçá a morte, porque no preciso momento em que o arguido desferiu o golpe, tentou desviar-se e levantou a sua mão esquerda (que também ficou ferida) para evitar o golpe, e, contraditoriamente, considera como não provado que o arguido agiu com a intenção de tirar a vida ao ofendido;

3.ª Há erro notório na apreciação da prova, e, por isso, o vício a que se alude no artigo 410.º, n.º 2, al. c); do Código de Processo Penal, se o Tribunal Coletivo considera provada uma certa dinâmica dos factos — de onde avulta que o arguido, partindo uma garrafa e, com isso, transformando-a numa arma perfurante e cortante, com ela atingiu o ofendido no pescoço, onde sabia encontrar-se vasos sanguíneos cuja perfuração conduzem, em regra à morte — que pressupõe, necessariamente e à luz das regras da experiência, que o arguido, no mínimo, se tenha conformado com a possibilidade de tirar a vida ao ofendido BB;

4.ª Há igualmente erro notório na apreciação da prova, e, por isso, o vício previsto no artigo 410.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, se o Tribunal Coletivo deu como não provada a intenção de o arguido pretender tirar a vida do ofendido quando essa factualidade resulta, à luz das regras da experiência, do depoimento de testemunha (CC) que o próprio Tribunal confere plena credibilidade;

5.ª Verifica-se, ainda, erro notório na apreciação da prova e, consequentemente, o vício tipificado na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, por o Tribunal invocar de modo patentemente errado, as regras da experiência, quando

– procura avaliar a intencionalidade da conduta do arguido com base nas consequências que a mesma produziu, esquecendo a dinâmica dos factos e o depoimento da testemunha que o próprio Tribunal conferiu maior credibilidade;

– se afirma que o arguido não quis atingir o pescoço do ofendido quando, de acordo com o depoimento da testemunha que o próprio Tribunal mais credibilidade confere, o arguido pretendia atingir a cabeça do ofendido e a anatomia ensina que o pescoço a ela é contíguo;

– se procura sustentar a decisão de considerar não provado que o arguido agiu com a intenção de tirar vida ao ofendido na dinâmica dos factos quando esta, de acordo com a factualidade que o próprio Tribunal Coletivo considerou como provada e o depoimento considerado, acima de todos, o mais credível, descrevem uma dinâmica dos factos que pressupõe, necessariamente e à luz das regras da experiência, que o arguido, no mínimo, se tenha conformado com a possibilidade de tirar a vida ao ofendido BB.

Em todo o caso,

6.ª Não obstante o artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, entende-se que o Tribunal ad quem está na posse de todos os elementos de prova que serviram de base à decisão e, por força do artigo 431.º do Código de Processo Penal, está em condições de determinar que

i. seja eliminada da factualidade não provada o que ali consta sob a alínea e), cujo teor é a seguinte:

– “AA agiu com o propósito de retirar a vida àquele, o que só não o logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade”; e

ii. seja acrescentada como facto provado (em substituição do que ali consta sob o n.º 8.) o seguinte facto:

– O arguido atuou prevendo como possível a morte de BB, resultado que não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade, mas com o qual se conformou;

Sem prescindir, também se dirá,

7.ª Na reapreciação da prova, e tendo em vista garantir um segundo grau de jurisdição de facto, a Relação deve formar a sua autónoma convicção à luz dos meios de prova invocados pelo recorrente e todos os demais que se lhe mostrem disponíveis, introduzindo na decisão de facto as alterações que essa sua própria convicção lhe imponha;

8.ª O material probatório disponível, designadamente

i. a documentação clínica que se mostra a fls. 48, fls. 78 e fls. 82, em conjugação com a prova pericial, cujos relatórios se podem encontrar a fls. 87 a 90 e a fls. 131 a 134;

ii. as declarações do assistente BB, no dia 10.10.2021. entre 10.40.17 horas e as 11.18.46 horas, documentado no sistema áudio do Citius sob o ficheiro …, especialmente entre os 8.38 m e os 9.18 m e entre os 34.19 m e os 35.16 m;

iii. o depoimento de CC, no dia 10.10.2021. entre as 11.19.52 horas e as 11.35.56 horas, documentado no sistema áudio do Citius sob o ficheiro …, especialmente entre os 6.35 m e os 8.38 m, acaso fosse valorado de acordo com as regras da experiência, tal como impõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal, impunha decisão diferente quanto à matéria de facto, nomeadamente considerando como provado o seguinte facto:

– O arguido agiu com o propósito de retirar a vida àquele, o que só não o logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade,

em substituição da factualidade que, em parte, se mostra aludida em 8. dos factos provados

– “AA agiu com o propósito de atingir o corpo do ofendido e de lhe causar lesões…”,

e ajustando-se a alínea e) dos factos não provados que deve passar a ter a seguinte redação:

– Sem prejuízo do descrito em 8. dos factos provados, AA agiu com o propósito direto de retirar a vida a BB.

9.ª Provado o acervo fáctico especificamente impugnado, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio tentado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 1 e n.º 2, al. b) e 131.º do Código Penal, na pena de três (3) anos de prisão;

10.ª Na falta de factos reveladores de o arguido ter interiorizado o desvalor da sua conduta, estar arrependido, de procurar ou, ao menos, querer minimizar os danos causados pelo crime de homicídio tentado, não deve a pena de prisão ser suspensa na sua execução, apesar de o arguido não ter antecedentes criminais;

Sem prescindir e subsidiariamente,

11.ª A utilização de uma garrafa partida como instrumento de agressão constitui meio particularmente perigoso para efeitos de qualificar o crime de ofensa à integridade física nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º, aplicável ex vi do n.º 2 do artigo 145.º, todos do Código Penal, pelo que o agente que, previamente, parte propositadamente no chão uma garrafa para agredir o ofendido e depois a utiliza para o golpear no pescoço deve ser punido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada nos termos do artigo 145.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de dois (2) anos e três (3) meses de prisão;

12.ª Na falta de factos reveladores de o arguido ter interiorizado o desvalor da sua conduta, estar arrependido, de procurar ou, ao menos, querer minimizar os danos causados pelo crime de ofensa à integridade física qualificada em que utilizou uma garrafa que previamente partiu para atingir o ofendido no pescoço, não deve a pena de prisão ser suspensa na sua execução, apesar de o arguido não ter antecedentes criminais.”

*

O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

*

O arguido apresentou resposta ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e sem formular conclusões.

*

Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.

*

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o arguido vindo acrescentar ao já por si alegado.

*

Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

*

2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:

- Verificação dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas b) e c) do Cód. Proc. Penal;

- Erro de julgamento;

- Qualificação jurídica dos factos;

- Medida da pena.

*

3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

“1.1. – FACTOS PROVADOS:

Da instrução e discussão da causa, com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 21 de Maio de 2023, pelas 00h30m, na esplanada do café “…”, sito na Rua …, …, em …, o arguido agarrou DD pelas pernas fazendo-o cair de costas no chão.

2. Apercebendo-se do sucedido, o assistente BB disse ao arguido para parar e após uma troca de palavras entre ambos cujo teor não foi possível apurar, BB desferiu uma chapada na cara do arguido.

3. Nessa altura, CC afastou-os, empurrando o arguido para junto de uma mesa da esplanada.

4. Ato contínuo, o arguido agarrou uma garrafa de cerveja que ali se encontrava, partiu-a no chão e, empunhando a referida garrafa de cerveja, dirigiu-se a BB que, por sua vez, recuava para se afastar sempre que o arguido dele se tentava aproximar.

5. A dado momento o arguido aproximou-se de BB e, fazendo uso da referida garrafa, que empunhava, desferiu um golpe contra BB, atingindo-o na zona do pescoço e na mão esquerda.

6. Em consequência direta e necessária da conduta de AA, BB sofreu de ferida angulada com cinco centímetros do diâmetro na face lateral esquerda do pescoço, que foi suturada, de ferida linear de cinco centímetros na região supraclavicular esquerda, que foi suturada, e de feridas no segundo dedo da mão esquerda, ao nível do metacarpo falângica, lesões que determinaram doze dias de doença com afetação da capacidade para o trabalho.

7. O arguido sabia que na zona do pescoço se encontram veias e artérias cuja perfuração implica, em regra, a morte por hemorragia.

8. AA agiu com o propósito de atingir o corpo do ofendido e de lhe causar lesões, como efetivamente fez, agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

*

9. Em consequência da conduta do arguido, BB foi assistido no Centro de Saúde de … e depois transferido para o Hospital do … em …, onde foi suturado nas feridas do pescoço, sendo mais tarde transferido para o Hospital Universitário de … para ser assistido na lesão da mão.

10. Em consequência da conduta do arguido, o assistente ficou com cicatrizes na região cervical e supraclavicular esquerda e no dedo indicador esquerdo, presentemente mantem sensação de formigueiro no pescoço e possui perda de sensibilidade no dedo, sendo que quando tem necessidade de exercer mais força o dedo fica inchado e não consegue mexê-lo.

11. À data dos factos o ofendido ia iniciar trabalho na área …l onde auferiria €9,00/hora.

12. Em consequência da conduta do arguido, o assistente suportou o custo de €112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos) com o episódio de urgência do Hospital do … de …, €20,00 (vinte euros) com a deslocação a … para a realização do Exame de Perícia Médica efetuado no âmbito deste processo.

13. Em consequências da atuação do arguido, BB foi assistido no Hospital Universitário de … – …, EPE, onde recebeu cuidados médicos, sendo que o custo da assistência hospitalar prestada ao ofendido ascende a €112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos).

*

Mais se provou, com interesse para a causa:

14. AA é natural da …, país onde residiu até aos 30 anos. É o mais novo de uma fratria de cinco elementos, oriundo de um meio familiar desfavorecido de humilde condição sócio económica. AA emigrou para Portugal em 2019, tendo-se fixado na zona de …, onde permanecia um irmão mais velho, que entretanto emigrou para …. Posteriormente conheceu uma pessoa, tendo iniciado com a mesma um relacionamento afetivo e passou a residir na …, uma aldeia perto de …; com o termino da relação passou a residir em …, onde vivia sozinho há cerca de um ano, numa casa arrendada.

15. AA trabalhava para uma empresa de … do Sr. EE, onde auferia cerca 40€/dia, mas após agosto de 2023 foi trabalhar para a zona de …, também na área da …, onde não pagava alojamento e enviava dinheiro para família que permanece na … (€250,00 para a mãe) e também enviava €250 para ajudar um irmão que está em Portugal.

16. AA iniciou o consumo de bebidas alcoólicas, muito cedo e em contexto de grupo de pares, apresenta reduzidas competências pessoais e sociais, mantendo dificuldades em comunicar eficazmente. Revela dificuldades, no relacionamento interpessoal, em colocar-se no lugar do outro e ao nível da negociação e da resolução de conflitos com baixa tolerância à frustração, sobretudo quando associado ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas.

17. No meio de residência e na comunidade em geral, foi referenciado com algum desenquadramento social, quando consumia bebidas alcoólicas, sendo conotado nessas ocasiões com comportamentos desajustados.

18. No Estabelecimento Prisional o arguido frequenta um curso de alfabetização, que lhe dará equivalência ao 4 ano de escolaridade, frequenta ainda um curso de português. Mantém um comportamento adequado, sem registo de incidentes.

19. O arguido prestou o seu consentimento para ser sujeito a tratamento de alcoolismo.

20. O arguido não possui antecedentes criminais.

*

1.2. – FACTOS NÃO PROVADOS:

Da instrução e discussão da causa, com relevância para a decisão, resultaram não provados os seguintes factos:

a) O arguido bateu com a garrafa de cerveja no chão quando se encontrava junto do veículo do ofendido.

b) No circunstancialismo referido em 4 e 5, BB, dirigia-se para o veículo em que, à data, se fazia transportar.

c) O arguido desferiu dois golpes no pescoço de BB.

d) Após os golpes BB pôs a mão esquerda sobre o pescoço.

e) AA agiu com o propósito de retirar a vida àquele, o que só não o logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade.

f) À data dos factos o assistente exercia da atividade de …, auferindo €200,00 por dia.

g) Em consequência da conduta do arguido, o ofendido foi sujeito a consulta de ortopedia com o custo de €70,00.

h) Em consequência da conduta do arguido, o assistente sofreu lesões que o impedem de exercer a atividade de …; além disso, o assistente tem pesadelos e teme pelo que lhe possa acontecer, deixou de ser a pessoa alegre e ativa que era.

*

A restante matéria alegada, por revestir natureza conclusiva (vg “sequência de desacatos”), ser inócua ou por ser irrelevante, não foi considerada.

*

1.3. CONVICÇÃO DO TRIBUNAL E EXAME CRÍTICO DAS PROVAS:

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência, bem como da prova pericial e documental que consta dos autos, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Para a prova dos factos descritos nos pontos 1 a 5 a convicção do tribunal fundou-se nas declarações do assistente e das testemunhas DD, CC e FF, por serem as únicas pessoas que ali se encontrava e que presenciaram o sucedido, sendo que todos confirmaram que os factos ocorreram ao final da noite, em …, mais precisamente na esplanada do café “…”, onde BB, CC e FF se encontraram durante a tarde e consumiram diversas cervejas, sendo que DD e o arguido ali apareceram mais tarde e também consumiram diversas cervejas.

O episódio em causa nos autos teve início com a ação que o arguido dirigiu a DD, puxou-o pelas pernas, fazendo-o cair de costas do banco onde este se encontrava sentado. Este comportamento que o arguido considerou tratar-se de uma brincadeira ou uma simples folia, desagradou a BB (mas também ao próprio DD, pois este assim o afirmou na audiência de julgamento) e, por isso, BB dirigiu-se ao arguido dizendo-lhe para parar, nessa sequência e após uma troca de palavras entre ambos, cujo teor ninguém logrou especificar, BB desferiu uma chapada na cara do arguido.

É o próprio assistente que reconhece essa primeira agressão, igualmente confirmada pelo arguido e também pelos demais, nomeadamente por CC que disse ter intervindo logo depois da chapada, afastando-os e empurrando o arguido em direção a umas mesas da esplanada. Esta testemunha referiu ainda que foi nesse momento que o arguido agarrou e partiu a garrafa de cerveja e dirigindo-se ao BB empunhando a referida garrafa e enquanto aquele se tentava aproximar BB recuava andando à volta de um veículo até que o arguido se aproximou daquele e, fazendo um movimento de cima para baixo (movimento de martelo), desferiu um só golpe em BB que nesse preciso momento se tentou desviar e levantou, a sua mão esquerda para evitar o golpe. Esta testemunha esclareceu que o veiculo à volta do qual aqueles circulavam ficou com marcas de sangue, acrescentando ainda que do lugar onde se encontrava ficou com a perceção de que o arguido pretendia atingir o ofendido na cabeça.

O testemunho de CC, que presenciou os factos e descreveu a condutas de cada um dos intervenientes nos exatos termos supra descritos, mostrou-se objetivo, imparcial e espontâneo. Saliente-se que CC não revelou qualquer animosidade em relação ao arguido, nem uma especial amizade ou qualquer tentativa de beneficiar o assistente. Depôs sempre de forma tranquila, segura e coerente com a dinâmica dos factos acima descritos, cabendo ainda frisar que a compleição física desta testemunha (seguramente o mais alto e robusto de todos os que ali se encontravam) permite compreender não só a sua intervenção na contenda – ao afastar o arguido e o ofendido - mas também a extensão do seu campo de visão em relação a todo o sucedido, razão pela qual o tribunal atribuiu particular relevância ao testemunho de CC, prevalecendo o mesmo sobre as restante declarações colhidas na audiência em tudo o que com este sejam inconciliáveis.

Ainda assim não podemos deixar de observar o seguinte:

- no que respeita à dinâmica e ao circunstancialismo que antecedeu e envolveu este episódio, as declarações do arguido no sentido de que o ofendido o vexava com comportamentos e apelidos xenófobos não foi confirmado por nenhuma das testemunhas; acresce que o arguido também asseverou que o ofendido se encontrava munido de um machado, o que em nada convenceu o tribunal, dada a inverosimilhança desse relato (que em determinados pontos foi ostensivamente contraditório, designadamente quanto à forma como o assistente transportaria consigo um objeto daquelas dimensões) mas também porque o ofendido e as testemunhas refutaram firmemente a existência de qualquer objeto dessa natureza em poder de BB;

- também as declarações de BB não convenceram o tribunal no que tange à justificação que apresentou para a agressão que dirigiu ao arguido (disse o assistente que deu uma chapada ao arguido porque este falou para si num tom de voz alto e por isso teve medo dele), sendo que essa explicação carece de qualquer lógica, racionalidade ou coerência com as regras da experiência comum; além disso o seu relato quanto à dinâmica dos intervenientes na contenda também não convenceu este tribunal, por ser contrariado pela descrição feita por CC de forma credível e isenta;

- a valoração das declarações prestadas por DD cingiu-se à situação inicial e em que este teve participação direta, conforme acima já se referenciou; esta testemunha não demonstrou conhecimento dos factos ocorridos subsequentemente, o que se afigura ser inteiramente credível, já que se trata de uma testemunha com visíveis fragilidades de natureza pessoal;

- o testemunho de FF relevou para a formação da convicção deste tribunal na parte em que foi coincidente com o testemunho de CC; as declarações prestadas por FF quanto ao momento em que o arguido partiu a garrafa, ao movimento de agressão efetuado e ao número de golpes desferidos pelo arguido, não convenceram o tribunal, porque esta testemunha revelou alguma insegurança e deu resposta contraditórias quando instado várias vezes quanto à mesma matéria e por isso o seu testemunho foi considerado insuficiente para infirmar a restante prova credível acima já analisada.

Ante todo o exposto, dúvidas não existem quanto à agressão perpetrada pelo arguido nos termos descritos em 4 e 5.

Relativamente às lesões sofridas por BB nos moldes descritos no facto n.º 6, o tribunal atendeu ao teor do exame médico de fls. 87/90 e 131/134 e à documentação clínica junta a fls. 48/49, 78/79 e 82.

Quanto aos factos subjetivos constantes dos pontos 7 e 8, a convicção do tribunal assentou em presunções naturais, porquanto nenhum homem médio adulto ignora que na zona do pescoço se encontram veias e artérias vitais à vida humana e, seguramente, o arguido também não o ignora. Por outro lado e no que concerne à concreta conduta perpetrada pelo arguido e a todo o circunstancialismo envolvente afigura-se-nos ser possível afirmar, de acordo com as regras da experiência comum, que o arguido relativamente ao ofendido BB, agiu sempre de forma livre, voluntaria e consciente, com o propósito de ofender o corpo daquele, resultado que alcançou e que quis, conforme infra melhor se analisará.

Para a prova do facto n.º 9 o tribunal teve em consideração as declarações de BB que confirmou ter sido assistido medicamente nos estabelecimentos hospitalares acima referenciados, conjugadas com o teor dos documentos juntos a fls. 48, 78 e 82 que atestam igualmente a assistência médica e hospitalar que foi efetivamente prestada ao assistente nessa data.

A prova do facto n.º 10 decorreu da examinação do teor do exame médico pericial constante de fls. 87/90, da observação feita pelo tribunal na audiência de julgamento relativamente à cicatrizes existentes na zona do pescoço do ofendido e, bem assim, das declarações prestadas pelo assistente BB que descreveu as limitações que possui no dedo em consequência da conduta do arguido. Também a testemunha GG, colega do arguido, confirmou que este se queixa de limitações no dedo quando executa determinados trabalhos.

Igualmente com base nas declarações de BB, neste conspecto particularmente credíveis porque espontâneas e naturais, a verificação do facto n.º 11 não ofereceu qualquer dúvida.

A prova do facto n.º 12 resulta da análise dos documentos juntos a fls. 251/252 (comprovativo de pagamento de despesa hospitalar do Hospital do … – veja-se que o NIB do mencionado documento é referente àquela entidade hospitalar – e da despesa de combustível custeada pelo assistente).

O documento junto a fls. 312 (fatura emitida pela Unidade do Hospital de …) conjugado com o documento de fls. 48 e 78 (documentos clínicos da assistência prestada ao ofendido na data dos factos), permite atestar a prova do facto n.º 13.

Quanto às condições familiares, económicas e sociais do arguido e quanto ao facto n.º 19, o tribunal fez fé nas declarações prestadas pelo arguido na audiência de discussão e julgamento e teve igualmente em consideração o teor do relatório social junto aos autos.

No que concerne à ausência de antecedentes criminais do arguido, o Tribunal atendeu ao teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

*

Quanto à factualidade descrita nas alíneas a) e b) assim se concluiu uma vez que se trata de matéria infirmada pelo testemunho de CC que, pelas razões acima expostas, foi absolutamente credível e, como tal, concluiu-se negativamente quanto à verificação desta factualidade.

O facto descrito na alínea c) não resultou provado porquanto foi negado pelo próprio assistente e também pela testemunha CC; refira-se que o testemunho de FF não prevaleceu a este respeito pelas razões acima explicitadas (note-se que esta testemunha mencionou que o arguido desferiu dois golpes no ofendido, mas em momento anterior quando instada a esse respeito respondeu que o arguido deu um só golpe, foram essas contradições e outras imprecisões do seu relato que abalaram, necessariamente, a credibilidade do testemunho de FF).

Os factos contidos nas alíneas d) e h) não foi mencionado por nenhuma testemunha, nem por qualquer outro meio de prova.

Não foi produzida prova de que a lesão provocada pelo arguido e descrita em 6. tenha causado qualquer perigo para a vida de BB, conforme se extrai do teor e particularmente das conclusões relatadas no exame pericial junto a fls. 131/134, pelo que, falecendo esse pressuposto, dificilmente se poderia concluir que o arguido quis produzir o resultado morte em consequência da lesão que infligiu àquele ofendido. Não obstante ainda assim, no caso concreto, importa fazer as seguintes observações quanto à intencionalidade e motivação subjetiva do autor dos factos.

Se bem o compreendemos, a acusação imputa ao arguido o propósito de produzir o resultado morte do ofendido, porquanto desferiu um golpe no pescoço deste último, numa zona onde existem veias e artérias sanguíneas vitais.

Porém, analisado o teor da acusação verifica-se que a mesma não imputa ao arguido a intencionalidade da sua ação relativamente à zona atingida, ou seja, não diz expressamente que o arguido nessas circunstâncias quis efetivamente atingir o pescoço do ofendido.

Ora, a circunstância de o arguido querer (ou não) atingir o pescoço do ofendido configura, a nosso ver, uma premissa essencial para podermos concluir, à luz de um raciocínio lógico dedutivo, que o propósito do arguido era o de efetivamente tirar a vida ao ofendido. É que se assim não fosse, ou seja, caso o arguido pretendesse atingir o ofendido numa outra zona do seu corpo (e que só por imperícia ou outro motivo que foge ao seu domínio desferiu o golpe no pescoço do ofendido) dificilmente poderíamos concluir que o propósito do arguido era o de produzir o resultado morte.

Neste âmbito importa ainda equacionar a dinâmica das concretas ações do arguido e do assistente, que ocorreram no quadro de vários movimentos corporais individuais, em que um não domina o do outro, ou seja, da dinâmica dos factos resulta que quando o arguido efetuou o movimento da agressão em causa (descrito pela testemunha CC como movimento de martelo) também o ofendido se encontrava em movimento (efetuou um movimento de defesa) e, como tal, dificilmente podemos concluir que o arguido atingiu a zona que pretendia efetivamente golpear e, consequentemente, que acertou na zona do corpo por si visada. Por outras palavras, considerando todo o circunstancialismo acima descrito e a dinâmica da conduta dos intervenientes, não é possível afirmar que o arguido pretendia efetivamente atingir o pescoço do ofendido. (Note-se que a testemunha CC mencionou que ficou com a ideia que o arguido o pretendia atingir na zona da cabeça).

Acresce que também a conduta do arguido analisada na sua globalidade (o autor dos factos deu um só golpe e com uma força bastante comedida, atendendo à pouca profundidade dos ferimentos do arguido), conjugada com o seu comportamento subsequente (o arguido não tentou persistir com outros atos contra o ofendido), e a pouca gravidade das lesões apresentadas pelo ofendido, também são elementos circunstanciais que, conjugados entre si e complementados com a análise acima efetuada, apontam no sentido de que o arguido ao atuar da forma descrita não agiu com o propósito de retirar a vida a BB mas sim de o ofender a sua integridade física.

Por fim, também não podemos deixar de convocar as declarações do arguido que expressamente refutou a intenção de matar o ofendido.

Em suma, segundo a nossa perspetiva, os factos objetivos acima provados não permitem, de acordo com as regras da experiência comum, inferir a verificação da intencionalidade e representação subjetivas descritas na acusação e, como tal, a factualidade descrita na alínea e) teve-se como não demonstrada e, consequentemente, como provada a factualidade vertida no facto n.º 8.

O facto ínsito em f) foi negado pelo próprio assistente e também pela testemunha HH, empresário para quem o ofendido presta alguns serviços, pelo que, esse facto passou a incluir, necessariamente, o elenco dos factos não provados.

O documento apresentado pelo arguido a fls. 252 verso (fatura recibo) respeita a uma consulta de ortopedia do dia 11 de junho de 2024, ou seja, decorrido mais de um ano após os factos. Assim, atendendo à dilação temporal dessa consulta não é possível estabelecer uma relação causa/efeito entre a agressão em causa nestes autos e a consulta descrita no sobredito documento, tanto mais que nenhuma outra prova foi produzida a este respeito. Assim sendo, concluiu-se negativamente quanto a esta factualidade (alínea h).

*

A restante prova documental indicada na acusação, designadamente o auto de notícia e o despacho de arquivamento juntos a fls. 159 e fls. 141 em nada relevaram para a sustentação da convicção do tribunal, na medida em que manifestamente não incidem sobre os factos que integram o objeto da acusação, aliás, a indicação desses documentos como prova da acusação afigura-se de duvidosa legalidade.”

*

3.2.- Mérito do recurso

A- Verificação dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas b) e c) do Cód. Proc. Penal

Como primeiro fundamento do seu recurso invoca o Ministério Público a verificação no acórdão recorrido dos vícios de contradição insanável na decisão recorrida entre os factos provados sob os nºs 4 a 8 e os factos não provados sob a alínea e) e entre os factos provados e não provados e a fundamentação de facto, e de erro notório na apreciação da prova.

Quanto a estas questões, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) O erro notório na apreciação da prova.

Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.

Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121). A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada, porquanto todos os vícios elencados neste artigo se reportam à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, págs. 71 a 73).

Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, decidiu o STJ, no acórdão datado de 12/03/2015, proferido no processo nº 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que: «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».

Pode, assim, afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.

A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.

Ainda nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques, in “ Código de Processo Penal Anotado”, II volume, 2ª Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379: «por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»

No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Pese embora a lei não o defina, o «Erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».

Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).

Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 9.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Ora, da simples leitura da decisão recorrida se constata que a mesma padece efectivamente do vício de contradição, nos termos alegados pelo Ministério Público, porquanto se deu como provado que:

“(…) 4. Ato contínuo, o arguido agarrou uma garrafa de cerveja que ali se encontrava, partiu-a no chão e, empunhando a referida garrafa de cerveja, dirigiu-se a BB que, por sua vez, recuava para se afastar sempre que o arguido dele se tentava aproximar.

5. A dado momento o arguido aproximou-se de BB e, fazendo uso da referida garrafa, que empunhava, desferiu um golpe contra BB, atingindo-o na zona do pescoço e na mão esquerda.

6. Em consequência direta e necessária da conduta de AA, BB sofreu de ferida angulada com cinco centímetros do diâmetro na face lateral esquerda do pescoço, que foi suturada, de ferida linear de cinco centímetros na região supraclavicular esquerda, que foi suturada, e de feridas no segundo dedo da mão esquerda, ao nível do metacarpo falângica, lesões que determinaram doze dias de doença com afetação da capacidade para o trabalho.

7. O arguido sabia que na zona do pescoço se encontram veias e artérias cuja perfuração implica, em regra, a morte por hemorragia.

8. AA agiu com o propósito de atingir o corpo do ofendido e de lhe causar lesões, como efetivamente fez, agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida. (…).”

e como não provado que:

“(…) e) AA agiu com o propósito de retirar a vida àquele, o que só não o logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade. (…)”

Não obstante a verificação do vício de contradição entre os referidos factos provados e não provados, a leitura da motivação da matéria de facto da decisão recorrida permite sanar este vício, dado que aí expressamente se refere que:

“(…) O episódio em causa nos autos teve início com a ação que o arguido dirigiu a DD, puxou-o pelas pernas, fazendo-o cair de costas do banco onde este se encontrava sentado. Este comportamento que o arguido considerou tratar-se de uma brincadeira ou uma simples folia, desagradou a BB (mas também ao próprio DD, pois este assim o afirmou na audiência de julgamento) e, por isso, BB dirigiu-se ao arguido dizendo-lhe para parar, nessa sequência e após uma troca de palavras entre ambos, cujo teor ninguém logrou especificar, BB desferiu uma chapada na cara do arguido.

É o próprio assistente que reconhece essa primeira agressão, igualmente confirmada pelo arguido e também pelos demais, nomeadamente por CC que disse ter intervindo logo depois da chapada, afastando-os e empurrando o arguido em direção a umas mesas da esplanada. Esta testemunha referiu ainda que foi nesse momento que o arguido agarrou e partiu a garrafa de cerveja e dirigindo-se ao BB empunhando a referida garrafa e enquanto aquele se tentava aproximar BB recuava andando à volta de um veículo até que o arguido se aproximou daquele e, fazendo um movimento de cima para baixo (movimento de martelo), desferiu um só golpe em BB que nesse preciso momento se tentou desviar e levantou, a sua mão esquerda para evitar o golpe. Esta testemunha esclareceu que o veiculo à volta do qual aqueles circulavam ficou com marcas de sangue, acrescentando ainda que do lugar onde se encontrava ficou com a perceção de que o arguido pretendia atingir o ofendido na cabeça.

O testemunho de CC, que presenciou os factos e descreveu a condutas de cada um dos intervenientes nos exatos termos supra descritos, mostrou-se objetivo, imparcial e espontâneo. Saliente-se que CC não revelou qualquer animosidade em relação ao arguido, nem uma especial amizade ou qualquer tentativa de beneficiar o assistente. Depôs sempre de forma tranquila, segura e coerente com a dinâmica dos factos acima descritos, cabendo ainda frisar que a compleição física desta testemunha (seguramente o mais alto e robusto de todos os que ali se encontravam) permite compreender não só a sua intervenção na contenda – ao afastar o arguido e o ofendido - mas também a extensão do seu campo de visão em relação a todo o sucedido, razão pela qual o tribunal atribuiu particular relevância ao testemunho de CC, prevalecendo o mesmo sobre as restante declarações colhidas na audiência em tudo o que com este sejam inconciliáveis. (…)

Quanto aos factos subjetivos constantes dos pontos 7 e 8, a convicção do tribunal assentou em presunções naturais, porquanto nenhum homem médio adulto ignora que na zona do pescoço se encontram veias e artérias vitais à vida humana e, seguramente, o arguido também não o ignora. Por outro lado e no que concerne à concreta conduta perpetrada pelo arguido e a todo o circunstancialismo envolvente afigura-se-nos ser possível afirmar, de acordo com as regras da experiência comum, que o arguido relativamente ao ofendido BB, agiu sempre de forma livre, voluntaria e consciente, com o propósito de ofender o corpo daquele, resultado que alcançou e que quis, conforme infra melhor se analisará. (…)

Se bem o compreendemos, a acusação imputa ao arguido o propósito de produzir o resultado morte do ofendido, porquanto desferiu um golpe no pescoço deste último, numa zona onde existem veias e artérias sanguíneas vitais.

Porém, analisado o teor da acusação verifica-se que a mesma não imputa ao arguido a intencionalidade da sua ação relativamente à zona atingida, ou seja, não diz expressamente que o arguido nessas circunstâncias quis efetivamente atingir o pescoço do ofendido.

Ora, a circunstância de o arguido querer (ou não) atingir o pescoço do ofendido configura, a nosso ver, uma premissa essencial para podermos concluir, à luz de um raciocínio lógico dedutivo, que o propósito do arguido era o de efetivamente tirar a vida ao ofendido. É que se assim não fosse, ou seja, caso o arguido pretendesse atingir o ofendido numa outra zona do seu corpo (e que só por imperícia ou outro motivo que foge ao seu domínio desferiu o golpe no pescoço do ofendido) dificilmente poderíamos concluir que o propósito do arguido era o de produzir o resultado morte.

Neste âmbito importa ainda equacionar a dinâmica das concretas ações do arguido e do assistente, que ocorreram no quadro de vários movimentos corporais individuais, em que um não domina o do outro, ou seja, da dinâmica dos factos resulta que quando o arguido efetuou o movimento da agressão em causa (descrito pela testemunha CC como movimento de martelo) também o ofendido se encontrava em movimento (efetuou um movimento de defesa) e, como tal, dificilmente podemos concluir que o arguido atingiu a zona que pretendia efetivamente golpear e, consequentemente, que acertou na zona do corpo por si visada. Por outras palavras, considerando todo o circunstancialismo acima descrito e a dinâmica da conduta dos intervenientes, não é possível afirmar que o arguido pretendia efetivamente atingir o pescoço do ofendido. (Note-se que a testemunha CC mencionou que ficou com a ideia que o arguido o pretendia atingir na zona da cabeça).

Acresce que também a conduta do arguido analisada na sua globalidade (o autor dos factos deu um só golpe e com uma força bastante comedida, atendendo à pouca profundidade dos ferimentos do arguido), conjugada com o seu comportamento subsequente (o arguido não tentou persistir com outros atos contra o ofendido), e a pouca gravidade das lesões apresentadas pelo ofendido, também são elementos circunstanciais que, conjugados entre si e complementados com a análise acima efetuada, apontam no sentido de que o arguido ao atuar da forma descrita não agiu com o propósito de retirar a vida a BB mas sim de o ofender a sua integridade física.

Por fim, também não podemos deixar de convocar as declarações do arguido que expressamente refutou a intenção de matar o ofendido.

Em suma, segundo a nossa perspetiva, os factos objetivos acima provados não permitem, de acordo com as regras da experiência comum, inferir a verificação da intencionalidade e representação subjetivas descritas na acusação e, como tal, a factualidade descrita na alínea e) teve-se como não demonstrada e, consequentemente, como provada a factualidade vertida no facto n.º 8. (…)”

A análise cuidada desta motivação de facto da decisão recorrida permite constatar que a apontada contradição entre os factos provados e os não provados não é uma contradição insanável, pois é passível de ser sanada através do que resulta das declarações do arguido, do ofendido e da testemunha CC, nos moldes referidos no texto da motivação, com apelo às regras da prova indirecta e da experiência comum.

Senão vejamos.

A prova indirecta assenta na passagem de um facto conhecido para a prova de um facto desconhecido, em cujo processo intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade e da experiência comum, que determinado facto, que não está diretamente provado, é a consequência natural, ou resulta com uma probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

Tratam-se de factos estritamente subjetivos que, a não ser que ocorra confissão, apenas são percecionáveis pelos próprios agentes, pelo que a respetiva prova está dependente das inferências que se possam extrair dos aspetos objetivos em que se materializa a ação e através do significado que tais atos têm na respetiva comunidade social.

Quer a intenção, quer a motivação, como conclusões de direito que são, não se podem fazer derivar, imediatamente, da prova, mas deduzir-se dela, na medida em que sejam uma mera consequência ou o prolongamento da mesma.

Reitera-se que se tratam de factos, mas que assumem uma particular especificidade, na medida em que constituem realidades do foro psíquico, internos do sujeito, que não se comprovam em si próprios, mas mediante ilações, retiradas face aos atos e às circunstâncias concretas do seu cometimento ( cf. neste sentido, Manuel Cavaleiro Ferreira, in “Lições de Direito Penal”, Volume I, 1992, págs. 297 e 298; Acórdão do TC nº 521/2018, datado de 17.10.2018, proferido no processo nº 321/2018 – 3ª secção, em que foi relator Gonçalo de Almeida Ribeiro, in www.tribunalconstitucional.pt).

Verifica-se, assim, que da análise da motivação de facto da decisão recorrida é possível concluir que:

- arguido e ofendido não se encontravam envolvidos fisicamente, nem em situação de rixa, aquando da ocorrência da agressão perpetrada pelo arguido;

- o ofendido havia batido no arguido, mas já lhe tinha virado as costas, afastando-se dele;

- o arguido decidiu ir atrás do ofendido;

- o arguido agarrou numa garrafa de cerveja que encontrou, partiu-a no chão e foi com ela na mão atrás do ofendido;

- quando chegou perto do ofendido, o arguido levantou a sua mão com a garrafa e desferiu um golpe na direção do pescoço do ofendido, de cima para baixo, em jeito de movimento de martelo;

- o arguido atingiu o ofendido no pescoço e na mão, porque este levantou a mão para se defender do golpe do arguido;

- a testemunha CC, que assistiu aos factos e cujo depoimento o Tribunal recorrido considerou objetivo, imparcial e espontâneo, declarou que ficou com a perceção de que o arguido pretendia atingir o ofendido na cabeça;

- o Tribunal recorrido considerou que nenhum homem médio adulto ignora que na zona do pescoço se encontram veias e artérias vitais à vida humana e que o arguido também não o ignorava;

- o Tribunal recorrido considerou que o arguido relativamente ao ofendido BB, agiu sempre de forma livre, voluntaria e consciente, com o propósito de ofender o corpo daquele, resultado que alcançou e que quis;

- o arguido negou que tivesse intenção de matar o ofendido;

- não se provou que o arguido tivesse apontado a garrafa a qualquer outra parte do corpo do ofendido que não a zona da cabeça e do pescoço;

- em consequência direta e necessária da conduta de AA, BB sofreu de ferida angulada com cinco centímetros do diâmetro na face lateral esquerda do pescoço, que foi suturada, de ferida linear de cinco centímetros na região supraclavicular esquerda, que foi suturada, e de feridas no segundo dedo da mão esquerda, ao nível do metacarpo falângica, lesões que determinaram doze dias de doença com afetação da capacidade para o trabalho;

- o ofendido só não sofreu ferimentos mais graves porque, como referiu a testemunha CC, no preciso momento em que foi desferido o golpe “se tentou desviar e levantou a sua mão esquerda para evitar o golpe”;

- o Tribunal a quo fundou a sua convicção e deu como provada a dinâmica dos acontecimentos sobretudo com base no depoimento da testemunha CC.

Ora, esta factualidade, conjugada com as regras da lógica, da experiência comum e do normal acontecer, permite concluir que o arguido atingiu o ofendido na parte do corpo deste que efectivamente queria atingir, ou seja, na zona da cabeça e do pescoço, porquanto foi para essa zona que dirigiu a garrafa que tinha na mão e não para qualquer outra zona do corpo do ofendido.

Por outro lado, uma vez que o arguido sabia que na zona do pescoço se encontram veias e artérias cuja perfuração implica, em regra, a morte por hemorragia, ao atingir o ofendido nesta zona do corpo, tinha necessariamente, e pelo menos, que representar como possível que da sua actuação poderia advir a morte do ofendido.

O arguido declarou que a sua intenção não era a de matar o ofendido, não obstante, a possibilidade de matar o ofendido não o inibiu de agir como agiu.

Na verdade, não é possível que uma pessoa saiba que na zona do pescoço se encontram veias e artérias cuja perfuração implica, em regra, a morte por hemorragia, actue com o propósito de atingir o corpo de outra pessoa e de lhe causar lesões, atinja essa outra pessoa na zona do pescoço e que, pelo menos, não represente a possibilidade de lhe poder retirar a vida, conformando-se com essa possibilidade, como resultado da sua acção.

Em face disto, constata-se igualmente que a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, pois deu como provada a quase totalidade da factualidade descrita em 4 a 8 dos factos provados com fundamento no depoimento da testemunha CC, a quem conferiu grande credibilidade, considerando que a mesma esclareceu toda a factualidade descrita de forma objetiva, imparcial e espontânea, que não revelou qualquer animosidade em relação ao arguido, nem uma especial amizade ou qualquer tentativa de beneficiar o assistente, e que depôs sempre de forma tranquila, segura e coerente, mas depois não atribuiu relevância ao facto de esta testemunha ter dito que, ao presenciar os factos, pelos movimentos efectuados pelo arguido, ficou com a ideia de que o arguido pretendia atingir o ofendido na zona da cabeça, como efectivamente aconteceu.

Não se compreende porque é que o Tribunal recorrido conferiu credibilidade e fundou a sua convicção quanto à dinâmica dos factos maioritariamente com base no depoimento desta testemunha, e não retirou desse depoimento todas as consequências relativamente ao preenchimento do elemento subjectivo do crime de homicídio pelo arguido, com recurso à prova indirecta.

É certo que o arguido negou que tivesse querido matar o ofendido, mas tais declarações têm que ser apreciadas no contexto da sua defesa em julgamento.

Porém, o que resulta da prova produzida é que todos os movimentos efectuados pelo arguido, assumidos pelo mesmo e testemunhados pelo ofendido e pela testemunha CC, revelam uma intencionalidade de atingir o ofendido na zona da cabeça ou do pescoço.

O arguido e o ofendido não se encontravam envolvidos numa situação de luta corporal, o arguido decidiu ir atrás do ofendido, que já se encontrava a afastar-se, e quando o atinge, o movimento que faz com a mão que empunhava a garrafa partida é dirigido para a zona do pescoço do ofendido e não para qualquer outra zona do corpo do mesmo.

Ao agarrar numa garrafa, parti-la no chão e ir com ela na mão atrás do ofendido, que já se encontrava a afastar-se, revela, sem sombra de dúvida, uma intencionalidade do arguido em atingir o ofendido no seu corpo e em provocar-lhe lesões, ou seja, revela uma clara intenção criminosa.

Segundo as regras da lógica e da experiência comum, o arguido não podia deixar de saber que uma garrafa partida se transforma num objecto idóneo a perfurar a carne e as veias de uma pessoa atingida com a mesma.

Ao atingir o ofendido na zona do pescoço, sabendo que aí corriam veias que uma vez perfuradas podiam causar a morte por hemorragia, o arguido tinha que, pelo menos, considerar como possível este resultado e, ao não se inibir de agir, conformar-se com o mesmo.

Importa ainda referir que não é por o resultado morte não ter ocorrido que fica afasta a intenção de matar.

O Tribunal a quo considerou que por o ofendido não ter falecido, por as lesões não terem sido graves e por o arguido ter negado que queria matar o ofendido, ficou afastada qualquer intencionalidade de matar por parte do arguido, ou, pelo menos, a representação como possível desse resultado e a conformação com o mesmo.

Este raciocínio revela, também, por si só um erro manifesto na apreciação da prova, pois até nos casos mais óbvios e incontestáveis de intenção de matar ( como sucede quando uma pessoa desfere um tiro na direcção de outra, mas a uma distância de tal forma grande que erra o alvo ou quando alguém lhe dá um encontrão para a fazer falhar o alvo ), pode não advir da acção do agente nenhum dano corporal para a vítima, mas não fica afastada a intencionalidade daquele, em moldes de se poder configurar uma tentativa de homicídio, a qual só é bem sucedida por razões externas à sua actuação do agente.

Assim sendo, verifica-se que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, erro este que é manifesto e salta à vista de qualquer homem médio que leia a decisão e resulta do segmento da motivação de facto da mesma.

Em face de tudo o exposto, da leitura da motivação de facto da decisão recorrida, articulada com as regras da experiência comum e do normal acontecer e em conformidade com o disposto no art.º 431º, alínea a) do Cód. Proc. Penal, é possível alterar os factos descritos em 8 dos factos provados e em e) dos factos não provados, os quais passarão a ter a seguinte redação:

“8- AA agiu com o propósito de atingir o pescoço do ofendido e de lhe causar lesões, como efetivamente fez, prevendo como consequência possível da sua conduta que essas lesões pudessem provocar a morte do ofendido e conformando-se com essa possibilidade;

8- a) AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.”

“e) Não obstante os factos descritos em 8., AA agiu com o propósito de retirar a vida ao ofendido.”

Julga-se, assim, procedente neste tocante o recurso, importando extrair da alteração da matéria de facto agora efectuada as necessárias consequências ao nível da qualificação jurídica dos factos e da pena a aplicar ao arguido.

B - Erro de julgamento

No seu recurso vem também o Ministério Público invocar o erro de julgamento por parte do Tribunal a quo, ao não considerar como provado o facto com interesse para o tipo subjetivo do homicídio, na forma tentada.

Entende o Ministério Público que as provas produzidas impunham decisão diferente quanto à matéria de facto, nomeadamente considerando como provado o seguinte facto:

“O arguido atuou prevendo como consequência possível da sua conduta, a morte de BB, resultado com o qual se conformou “, em substituição da factualidade:

“AA agiu com o propósito de atingir o corpo do ofendido e de lhe causar lesões…” que se mostra aludida em 8. dos factos provados.

A reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde, como vimos, a verificação desses vícios tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo

diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.

Sucede, porém, que a alteração efectuada à matéria de facto por via da verificação e correcção dos vícios da contradição e do erro notório na apreciação da prova, torna desnecessária a apreciação da impugnação ampla da matéria de facto invocada pelo Ministério Público, porquanto o resultado prático pretendido pelo recorrente nesta sede já se mostra atingido.

Assim sendo, não se irá conhecer deste fundamento do recurso, por manifesta desnecessidade.

C - Qualificação jurídica dos factos

Vejamos, então, se da alteração da factualidade operada é possível concluir pela responsabilização do arguido pela prática de um crime de homicídio na pessoa do ofendido, na forma tentada.

O arguido vinha acusado da prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts.º 131º, nº 1, 132º, nº 1 e nº 2, alínea e), 22º e 23º todos do Cód. Penal.

Porém, na sua motivação de recurso entende o Ministério Público que o arguido deve apenas ser punido pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, nos termos das disposições conjugadas dos arts.º 22º, nº 1 e nº 2, al. b) e 131º do Cód. Penal.

Assim sendo, tendo em conta os limites do recurso definidos no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, não irá este Tribunal discutir e ponderar a verificação in caso da circunstância qualificadora do homicídio prevista no art.º 132º, nº 2, alínea e) do Cód. Penal.

Quanto ao homicídio simples, o mesmo vem previsto no art.º 131º do Cód. Penal pela seguinte forma:

“Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.” (sublinhado nosso)

Por seu turno, a tentativa vem prevista nos seguintes artigos do mesmo diploma:

“Artigo 22.º - Tentativa

1 - Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.

2 - São actos de execução:

a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou

c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.”

“Artigo 23.º - Punibilidade da tentativa

1 - Salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão.

2 - A tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada.

3 - A tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime.”

Quanto à caracterização do tipo legal do crime de homicídio, constatamos que o elemento objectivo do tipo consiste em matar outra pessoa e a acção típica traduz-se num acto que seja apto a causar a morte.

Já o elemento subjectivo é preenchido com qualquer uma das modalidades do dolo, directo, necessário ou eventual, previstas no art.º 14º do Cód. Penal.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a vida humana, sendo irrelevante o modo ou o meio utilizado para concretizar o resultado morte.

No caso dos autos, apurou-se que o arguido agiu como dolo eventual, pois representou a morte da vítima como um resultado possível da sua conduta, conformando-se com o mesmo, nos termos do art.º 14º, nº 3 do Cód. Penal.

Como o resultado morte não aconteceu, importa saber se o arguido praticou actos de execução do crime de homicídio e se a tentativa é punível com dolo eventual.

Atenta a factualidade apurada, verificamos que o arguido praticou efectivamente actos que, nos termos previstos no art.º 22º, nº 2, alínea b) do Cód. Penal, são idóneos a provocar o resultado típico, pois, como supra se viu, atingir uma pessoa com uma garrafa partida na zona do pescoço, é um acto idóneo a provocar a perfuração da carne e de veias que, uma vez rompidas, provocam uma hemorragia que conduz a vítima à morte.

Também, como supra se referiu, o resultado morte da vítima só não sobreveio porque esta, numa atitude de defesa, levou uma das suas mãos ao pescoço, impedindo a perfuração de uma daquelas veias.

Em face do exposto, não é possível a condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio na forma consumada, mas apenas na forma tentada.

Importa, no entanto, ponderar se é possível a punição do arguido pela prática de um crime de homicídio sob a forma tentada, uma vez que se apurou que o mesmo agiu apenas com dolo eventual.

Relativamente a esta questão existe uma divergência doutrinal e jurisprudencial entre aqueles que consideram que não é possível a punibilidade de um crime na forma tentada quando praticado com dolo eventual, porquanto no art.º 22º, nº 1 do Cód. Penal se refere que há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer e não também de um crime cujo resultado previu como consequência possível da sua conduta e com o qual se conformou.

Sucede, porém, que levando o elemento literal da norma às últimas consequências, seria apenas possível punir a tentativa quando praticada com dolo directo.

Entendemos que não é esta a melhor interpretação a fazer da norma, até porque o próprio art.º 22º do Cód. Penal não especifica as modalidades de dolo que têm que estar verificadas para que a tentativa seja punível, tendo tal interpretação da norma resultado de uma construção da doutrina, em primeiro lugar.

No caso do dolo eventual, o agente também decide praticar actos de execução do crime, mas apenas representa como possível que dos actos que decidiu praticar pode advir o resultado morte da vítima, com o qual se conforma.

Foi o que sucedeu no caso em apreço, pois o arguido decidiu agarrar numa garrafa, parti-la, seguir com ela atrás do ofendido, dar com a garrafa no pescoço do mesmo, admitindo como possível que a sua conduta lhe pudesse perfurar uma veia existente no pescoço e, com isso, causar-lhe a morte por hemorragia.

Entendemos, assim, que é possível configurar situações da prática de crimes na forma tentada em que o agente aja com dolo eventual, devendo ser punido em conformidade, como sucedeu no caso dos autos.

A possibilidade de existir tentativa punível com dolo eventual é defendida na doutrina, entre outros, por Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 3ª edição, Gestlegal, pág. 815, Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 204 e 568, e Maria Fernanda Palma, in “Da Tentativa Possível em Direito Penal, Almedina, 2006, pág. 83.

Em sentido contrário, veja-se José de Faria Costa, in “Tentativa e dolo eventual (ou da relevância da negação em direito penal)”, Coimbra, 1987.

Como refere Maria Fernanda Palma, in ob cit., pág. 81, o dolo eventual é ainda uma forma de decisão de realização do facto típico, ou seja, de decisão pela lesão do bem jurídico, pois: “ (…) na situação de dolo eventual o agente, ao aceitar o risco da verificação do resultado típico (“conformando-se” com ele, nos termos do n.º 3 do artigo 14.º do Código Penal), preferindo-o aos custos da não realização da sua conduta, inclui essa aceitação nos fundamentos da sua decisão e opta pela lesão do bem jurídico. Na perspectiva do desvalor da acção, do ilícito, não há qualquer razão para diferenciar qualitativamente o dolo eventual (…)”.

No sentido do decidido, veja-se na jurisprudência, entre outros, o acórdão do TRP datado de 5/07/2023, proferido no processo nº 1883/22.9JAPRT.P1, em que foi relator Paulo Costa, o acórdão deste TRE, datado de 7/04/2015, proferido no Processo nº 372/13.JAFAR.E1, em que foi relator Martins Simão, o acórdão do TRC datado de 20/06/2012, proferido no processo nº 158/11.3PATNV.C1, em que foi relator Alberto Mira, o acórdão do STJ datado de 12/03/2009, proferido no processo nº 08P3781, em que foi relator Raúl Borges, o acórdão do STJ datado de 12/05/2005, proferido no processo nº 1439/05, em que foi relator Carmona da Mota, o acórdão do STJ datado de 12/11/1986, proferido no processo nº 038595, em que foi relator Manso Preto, todos in www.dgsi.pt.

Em face do exposto, vemos que a matéria de facto apurada, com as alterações efectuadas, permite, por si só, concluir pelo preenchimento pelo arguido dos elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de homicídio simples, na forma tentada, procedendo neste tocante o recurso.

D- Medida da Pena

Aqui chegados, importa proceder à determinação da pena concreta a aplicar ao arguido.

O crime de homicídio simples, na forma tentada, nos termos previstos no art.º 131º, 22º, 23º e 73º, nº 1, alíneas a) e b) do Cód. Penal é punido com pena de prisão de 1 ano, sete meses e seis dias a 10 anos e oito meses.

Os critérios que devem presidir à determinação da medida da pena encontram-se enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, pela seguinte forma:

“ Artigo 71.º - Determinação da medida da pena

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”

Tais critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, a dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do art.º 71º do Cód. Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão, arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Em síntese, pode dizer-se que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

Também conforme explicita Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 497, pág. 331, o critério geral de escolha (entre penas alternativas) e de substituição da pena é o seguinte: «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação», e acrescenta - § 498, pág. 332 - bem se compreender que assim seja: “sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena”.

Quanto à função que as exigências de prevenção geral e de prevenção especial exercem neste contexto, esclarece este autor, in ob. cit., § 500, págs. 332 e 333, que: «Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão», acrescentando que «o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa (ou de uma pena de substituição) quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela(s) pena(s); coisa que só raramente acontece se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração».

Neste sentido decidiu o STJ em acórdão datado de 12/09/2012, proferido no processo nº 1221/11.6JAPRT.S1, em que foi relator Raul Borges, in www.dgsi.pt, nos seguintes termos: ”A pena não privativa de liberdade só será preferível se realizar de forma adequada e suficiente as finalidades preventivas da punição, casos havendo em que a execução da pena de prisão é exigida por razões de prevenção, por se mostrar necessário que só a execução da prisão permite dar resposta às exigências de prevenção.

Há que ter em conta o critério da adequação e suficiência, atento por um lado, o bem jurídico protegido na espécie, uma das finalidades a que alude o artigo 40.º, mas e sobremaneira, atender às razões de prevenção geral, que se impõem no caso presente, não sendo excessivo a opção recair na pena privativa de liberdade, tendo em conta as necessidades de assegurar a paz comunitária, atendendo ao pleno do comportamento assumido pelo arguido no trecho de vida aqui analisado e valorado, que se não quedou apenas pela prática da infracção ora em equação e em discussão, antes a ultrapassando com uma configuração quantitativa e qualitativamente mais abrangente, bem mais ampla e gravosa em termos de lesividade, privando de vida a ex-companheira.

A própria escolha da espécie da pena a aplicar deve ter na base elementos, que sendo exógenos em relação à concreta e singular conduta apreciada para o tema em causa (mesmo que representando um minus no contexto global), se prendem com o conjunto das circunstâncias que enformam o facto total submetido a julgamento.”

No caso dos autos o Ministério Público pede a aplicação ao arguido de uma pena de três anos de prisão efectiva.

Analisada novamente a factualidade apurada, verifica-se que são prementes as exigências de prevenção geral, dado o efeito de alarme social que a prática deste tipo de crime sempre provoca, o que reclama uma punição firme, capaz de restabelecer a paz social.

Pelo contrário, não são prementes as exigências de prevenção especial, dado que o arguido não tem antecedentes criminais e se encontra laboral e socialmente inserido.

Como factores relevantes para a determinação concreta da pena a aplicar nos presentes autos, importa considerar:

- a elevada ilicitude da conduta, manifestada no recurso a uma garrafa de vidro, deliberadamente partida, como arma do crime;

- a pequena intensidade do dolo;

- a gravidade das consequências, revelada na importância das lesões causadas ao ofendido, afectando-o na sua vida futura;

- a ausência de confissão dos factos e de arrependimento, reveladores da ausência de consciência do desvalor da sua conduta pelo arguido e das consequências da mesma;

- as condições pessoais do arguido, que se mostra laboral e socialmente inserido;

- o arguido revela hábitos de trabalho, em contexto prisional não apresentou qualquer registo disciplinar e revelou estar disponível para fazer um tratamento à sua dependência de álcool;

- a ausência de antecedentes criminais.

Tudo visto e ponderado, entende-se aplicar ao arguido pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio simples, previsto e punido pelos arts.º 131º e 22º do Cód. Penal, uma pena de três anos de prisão, por se considerar tal pena ajustada e em conformidade com a culpa do agente revelada na prática dos factos.

Uma vez que a pena ora aplicada ao arguido é inferior a cinco anos de prisão, importa ponderar se a mesma deve ou não ser suspensa na sua execução.

Quanto à suspensão da execução da pena de prisão, há que atentar no disposto no art.º 50º do Cód. Penal, onde se prevê que:

“1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 – O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

3 – Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.

4 – A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 – O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”

A suspensão da execução da pena de prisão, enquanto verdadeira pena de substituição, só pode ser aplicada se for possível fazer, à data da decisão, um juízo de prognose favorável de que uma suspensão de pena seja suficiente para afastar o arguido da prática de novos factos ilícitos.

Neste momento não estão em causa considerações sobre a culpa do agente, nem sobre o seu passado criminal, mas sobretudo prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção e de ressocialização do mesmo, a fim de prevenir a reincidência. Importa, pois, determinar se existe, com base nos factos apurados, uma esperança séria de que é possível a socialização do arguido em liberdade e de que o mesmo tem capacidade para se auto-controlar, pautar os seus comportamentos pela obediência às normas jurídicas e evitar o cometimento de novos crimes.

Nos termos do art.º 50º do Cód. Penal, a averiguação de tal capacidade deve, no entanto, ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.

Se no momento em que a decisão é tomada, se concluir que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são aptos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, então deverá ser decretada a suspensão da execução da pena.

No caso dos autos, pondera em favor do arguido a sua inserção socio-profissional e a ausência de antecedentes criminais. Em seu desfavor pondera a ausência de confissão e de arrependimento, o que demonstra ausência de consciência do desvalor da sua conduta criminosa. Não se discute que são muito elevadas as exigências de prevenção geral relativamente a este tipo de crimes. No entanto, no momento de decidir pela suspensão da execução da pena de prisão o que importa considerar são as exigências mínimas de prevenção e de ressocialização do arguido, a fim de prevenir a reincidência. Em face da factualidade apurada, entende-se que ainda é possível formular um novo juízo de prognose favorável sobre a possibilidade de a ameaça de pena ser bastante para evitar que o arguido volte a cometer crimes. Assim sendo, conclui-se que as exigências de prevenção especial e de socialização do arguido ainda se satisfazem com a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada, a qual deverá ser suspensa pelo período de três anos.

Nos termos previstos nos arts.º 52º, nº 1, alínea c) e 53º do Cód. Penal, a suspensão da pena aplicada ao arguido ficará sujeita a um regime de prova, a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, executado com apoio e vigilância, com a finalidade de controlar e tratar a dependência do álcool pelo arguido, com o que o mesmo já concordou, e sob a condição de o arguido pagar a indemnização atribuída à vítima BB, no valor global de 1.353,07 (mil, trezentos e cinquenta e três euros e sete cêntimos), em três prestações anuais, no valor de 451,00 euros cada uma, com vencimento nos dias 1/12/2025, 1/12/2026 e 1/12/2027, cujo pagamento deverá comprovar nos autos.

*

4. Decisão:

A) Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso apresentado pelo Ministério Público, e, em consequência:

- revogam a decisão recorrida na parte em que condenou o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com regime de prova;

- condenam o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio, p. e p. pelos arts.º 131º e 22º do Cód. Penal, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, a qual ficará sujeita a:

- um regime de prova, a elaborar pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, executado com apoio e vigilância, com a finalidade de controlar e tratar a dependência do álcool pelo arguido;

- condição de o arguido pagar a indemnização atribuída à vítima BB, no valor global de 1.353,07 (mil, trezentos e cinquenta e três euros e sete cêntimos), em três prestações anuais, no valor de 451,00 euros cada uma, com vencimento nos dias 1/12/2025, 1/12/2026 e 1/12/2027, cujo pagamento deverá comprovar nos autos.

- no mais confirmam a decisão recorrida.

Sem custas ( arts.º 513º do Cód. Proc. Penal ).

Évora, 3 de Junho de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Carla Oliveira

Jorge Antunes