Um despacho a dar sem efeito uma anterior decisão que ordenava a devolução das custas, sem contraditório e sem qualquer facto superveniente, constitui uma violação dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança legítima e da proibição de decisões surpresa, pelo que tal alteração não é admissível, por tal despacho ter sido lavrado em momento e circunstâncias em que o poder jurisdicional já se tinha esgotado, enfermando de ineficácia processual.
1. No Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de … – Juiz …, Proc. com o nº 3947/24.5T8FAR, foi proferido despacho, aos 07/04/2025, em que se decidiu dar sem efeito a parte de despacho anterior que determinou a “devolução das custas”.
2. Inconformada com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso a arguida “AA.”, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):
A. A Recorrente foi absolvida em processo de contraordenação, por decisão judicial transitada em julgado, que declarou a nulidade da decisão administrativa por imputar norma que não constitui contraordenação.
B. A douta sentença fixou expressamente que o processo decorreria sem custas, sendo a Recorrente, portanto vencedora em juízo.
C. Apenas as decisões desfavoráveis ao arguido dão lugar ao pagamento de taxa de justiça.
D. O despacho inicialmente proferido pelo Tribunal a quo – que determinou a devolução da taxa de justiça paga – encontra-se conforme à letra da lei e aos princípios fundamentais do processo penal e contraordenacional.
E. O despacho ora recorrido, ao revogar tal decisão com base no AUJ nº 2/2014, viola o disposto no artigo 93º, nº 3 do RGCO, impondo um encargo indevido a quem foi absolvido.
F. O entendimento do voto de vencido no AUJ 2/2014, acolhido em várias decisões dos tribunais de 1ª instância e da Relação, reconhece que:
Não há norma no RCP que obste à restituição da taxa de justiça nestes casos;
A restituição é coerente com o regime do RGCO, bem como com o direito ao recurso e à tutela jurisdicional efetiva;
O exercício de um direito constitucional não pode ser penalizado com um encargo financeiro, quando quem o exerce obtém vencimento.
G. A manutenção do despacho recorrido desincentiva o exercício do direito ao recurso, penaliza economicamente a parte vencedora e compromete os princípios da equidade e da justiça material.
H. A revogação da decisão que ordenava a devolução das custas, sem contraditório e sem qualquer facto superveniente, constitui uma violação dos princípios da segurança jurídica, proteção da confiança legítima e da proibição de decisões surpresa.
I. Esses princípios, impõem a previsibilidade e estabilidade das decisões judiciais, especialmente quando já proferidas no sentido favorável à parte, como sucedeu no caso da Recorrente.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido com a ref.ª …, mantendo-se o despacho anterior que ordenou a restituição da taxa de justiça à ora Recorrente.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!
3. O recurso foi admitido.
4. O Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu “visto”.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita é a da inadmissibilidade do despacho de não devolução à arguida/recorrente do montante pago a título de taxa de justiça, quando em despacho anterior se tinha determinado essa devolução.
2. Elementos relevantes para a decisão
2.1 “AA” impugnou judicialmente a decisão da Câmara Municipal de … que lhe aplicou coima no montante de 45,00 euros, pela prática de uma contraordenação de não cumprimento da indicação dada pelo sinal de proibição C16 – paragem e estacionamento proibidos.
2.2 Por sentença de 14/02/2025, foi declarada nula a decisão da entidade administrativa e absolvida a arguida, decidindo-se também a não condenação desta em custas.
2.3 Aos 22/03/2025, a arguida requereu ao tribunal a devolução da quantia que pagou a título de taxa de justiça, no valor de 102,00 euros.
2.4 Na sequência desse requerimento foi, aos 28/03/2025, proferido o despacho, na parte que releva: “proceda à devolução da quantia requerida (custas)”.
2.5 A decisão recorrida, lavrada aos 07/04/2025, apresenta o seguinte teor (transcrição):
Atento o teor do AUJ 2/2014 de 14/04, dou sem efeito a parte do despacho anterior que determinou a devolução das custas.
Apreciemos.
Como resulta do transcrito, o tribunal recorrido determinou, aos 28/03/2025, na sequência de requerimento apresentado com esse escopo pela arguida “AA”, a devolução da quantia por esta paga nos autos a título de taxa de justiça.
Porém, em 07/04/2025, sem que requerimento algum fosse atravessado nos autos, mormente pelo Ministério Público, por iniciativa própria, o tribunal a quo deu sem efeito essa decisão de devolução, alterando-a em sentido absolutamente contrário.
Ora, de acordo com o estabelecido no artigo 613º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º, do CPP (uma vez que este não contém norma equivalente que reja), “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”, admitindo-se a correção da sentença ou de despacho apenas nos casos previstos nas alíneas a) e b), do nº 1, do artigo 380º, do CPP (regime próprio do processo penal), sendo certo que, no caso em apreço, não estamos manifestamente perante a situação enunciada nessa alínea a) e, claro se torna também que a decisão de 07/04/2025 modifica na sua essência a de 28/03/2025, pelo que tal alteração não é admissível, por o despacho recorrido ter sido lavrado em momento e circunstâncias em que o referido poder jurisdicional já se tinha esgotado.
Termos em que, o despacho de 07/04/2025 enferma de ineficácia processual, pois, como se salienta na decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/04/2018, Proc. nº 3639/09.5TJCBR3639/09.5TJCBR--A.C1, disponível em A.C1, disponível em www.dgsi.ptwww.dgsi.pt, “se a lei determina a ineficácia entre duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, no referido art. 625º do NCPC, paralisando a que transitou em segundo lugar, afigura--se--nos que semelhante raciocínio e consequência jurídica, pode ser feito e há--de ser tirada em relação à situação processual imediatamente antecedente, isto é, quando embora ainda não haja trânsito em julgado de nenhuma das decisões, tivessem sido proferidas duas, de seguida, de sinal contrário. Ou seja, perante a intangibilidade da primeira decisão a defesa da sua eficácia faz--se a montante, num momento anterior, em vez de se esperar que tal ineficácia se produza a jusante, num momento ”posterior”.
Não podendo subsistir esse despacho, cumpre revogá-lo, concedendo provimento ao recurso.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida “AA” e revogar a decisão recorrida, por ser processualmente ineficaz, devendo ser cumprido o despacho de 28 de Março de 2025, 1ª parte.
Sem tributação.
Évora, 3 de Junho de 2025
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)
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(Artur Vargues)
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(Jorge Antunes)
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(Manuel Ramos Soares)