O comportamento do arguido, quer o anterior aos factos em causa, quer o que rodeou o cometimento do crime ora em apreço, quer o posterior aos factos delituosos, não permite que se considere provável que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para o afastar da prática da criminalidade, sendo que não temos qualquer base para pensar de outro modo, face aos traços de personalidade revelados pelo arguido que não permitem que se estabeleça um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do mesmo.
Sendo certo que não se pretende assentar tal juízo numa “certeza”, os contornos do caso inviabilizam qualquer esperança que o arguido será sensível à advertência de uma nova condenação que não envolva o cumprimento efetivo da pena de prisão.
Só podemos formular um prognóstico negativo, pesadas todas as circunstâncias do caso concreto, resultando claro que a simples censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena de prisão não são suficientes para o afastar da prática da criminalidade, de tudo resultando que apenas a prisão efetiva dará resposta adequada às necessidades de prevenção.
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1. RELATÓRIO
1.1 Decisão recorrida
Após julgamento em processo comum e com intervenção do Tribunal Coletivo, foi o arguido AA condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelos artigos 143.º e 144.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, subordinada à condição de pagamento de um terço do valor fixado em sede de indemnização ao assistente BB - € 10.458,39 (dez mil quatrocentos e cinquenta e oito euros e trinta e nova cêntimos) – até ao termo da suspensão da execução da pena, nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.º 1 e 5 e 51.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
1.2 Recurso
Discordando da decisão final, no que concerne à escolha da pena, o MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs recurso do acórdão condenatório, pugnando pela condenação do arguido no cumprimento efetivo da pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Alega, em síntese, que a ilicitude é elevadíssima face à forma brutal como o arguido atingiu o bem jurídico tutelado pela norma jurídica por si infringida e que se revela nas consequências físicas decorrentes da sua conduta perpetrada sobre o ofendido BB.
O modo de execução é revelador da total indiferença do arguido perante o bem jurídico tutelado, designadamente ao ter insistido na sua conduta ilícita quando o ofendido já se encontrava totalmente desamparado e caído no solo.
O arguido agiu com dolo direto, de forma muito intensa, empregando elevada energia criminosa, não demonstrando qualquer arrependimento por altura do cometimento da sua conduta nem, tão pouco, posteriormente, circunstâncias que revelam uma conduta e uma insensibilidade muito censurável em termos de culpa.
São elevadíssimas as necessidades de prevenção geral positiva e especial positiva que não foram devidamente tidas em conta pelo Tribunal a quo.
Considerando, assim, a ilicitude, modo de execução e consequências decorrentes da conduta do arguido, bem como o comportamento anterior do mesmo, por referência aos seus antecedentes criminais, importa concluir que a respetiva personalidade revela uma dificuldade intrínseca em manter uma conduta social conforme o direito que cumpre acautelar.
Em face dessa dificuldade intrínseca, considera o recorrente que os pressupostos do acionamento do instituto da suspensão da pena não se encontram preenchidos, na medida em que não se afigura como plausível e/ou previsível que a mera ameaça do cumprimento de uma nova pena de prisão salvaguarde as finalidades da punição, nomeadamente em termos de acautelamento de novos comportamentos ilícitos de idêntica natureza.
1.3 O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
1.4 O arguido apresentou resposta ao recurso, pugnando pela respetiva improcedência, na medida em o juízo de prognose favorável do Tribunal recorrido se fundou na adequada avaliação da sua atual situação, inserção social e profissional, estabilidade familiar e emocional.
1.5 Neste Tribunal, o Ministério Público limitou-se à aposição de “visto”.
1.6 Realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995).
Não se detetando questões de conhecimento oficioso que imponham a intervenção deste Tribunal, atendendo às conclusões apresentadas, cumpre conhecer da escolha e modo de execução da pena aplicada ao arguido/recorrido.
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3. DA DECISÃO RECORRIDA
O Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:
« 1. No dia 4 de setembro de 2021, pelas 17h50, o arguido AA dirigiu-se ao bar “…”, no Caminho …, em …, onde por motivos relacionados com queixas de vizinhos se desentendeu com CC, tendo sido separados por diversas pessoas que se encontravam no referido estabelecimento.
2. Nessa sequência, BB, que se encontrava no mesmo bar, agarrou o arguido pelo pescoço, encostou-o a uma parede, e depois conduziu-o para um canto do bar para conversar.
3. Nesse momento, quando se encontravam frente a frente, sem que nada o fizesse prever, o arguido desferiu um murro com a sua mão direita na zona da fonte do lado esquerdo da face do BB, fazendo-o embater com a cabeça numa parede e após cair ao chão.
4. Quando BB se tentava levantar, o arguido desferiu quatro pontapés na cara daquele, causando-lhe convulsões e sangramento abundante do nariz.
5. Em consequência da conduta do arguido BB foi transportado para o Hospital de … e posteriormente helitransportado para o Hospital de …, em …
6. À entrada no hospital BB apresentava edema do terço médio da face com enfisema subcutâneo periorbitário, disoclusão – mordida aberta anterior e dor à palpação dos pilares do complexo orbitozigomáticos bilateralmente, incluindo arcadas zigomáticas.
7. No Centro Hospitalar Universitário do …, EPE foram prestados diversos tratamentos médicos/hospitalares urgentes, designadamente análises, TC do Crâneo e TC Maxilo- Facial, dos quais resultou que BB apresentava fratura complexa dos ossos da face com quebra de três pilares verticais e dois pilares horizontais, nomeadamente: - dos complexos zigomático-maxilares bilateralmente, com discreta rotação posterior, um pouco mais evidente à esquerda, - das quatro apófises pterigoides, - de todas as paredes dos seios maxilares, incluindo os pavimentos orbitários com envolvimento dos canais periorbitários, - complexo fracturário configurando fratura LeFort tipo 2, - diastática da sutura frontonasal, com traços de fratura estendendo-se aos ossos lacrimais e consequentemente às vias lacrimais, -diastática das suturas frontozigomáticas, - cominutivas dos ossos próprios do nariz e desvio da pirâmide nasal para a esquerda.
8. No Centro Hospitalar Universitário de …, EPE (Hospital de …) foram prestados diversos tratamentos médicos/hospitalares, designadamente, no dia 7 de setembro de 2021, foi submetido a cirurgia para reconstrução facial, na qual lhe implantadas sete placas de suporte facial, para fixação do pilar fronto-malar, do pilar fronto-nasal e do pilar maxilo-malar.
9. BB ficou internando no Centro Hospitalar Universitário de …, EPE até 9 de setembro de 2021.
10. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, BB sofreu dores na face, ficou com os olhos descaídos e sem sensibilidade, perdeu força maxilar, tem dificuldade em mastigar, ficou com a dentição desalinhada e a boca assimétrica.
11. Ao agir da forma descrita, o arguido agiu com a intenção de ofender o corpo e saúde de BB, sabendo que com a força utilizada na zona do corpo atingida poderia causar as lesões supra descritas, o que representou e quis.
12. O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era censurável, proibida e punida por lei penal.
13. No dia 4 de setembro de 2021, pelas 21 horas, o arguido AA dirigiu-se ao bar “…”, sito em …, onde se encontravam, entre outras pessoas, DD e EE.
14. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido dirigiu-se a DD e proferiu as seguintes expressões: “tás a olhar, devias querer o mesmo”, “mandaste chamar o teu guarda costas”, “parto isto tudo”, e outra no sentido de que lhe iria bater.
15. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido dirigiu-se a EE e proferiu as seguintes expressões: “És grande tu”, “Vou-te pegar”.
16. Nesse momento chegou ao local uma patrulha da GNR que levou o arguido para fora do estabelecimento.
17. Ainda nessa noite, a hora não concretamente apurada, o arguido voltou ao bar, todavia, os referidos DD e EE fecharam o bar e dirigiram-se de imediato à GNR.
18. Em consequência da conduta do arguido, DD e EE sentiram medo e inquietação e temeram pela sua integridade física.
19. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram censuráveis, proibidas e punidas por lei, ao que foi indiferente.
Dos pedidos de indemnização civil
20. Os tratamentos médicos mencionados em 7 tiveram um custo de € 322,17 (trezentos e vinte e dois euros e dezassete euros).
21. Os tratamentos médicos mencionados em 8 tiveram um custo de € 15.816,52 (quinze mil, oitocentos e dezasseis euros e cinquenta e dois cêntimos).
22. Em consequência da conduta do arguido, BB compareceu na consulta externa de cirurgia plástica/maxilo-facial nos dias 15 de setembro de 2021 e 6 de outubro de 2021, as quais tiveram um custo de € 65,10 (sessenta e cinco euros e dez cêntimos).
23. Em consequência da conduta do arguido, BB ficou emocionalmente afetado, tornou-se uma pessoa de temperamento difícil e irritável, com perturbações do sono, deixou se socializar, afastou-se da família e amigos e separou-se da companheira, sendo que antes era uma pessoa alegre e extrovertida.
24. BB exercia à data dos factos e exerce atualmente a atividade de ….
25. Em consequência da conduta do arguido deixou de trabalhar para a empresa onde trabalhou durante 14 anos e na qual auferia entre 10 a 12 mil euros por mês por trabalhar em Portugal, exercendo hoje a atividade como profissional liberal e aufere cerca de dois mil euros por mês.
26. Em consequência da conduta do arguido:
- entre 8 e 12 de setembro de 2021, a companheira do assistente, bem como o assistente a partir da alta clínica a 9 de setembro, ficaram alojados num hotel em …, tendo despendido € 504,50,
- no dia 9 de setembro de 2021 o assistente despendeu € 33,52 em medicamentos,
- no dia 10 de setembro de 2021 o assistente despendeu € 25,15 em medicamentos,
- de 14 a 15 de setembro de 2021, o assistente a companheira deslocaram-se a … para consulta no Hospital de … no dia 15 de setembro, tendo ficado alojados num hotel em …, pelo qual despenderam € 354,00,
- no dia 28 de setembro de 2021 o assistente efetuou uma TAC pela qual pagou € 125,00,
- no dia 6 de outubro de 2021 o assistente deslocou-se … para consulta no Hospital de … tendo despendido €83,45 em gasóleo,
- no dia 8 de outubro de 2021 o assistente despendeu € 22,37 em medicamentos,
- no dia 12 de outubro de 2021 o assistente pagou 10 sessões de fisioterapia, no valor de € 180,00,
- no dia 12 de novembro de 2021 o assistente despendeu € 11,22 em medicamentos,
- no dia 22 de dezembro de 2021 o assistente despendeu € 11,22 em medicamentos,
- no dia 24 de dezembro de 2021 o assistente despendeu € 24,74 em medicamentos.
Das condições pessoais e antecedentes criminais do arguido
27. O agregado familiar do arguido é constituído pela companheira e por dois filhos ainda menores, sendo que atualmente residem em ….
28. O arguido trabalha, desde maio de 2024, para a empresa …, como …, aufere uma remuneração mensal de € 820, 00, encontrando-se atualmente a exercer funções em ….
29. Por acórdão de 23 de julho de 2015, transitado em julgado a 31 de agosto de 2015, proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 164/14.6…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de …, Juiz … foi o arguido condenado pela prática em 1 de fevereiro de 2014, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º do Código Penal, e dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pena já declarada extinta pelo cumprimento.
E, relativamente à medida e modo de execução da pena, questão sobre a qual versa o presente recurso, refere o Tribunal a quo:
« O crime de ofensa à integridade física grave é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
Nos termos dos artigos 40, n.º 2 e 71º do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena terá sempre como limite inultrapassável a culpa do agente e as necessidades de prevenção geral e especial positivas. As exigências de prevenção dizem respeito à necessidade comunitária de punição do caso concreto, e à estabilização da confiança da comunidade na validade da norma violada e à socialização do agente, dissuadindo-o da prática de novos factos ilícitos, incutindo-lhe o respeito da proteção dos bens jurídicos e reintegrando-o na comunidade.
A culpa, como vertente pessoal do crime, limita as exigências de prevenção, na medida em que qualquer pena jamais poderá ultrapassar essa culpa, sob pena de se violar o princípio basilar da dignidade humana.
Para além disso, para decidir da pena concreta a aplicar há que ter em consideração os fatores previstos no n.º 2 do citado artigo 71º do Código Penal, assim atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.
Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).
Assim, há que ponderar as seguintes circunstâncias:
- o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução dos factos e as consequências da sua conduta: não poderá deixar de se considerar a muito elevada ilicitude da conduta do arguido, face à zona do corpo atingida, à forma como foi atingida (pontapés no rosto) e à extensa gravidade dos danos provocados, que deixaram lesões permanentes para o assistente
- a culpa, que se manifestou na forma de dolo direto;
- os sentimentos manifestados e a motivação para a prática do crime: considera-se que não há qualquer justificação para a conduta do arguido, porquanto pese embora o consumo de álcool e a maior desinibição que provoca, os conflitos ou desentendimentos com outras pessoas, o facto até de o arguido poder não ter gostado da intervenção do assistente, nada justifica aquela agressão num momento em que já estava apaziguada a divergência;
-a conduta anterior aos factos: o arguido tem antecedentes criminais, também por crimes contra as pessoas, tendo já cumprido pena de prisão;
- as condições pessoais do arguido e a sua personalidade: o arguido encontra-se a trabalhar em … e vive com a companheira e os dois filhos.
Tudo ponderado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tal como decorre do artigo 71º, do Código Penal, o Tribunal considera como suficiente e adequada a condenação do arguido na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
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6. Das penas de substituição
A Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, já em vigor à data dos factos ora em apreço veio aumentar alterar o leque das penas de substituição e ampliar o âmbito da aplicação das penas substitutivas da prisão, sendo que, dentro das penas de substituição aplicáveis em abstrato, cumpre fazer uma análise da sua aplicabilidade ao caso, em sentido gradativo, ou seja, da mais favorável para o arguido à menos favorável ao arguido, designadamente, das que não impliquem a privação da liberdade às que impliquem essa privação, ainda que de forma descontínua.
Atendendo à concreta medida da pena aplicada, apenas a suspensão da execução da pena de prisão poderá ser equacionada.
A suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50.º do Código Penal assenta num prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, que se fundamentará na ponderação da personalidade do agente e das circunstâncias do facto (mesmo posteriores ao facto e mesmo que tenham já sido valoradas em sede de medida da pena). A finalidade do instituto é, fundamentalmente, a de afastar o delinquente da criminalidade, pelo que a suspensão não deverá ser decretada se com ela se postergarem as necessidades de reprovação e de prevenção do crime.
A suspensão da execução da pena depende de dois pressupostos: (1) um pressuposto formal relativo à medida concreta da pena de prisão e (2) um pressuposto material, relativo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto que permitam ou não um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do delinquente: se a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão constituem avisos suficientes para o afastamento definitivo da criminalidade. Neste juízo de prognose favorável deve atender-se à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste, ou seja, devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido.
No caso, há que ter em consideração que o arguido já foi condenado por crimes de roubo, praticados em 2014, pelos quais veio a ser condenado em pena de prisão efetiva, pena extinta em maio de 2021, sendo que os factos ocorrem em setembro de 2021. Pese embora o lapso de tempo decorrido entre os factos – 2014 a 2021 – não deixa de transparecer uma personalidade permeável à violência. Todavia, não deixa igualmente de se considerar que o arguido, neste momento, apresenta um modo de vida estável, trabalha, vive com a companheira e tem dois filhos menores, aparentando um maior sentido de responsabilidade na sua vida.
Por conseguinte, considera-se que com a ameaça do cumprimento de uma nova pena de prisão, neste atual contexto de vida do arguido, é possível fazer um prognóstico positivo sobre o seu comportamento futuro e suspender a execução da pena de prisão.
Não obstante, considerando que o arguido se encontra a trabalhar, considerando os rendimentos que aufere e, considerando que se afigura fundamental que se consciencialize da gravidade do seu comportamento, designadamente as lesões físicas e psicológicas que causou ao assistente, deverá a suspensão da pena ficar sujeita ao pagamento de um terço do valor fixado em sede de indemnização ao assistente BB - € 10.458,39 (quantia que sendo paga será imputada no montante devido a título de indemnização) – até ao termo da suspensão da execução da pena, que em face da condição de pagamento, se fixa por um período de 4 anos e 6 meses (montante que a dividir por 54 meses perfaz o montante mensal de € 193,67 o que se afigura razoável em face dos rendimentos do arguido), tudo nos termos do disposto nos artigos 50.º, n.º 1 e 5 e 51.º, n.º 1, al.a) do Código Penal.
Deste modo, sujeita à condição de pagamento supra estipulada, considera-se que as finalidades da pena serão atingidas com a suspensão da execução da pena de prisão.»
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4. FUNDAMENTAÇÃO
O recorrente foi condenado na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, medida da pena que não vem contestada e que, por isso, não pode ser sindicada em sede de recurso.
Questiona o recorrente a opção pela pena de substituição, sustentando que as exigências de prevenção se opõem à formulação de um juízo de prognose favorável.
Vejamos se lhe assiste razão.
Dentre as penas de substituição em sentido próprio ou não detentivas, encontra-se a suspensão da execução da pena de prisão1.
Estabelece o n.º 1, do artigo 50.º, do Código Penal, que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E, de acordo com o disposto no n.º 2, do mesmo artigo 50.º, o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
A suspensão da execução da pena de prisão não obedece a um modelo de discricionariedade, mas, antes, ao exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos legais.
É pressuposto formal da suspensão da execução da pena de prisão a condenação em pena de prisão até 5 anos. Quanto aos pressupostos materiais, reconduzem-se à adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão para realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Na formulação deste juízo, quanto à verificação dos pressupostos materiais da suspensão da execução da pena de prisão, deverá atender-se à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
Por outro lado, a suspensão da execução da pena de prisão não pode deixar de ser entendida como uma medida pedagógica e reeducativa2, com vista à realização, de forma adequada, das finalidades da punição, isto é, da proteção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade (art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal), devendo ser decretada se se mostrar adequada para afastar o agente da prática da criminalidade.
Não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas3.
A opção pela suspensão da pena de prisão requer a formulação de um juízo de prognose favorável, uma expetativa fundada, relativamente ao comportamento futuro do arguido no sentido de se entender que a condenação em causa constitui para si uma séria advertência e um forte alerta para que não volte a delinquir, acreditando-se que, nas concretas condições em que se encontra, a sua ressocialização se poderá ainda fazer em liberdade.
Como referem LEAL-HENRIQUES E SIMAS SANTOS4 «o Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa».
Na verdade, não podendo nunca se assegurar que um arguido, a quem foi suspensa a execução de uma pena de prisão, não venha a cometer novo crime, haverá sempre que correr algum risco, calculado, fundado em elementos factuais capazes de suportarem o juízo de prognose com alguma robustez.
O juízo de prognose a realizar pelo Tribunal partirá, assim, da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida do arguido, da conduta anterior e posterior ao crime adotada pelo mesmo e da sua revelada personalidade, análise que permitirá concluir, ou não, pela viabilidade da sua ressocialização se fazer em liberdade.
O Tribunal a quo apreciou a possibilidade de suspender a pena de prisão aplicada ao recorrente, formulando a esse propósito um juízo positivo. Refere, em concreto, que, neste momento, o arguido apresenta um modo de vida estável, trabalha, vive com a companheira e tem dois filhos menores, apresentando, por isso, um maior sentido de responsabilidade na sua vida.
Mas, na verdade, a matéria de facto provada não permite concluir, como faz o Tribunal a quo, que o modo de vida do arguido tenha evoluído favoravelmente após a prática dos factos.
A matéria de facto assente não revela que o arguido atravessasse um período de vida mais conturbado, menos estável, na data em levou a cabo a agressão à vítima pela qual foi condenado no âmbito destes autos. Não sabemos se estava desempregado, solteiro ou separado de facto.
Ou seja, de acordo com a factualidade provada, apenas a atual situação laboral será posterior à data dos factos, sem que saibamos se contava, em 2021, com inserção laboral.
Tudo parece indicar que, nessa data, já viveria com a companheira, contando com apoio familiar.
Temos, assim, de concluir, que os fatores a que o Tribunal alude para justificar o juízo de prognose favorável não têm respaldo na matéria de facto assente, ou se alicerçam em circunstâncias que já se evidenciavam à data da prática dos factos e não foram inibidoras da conduta delituosa.
Em suma, não temos como concluir que o arguido evidencie, à data da condenação, um maior sentido de responsabilidade na sua vida.
Como refere o recorrente, e o Tribunal a quo admite, a ilicitude dos factos é muito elevada, face à zona do corpo atingida e à forma como o foi, bem como graves e extensas são as lesões resultantes para o assistente, ao nível, salientamos nós, de zona do corpo particularmente exposta (rosto), inelutavelmente associada à identidade pessoal, e em que o dano estético assume particular desconforto.
O arguido atuou sem justificação atendível, pois dirigiu as agressões para a vítima, quando a divergência que o oponha a terceiro já se encontrava apaziguada.
A sua atuação é reveladora de uma personalidade violenta, indiferente ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, quer pela energia empregue, quer pela insistência manifestada na perpretação das agressões (que perduraram já com a vítima caída no chão).
Não podemos deixar de ponderar, de igual forma, o sentimento de repúdio comunitário pela prática de crimes que tutelam bens jurídicos eminentemente pessoais, tanto mais nas circunstâncias concretas evidenciadas nos autos, com a consequente necessidade de reforço da confiança na norma jurídica violada.
E avultam as necessidades de prevenção especial pela condenação anteriormente sofrida, também por crimes contra a integridade física. O arguido foi condenado em pena de prisão, que cumpriu, pela prática de um crime de furto qualificado e de dois crimes de roubo. É certo, como refere o Tribunal a quo, que os factos remontam a 2014, sendo a condenação de 2015. Mas não podemos deixar de relevar que o arguido praticou os factos em causa nestes autos poucos meses após a pena anteriormente aplicada ser declarada extinta.
A pena de prisão cumprida não surtiu, por isso, o esperado efeito ressocializador.
A conduta anterior do arguido revela uma clara propensão para a repetição de factos delituosos que visem a integridade física, com violência, a que não podemos ser indiferentes.
A condenação anterior não desviou o arguido do cometimento de novo crime – apesar de solenemente advertido para a necessidade de manter o seu comportamento de acordo com os parâmetros da lei e não obstante o cumprimento de pena de prisão efetiva.
Desprezou as solenes advertências que lhe foram então feitas e nada leva a crer que, efetivamente, já interiorizou o desvalor da respetiva conduta, sendo que o Tribunal a quo funda o seu juízo de prognose favorável em circunstâncias que não podemos ter por verificadas e posteriores à prática dos factos, de modo a concluir pela evolução favorável no seu modo de vida. E por tal, já beneficiou de uma pena concreta fixada abaixo do meio da moldura abstrata, pese embora a elevada ilicitude e culpa assacadas à sua conduta.
Mas o comportamento do arguido, quer o anterior aos factos em causa, quer o que rodeou o cometimento do crime ora em apreço, quer o posterior aos factos delituosos, não permite que se considere provável que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para o afastar da prática da criminalidade, sendo que não temos qualquer base para pensar de outro modo.
Na verdade, os traços de personalidade revelados pelo arguido não permitem que se estabeleça um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do mesmo. Sendo certo que não se pretende assentar tal juízo numa “certeza”, os contornos do caso inviabilizam qualquer esperança que o arguido será sensível à advertência de uma nova condenação que não envolva o cumprimento efetivo da pena de prisão.
Só podemos formular um prognóstico negativo, pesadas todas as circunstâncias do caso concreto, resultando claro que a simples censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena de prisão não são suficientes para o afastar da prática da criminalidade, de tudo resultando que apenas a prisão efetiva dará resposta adequada às necessidades de prevenção.
A decisão do Tribunal a quo, ao decretar a suspensão da execução da pena de prisão, não se pode manter, restando concluir pela procedência do recurso.
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5. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO revogando a suspensão da pena de prisão e condenando o recorrido AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelos artigos 143.º e 144.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Custas pelo recorrido, fixando-se a taxa de justiça em 3 Uc´s (art. 513.º, n.º1, do Cód. Proc. Penal).
Notifique.
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Évora, 3 de junho de 2025
Mafalda Sequinho dos Santos
Carla Francisco
Jorge Antunes
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1«As penas de substituição em sentido próprio respondem a um duplo requisito: têm, por um lado, carácter não institucional ou não detentivo, sendo cumpridas em liberdade; e pressupõem, por outro lado, a determinação prévia da medida concreta da pena de prisão, sendo aplicadas (e executadas) em vez desta.» MARIA JOÃO ANTUNES, Penas e Medidas de Segurança, Almedina. 2.ª ed., p. 38.
2«Como reação de conteúdo pedagógico e reeducativo (particularmente quando acompanhada do regime de prova), só deve ser decretada quando o Tribunal concluir, em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e outras circunstâncias indicadas no n.º 1 ser essa medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade.» LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, 1.º vol. pág. 443.
3FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 341 a 354; MARIA DA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA, As Reacções Criminais no Direito Português, UCP, p. 226 a 229.
4 in Código Penal Anotado, 1.º vol. pág. 444.