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INVENTÁRIO
ACUSAÇÃO DE FALTA DE BENS OU DÍVIDAS
Sumário
I - Atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil). II - No âmbito do novo regime jurídico do inventário judicial (decorrente da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro), o acervo patrimonial a partilhar (ativo e passivo) deve, por regra, ser indicado na fase dos articulados e só em situações excecionais se admite que seja acusada a falta de bens ou dívidas que o integrem, em momento ulterior. III - Entre essas situações, contam-se os casos de superveniência objetiva ou subjetiva de bens ou dívidas atinentes ao referido acervo. IV - Tendo o cabeça de casal, na resposta à reclamação de bens, requerido o aditamento de dívida, mas não tendo alegado qualquer fundamento para o eventual desconhecimento da sua existência aquando da apresentação da relação de bens, o pedido assim impetrado só pode ser considerado intempestivo. V - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões.
Texto Integral
Processo nº 3558/20.4T8GDM-D.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Família e Menores ...
Relator: Des. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro
2º Adjunto Des. José Eusébio Almeida
AA, divorciada, residente na Rua ..., ..., ... ..., ..., veio requerer, na sequência de divórcio, que se procedesse a inventário para partilha de bens comuns contra, BB, divorciado, residente em ..., Reino Unido.
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Apresentada que foi a relação de bens pelo requerido veio a interessada requerente apresentar reclamação da mesma alegando que foram omitidas na relação de bens as contas bancárias e respetivo saldo no que toca às contas da Banco 1..., sabendo-se que se tratava de contas onde estavam as poupanças do casal.
Por outro lado, relativamente à conta no Banco 2..., apenas está indicado o valor que consta da relação de bens inicial sendo que, o saldo existente nessa conta dizia respeito a valores do casal, única conta que movimentavam.
Mais requereu a referida interessada que seja o cabeça de casal instado para juntar aos autos a documentação referente às quotas da sociedade comercial A... LTD (Reino Unido), nomeadamente, certidão permanente da empresa, por forma a ser possível aferir quais as quotas e qual o seu valor.
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Notificado o cabeça de casal, veio contrapor que a Banco 1... já veio certificar que as contas identificadas pertencem exclusivamente ao Cabeça de Casal e a Requerente apenas era autorizada.
Relativamente à conta no Banco 2..., sediado em Inglaterra, já se encontra junto aos autos o respetivo extrato, existindo saldo a favor apenas do Cabeça de Casal, visto que esta conta já existia antes de o mesmo se casar, e comparando o saldo que existia antes do casamento e o saldo na data da separação, o saldo é negativo.
No que se reporta à sociedade em questão, a mesma encontra-se em liquidação, sendo que, apenas existem as verbas nº1, 2 e 3 a partilhar.
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Tendo os autos seguido os seus regulares termo foi proferida decisão, na parte que aqui interessa, com a seguinte parte dispositiva: “Ora, não tendo sido feita qualquer prova por parte do cabeça de casal de que tais montantes são bens próprios e tendo a interessada logrado provar que em tal conta bancária eram depositados os rendimentos do casal, sendo dessa conta que retiravam, quantias para prover às despesas domésticas, tais depósitos terão de ser relacionados tal como foram apresentados na relação inicial de bens”.
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Não se conformando com o assim decidido veio o cabeça de casal interpor o presente recurso rematando com as seguintes com as seguintes conclusões: A) O despacho recorrido é nulo e de nenhum efeito, porque o Juiz a quo errou claramente na apreciação dos factos e na aplicação do direito, errou na apreciação dos documentos, designadamente extratos bancários, violou as regras do ónus da prova, violou o decidido por si mesmo em despacho já transitado em julgado, no que toca à remessa das partes para os meios comuns quanto à titularidade dos saldos bancários existentes na Banco 1..., SA, tituladas exclusivamente em nome do Recorrente; B) O Recorrente antes de casar, era o único titular da conta aberta junto do Banco 2..., onde depositava o seu salário; C) Recorrente e Recorrida casaram no dia 08/12/2007 no regime da comunhão de adquiridos e quanto à conta nº ...52, aberta junto do Banco 2..., no dia 06/12/2007, o Recorrente tinha naquela conta bancária–a quantia de 6.873,96 £ (libras), e no dia da instauração da ação de divórcio, aquela conta (a qual passou a ser conjunta depois do casamento), apresentava um saldo de 4.945,64 £ (libras), o que significa que existe um saldo negativo de 1.928,32 £ (cf. doc. nº 3 junto com o requerimento de 14/06/2023), ou seja, trata-se de uma dívida da Recorrida; D) Este facto mostra-se provado por extratos bancários juntos aos autos, com data anterior ao casamento e do da apresentação em juízo da ação de divórcio. A Recorrida foi regulamente notificada desta alegação e dos extratos bancários e tomou posição quanto à relação de bens e documentos apresentada pelo Recorrente no dia 14/06/2023 e também através de requerimento de 27/06/2023, não tento impugnado a factualidade alegada pelo Recorrente nem alegado a falsidade de nenhum dos documentos juntos por este, designadamente os extratos bancários, pelo que, aceitou a factualidade alegada pelo Recorrente e respetivos documentos; E) Se se entendesse que a Recorrida tivesse deduzido oposição a tal facto (o que não fez), cabia-lhe demonstrar o facto que “alegou”, ou seja, que o Recorrente não era credor da aludida quantia de 1.928,32 £. F) Trata-se de facto constitutivo do seu direito e por isso sobre ela recaía o ónus da respetiva prova (art.º 342.º, 1 do CC)-Ver. Ac. RE de 27/4/2021, 1367/10.8TBVNO.E1 e Ac. RP de 21/3/2023, proc. 3628/21.1T8VNG.P1, bem como, ver Acórdão proferido pela 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, no dia 10/10/2024, no proc. nº 3709/20.9T8OER.L1, disponível em www.dgsi.pt; G) A falta de tal prova levará a que se decida em desfavor da reclamante, devendo improceder a reclamação, sendo de manter o valor relacionado pelo Recorrente a título de saldo negativo-Recorrida não produziu qualquer tipo de prova; H) O Tribunal a quo ao dar como não provado este facto, demonstrou falta de parcialidade na análise deste facto porque entendeu dar como provado que, à data de 24/05/2021, data posterior à entrada em juízo da p.i. de divórcio, na mesma conta bancária do Banco 2..., constava um saldo bancário de: 19.151,12£ (22.716,458€) na conta nº ...05,71£ (125,39€) na conta n.º ...00 apenas e tão somente porque a Recorrida juntou aos autos um print obtido através da internet e o juntou a juízo em 06/09/2024; I) Ou seja, desvalorizou pelo menos 2 extratos bancários e contentou-se com um mero print obtido através da internet (em inglês–não traduzido para a língua portuguesa) para dar como assente o ponto 6, o qual deverá ser eliminado da factualidade dada como assente, porque é absolutamente irrelevante para os autos; J) Deverá também ser eliminada o ponto 7 dos factos dados como assentes porque é a repetição em parte, do facto 2 dado como assente; K) O Tribunal a quo incorreu num grosseiro e manifesto erro na apreciação da prova, porquanto se dá como não provado um facto que contraria toda a evidência a lógica mais elementar bem como as regras da experiência comum; L) Por despacho proferido a 14/06/2024 e transitado em julgado, foram as partes remetidas para os meios comuns quanto aos saldos bancários existentes na Banco 1..., SA, razão pela qual o despacho recorrido é nulo e nenhum efeito, porque veio em contramão dar o dito pelo não dito e veio pronunciar-se sobre a titularidade dos saldos bancários existentes nas referidas contas bancárias, quando a única testemunha ouvida em tribunal declarou nada saber sobre o assunto; M) O Tribunal a quo ao afirmar que, os saldos contantes nas contas abertas na Banco 1..., SA, eram valores de Recorrente e Recorrido, onde alegadamente eram depositadas as poupanças do casal, errou claramente na apreciação do depoimento da testemunha ouvida e aquele despacho padece de nulidade cf. previsto no art.º 195.º do CPC, e de forma tempestiva (cf. n.º 1, parte final do art.º 199.º do CPC) porque decido contra o despacho proferido pela mesma Juíza em 14/06/2024; N) Na reclamação à relação de bens apresentada em juízo pela Recorrida em 11/05/2023, esta apenas alega a falta de relacionamento dos saldos bancários da Banco 1..., SA., e em momento algum alegou que os saldos existentes nas 2 contas bancárias abertas junto da Banco 1..., SA, eram comuns e que naquelas contas eram depositados os valores provenientes do trabalho e que a Recorrida usava um cartão associado a essas contas; O) Recorrida apenas no dia 05/03/2024, em audiência prévia, alegou que quanto às contas da Banco 1..., SA, “era autorizada mas os valores que constam das referidas contas, tratavam-se de valores de ambos, eram contas onde estavam as poupanças do casal”, o que reiterou no requerimento de 14/03/2024 (alegação extemporânea–produzida mais de 7 meses após a reclamação apresentada à relação de bens, dado que o momento processual indicado para o efeito era a reclamação apresentada à relação de bens, - requerimento de 11/05/2023 e 27/06/2023, e não em articulado posterior); P) Pelo exposto, não podem ser admitidos estes 2 requerimentos, um apresentado em ata de audiência prévia em 05/03/2024 e outro em requerimento de 14/03/2024; Q) O processo de inventário tem três articulados essenciais e que são admitidos por lei: a petição inicial, a relação de bens e a reclamação de bens. Os demais articulados são anómalos, devendo ser desentranhados dos autos, o que requer; R) A Recorrida, regularmente notificada da relação de bens apresentada pelo Recorrente em 14/06/2023, não impugnou os extratos bancários juntos à mesma, apenas juntou aos autos o requerimento de 27/06/2023, onde nada alegou quanto propriedade dos saldos bancários existentes na Banco 1..., SA (vide requerimentos de 11/05/2023 e 27/06/2023). Pelo que, esta vedada a possibilidade dela, 7 meses após a apresentação de reclamação à relação de bens, vir alegar factos novos aos alegados na dita peça; S) Resulta da relação de bens do Recorrente de 14/06/2024 que os saldos bancários existentes na Banco 1..., SA, eram pertença apenas dele, pois tais contas e saldos bancários já existiam e lhe pertenciam enquanto aquele era solteiro–pelo que, os saldos das ditas contas apenas lhe pertenciam e nenhuma quantia havia a partilhar, tendo junto aos autos extratos bancários com datas anteriores ao seu casamento, vide doc. nº 1 junto em 14/06/2024, titularidade essa que atestada pela informação da Banco 1..., SA em 26/02/2026; T) Na informação prestada pela Banco 1..., SA, data de 26/02/2024, aquela informou que as contas nº ...00 e nº ...20 são tituladas pelo cabeça de casal e a Recorrida apenas figurava como autorizada de movimentação; U) A Recorrida confessa que não trabalhava e apenas realizava as tarefas domésticas e que o Recorrente era o único que auferia rendimentos do trabalho e que sustentava o agregado familiar; V) O facto de a Recorrida ter sido autorizada a movimentar as contas da Banco 1..., SA, não implica nem pressupõe nem lhe dá a propriedade do saldo das mesmas; W) Em sede de audiência de julgamento não foi feita qualquer tipo de prova pela Recorrida quanto à propriedade dos saldos de tais contas bancárias, porque a testemunha ouvida, a sua mãe-CC, depoimento gravado no sistema áudio Citius 04-02-2025, das 14:37 às 14:53, minuto 00:03:34 a 00:06:11, declarou nada saber sobre as contas abertas junto da Banco 1..., SA, negou saber se o casal trazia dinheiro para essas contas, sabia que tais contas eram apenas do Recorrente e que nunca viu o cartão bancário nem o nome que dele constava; X) Deste depoimento resulta não resulta provado que: os saldos bancários existentes nas contas da Banco 1..., SA, eram pertença de ambos: o salário do Recorrente ou as economias do casal eram trazidas para Portugal e depositadas na Banco 1..., SA, e que os saldos pertencessem aos dois; Y) Reitere-se que esta testemunha nada saber e ou não ter a certeza de tais factos, nem se quer viu o tal cartão bancário; Z) O Tribunal a quo errou ao dar como assente o facto 5 do despacho recorrido o qual tem de ser eliminado dos autos, e ou alterada a sua redação no sentido de fazer constar apenas a informação de que a Recorrida era autorizada a movimentar as contas indicadas pela Banco 1..., SA, em 26/02/2024; AA) O depósito de dinheiro próprio de um dos cônjuges numa conta de que apenas ele é titular–desde tenra idade (vide requerimento de 14/06/2023)-não o transformam em bem comum, pese embora o regime de casamento; BB) A titularidade de uma conta bancária afere-se pelo contrato de abertura de conta, que, nestes termos, foi efetuada pelo pai do Recorrente, porquanto, este era menor de idade, tal como resulta dos extratos juntos com o requerimento de 14/06/2023 e com o requerimento de 01/03/2024, confirmados pela informação da Banco 1..., SA, em documento de em 26/02/2024; CC) Resulta dos extratos bancários juntos com o requerimento de 14/06/2023 e com o requerimento de 01/03/2024, confirmados pela informação da Banco 1..., SA, por documento datado de 26/02/2024, que as quantias depositadas nas contas bancárias ali identificadas já era pertença do Recorrente, ainda este era solteiro, facto que não foi abalado por qualquer meio de prova que tivesse sido produzido pela Recorrida; DD) Caso se aceite válida a alegação da propriedade dos saldos bancários era comum efetuada em 05/03/2024 e depois em requerimento de 14/03/2024, importa dizer que a alegação de que que a Recorrida “era autorizada mas os valores que constam das referidas contas, tratavam-se de valores de ambos, eram contas onde estavam as poupanças do casal”, tinha de ser provada por ela; EE) Trata-se de facto constitutivo do seu direito e por isso sobre ela recaía o ónus da respetiva prova (art.º 342.º, 1 do CC) - Ver. Ac. RE de 27/4/2021, 1367/10.8TBVNO.E1 e Ac. RP de 21/3/2023, proc. 3628/21.1T8VNG.P1, bem como, ver Acórdão proferido pela 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, no dia 10/10/2024, no proc. nº 3709/20.9T8OER.L1, disponível em www.dgsi.pt; FF) A falta de tal prova levará a que se decida em desvafor da Reclamante, devendo improceder a reclamação; GG) O despacho recorrido padece de: nulidade, cf. previsto no art.º 195.º do CPC, e de forma tempestiva (cf. nº 1, parte final do art.º 199.º do CPC); erro na apreciação da prova (erro na análise da documentação): art.º 607º nº 4, nº 5, 608º, 674 nº 3, todos do CPC; art.º 389º, 39º1 e 396º CC; erro na interpretação dos factos e do direito: 615 nº 1 b), c), d), e e); 609 nº 1 in fine do CPC, bem assim como erro na apreciação da confissão da Recorrida, cfr. art. 465º, 674 nº 3 e 604 nº 4 do CPC; HH) O despacho Recorrido, violou ainda as regras referentes ao ónus da prova previstas no art.º 342º, 1 do CC, pelo que, tem de ser revogado e substituído por acórdão que julgue totalmente procedente por provado o presente recurso, elimine dos factos dados como provados o ponto nº 5, 6 e 7 (este é a repetição do ponto 2) e que dê como assente o facto 1 dos factos não provados, com as legais consequências.
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Notificada a apelada contra-alegou dizendo que deverá manter a obrigação de apresentação de nova relação de bens.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir: a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto; b)- decidir em conformidade a reclamação à relação de bens apresentada.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provada pelo tribunal recorrido:
1. Autor e Ré casaram em 08 de dezembro de 2007, sem convenção antenupcial.
2. Em 10 de Dezembro de 2020, a Autora instaurou ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge que deu origem ao processo n.º ..., ... do Juízo do Tribunal de Família e Menores ....
3. Autora e Réu requereram no âmbito do processo referido em 2., a conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento.
4. No âmbito dos acordos apresentados para a conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, Autora e Réu apresentaram a seguinte relação especificada de bens comuns: "Ativo: (Bens imóveis: o casal não possui qualquer bem imóvel em comum; Bens Móveis: verba n.º 1: veículo automóvel da marca ..., modelo ..., matrícula ..-..-WRC a que atribuem o valor de €498,00 (quatrocentos e noventa e oito euros); Verba n.º 2: totalidade das quotas da sociedade comercial sob a firma A..., LTD, a que atribuem o valor de € 115,49 (cento e quinze euros e quarenta e nove cêntimos); Verba n.º 3: conta bancária sediada no Banco 2..., com o número ...52 cujo saldo nesta data é de £13.057,00 (treze mil e cinquenta e sete euros); Passivo: O casal não tem dívidas a relacionar”.
5. Na constância do casamento, cabeça de casal e interessada sempre movimentaram as contas bancárias em causa, onde eram depositados os valores provenientes do trabalho, usando a interessada o cartão associado a essas contas, embora o cabeça de casal gostasse de controlar o dinheiro que se gastava.
6. À data de 24 de maio de 2021, data posterior à entrada da petição inicial de divórcio, na conta bancária do Banco 2..., consta um saldo bancário de: -19.151,12£ (22.716,48€) na conta nº ...05,71£ (125,39€) na conta n.º ...00.
7. A ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge foi intentada a 10/12/2020.
8. A sentença de divórcio entre a interessada e o cabeça de casal foi proferida em 14 de junho de 2021.
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Factos não provados
Não se provou:
1. Que a interessada tem uma dívida de € 1.928,32 £ porque no dia 10/12/2020 a conta bancária aberta no Banco 2..., com o nº ...52, apresentava um saldo de €4.945,64 £ e no dia 06/12/2007 (antes do casamento) aquela conta bancária apresentava um saldo de 6.873,96 £]-Credor-o Cabeça de Casal.
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III. O DIREITO
Como acima se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir prende-se com: a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como se evidencia das alegações recursivas o apelante impugna a decisão da matéria de facto, requerendo que se elimine dos factos dados como provados os pontos 6. e 7. e que dê como assente o facto 1 dos factos não provados e ainda que, ou se elimine o ponto 5. dos factos provados ou que se altere a sua redação no sentido de fazer constar apenas a informação de que a Recorrida era autorizada a movimentar as contas indicadas pela Banco 1..., SA, em 26/02/2024.
Mas, qual a relevância dos pontos factuais, 6. e 7. para a decisão de mérito da reclamação segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito?
A resposta é simples: nenhuma
Analisando.
O ponto 7. é repetição, em parte, do ponto 1.
No que concerne ao ponto 6. também ele não tem qualquer relevo para a decisão da reclamação.
Com efeito, para a sua a decisão o que sobressai é o saldo existente à data da entrada da petição inicial da ação de divórcio como decorre, aliás, do preceituado no artigo 1789.º, nº 1 segunda parte do CCivil.
Com o divórcio cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges (artigo 1688.º do Cód. Civil) e, cessando tais relações, pode-se proceder à partilha dos bens comuns, por acordo, ou em processo de inventário.
Ora, a lei faz retroagir os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da propositura da ação de divórcio ou à data da cessação da coabitação entre ambos, embora neste último caso, a requerimento e desde que alegada e provada a data da cessação da coabitação (artigo 1789.º, n.º 1 e 2 do Cód. Civil), ou seja, a composição da comunhão deve considerar-se fixada no dia da propositura da ação e não no dia do trânsito em julgado da decisão, sendo feita a partilha subsequente como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da entrada em juízo da ação ou na data em que cessou a coabitação.
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Isto dito e atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
Como refere Abrantes Geraldes,[1] “De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
Bem pode dizer-se, pois, que a impugnação da decisão sobre matéria de facto, neste conspecto, é mera manifestação de “inconsequente inconformismo”[2], razão pela qual nos abstemos de reapreciar relativamente ao ponto em questão.[3]
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Analisemos agora a impugnação do ponto 5. dos factos provados.
Como se extrai das alegações recursivas e respetivas conclusões, a sua impugnação parte do pressuposto de que o despacho recorrido se pronunciou sobre os saldos das contas bancárias existentes na Banco 1....
Acontece que, o despacho recorrido não se pronunciou sobre as contas em causa, mas apenas em relação à conta bancária aberta no Banco 2..., isto mesmo se retira da leitura atenta do despacho recorrido e, concretamente, das seguintes passagens: “No que se refere às contas mencionadas e abertas na Banco 1..., nas quais a interessada era autorizada, tal questão já fora remetida, em devido tempo, para os meios comuns conforme despacho com a referência n.º 460096938”; “No que se reporta à conta relativamente à conta do Banco 2..., vejamos a questão em causa”; “Vejamos a questão a decidir. A interessada veio apresentar reclamação de bens considerando omitidas da relação de bens as contas bancárias e respetivo saldo no que toca às contas da Banco 1..., sabendo-se, é certo que sabe-se que a Requerente era autorizada, mas os valores que constam das referidas contas, tratavam-se de valores de ambos, eram as contas onde estavam as poupanças do casal, tendo sobre esta questão e, em devido tempo, os interessados sido remetidos para os meios comuns–cf., despacho com a referência n.º 460096938” (negrito e sublinhados nossos).
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Aliás, isso mesmo extrai da parte final do despacho recorrido atrás transcrito quando refere: “(…) tais depósitos terão de ser relacionados tal como foram apresentados na relação inicial de bens”.
Ora, na relação inicial de bens apresentada pelo cabeça de casal em 11/04/2023 não foram relacionados quaisquer depósitos de Banco 1..., mas apenas do Banco 2....
E, diga-se, nem de outra forma poderia ser.
Efetivamente, sobre a referida questão já existia caso julgado, sendo que, se o despacho recorrido também se tivesse debruçado sobre a questão das contas da Banco 1... o que, como se referiu, não foi o caso, sempre haveria que cumprir a primeira das decisões proferidas no processo, ou seja a proferida em 14/06/2024 (cf. artigo 625.º do CPCivil).
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Portanto o referido ponto refere-se à conta existente no Banco 2... o que está, aliás, em consonância com o alegado pela apelada em sede audiência prévia que teve lugar no dia 05/03/2024.
Voltemos agora a nossa atenção para o ponto 1. da resenha dos factos não provados, sendo que, nesta análise entraremos também na apreciação do mérito da reclamação à relação de bens.
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O referido ponto tem a seguinte redação: “A interessada tem uma dívida de € 1.928,32 £ porque no dia 10/12/2020 a conta bancária aberta no Banco 2..., com o nº ...52, apresentava um saldo de €4.945,64 £ e no dia 06/12/2007 (antes do casamento) aquela conta bancária apresentava um saldo de 6.873,96 £]-Credor-o Cabeça de Casal”.
Ora, o referido ponto corresponde ao que foi vertido na relação de bens apresentada pelo apelante em 14/06/2023 e, como tal, a questão que importa decidir é se deve ou não constar da relação de bens a referida verba.
Analisando.
Em 11/04/2023 o cabeça de casal apresentou a seguinte relação de bens:
A essa relação de bens a apelada apresentou a seguinte reclamação: “1. Esquadrinhada a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, constata-se que a mesma se encontra incompleta, quer por falta de bens que não foram por este relacionados, quer por falta dos respetivos elementos probatórios que lhe deveriam acompanhar. Destarte, 2. Por omissão, acusa a requerente a falta de bens que não foram relacionados como ativo: - O dinheiro existente na conta bancária, da Banco 1..., nº de conta ...17, cf. Doc. 1 (Documento bancário com o número de conta, documento que se junta e dá como reproduzido para os devidos efeitos legais). - Bem como o dinheiro existente na conta bancária, da Banco 1..., nº de conta ...20, cf. Doc. 2 (Documento bancário com o número de conta, documento que se junta e dá como reproduzido para os devidos efeitos legais), ambas usadas por ambos na pendencia do matrimonio. 3. Cujos saldos aqui não se discriminam pelo facto de a requerente não ter acesso aos saldos das aludidas contas bancárias desde a data do divórcio, pelo que se requer que seja o cabeça de casal notificado para vir juntar aos autos os extratos bancários da aludida conta à data da propositura da ação de divórcio. 4. Sem prejuízo, quanto aos demais bens relacionados pelo cabeça de casal, 5. Nomeadamente, no que se refere à conta Bancária–Banco 2... nº ...52, constata-se que, igualmente, o cabeça de casal não juntou aos extratos bancários da aludida conta à data da propositura da ação de divórcio, não sendo possível à requerente conferir os valores a relacionar como ativo, pelo que, deve ser o cabeça de casal notificado para apresentar os aludidos extratos, o que desde já se requer. 6. Bem como se requer que seja o cabeça de casal instado para juntar aos autos a documentação referente às quotas da sociedade comercial A... LTD (Reino Unido), nomeadamente, certidão permanente da empresa, por forma a ser possível aferir quais as quotas e qual o seu valor”.
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O apelante em 14/06/2023 na reposta à reclamação (justificando esse procedimento “para melhor tramitação dos autos”) veio apresentar uma nova relação de bens em formato word do seguinte teor: Bens móveis Verba nº 1 Viatura automóvel de marca ..., modelo ..., matrícula ..-..-WRC, no valor de 498 € (quatrocentos e noventa e oito euros). Verba nº 2 100 Ações, no valor unitário de 1 libra esterlina, na sociedade designada A..., LTD, no valor 115,49 € (cento e quinze euros e quarenta e nove cêntimos), vide doc. nº 4. Dividas da Requerente: 1- 1.928,32 £ isto porque no dia 10/12/2020 a bancária aberta no Banco 2..., com o nº ...52, apresentava um saldo de 4.945,64 £ e no dia 06/12/2007 (antes do casamento) aquela conta bancária apresentava um saldo de 6.873,96 £]-Credor–o Cabeça de Casal.
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Como se evidencia da comparação entre as duas relações de bens apresentadas, o apelante, nesta segunda, introduziu uma nova verba (dívida da apelada) alterando, assim, a relação de bens inicialmente apresentada.
Efetivamente e no que toca à conta bancária aberta no Banco 2... veio o apelante alegar que o seu saldo se encontra incorreto, pois que, tendo ambos contraído casamento no dia 08/12/2007, no dia 06/12/2007 existia, na referida conta, a quantia de 6.873,96 £ (libras), montante este proveniente do seu trabalho e, por, assim pede a retificação do valor da referida verba para um saldo negativo de 1.928,32 £, isto porque no dia 10/12/2020 a mesma apresentava um saldo de 4.945,64 £ (libras).
Mas será que o apelante podia apresentar uma nova relação de bens nos termos em que o fez?
Importa, desde logo, enfatizar que os presentes autos deram entrada no dia 03/02/2023 e, como tal, a sua disciplina processual rege-se pela Lei 117/2019 de 13/09 (que vigora desde 01/01/2020–art.º 15.º).
Acontece que, um dos traços mais característicos do atual regime do processo de inventário judicial é que nele se instituiu um novo modelo, com o objetivo de assegurar uma maior eficácia e celeridade processuais.
Este novo modelo procedimental–como salienta Carlos Lopes do Rego[4]“parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte”.[5]
E, assim-continua o mesmo Autor-, o modelo procedimental instituído para o inventário na Lei n.º 117/19, comporta, no essencial, “[u]ma fase de articulados (em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão)–abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo” (artigos 1097.º a 1108.º, do CPC), a fase do saneamento, na qual o juiz, depois de realizar as diligências instrutórias necessárias e, eventualmente, uma audiência prévia, deve decidir, por regra, “todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar, proferindo também, nesse momento processual–e após contraditório das partes–despacho contendo a forma à partilha” (artigos 1109.º e 110.º, do CPC) e, finalmente, a fase da partilha (artigos 1111.º a 1122.º do CPC).
Mais à frente refere ainda: “a circunstância de o exercício de determinadas faculdades estar inserido no perímetro de certa fase ou momento processual implica (…) que, salvo superveniência (nos apertados limites em que esta é considerada relevante, na parte geral do CPC e na regulamentação do processo comum de declaração), qualquer requerimento, pretensão ou oposição tem obrigatoriamente de ser deduzido no momento processual tido por adequado pela lei de processo, sob pena de preclusão”.
Portanto, a questão que agora importa dilucidar é se esta alteração à relação de bens inicialmente apresentada e depois de contra ela ter sido deduzida reclamação, o foi na altura oportuna e tida por adequada pela lei de processo.
No passado, sempre foi entendimento dominante que havendo a possibilidade “de incluir na primeira partilha bens cujo conhecimento surge no decurso do próprio inventário, muito embora esse conhecimento aí advenha depois da fase da descrição–v.g. licitações-, devem procurar partilhar-se nesse inventário os aludidos bens, suspendendo-se, inclusive, as licitações ou os ulteriores termos do inventário para aí serem contemplados, estimados, licitados e partilhados conjuntamente com os restantes”.[6]
Todavia, isso hoje não se afigura com essa linearidade.
O acervo patrimonial a partilhar (ativo e passivo) deve, por regra, ser indicado na fase dos articulados (artigos 1097.º, 1102.º, 1104.º a 1107.º, do CPCivil) e só em situações excecionais se admite que seja acusada a falta de bens ou passivo que o integrem, em momento ulterior, casos, por exemplo, de superveniência objetiva ou subjetiva.[7]
Portanto, não há lugar, por regra, a relação adicional de bens ou dívidas noutras circunstâncias, a menos que, no limite, haja acordo de todos os interessados.
Porém, não sendo esse o caso, acusada a existência de novos bens ou dívidas fora do regime prescrito para os articulados supervenientes, os mesmos só podem ser levados em consideração em partilha adicional, nos termos prescritos no artigo 1129.º, n.º 1, do CPCivil, sob pena de, se assim não se entender, acabar por ficar completamente subvertida a reforma legislativa empreendida e já acima caracterizada nos seus traços essenciais.
Ora, um dos requisitos essenciais para ser admitido um articulado superveniente, quando seja alegado o conhecimento ulterior de dívida é que seja alegada e provada essa superveniência (artigo 588.º, n.º 2, do CPCivil).
Se assim não for e o juiz concluir que a arguição da falta de relacionamento de dívida da herança foi feita fora de prazo, por culpa do arguente, deve rejeitar liminarmente essa arguição, é o que decorre do disposto no artigo 588.º, n.º 4, 1ª parte, do CPCiivl.
Vertendo ao caso concreto verifica-se, como já acima se referiu, que o apelante não relacionou qualquer dívida da apelada quando juntou aos autos a relação de bens nem esta a ela não se referiu na sua reclamação, nem aquele alegou qualquer fundamento para o eventual desconhecimento da sua existência.
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E, assim sendo, como o é, o relacionamento da dívida em causa foi feito de forma manifestamente intempestiva e, como tal não pode constar, da relação de bens.
É que, a resposta à reclamação serve apenas para exercer o contraditório e apresentar meios de prova, sendo que, nem sequer existe outro articulado que permita aos interessados apresentarem eventual reclamação sobre verbas que o cabeça de casal vá aditando, por todos bens terem de ser relacionados com a relação apresentada, sem prejuízo de eventual articulado superveniente.
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Daqui se conclui que o facto em causa nunca podia constar dos factos provados, já que, se assim fosse, e por lógica implicância, teria de se admitir a tempestividade da relação de bens apresentada pelo apelante em 14/06/2023 em substituição da inicialmente apresentada.
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Mas, mesmo que assim não se entenda, nunca o referido facto podia constar da resenha dos factos provados.
Na verdade, o ponto em causa encerra parcialmente uma conclusão e não um facto.
“A interessada tem uma dívida de €1.928,32 £ porque (...)” trata-se de trecho manifestamente conclusivo, pois que extrai uma conclusão jurídica ou valorativa a partir de um conjunto de factos (saldos bancários em dois momentos distintos), ou seja, de uma inferência legal (qualificação): está-se a afirmar que a diferença entre saldos corresponde a uma dívida da interessada para com o cabeça de casal, o que é uma conclusão jurídica, e não um facto material.
A qualificação como “dívida” depende de uma apreciação jurídica e, como tal, não é automaticamente extraída da simples diferença entre saldos.
Na verdade, como extrair da simples diferença entre saldos que isso corresponde a uma dívida da apelada perante o apelante? Donde se retira que essa diferença de saldo foi gasta pela apelante para pagar dívidas próprias ou utilizada para outros fins que não em proveito comum? E porque não concluir que essa diferença de saldo foi gasta pelo próprio apelado?
Portanto, para se concluir pela existência da alegada dívida, o apelante teria de ter alegado e provado factualidade da qual se pudesse extrair que a diferença de saldo existente na referida conta foi utilizada pela apelada e em proveito próprio.
Aliás, sob este conspecto, era ainda necessário que tivesse sido alegado e provado que, durante 13 anos, o saldo em questão esteve sempre imobilizado, pois que, de outra forma, não existe como se concluir que foi essa a quantia que terá sido utilizada pela apelada, tanto mais que vem provado que a referida conta foi sempre movimentada por apelante e apelada onde eram depositados os valores provenientes do trabalho.
É que neste caso o ónus de prova impendia sobre o apelante (cf. artigo 342.º, nº 1 do CCivil).
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Isto dito, e conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.
Dito de outro modo, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova.[8]
Segundo elucida Anselmo de Castro[9] “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”.
Ora, no caso em apreço como já acima se referiu o citado ponto envolve, expressões conclusivas que teriam de ser retiradas de outra materialidade alegado no sentido exposto.
O artigo 607.º, nº 4 do CPCivil[10] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência“[11].
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito“[12].
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
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Portanto, o referido ponto nunca poderia constar da resenha dos factos provados.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pelo apelante e, com elas, o respetivo recurso.
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Diante do exposto deverá o apelante, tal como decidido, apresentar nova relação de bens em conformidade com o decidido, sendo que o depósito existente no Banco 2... deverá ser relacionado por valor idêntico ao que foi relacionado na relação apresentada pelo apelante em 11/04/2023.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, por provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Aveiro, 04 de junho de 2025.
Des. Manuel Fernandes
Des. Jorge Martins Ribeiro
Des. José Eusébio Almeida
____________________________________ [1] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e atualizada pág. 297. [2] A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”; Almedina, 5.ª edição, 169. [3] Importa lembrar que no preâmbulo do Dec. Lei n.º 39/95, de 15 de fevereiro (pelo qual foi introduzido o segundo grau de jurisdição em matéria de facto) o legislador fez constar que um dos objetivos propostos era “facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais (…) erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito (…)” (negrito e sublinhados nossos). [4] In A Recapitulação do Processo de Inventário, Revista Julgar Online, dezembro de 2019, pág. 9. [5] No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, págs. 59 e 60. [6] Cfr. João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, Livraria Almedina, pág. 583. [7] Neste sentido parecem inclinar-se também Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, ob. cit., pág.79, quando referem que a subfase da oposição pode ser deslocada para um outro momento da tramitação do processo de inventário quando “é alegado um facto superveniente por algum interessado (cf. art.º 588.º, n.º 2), o que implica a possibilidade de exercício do contraditório por qualquer outro interessado (art.º 588.º, n.º 4)”. [8] Cf. Acórdãos de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj. [9]In Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269. [10] No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal. [11] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui Pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606. [12] Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda. 1985, pág. 648.