REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
AUDIÊNCIA PRÉVIA
RETENÇÃO DA CRIANÇA
Sumário

I - O princípio segundo o qual os recursos são meios destinados a obter a reapreciação de uma decisão, e não para obter decisões sobre questões novas, é aplicável quer às questões de direito, salvo se de conhecimento oficioso, quer em temática de meios de prova e de matéria de facto.
II - Ainda que de conhecimento oficioso, a apreciação de uma questão nova no âmbito do recurso fica prejudicada se sobre ela tiver recaído despacho autónomo da primeira instância que, por não ter sido impugnado, transitou em julgado, passando a dispor de força obrigatória dentro do processo.
III - Para efeito de aplicação do disposto nos arts. 7.º e 9.º do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, o conceito autónomo de residência habitual ou permanente deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao local onde o menor tem organizada a vida familiar, social e escolar, com carácter de estabilidade e duração, demonstrativas da integração na sociedade local.
IV - No âmbito dos processos tutelares cíveis, deve ser dispensada a audição prévia, em excepção ao princípio do contraditório, quando a medida requerida tenha carácter urgente e da audiência resulte demora susceptível de aumentar ou prolongar o dano no superior interesse do menor.
V - Em sede de impugnação da aplicação de medidas sem contraditório prévio, as partes não podem lançar mão do recurso para invocar factos novos e discutir meios de prova não considerados em primeira instância e cuja sede própria de invocação e discussão seria a oposição, prevista na lei, expressamente, em alternativa à interposição do recurso.
VI - Sem prejuízo da possibilidade da sua revisão futura, se for justificada, corresponde ao superior interesse da menor a aplicação de medida que, no momento em que é decretada, obste à continuação da retenção internacional ilícita da criança por força da qual ela havia sido afastada do seu padrão de vida habitual, do contacto pessoal com um dos progenitores, da residência naquela que foi a sua casa de morada de família durante, pelo menos, os últimos quinze meses e da frequência da escola que no mesmo período foi a sua.

Texto Integral

Processo: 57/25.1T8ETR-A.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2.º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca

RELATÓRIO.
AA, casado, natural de ..., Alemanha, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ..., em ..., intentou acção de regulação das responsabilidades parentais, contra BB, casada, natural de ..., Alemanha, titular do NIF ..., com residencia habitual na Rua ..., ..., em ..., mas actualmente em ... ..., ..., ... ..., Alemanha, relativamente aos menores CC e DD, filhos de ambos, nascidos a ../../2019, em ..., na Alemanha.
Entre o mais, requereu a aplicação de medida provisória e cautelar, sem audição da Requerida, alegando ter sido acordado entre os progenitores que a Requerida viajasse à Alemanha e Países Baixos com os menores, no propósito de festejarem os 80 anos de um familiar materno e passarem alguns dias com familiares, com voos de regresso marcados e reservados de Düsseldorf para o Porto no dia 2 de Janeiro de 2025.
Até que, na véspera dessa data, a Requerida, na companhia dos menores, abandonou inopinadamente a casa da avó paterna destes, num veículo pertencente ao tio materno dos menores, que arrancou a toda a velocidade, após o que o Requerente tem tentado, sem sucesso, entrar em contacto com a Requerida, permanecendo sem ver os seus filhos desde então, qualificando tal actuação como de deslocação ou retenção ilícitas das crianças.
Na sequência, foi proferido despacho (12/2/2025) que, em suma, atribuiu natureza urgente ao processo, solicitou à Direção Geral da Administração da Justiça, na sua qualidade de Autoridade Central do Estado Português no âmbito da Convenção da Haia de 1980, informação sobre o estado do pedido de regresso das crianças CC e DD, formulado às autoridades centrais alemãs e, considerando a impossibilidade de citar, em tempo útil e de acordo com as regras da cooperação judiciária internacional em matéria civil, a progenitora para a Conferência de Progenitores, deu a mesma sem efeito, para além de, face ao pedido de decisão provisória e cautelar, ao abrigo das disposições do art. 28.º, n.º 1 e 4 “a contrario”, da RGPTC, ter ordenado a remessa dos autos com vista ao Ministério Público para se pronunciar.
Após pronúncia do M. P., foi proferida decisão pelo Juízo de Família e Menores, a 17/2/2025, que determinou o imediato regresso das crianças a Portugal e fixou regime provisório e cautelar de exercício das responsabilidades parentais nos seguintes termos:
1) As crianças CC e DD fixam residência com o progenitor;
2) O exercício das responsabilidades parentais relativo às questões de vida corrente dos filhos cabe ao progenitor com quem os mesmos se encontrem em cada momento, não podendo, no entanto, o progenitor, ao exercer as suas responsabilidades, contrariar as orientações educativas mais relevantes tal como definidas pelo progenitor residente;
3) Relativamente às questões de particular importância para a vida dos filhos, são exercidas em comum por ambos os progenitores;
4) Em matéria de convívios,
a) Caso regresse a Portugal, a progenitora poderá estar com as crianças aos fins de semana de quinze em quinze dias, devendo ir busca-las ao estabelecimento de ensino à sexta-feira, no final das atividades letivas, entregando-as na escola à segunda-feira;
b) Mantendo-se na Alemanha, a progenitora poderá realizar uma videochamada com os filhos, todos os dias, das 19h às 20 h (hora de Portugal continental);
c) No dia do pai, dia da mãe e dias de aniversário de cada um dos progenitores, as crianças estarão com o progenitor a que respeita a data, caso a progenitora esteja em Portugal;
d) No dia de aniversário das crianças, estas almoçarão com o pai e jantarão com o pai que a deverá ir buscar à escola se for dia útil e entregá-las no dia seguinte na escola, caso a progenitora esteja em Portugal;
e) Nas festividades de Natal e de Ano Novo, as crianças passarão a semana que antecede o Natal e a véspera com um dos progenitores e a semana que antecede a Ano novo e a véspera com o outro, alternando no ano seguinte, iniciando este ano o Natal com a mãe – tendo sempre por referência o inico da interrupção e final das atividades letivas;
f) Em matéria de férias, as crianças passarão 15 (quinze) dias seguidos com cada um dos progenitores podendo viajar até à Alemanha para visitar os familiares, devendo a mãe comunicar a data pretendida, até ao dia 31 de maio de cada ano;
5) A progenitora contribuirá para os alimentos de cada filho com a prestação mensal de € 150,00 (cento e cinquenta euros) a entregar até ao dia 08 de cada mês, por transferência bancária, para o IBAN que o progenitor indicará, montante a atualizar, anualmente no valor anual de €:5,00 (cinco euros), sendo a 1ª atualização em março 2026. O pagamento terá início no mês de março de 2025;
6) Cada um dos progenitores contribuirá ainda com metade das despesas médico medicamentosas, mensalidade do colégio que frequentam, e despesas escolares e extracurriculares, sempre na parte em que não haja comparticipação, mediante a apresentação de fatura ou recibo, em nome das crianças e com o seus NIF´s, devendo as despesas serem apresentadas num prazo de 30 (trinta) dias, a contar da data em que a despesa seja realizada, bem como o seu pagamento deverá ser efetuado em igual prazo.

*
Desse despacho, inconformada, a progenitora interpôs recurso de apelação, admitido com subida de imediato, em separado e efeito meramente devolutivo.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
(…)
O requerente ofereceu resposta, que integrou as seguintes conclusões:
(…)
Por outro lado, também o Ministério Público apresentou contra-alegações, sem conclusões, nas quais defendeu, em suma, que a decisão recorrida não enferma de qualquer nulidade e fez, no entendimento do respondente, uma correta avaliação e decisão da matéria de facto e aplicação das normas nacionais e internacionais, designadamente o regulamento Bruxelas ii ter, contrariamente ao alegado, como resulta dos considerandos 18 a 20 e 22, tal como do art. 2.º, nº11, que define deslocação ou retenção ilícitas.
Quanto à competência, regendo os artigos 7.º n.º 1, e 9.º do regulamento e como, no caso concreto, dúvidas não existem que existe deslocação ilícita de crianças entre Estados-Membros, concluiu que cabia ao tribunal Português, sendo que é em tal país que as crianças tinham residência habitual antes da retenção ilícita, visto que conforme resulta dos autos e é admitido pela recorrente, o casal e as crianças vieram residir para Portugal no ano de 2023, concretamente, para ..., onde compraram casa.
Acresce que as crianças, em setembro de 2023, passaram a frequentar o Colégio ... no Porto e foram inscritas em atividades desportivas, e tais elementos comprovam e são suficientemente indiciadores que a residência habitual do agregado familiar, passou a ser, desde então, em Portugal.
Finalizou com o pedido de que se mantenha a douta decisão recorrida e se determine a improcedência do recurso.
*
OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) Se, sendo falso que a requerida esteja em paradeiro incerto, a decisão recorrida deveria ter sido antecedida da observância do contraditório (conclusões 1 a 4);
b) Se, porque o centro de vida da família e das crianças é na Alemanha, está verificada a incompetência absoluta dos Tribunais portugueses, seja para a tramitação da acção de regulação das responsabilidades parentais, seja para o decretamento de medidas provisórias, por competir em exclusivo aos Tribunais alemães, onde aliás está já pendente processo para o efeito (conclusões 5 a 18, 23 a 32); e
c) Se a decisão recorrida não acautelou o superior interesse das crianças (conclusões 19 a 22 e 33 e segs.).
*
FACTOS PROVADOS.
Sem prejuízo do que possa resultar da apreciação do recurso, são os seguintes os factos apurados, de acordo com a decisão recorrida:
1) Os menores, CC e DD, nascidos a ../../2019, em ..., na Alemanha, são filhos de AA e de BB;
2) Em 2023, o casal de progenitores veio residir para Portugal e adquiriu um imóvel onde instalou a “casa de morada de família”, sito na Rua ..., ..., em ..., Ovar;
3) Desde então inscreveram os filhos do casal no Colégio ..., no Porto;
4) As crianças praticavam basquetebol na cidade ...;
5) Desde 2023, o casal e crianças passaram a ter a base da sua vida em Portugal, deslocando-se à Alemanha apenas em visitas familiares ou por razões profissionais;
6) Em dezembro de 2024, a Requerida, com autorização do progenitor, viajou para a Alemanha e Países Baixos com os filhos;
7) A progenitora deveria ter regressado a Portugal no dia 2 de janeiro de 2025, o que não aconteceu;
8) Desde essa data, o pai deixou de conviver com os filhos e a mãe impede os contactos, não indicando a sua morada/paradeiro.
Não foram considerados factos não apurados.
*
O DIREITO.
De acordo com o disposto no art. 607.º do CPC, a sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar (nº2), seguindo-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final (nº3).
Todavia, na parte da aplicação do direito e segundo vem estabelecido no art. 608.º/1 do CPC, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.
Tais regras são aplicáveis à decisão sobre o recurso (art. 663.º/2 do CPC).
Em consequência, apesar da ordem diversa indicada nas alegações e nas conclusões, é justificado iniciar a apreciação do recurso pela questão, acima identificada sob a al. b), da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer e decidir a matéria em litígio.
*
I) Sobre a competência internacional dos tribunais portugueses.
Importa notar, previamente, que a questão da competência internacional dos tribunais portugueses não foi tratada na decisão recorrida.
Algo que é susceptível de colocar em crise a validade da inclusão dessa matéria no objecto do recurso, pois está há muito consolidado o entendimento de que, visando a reapreciação da decisão de primeira instância, quer de direito quer de facto, os recursos não se destinam a suscitar e decidir questões novas, que não tenham sido colocadas e apreciadas no tribunal recorrido.
Neste sentido, tem decidido a jurisprudência superior que “os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão, mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido.
E daí que “as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/10/2020, processo 4261/12.4TBBRG-A.G1.S1, relator Juiz Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, acessível na base de dados da DGSI em linha).
Tal como vem preconizando este Tribunal da Relação do Porto: “na medida em que os recursos visam por via da modificação de decisão antes proferida, reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, está vedado ao tribunal de recurso apreciar as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso” (cfr. Acórdão de 10/1/2022, processo nº725/17.1T8VNG.P1, relator Juíza Desembargadora Fátima Andrade, também disponível em dgsi.pt).
É verdade que, tendo sido dispensado o exercício do contraditório prévio à decisão recorrida, no âmbito da medida cautelar e provisória decretada, a recorrente não teve oportunidade de, antes dela, suscitar a questão relativa à presença deste pressuposto processual.
Em consequência, não pode dar-se por verificado um dos fundamentos materiais que está subjacente à proibição de invocação e conhecimento de questões novas no âmbito do recurso, o princípio da preclusão.
No entanto, o outro motivo substancial que justifica a consagração daquela proibição, assentando na finalidade associada aos recursos, que se destinam a reapreciar questões, com o propósito de impedir a supressão do duplo grau de jurisdição, tem manifesta aplicação ao caso dos autos, pois como se disse a decisão recorrida não apreciou a questão.
Acresce decisivamente que, em despacho autónomo, o tribunal recorrido, embora simultaneamente com a decisão de admissão do recurso, analisou especificamente o referido pressuposto processual, desatendendo à arguição da excepção da incompetência internacional do Juízo de Família e Menores de Estarreja do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.
O que fez na sequência do requerimento que a recorrente dirigiu a esse tribunal, com data de 3/3/2025, no qual, entre o mais, pediu a procedência da exceção dilatória da incompetência absoluta dos Tribunais portugueses, por entender que a apreciação do processo e o decretamento da decisão cautelar competiam em exclusivo à jurisdição alemã.
Daqui que seja forçoso concluir que, pretendendo que essa matéria fosse reapreciada por este Tribunal da Relação do Porto, seria do despacho que indeferiu a excepção que a recorrente deveria ter interposto recurso.
E como não o fez, o que resulta da análise do processo principal através do sistema informático de apoio à actividade dos tribunais, a referida decisão da primeira instância transitou em julgado, passando a dispor, nos termos do art. 620.º do CPC, de força obrigatória dentro do processo.
Está inviabilizada, por isso, apesar de ser de conhecimento oficioso, a apreciação da questão da incompetência internacional dos nossos tribunais.
Em benefício da transparência processual, porém, ainda se dirá, embora muito sumariamente, que nesta parte o sucesso do recurso sempre estaria impedido por força da aplicação dos arts. 7.º e 9.º do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de Junho, ou Regulamento Bruxelas II-B.
Com efeito, essa legislação europeia determina que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo é instaurado no tribunal (art. 7.º/1).
Entendendo-se, por outro lado, que “o conceito autónomo de residência habitual ou permanente, que envolve elementos objectivos e subjectivos, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponda ao local onde o menor tem organizada a vida familiar, social e escolar, com carácter de estabilidade e duração, demonstrativas da integração na sociedade local, e também a intenção dos titulares das responsabilidades parentais de se fixarem com a criança em certo estado, com carácter de permanência” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/2/2024, processo 3322/22.6T8LRA-A.C1-A.S1, relator Juíza Conselheira Isabel Salgado, disponível no referido endereço electrónico).
Ora, segundo se crê, a residência no nosso país desde 2023 e a integração das crianças em estabelecimento escolar português desde Setembro do mesmo ano, ou seja, durante o período de cerca de quinze meses, considerando a data em que elas foram retidas na Alemanha, e que a recorrente reconhece, constituem factores decisivos, face à estabilidade e permanência que evidenciam, para caracterizar a residência habitual daquelas no nosso país.
Para além disso, nos termos do art. 9.º do referido regulamento, sem prejuízo do artigo 10.º, em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro, o que depende, entre o mais, de nele ter estado a residir “durante, pelo menos, um ano” após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança.
Resultando ainda do número i) desse preceito legal que a dedução de um pedido de regresso junto das autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou onde se encontra retida não obsta, por si só, à competência internacional do Estado-Membro da residência habitual.
Por fim, ao contrário do que a recorrente pretende fazer crer, salvo o devido respeito, deve sublinhar-se que o art. 15.º do mencionado regulamento constitui apenas uma norma de extensão da competência, face às regras gerais, para a aplicação de medidas provisórias e cautelares em casos urgentes, à jurisdição de um Estado-Membro diversa do tribunal da residência.
E que não contende minimamente com a competência jurisdicional do país da residência habitual para o decretamento de semelhantes medidas ao abrigo das normas gerais dos arts. 7.º e segs. do Regulamento.
Improcedem, pois, as conclusões 5 a 18, 23 a 32 do recurso.
*
II) Sobre a inobservância do contraditório.
É sabido que o princípio do contraditório constitui trave mestra do nosso ordenamento jurídico processual.
De tal modo que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição (art. 3.º/1 do CPC), que não é lícito ao juiz, por regra, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (art. 3.º/3 do CPC) e que só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida (art. 3.º/2 do CPC).
As excepções ao dever de audiência prévia, no plano geral, são tipicamente as resultantes de determinados procedimentos cautelares, no âmbito dos quais o tribunal ouve o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência (art. 366.º/1 do CPC).
E no plano dos processos tutelares cíveis, o legislador replicou a norma sobre aquela excepção ao contraditório, empregando precisamente as mesmas expressões e determinando que o tribunal ouve as partes, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência (art. 28.º/4 do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro).
Ora, sobre a expressão eficácia, a doutrina processual esclarece que “terá a virtualidade de alertar o juiz para não atentar apenas nos efeitos jurídicos derivados do decretamento da providência, mas, acima de tudo, nos seus efeitos práticos que dependem, em grande parte (…), da urgência com que devem ser tomadas determinadas medidas e do efeito surpresa que, por vezes, é necessário para acautelar efectivamente os interesses do requerente”.
Devendo, por isso, “ser dispensada a audição [prévia] quando a medida requerida tenha carácter urgente e da audiência resulte demora susceptível de aumentar ou prolongar o dano” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., 3.ª ed., p. 189 e nota).
Da mesma forma, a doutrina especializada no direito dos menores explica que deve ser ponderado como factor de afastamento da audiência prévia das partes ou de uma delas “o risco sério de o exercício do contraditório provocar maiores danos do que benefícios, atendendo ao contexto em que a decisão será proferida e aos interesses que a mesma pretende acautelar”, que são, muito naturalmente, os interesses dos menores.
Para concluir que isso pressupõe sejam “conveniente e prudentemente analisados, por apego às regras de experiência comum e com recurso à chamada prova de primeira aparência, os elementos constantes do processo que revelem o risco inerente à audição das partes” (cfr. Pedro Raposo de Figueiredo, Regime Geral do Processo Tutelar Cível, Anotado, Coords. Cristina Araújo Dias, João Nuno Barros e Rossana Martingo Cruz, p. 252).
Volvendo ao caso dos autos, pensamos que estas orientações mostram-se plenamente aplicáveis, para tutela da eficácia das medidas adequadas à luz do direito material, numa situação de retenção internacional de crianças, operada à revelia e de forma totalmente surpreendente para um dos progenitores.
E na qual a alternativa à dispensa da audição prévia da contraparte consistia, simplesmente, na citação da requerida, para a conferência de pais, e que, para além de ter de realizar-se no estrangeiro, de acordo com as regras da cooperação judiciária internacional em matéria civil, enfrentaria ainda as dificuldades que com forte probabilidade emergiam, para o julgador, na fase da decisão, diante da actuação que tinha originado o processo, na definição da exacta localização da citanda no país onde se encontrava.
Neste quadro, à luz de máximas de experiência comum, é evidente, a nosso ver e salvo o devido respeito por outro entendimento, que o retardamento do processo e da aplicação das medidas materialmente adequadas redundaria, de acordo com o exigível juízo de prognose, no agravamento dos danos causados ao superior interesse dos menores em consequência da retenção ilícita, face ao que fora acordado entre os progenitores, no estrangeiro.
Na verdade, quanto mais tardasse a decisão, menor efeito e impacto teria na salvaguarda das crianças, bem como no seu regresso à casa de morada de família, na sua proximidade ao progenitor preterido e na retoma dos hábitos sociais e escolares adquiridos, pelo menos, nos últimos quinze meses.
Ao passo que os elementos dos autos já evidenciavam clareza suficiente para, em juízo de primeira aparência, como é próprio das medidas cautelares, fundadamente concluir pela exiguidade de benefícios no cumprimento prévio do contraditório perante semelhante retenção internacional.
Em consequência, é de concluir que a urgência necessária na aplicação da medida adequada, face a tão gravoso comportamento, não se compadecia com a natural delonga de uma citação no estrangeiro, à luz das regras da cooperação judiciária internacional em matéria civil e cuja dificuldade de concretização resultava ainda bastante indiciada pela atitude de surpreendente afastamento da requerida que esteve na base da instauração do processo.
Sendo certo que foi precisamente com base nestes motivos, no essencial, que o tribunal de primeira instância, no despacho de 12/2/2025, anterior ao recorrido, fundamentou a decisão de dar sem efeito a citação da requerida, considerando a impossibilidade de a citar em tempo útil e de acordo com as regras da cooperação judiciária internacional em matéria civil.
Perdendo toda a relevância, se bem pensamos, ante o exposto, o facto de, segundo alega a recorrente, o progenitor saber o paradeiro dela.
Com efeito, por muito que isso corresponda à verdade, o que não é possível saber, nesta fase, por falta de prova – que a requerida não ofereceu, sequer, no seu requerimento de de 3/3/2025, dirigido à primeira instância e posterior à decisão recorrida – muito dificilmente tal conhecimento do actual domicílio da requerida poderia auxiliar a concretização da citação com a especial celeridade exigível, sobretudo face à urgência na aplicação de medidas que a situação reclamava.
Improcede, por isso, a questão da inobservância do contraditório, da qual, aliás, nenhuma consequência foi extraída no recurso, ao menos expressamente, a respeito da regularidade da decisão recorrida.
*
III) Sobre a prossecução do superior interesse dos menores.
Nas conclusões 19 a 22 e 33 e segs., mas também noutras, a propósito do critério da residência habitual, empenha-se a recorrente em trazer aos autos extensa matéria factual que visou, sobretudo, colocar em causa a adequação das medidas decretadas ao superior interesse dos menores.
A qual, no entanto, por não ter sido verificada, ou julgada provada ou não provada, em primeira instância, tem de merecer enquadramento a título de “factos novos”, alegados perante o tribunal de recurso de forma inovadora e sem discussão prévia no âmbito da decisão recorrida.
Assim, entre o mais, invoca a recorrente que a vinda para Portugal foi pensada com carácter temporário e como a última tentativa de reaproximar o casal, face a constantes desentendimentos, fruto de relações extraconjugais do recorrido, e que, no dia da viagem para a Alemanha, discutiram sobre contas e finanças, gritando ele para ela, em tom agressivo, que “Odeio-te tanto que era capaz de te atirar pela janela!”, “Se não entregares as cartas pessoalmente aos inquilinos de ..., ponho-te na rua!”.
Mais, afirma que o recorrido dirigiu-se à casa do irmão da recorrente, para a atemorizar e contactar com os menores “à força”, que foram vistos vários veículos a “rondar” a casa onde estão alojados, o que até reportou aos órgãos de polícia criminal, bem assim, que o requerente contactou a escola onde a requerida inscreveu os meninos, na Alemanha, a fim de impossibilitar que eles a frequentassem, tal como fez nas consultas médicas de desenvolvimento dos menores, previstas pelo planeamento familiar que vigora no sistema de saúde alemão, agendadas para Fevereiro.
E ainda que a sua prioridade sempre foi proteger as crianças e garantir um ambiente estável para o seu crescimento, fomentando a relação com o pai até ao momento em que as comunicações começaram a revelar-se perturbadoras, e que a postura do Recorrido tem vindo a causar um tremendo impacto negativo nos menores, que ficam muito confusos e assustados com a postura agressiva e insistente do requerente.
Todavia, também aqui, a alegação da recorrente não resiste ao critério da novidade das questões e que, estando presente, impede o seu conhecimento pelo tribunal ad quem.
Na realidade, tais factos não podem ser atendidos por este Tribunal da Relação no âmbito do recurso, uma vez que não foram alegados nem debatidos em primeira instância, nem tão pouco a recorrente impugnou a matéria de facto provada nos termos exigidos pelo art. 640.º do CPC.
Pelo menos é isso que resulta da circunstância de não ter especificado que pontos foram incorrectamente julgados, nem quais os meios probatórios que impunham decisão diversa, e muito menos quais seriam as respostas acertadas e justificadas para a matéria relevante, de modo que, mesmo que impugnação existisse, sempre teria ela de ser rejeitada, mercê do disposto no nº1 daquele preceito legal.
Sucede, pois, como assinala a doutrina e a jurisprudência, que no âmbito da inviabilidade de conhecimento de questões novas no recurso, estão incluídas as temáticas da prova e dos factos, pois “a fase dos recursos não é naturalmente ajustada à apresentação ou produção de novos meios de prova, antes à reapreciação daqueles que tenham sido anteriormente apresentados e “não poderá deixar de ser ponderado que o ónus de proposição dos meios de prova se deve materializar também através da sua apresentação em momentos processualmente ajustados, com previsão de efeitos preclusivos que não podem ser ultrapassados pela livre iniciativa da parte (cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 337 e 344).
Consequentemente, não pode otribunal de recurso reapreciar a prova produzida com vista a aquilatar se os factos novos alegados pela recorrente só agora no recurso e não no momento processual adequado foram cabalmente demonstrados” (cfr., embora o destacado seja nosso, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/1/2022 acima citado).
Acresce que a impropriedade e total ineficácia da alegação factual que a recorrente empreendeu resultam ainda do meio de reacção por ela escolhido para impugnar a decisão recorrida.
A este respeito, dispõe o art. 28.º/5 do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro, que quando as partes não tiverem sido ouvidas antes do decretamento da providência, é-lhes lícito, em alternativa, na sequência da notificação da decisão que a decretou:
a) Recorrer, nos termos gerais, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida;
b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução.
Algo que traduz, novamente, repetição do regime previsto para a dispensa do contraditório prévio nos procedimentos cautelares (e analogamente ao que sucede ainda nos embargos à insolvência), visto que o art. 372.º do CPC, nesse âmbito, prevê justamente idênticos meios de impugnação.
Ora, em atenção ao teor literal das referidas normas e à lógica que preside à sua previsão, é manifesto que as partes não podem lançar mão do recurso para invocar factos novos e discutir meios de prova não considerados em primeira instância e cuja sede própria de invocação e discussão seria a oposição, prevista na lei, expressamente, em alternativa à interposição do recurso.
Como refere a doutrina, “confrontado com uma decisão cautelar proferida sem audição contraditória, o requerido é colocado perante uma encruzilhada, cabendo-lhe optar por um dos meios de defesa colocados ao seu alcance” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 275).
Em consequência, a interposição do recurso fica reservada ao caso de o requerido não ouvido previamente pretender impugnar a decisão com base no seu mérito ou na sua validade, isto é, “apenas para os casos em que, face aos elementos apurados, as partes entendam que a providência não devia ter sido decretada”, no que cabe “a impugnação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, bem como a invocação de nulidades, nos termos gerais” (cfr. Pedro Raposo de Figueiredo, Ob. cit., p. 258).
Assim sendo, toda a factualidade nova oferecida pela recorrente tem de considerar-se manifestamente irrelevante para a decisão do recurso e para a aferição da correspondência das medidas decretadas com o superior interesse dos menores, filhos de requerente e requerida.
Ao invés, o que é relevante para semelhante aferição é a matéria provada sem impugnação na decisão recorrida e, dentre esta, em especial aquela a que se referem os pontos que a recorrente demonstra aceitar.
Ou seja, que desde 2023 o casal de progenitores reside em Portugal com os menores, que foram logo nesse ano inscritos no Colégio ..., no Porto, para além de praticarem basquetebol na cidade ..., e deslocando-se à Alemanha apenas em visitas familiares ou por razões profissionais.
Até que, na mais recente viagem para a Alemanha e Países Baixos com os filhos, e apesar de estar planeado o regresso a Portugal para o dia 2 de janeiro de 2025, a progenitora deslocou-se de novo, inesperadamente, para a sua terra natal, furtando-se ao cumprimento do que havia acordado e, desde essa data, o requerente deixou de conviver pessoalmente com os filhos e cujos contactos, inclusivamente telefónicos, mesmo segundo a versão aduzida pela recorrente, estão agora impedidos “sem supervisão”.
O mesmo é dizer, agora na perspectiva da maior relevância que é a dos menores, que estes foram imprevista e abruptamente afastados do seu padrão de vida habitual, do contacto pessoal com um dos progenitores, da residência naquela que foi a sua casa de morada de família durante, pelo menos, os últimos quinze meses e da frequência da escola que no mesmo período foi a sua, em consequência da sua permanência forçada em país estrangeiro.
E foi esta a situação factual relevante, típica da retenção ilícita de crianças no plano internacional, que a decisão recorrida teve de enfrentar e, segundo pensamos, foi ela que acertadamente visou superar, através das medidas que decretou, inteiramente dirigidas a acautelar o superior interesse das crianças.
Na verdade, segundo o art. 2.º/11 do Regulamento Bruxelas II-B, existe deslocação ou retenção ilícitas quando: a) viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor nos termos do direito do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; e
b) no momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção.
Neste contexto, é evidente que a conduta da requerida, nos termos que ficaram apurados, reunindo todos os requisitos necessários para configurar retenção internacional, e enquadrada expressamente, nos textos legais europeus, como “ilícita”, exigia toda a atenção do tribunal recorrido e a adopção de medidas urgentes susceptíveis de obstar à sua continuação.
Por outro lado, sabe-se que “o interesse do menor é um conceito jurídico indeterminado”, adoptado no pressuposto de “que um texto legal não pode jamais apreender o fenómeno familiar na sua infinita variedade e imensa complexidade”, “dotado de uma especial expressividade”, “de força apelativa e tendência humanizante”, que só adquire eficácia “em cada caso concreto” (cfr. M. Clara Sottomayor, Regulação do Exercício do Poder Paternal nos casos de Divórcio, 3.ª ed., pp. 25-6).
Ora, visto o caso da perspectiva da maior relevância que é a das crianças, acima detalhada, e sendo sobretudo por força dela que a retenção internacional é considerada ilícita, face aos efeitos nocivos que nelas é capaz de desencadear, também é manifesto que a decisão recorrida, no momento em que foi proferida e presentemente, obstando à subsistência daqueles efeitos, corresponde à defesa do superior interesse dos menores a que respeitam os autos.
É possível que, com o decurso do tempo, o advir de circunstâncias novas e mercê dos meios de prova que se produzam com o normal desenvolvimento dos autos, venha a justificar-se alguma alteração ao regime agora estabelecido, quer no âmbito das decisões provisórias, nos termos do art. 28.º do RGPTC, quer na sentença de regulação das responsabilidades parentais a que alude o art. 40.º do mesmo diploma legal.
Neste momento, porém, segundo se crê, atento o que acima ficou dito, o regime decretado deve ser integralmente mantido.
Donde resulta a improcedência das demais conclusões do recurso.
*
DECISÃO:
Com os fundamentos expostos, nega-se provimento à apelação e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, atento o seu decaimento (art. 527.º do CPC).
*
SUMÁRIO
………………………………
………………………………
………………………………

(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, d. s. (04/06/2025)
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca