REFORMA DA SENTENÇA
LAPSO MANIFESTO
Sumário

O lapso manifesto, a que se refere o artigo 614, n.º 1 do CPC, tem que ser evidente, inequívoco e, sem qualquer outra prova, imediata e objetivamente percetível da leitura do ato processual.

Texto Integral

Processo n.º 7222/23.4T8PRT.P1

Recorrente – AA

Recorridas – BB e CC

Relator – José Eusébio Almeida

Adjuntos – Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo e Teresa Pinto da Silva

Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório

BB e CC instauraram a presente ação contra AA e pediram a sua condenação “a) A reconhecer que as Autoras são donas e legitimas comproprietárias da fração identificada pela letra «G», destinada à habitação, correspondente ao segundo andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua ... com entrada pelo nº ...- na freguesia ... e concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...; b) A restituir às Autoras a identificada fração, livre e devoluta de pessoas e bens; c) A indemnizar as autoras no montante de 10.800,00€ (dez mil e oitocentos euros) correspondente às rendas que as mesmas deixaram de auferir, desde a data do óbito da inquilina (5/08/2022) até à presente data, acrescido dos respetivos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento; d) A indemnizar as Autoras das rendas vincendas que as mesmas aufeririam no montante mensal de 1.200,00€ (mil e duzentos euros), até a entrega efetiva do imóvel, acrescido dos respetivos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento”.

Alegaram serem legítimas comproprietárias do imóvel que identificam e que o mesmo foi dado de arrendamento ao pai do réu, em 1973; o arrendamento transmitiu-se, na sequência de divórcio, para a mãe do réu, que faleceu em 2022. Entendem que o arrendamento já não se transmitiu ao réu, mas este não entregou o locado, causando prejuízos às autoras.

O réu contestou. Em síntese, sustenta que o arrendamento transmitiu-se-lhe. Pretendeu a improcedência da ação e o reconhecimento dessa transmissão.

Notificadas para se pronunciarem sobre a matéria de exceção, as autoras vieram sustentar a sua improcedência.

Foi designada uma tentativa de conciliação, que teve lugar a 19.12.2023.

Dessa tentativa de conciliação, que culminou em transação foi lavrada a seguinte ata:

ATA DE TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO

(...)

PRESENTES:

Ilustre Mandatária das Autoras: Dra. DD

Ilustre Mandatário do Réu: Dr. A. EE

Réu: AA


*

Declarada aberta a diligência, pela Mm.ª Sra. Juiz foi tentada a conciliação das partes ao abrigo do disposto no art. 594.º do NCPC, tendo as partes requerido tempo para conversações.

Após, pelos ilustres mandatários das partes foi pedida a palavra e, sendo-lhes concedida, no uso da mesma, disseram que pretendem pôr termo ao presente processo, mediante transação, cujo clausulado é o seguinte e que reciprocamente aceitam:

TRANSACÇÃO

CLÁUSULA PRIMEIRA

Autoras e Réu acordam em manter o arrendamento relativo ao prédio identificado no artigo 1.º da Petição Inicial, as primeiras enquanto proprietárias/senhorias e o segundo enquanto arrendatário deste contrato, pelo período de 5 anos, retroagindo o seu início a 6 de agosto de 2022.

CLÁUSULA SEGUNDA

O valor da renda será de 600€ mensais, sujeitos a todos os aumentos legais, iniciando- se o seu pagamento até ao dia 8 do mês de janeiro de 2024.

CLÁUSULA TERCEIRA

Custas em dívida a juízo em partes iguais, prescindindo ambas as partes em custas a juízo.

Seguidamente, pela Mm.ª Sra. Juiz foi proferida a seguinte:

SENTENÇA

Na presente ação de processo comum que CC, residente na Rua ...., em ... - ... e BB, residente na Rua ..., em Lisboa, movem contra AA, residente na Rua ..., ..., ..., no Porto, atento o seu objeto e as partes intervenientes, homologo por sentença a transação que antecede, condenando as partes a cumprir o acordado nos seus precisos termos (arts. 283.º, n.º 3, 284.º e 290.º do CPC e 1248.º e ss. do CC).

Custas nos termos acordados.

Registe eletronicamente e notifique, sendo o Réu nos termos e para os efeitos do art. 291.º, n.º 3 do CPC.

De imediato, foram todos os presentes notificados da sentença que antecede, da qual disseram ficar bem cientes.

Para constar se lavrou a presente ata que, depois de lida e achada conforme, é assinada, tendo a diligência encerrado pelas 10:45 horas.

O réu veio a ser notificado pessoalmente [Fica notificado, relativamente ao processo supra identificado, da transação em ata e sentença homologatória, de que se juntam cópias. Fica ainda advertido de que o ato será havido como ratificado e suprida a nulidade proveniente da irregularidade do mandato (nomeadamente a falta de poderes do mandatário judicial que o representa), nada dizendo no prazo de 10 dias. Se declarar que não ratifica o ato do mandatário, este não produzirá quanto a si qualquer efeito] com a data de 20.12.2023, tendo assinado o respetivo aviso de receção a 23.12.2023.

O aviso de receção foi devolvido ao tribunal, e junto ao processo a 8.01.2024, mas antes, a 29.12.2023, o réu remeteu aos autos um email e um anexo onde, conforme aí refere, expressa “o meu desacordo e não aceitação”. O anexo ao email, tendo dado entrada a 3.01.2024, consta de fls. 262 (processo eletrónico – p.e.), identifica o processo e, em síntese, refere: “(...) para expressar o meu desacordo em relação ao acordo recentemente firmado entre os advogados envolvidos no meu caso. (...) um acordo que não reflete com precisão a minha capacidade financeira. (...) Embora não possa aceitar o acordo atual, estou aberto a continuar as discussões a fim de alcançarmos um entendimento mais realista e que seja viável para ambas as partes (...)”.

Em data anterior, a 27.12.2023, o mandatário do réu veio renunciar ao mandato.

A 9.01.2024 foi proferido despacho, pronunciando-se (apenas) sobre o requerimento de renúncia: “Notifique a pessoa do R. mandante da renúncia de mandato para constituir novo mandatário no prazo de 20 dias, sob pena de, não o fazendo, o processo seguir os seus termos, aproveitando-se os atos anteriormente praticados. Após, abra novamente conclusão”.

Sem que, entretanto, haja sido aberta conclusão, as autoras, a 14.01.2024 vieram requerer que “se digne dar sem efeito a notificação feita ao Réu nos termos e para os efeitos do Art. 291.º, n.º 3 do CPC”. Para tanto alegaram, em síntese: “No dia 19/12/2023, realizou-se a diligência de conciliação das partes, estando presentes a mandatária das autoras com poderes especiais para o ato, bem com o mandatário do réu acompanhado pelo próprio réu, AA, conforme se pode verificar da própria Ata, mais concretamente nos “PRESENTES”. No âmbito dessa diligência Autoras e Réu chegaram a acordo (...) De salientar que, consta expressamente da ata que todos os presentes foram notificados da sentença que antecede e disseram ficar bem cientes da mesma. Sucede que, com a notificação datada de 10/01/2024, a que se responde, as Autoras constataram que, certamente por erro manifesto, consta dessa ata que o réu seja notificado nos termos e para os efeitos do Art. 291.º, n.º 3 do CPC. (...) não há margem para dúvida que existe um lapso manifesto na referida Ata homologada por sentença ao fazer constar que o Réu fosse notificado nos termos e para os efeitos do Art. 291.º, n.º 3 do CPC. Mais se refira que o Réu ao enviar o email datado de 29/12/2023 com a carta anexa a expressar o seu desacordo e não aceitação, está a agir com dolo, uma vez que no decurso das negociações para se chegar a acordo e aquando da homologação da transação, nunca referiu dificuldades financeiras. (....) requer-se que nos termos do Art. 614.º, n.º 1 do CPC, se digne corrigir a referida sentença homologatória da ata de tentativa de conciliação, uma vez que se verifica a existência de lapso manifesto, conforme já referido”.

Depois de se determinar que os autos aguardassem o prazo do contraditório (despacho de 18.01.2024), o réu enviou ao processo, a 4.02.2024, comprovativo de haver requerido, a 29.12.2023, proteção jurídica. O tribunal, em seguida e sucessivamente, solicitou à Segurança Social informação sobre a decisão relativa ao apoio judiciário, e sua modalidade (despacho de 19.02.2024, insistência de 7.03.2024) e a 21.03.2024, a Segurança Social informou que o pedido do réu havia sido indeferido, a 29.02.2024, mas o mesmo já havia “dado entrada de uma impugnação”. O tribunal pediu informação sobre o recurso de impugnação do apoio (8.05.2024) e insistiu (17.06.2024) e voltou a insistir (27.09.2024) e novamente (27.11.2024), tendo sido apensados, a 16.12.2024, os autos do recurso de impugnação do apoio judiciário, improcedente.

A 30.01.2025, o tribunal pronunciou-se sobre o requerimento das autoras, feito em 14 de janeiro do ano anterior. E proferiu o seguinte despacho (objeto do recurso), que, com síntese, transcrevemos e sublinhamos:

Requerimento das Autoras de 14/01/2024 (Ref. 37823066):

1. Vêm as Autoras requerer a retificação da sentença homologatória da ata de tentativa de conciliação de 19/12/2023, invocando a existência de lapso manifesto e consequentemente que seja dada sem efeito a notificação feita ao Réu nos termos e para os efeitos do Art. 291.º n.º 3 do CPC. Tendo o Réu sido notificado da renúncia ao mandato do seu então Advogado e não tendo constituído novo Advogado no prazo de 20 dias de que dispunha para o efeito, nos termos da al. b) do n.º 3 do artigo 47.º do CPC o presente processo prossegue os seus termos, aproveitando-se os atos anteriormente praticados, sendo certo que a presente causa é de constituição obrigatória de Advogado, apenas podendo ser apresentados por Advogado requerimentos em que levantem questões de direito, (cfr. artigo 40.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 a contrario, do CPC). Vejamos.

2. Nos termos do disposto no artigo 614.º do CPC (...) O que necessariamente implica concluir que, não tendo havido recurso a sentença homologatória proferida nestes autos ainda pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento das autoras, quanto às inexatidões devidas a lapso manifesto de que padeça. Está, assim, apenas em causa a retificação ou correção de um mero erro exclusivamente material, que, em regra, não só é manifesto ou patente, como a sua retificação não levanta dificuldades de maior, pois com a mesma não existe alteração de julgamento, antes mera reposição da correspondência da vontade real do declarante com a vontade erroneamente declarada. (...)

3. In casu, está em causa saber se se verificou um lapso manifesto na sentença homologatória proferida ao ter sido aposta na parte final da sentença homologatória proferida “sendo o Réu nos termos e para os efeitos do art.291.º, n.º 3, do CPC”.

Está em causa a ata do dia 19/12/2023, referente a uma tentativa de conciliação. Lida a ata, constata-se que estiveram presentes a mandatária das autoras com poderes especiais para o ato, bem com o mandatário do réu e o próprio réu, AA, conforme se pode verificar da listagem dos “PRESENTES” constante da própria Ata. Depois consta da ata que “declarada aberta a diligência, pela Mma Sra. Juiz foi tentada a conciliação das partes ao abrigo do disposto no art. 594.º do NCPC, tendo as partes requerido tempo [para] conversações.” Entre as partes conta-se necessariamente o Réu que estava pessoalmente presente. Após tais conversações, “pelos ilustres mandatários das partes foi pedida a palavra e, sendo-lhes concedida, no uso da mesma, disseram que pretendem pôr termo ao presente processo, mediante transação, cujo clausulado é o seguinte e que reciprocamente aceitam”, seguindo-se as três cláusulas do acordo. Na sentença homologatória proferida tomou-se em atenção “as partes intervenientes”, onde se inclui necessariamente o Réu, apenas se tendo ficado a dever a uma desatenção ou a um engano ocorrido na operação de redação da ata, a referência que a seguir é feita ao artigo 291.º, n.º 3, do CPC. É que estando presente pessoalmente o réu não se compreende que o mesmo não tivesse sido chamado para, caso houvesse necessidade, ratificar a falta de poderes especiais do seu mandatário, não fazendo qualquer sentido que, estando o réu pessoalmente presente fosse determinada a notificação por correio ao mesmo réu, quando o mesmo estava presente na diligência e no tribunal. Deste modo, impõe-se deferir ao requerido pelas autoras e retificar a ata em conformidade, para além de terem que ser dados sem efeito os atos que foram praticados no exercício e execução do aludido artigo 291.º, n.º 3, do CPC”.

E decidiu-se: “Pelo exposto, nos termos do disposto nos artigos 614.º, n.ºs 1 e 3 e 195.º, ambos do CPC, defiro ao requerido pelas Autora no seu requerimento em epígrafe e em consequência: a) Determino a retificação da ata da tentativa de conciliação datada de 19 de dezembro de 2023, pelas 9:15 horas, junta a fls. 38 a 39 e constante da Ref.ª 455147025 e, nessa conformidade, determino que sejam eliminados da aludida ata os seguintes dizeres, constantes das linhas 23 e 24 da pág.2 (fls.38 v.) da aludida ata: “sendo o Réu nos termos e para os efeitos do art. 291.º, n.º 3, do CPC”. b) Em consequência da retificação ordenada em a), dou sem efeito a notificação efetuada para o Réu da sentença em 20/12/2023 (Ref.ª 455198468), os subsequentes requerimento do Réu de 03/01/2024 (Ref.ª 37704000) e e-mail do Réu de 03/01/2024 (Ref.ª 37705281) e o correspondente aviso de receção junto em 08/01/2024 (Ref.ª 37747966)”.

A 31.01.2025, o réu enviou email ao tribunal, anexando uma carta onde vem discordar da retificação da ata. Refere, em síntese, que não esteve presente, que não aceitou o acordo e que a decisão de retificação contém vícios, que merecem ser revistos.

O tribunal, por despacho de 11.02.2025, não admitiu o “recurso”: “Pelo exposto, não se mostrando o requerimento do Réu em epígrafe em que o mesmo pretende interpor recurso do despacho anteriormente proferido, subscrito por advogado que o Réu tenha constituído, nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, a contrario, do CPC não admito o recurso interposto, por tal ato processual apenas poder ser praticado por advogado por a presente acção ser de constituição obrigatória de advogado”.

O ré invocou ter (novamente) requerido o benefício do apoio e patrocínio, mas juntou procuração, datada de 18.02.2025 e, a 19.02.2025, interpôs recurso.

II – Do Recurso

O réu pretende que seja revogado o despacho em crise, por violação do artigo 614 do Código de Processo Civil (CPC) e formula as seguintes Conclusões:

A - O recurso é interposto em razão da não concordância com o despacho proferido em 30.01.2025 que deferiu o requerido pelas autoras no seu requerimento de 14.01.2024.

B - No âmbito do qual foi determinada a retificação da ata da tentativa de conciliação e em consequência determinou também a eliminação da expressão “Sendo o Réu nos termos e para os efeitos do art. 291.º n.º3, do CPC”, mais determinou o dar sem efeito a notificação do recorrente realizada ao abrigo do referido artigo e o seu requerimento de resposta e e-mail.

C - Por, em suma, ter concluído que tal menção (“Sendo o Réu nos termos e para os efeitos do art. 291.º, n.º 3, do CPC.”) se deveu a mero lapso/erro manifesto da sentença homologatória proferida;

D - Pois, estando o recorrente presente em tal diligência, não é compreensível que não tenha sido chamado para ratificar a falta de poderes especiais do seu mandatário;

E - Não fazendo então sentido que tenha sido determinada a sua notificação por correio;

F - E, em consequência, deferiu o requerido pelas autoras e ordenou a retificação da ata ao abrigo do disposto no artigo 614 do CPC.

G - O recorrente entende que o despacho objeto do presente recurso viola ostensivamente a previsão e fim do artigo 614 do CPC.

H - Pois, a indicação constante da sentença homologatória “sendo o Réu nos termos e para os efeitos do artigo 291.º, n.º 3 do CPC” não se verifica por erro ou lapso manifesto e não integra nenhuma das outras possibilidades constantes de tal disposição legal.

I - Da ata em questão consta que, na referida diligência, estiveram presentes a Ilustre Mandatária das AA, o Ilustre Mandatário do R. e o réu (recorrente);

J - O facto de o recorrente estar presente significa única e simplesmente que não faltou, nada mais do que isso;

K - Consta ainda: “Declarada aberta a diligência, pela Mma. Sra. Juiz foi tentada a conciliação das partes ao abrigo do disposto no art. 594.º do NCPC, tendo as partes requerido tempo para conversações.”

L - Como habitualmente, tais conversações foram tidas apenas entre os Mandatários das partes,

M - Sendo que, quando o recorrente foi chamado à sala de audiências e o seu Ilustre Mandatário lhe transmitiu as diretrizes de uma possível transação, expressou perante todos os presentes na referida sala, incluindo a Meritíssima Juiz que presidia a diligência, Ilustres Mandatários e Senhor Oficial de Justiça, o seu total desacordo com tais diretrizes,

N - Consta ainda da referida ata que: “Após, pelos ilustres mandatários das partes foi pedida a palavra e, sendo-lhes concedida, no uso da mesma, disseram que pretendem pôr termo ao presente processo, mediante transação, cujo clausulado é o seguinte e que reciprocamente aceitam:”.

O - Do citado parágrafo é possível apenas extrair que a palavra foi pedida pelos mandatários das partes e que estes que ditaram o conteúdo da transação, aceitando-o reciprocamente.

P - Não constando da referida ata qualquer referência à presença, em tal momento, do recorrente na sala de audiência,

Q - Pois, este já se encontrava no seu exterior.

R - Em face do constante da referida ata não é admissível que, como sucedeu no despacho recorrido, se possa concluir que o facto de o recorrente estar presente no início da diligência (chamada pelo Sr. Oficial de Justiça), ainda que no exterior da sala de audiências, consubstancie a sua concordância com o que foi determinado no interior da referida sala pelo seu Ilustre Mandatário sem poderes para o efeito;

S - Tal conclusão errada apenas decorre do facto de o Meritíssimo Juiz não ter tido conhecimento direto e pessoal do desenrolar da diligência em questão,

T - Por não a ter presidido,

U - Desconhecendo se o recorrente foi ouvido a respeito do conteúdo da transação,

V - Se o recorrente estava no interior ou no exterior da sala de audiências,

W - Se o tribunal lhe leu o acordo,

X - Se lhe foi perguntado se concordava com os termos exarados pelo seu mandatário.

Y - Pois, nenhuma dessas menções consta da ata onde foi lavrada a transação homologada por sentença.

Z - Não se mostra suficiente que conste na ata que a parte esteve presente para que se considere que deu o seu acordo à transação que foi homologada,

AA - É necessário que da mesma conste expressamente que a parte cujo mandatário não tinha poderes para o ato concordava com os termos do negócio jurídico.

BB - Esclareça-se que a referida diligência foi presidida pela Meritíssima Juiz de Direito (...)[1].

CC - A qual, em cumprimento da obrigação de fiscalização da transação, no que respeita

à regularidade e a validade da mesma, bem como a legitimidade das partes nela intervenientes,

DD - Conhecedora da falta de poderes do Ilustre Mandatário do recorrente, em conformidade com o disposto no artigo 45.º, n.º 2, do CPC, e

EE - A fim de obviar a nulidade da sentença homologatória decorrente de tal facto,

FF - Fez, corretamente, constar da sentença homologatória a determinação da notificação do recorrente para o fim previsto no artigo 291, n.º 3 do CPC,

GG - No presente caso a sentença homologatória da transação é de tal forma clara que não pode de forma alguma permitir que se interprete da forma que sucedeu no despacho de que ora se recorre,

HH - Concluindo que uma menção tão relevante como a obrigação de notificar o recorrente abrigo do disposto no artigo 291, n.º 3 do CPC se deveu a erro ou lapso ostensivo, e

II - Determinando a sua eliminação ao abrigo do disposto no artigo 614 do CPC,

JJ - Extravasando largamente a previsão e fim de tal disposição legal.

KK - Por tal razão o despacho objeto de recurso viola o disposto no artigo 614 do CPC, pelo que deverá ser revogado.

As autoras responderam ao recurso. Defendendo a sua improcedência, apresentam as seguintes Conclusões:

(…)

O recurso foi recebido em primeira instância [Por ser legal e tempestivo e por ser interposto por parte com legitimidade processual para tanto, tendo em conta o requerimento de apoio judiciário apresentado pelo recorrente e considerando-se o despacho proferido como complemento e parte integrante da sentença homologatória proferida nos autos, admito o recurso interposto o qual é de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, (artigos 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.º 1, todos do C.P.C.)]. Neste Tribunal da Relação do Porto, manteve-se a sua admissão – ainda que com fundamento parcialmente distinto – e o pertinente efeito.

Ponderando o objeto do recurso, dispensaram-se os Vistos.

O objeto do recurso, tendo em conta as conclusões do apelante, consiste em saber se o despacho retificativo da ata deve ser revogado, uma vez que viola o disposto no artigo 614 do CPC.

III – Fundamentação

III.I – Fundamentação de facto

Considerando a transcrição, além do mais, da ata de 19.12.2023, do requerimento das apeladas e da decisão objeto de recurso, entendemos que o relatório antecedente dispõe de todos os elementos fácticos que permitem a apreciação do objeto do recurso.

III.II – Fundamentação de Direito

Uma primeira nota serve apenas para se confirmar, agora nesta sede coletiva, e depois de despacho do relator nesse sentido, a admissibilidade e admissão do recurso interposto: não obstante a invocação, pelas apeladas do imerecimento do benefício do apoio judiciário pelo recorrente, o certo é que este, aquando da interposição do recurso demonstrou haver requerido esse benefício e não compete a este tribunal de recurso apreciar da bondade dessa pretensão, competência essa da Segurança Social, ou do seu reflexo na admissão do recurso, expressamente deferida pelo tribunal recorrido. Por outro lado, o recurso é de admitir, atento o disposto no artigo 644, n.º 2, alínea g) do CPC.

Prosseguindo.

Com o requerimento que deu origem à prolação do despacho aqui sob censura, as apeladas vieram pôr em causa a (redação da) ata da tentativa de conciliação, que teve lugar a 19.12.2023.

Convém dizer, antes de mais, que as atas de julgamento ou de qualquer diligência judicial, como é o caso, são documentos públicos e autênticos, fazendo prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público (artigos 369/371 do Código Civil – CC). E se, só com base na falsidade do documento se pode ilidir a sua força probatória, a jurisprudência tem admitido a possibilidade de se requerer a retificação da ata, sem recurso imediato à arguição da falsidade [Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.05.2017, Relatora, Desembargadora Lina Castro Baptista, dgsi]. Note-se, aliás, que o n.º 3 do artigo 372 do CC consagra que, “Se a falsidade for evidente em face dos sinais exteriores do documento, pode o tribunal, oficiosamente, declará-lo falso”.

No entanto, no caso presente, não é a eventual falsidade da ata que se coloca, ou que as apeladas e o tribunal recorrido colocaram: está em causa, isso sim, o disposto no artigo 614, n.º 1 do CPC, na possibilidade que confere e, nesta sede se questiona, de retificação/correção da sentença (ou despacho – artigo 613, n.º 3 do CPC) quando “contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”.

Em rigor, a sentença proferida, sentença essa que homologou a transação, não padece de qualquer lapso. Efetivamente, a sentença homologatória da transação – que é um contrato celebrado entre as partes – só aprecia a validade dessa transação, atendendo ao seu objeto e à qualidade dos intervenientes (artigo 290, n.º 3 e n.º 4 do CPC) não se pronunciando, sequer, sobre o objeto material da lide que, com a transação homologada, e transitada, se extingue.

Mas, conforme consta da ata, além da sentença, o tribunal proferiu um despacho, determinando a notificação do réu (ora recorrente) “nos termos e para os efeitos do artigo 291, n.º 3 do CPC”. Este preceito consubstancia a possibilidade legal e excecional de ratificação da transação e supressão da sua nulidade, quando haja irregularidade do mandato ou falta de poderes do mandatário, concretamente, falta de poderes para transigir em nome (representação) do mandante.

Ora, no despacho recorrido, ao abrigo do citado artigo 614, n.º 1 do CPC, veio a dar-se sem efeito aquele despacho, e os atos dele subsequentes, precisamente porque se considerou ter havido um lapso manifesto. A fundamentação para tanto, que o tribunal recorrido dá por evidente, pode resumir-se no seguinte: O réu, ainda que representado por mandatário sem poderes especiais, esteve presente; logo, porque presente, não tinha que ser notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 291, n.º 3 do CPC.

Sucede que o lapso previsto no artigo 614, n.º 1 do CPC tem que ser manifesto, evidente, e resultar objetivamente do ato em causa, ou seja, no caso, da ata da tentativa de conciliação. E assim sucede?

Entendemos, também manifestamente, que não. Note-se, antes do mais, que sendo necessário resultar do documento a natureza manifesta do lapso, não há que atender – nem haveria lugar a ela nesta sede – a qualquer (outra) versão fáctica ou prova.

Ora o fundamento da decisão recorrida, o entendimento e a conclusão que retira da ata é reversível, ou prova de mais. Lendo a ata, tanto se pode dizer/concluir que há lapso na prolação do despacho que ordena a notificação pessoal do recorrente, porque o recorrente estava presente, como se pode dizer que há lapso ao ter-se dado como presente o recorrente, pois determinou-se a sua notificação pessoal. Não resulta, portanto, da ata, objetivamente, qual o lapso, e se lapso houve.

Se lapso houve, pois outras conclusões podem retirar-se da ata: O réu foi dado como presente no início da tentativa de conciliação, mas ausentou-se; o réu não estava presente quando a transação foi ditada pelos mandatários (a ata refere expressamente os mandatários e não o réu) ou até que o tribunal ficou com dúvida sobre a real vontade do réu e quis acautelar a validade da transação.

As considerações anteriores, hipóteses apenas, servem só para evidenciar que não há lapso manifesto na prolação do despacho que determinou a notificação pessoal do recorrente e, por isso, não é aplicável o disposto no artigo 614 do CPC.

Tanto basta para se considerar procedente o recurso. Ainda se acrescenta, no entanto, que o despacho que a decisão anulou tem um sentido validante da transação que, de outro modo, seria nula; a ata revela que tal despacho foi proferido, cumprido e, mais, antes de as recorridas invocarem o lapso e o disposto no artigo 614 do CPC, o réu, notificado pessoalmente, veio afirmar o seu desacordo em relação à transação. Na ordem cronológica dos atos processuais, o tribunal haveria de ter apreciado primeiramente a declaração do réu relativa à transação, mesmo que concluísse – por efeito da aplicação oficiosa do artigo 614 do CPC – em sentido semelhante ao veio a concluir. Sentido esse, no entanto, e como já se disse, com o qual, e ressalvado o respeito devido, não se concorda. E ainda se diga, que se não vê qual o interesse substantivo da manutenção de uma transação perante a oposição de uma das partes que foi efetiva e pessoalmente notificada com a cominação prevista no artigo 291, n.º 3 do CPC.

Em suma, o tribunal recorrido não podia anular um despacho que já tinha produzido os seus efeitos[2], no pressuposto de um manifesto lapso que, da leitura objetiva da ata, não se deteta.

Assim, revoga-se o despacho apelado, devendo os autos prosseguirem termos com a apreciação da declaração do recorrente, subsequente à sua notificação nos termos e para os efeitos do artigo 291, n.º 3 do CPC.

Atenta a procedência do recurso, as custas são devidas pelas recorridas – artigo 527 do CPC.

IV – Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, em conformidade, revoga-se o despacho recorrido e determina-se o prosseguimento dos autos, conforme supra decidido.

Custas pelas recorridas.


Porto, 4.06.2025
José Eusébio Almeida
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Teresa Pinto da Silva
______________
[1] Eliminámos a identificação da Sra. Juíza, por entendermos não fazer sentido tal identificação: os juízes decidem enquanto tribunal (órgão de soberania), não enquanto a pessoa A ou B.
[2] O disposto no artigo 191, n.º 3 do CPC, numa aplicação analógica, indica-nos exatamente esse sentido interpretativo.