I - No modelo do processo executivo criado com o novo Código de Processo Civil, a declaração da extinção da execução, designadamente por deserção da instância, é da competência do agente de execução.
II - O juiz não exerce funções de tutela ou supervisão da actuação do agente de execução, cabendo-lhe apenas, fora das situações em que a questão tem natureza jurisdicional e, por isso, é (só) da competência do juiz, conhecer das reclamações de actos e impugnações de decisões do agente de execução apresentadas pelas partes ou decidir outras questões que por não serem da competência do agente de execução, este, as partes ou terceiros intervenientes chamem o juiz a decidir.
III - A decisão do juiz de declarar oficiosamente extinta a instância por deserção, quando o agente de execução entende que a instância não desertou e nenhuma das partes se opôs a esse entendimento ou o impugnou de qualquer forma, é uma decisão de um órgão sem competência legal, devendo ser revogada.
ECLI:PT:TRP:2025:13555.14.3T8PRT.P1
SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I. Relatório:
Na execução para pagamento de quantia certa que o Banco 1..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...93, com sede em Lisboa, instaurou, entre outros, contra AA, contribuinte fiscal n.º ...92, residente em ..., foi proferida a seguinte decisão datada de 27-03-2025:
«Determina a norma vertida no n.º 1 do art. 281.º do Cód. Proc. Civ. (Deserção da instância e dos recursos) que “considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
De acordo com a norma contida no n.º 5 do mesmo artigo, “No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Compulsados os autos constata-se o seguinte:
- No dia 08-03-2022, o Sr. AE notificou o exequente de que “(…) que não poderão prosseguir as diligências de penhoras relativamente à filha do executado, uma vez que foi julgado "improcedente o incidente de habilitação de herdeiros, por ilegitimidade da requerida BB, dado ter repudiado à herança aberta por óbito do falecido executado, AA". Fica ainda notificado, na mesma qualidade, para requerer o que tiver por conveniente”.
- No dia 08-06-2022, o Sr. AE notificou o exequente de que “(…) atenta a suspensão da execução pelo falecimento do Executado, e julgada que foi com improcedente a habilitação de herdeiros, deverá requerer o que tiver por conveniente, ficando o processo aguardar impulso processual”.
- No dia 23-11-2022, foi repetida a mesma notificação.
- No dia 23-9-2024, o Sr. AE notificou o exequente do seguinte:
«1. Os Executados A..., Lda., CC e DD foram declarados insolvente e em consequência extinta a presente execução quanto aos mesmos, conforme documentos que se anexam.
2. Quanto ao Executado AA foi penhora imóvel rústico, o qual estava na fase da venda aquando do falecimento do Executado.
3. Requerida a habilitação de herdeiros pelo Exequente o tribunal julgou a mesma improcedente por ilegitimidade da Requerida BB, filha do Executado, uma vez que a mesma havia repudiado a herança.
4. Apesar de notificado da decisão de improcedência da habilitação de herdeiros, nada foi requerido pelo Exequente até à presente data, pelo que deverá V.ª Ex.ª requerer o que tiver por conveniente, sob pena de extinção da execução por falta de impulso processual nos termos do disposto no art.º 281.º do CPC».
Cumpre decidir.
O processo vertente esteve mais de seis meses parado, aguardando o impulso processual das partes, como resulta dos autos, desde 8-3-2022, e não desde 23-9-2024, não tendo sido apresentada qualquer justificação que possa afastar a qualificação desta conduta como sendo negligente.
Pelo exposto, encontra-se deserta e, como tal, extinta a instância (art. 277.º, al. c), do Cód. Proc. Civ.).
Custas pelo exequente.»
Do assim decidido, o exequente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. A sentença recorrida padece de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC, porquanto não contém adequada fundamentação de facto e de direito, nem exame crítico das posições e elementos relevantes apresentados nos autos, nomeadamente os requerimentos do exequente e do agente de execução que pugnavam pela inexistência de deserção.
II. A decisão recorrida não explicita o processo lógico e racional que levou à sua convicção quanto à existência de negligência do exequente, limitando-se a reproduzir notificações, sem apreciar concretamente a conduta processual evidenciada nos autos.
III. O Tribunal a quo desconsiderou, sem qualquer fundamentação, o requerimento apresentado pelo exequente em 24/02/2025, no qual foi requerido o incidente de habilitação da herança jacente - acto processual relevante e adequado ao prosseguimento da execução.
IV. A sentença recorrida incorre, ainda, em erro, ao considerar que o prazo de seis meses previsto no artigo 281.º do CPC deveria contar-se desde 08/03/2022, ignorando que houve notificação expressa do AE em 23/09/2024, marcando o reinício do prazo legalmente relevante.
V. A jurisprudência consolidada dos tribunais superiores exige, para a deserção da instância, não só a paragem processual, mas também a demonstração de negligência efectiva e censurável da parte exequente, o que manifestamente não se verifica no caso em apreço.
VI. A actuação do exequente, nomeadamente através do pedido de habilitação da herança jacente, do substabelecimento de mandato e das diligências junto de entidades públicas, revela um comportamento diligente e total ausência de desinteresse ou inércia negligente.
VII. O agente de execução, que tem competência primária para verificar os pressupostos da deserção da instância (artigo 719.º do CPC), pronunciou-se, em 19/03/2025, pela não verificação da deserção, entendendo que o prazo de seis meses apenas terminaria em 23/03/2025.
VIII. Ao substituir-se à actuação do agente de execução sem fundamento legal e ao ignorar a sua pronúncia expressa, o tribunal a quo incorreu em usurpação da competência funcional atribuída ao AE, violando os princípios da legalidade e da estrutura própria do processo executivo.
IX. A sentença recorrida deve ser revogada, por nulidade processual e erro de raciocínio, sendo substituída por decisão que determine a continuação da instância executiva, com prossecução das diligências nos autos e apenso da habilitação da herança jacente.
Nestes termos, e nos mais de Direito, deve o presente recurso, ser admitido, e deve ser proferido acórdão que revogue a sentença de deserção da instância, determinando a prossecução dos autos executivos, com as diligências que se mostrem adequadas à tramitação do incidente de habilitação da herança jacente e à satisfação do crédito exequendo.
Não houve resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão recorrida enferma de nulidade.
ii. Se o juiz podia substituir-se ao agente de execução e decidir oficiosamente extinguir a execução por deserção.
iii. Na afirmativa, se existia fundamento para declarar deserta a instância.
III. Nulidades da decisão recorrida:
O recorrente sustenta que a decisão recorrida é nula por falta absoluta falta de fundamentação e/ou erro de raciocínio, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b), al. c), do Código de Processo Civil.
Salvo melhor opinião, não tem razão.
A falta de fundamentação ocorre quando o juiz não expõe os factos a que aplica as normas jurídicas em que a decisão se alicerça (falta de fundamentação de facto) ou não apresenta o raciocínio mental e jurídico que corporiza o modo como interpreta e aplica as normas legais que presidem à decisão (falta de fundamentação de direito).
Não se deve confundir a falta de fundamentação, com a fundamentação insuficiente, muito menos com a fundamentação incorrecta. Na primeira situação a fundamentação não existe (ou tem alguma manifestação mas não com a dimensão juridicamente exigível), na segunda situação existe (e tem a dimensão exigível) mas não é a suficiente para que o leitor possa compreender a decisão, na última situação a fundamentação existe, é compreensível mas não tem o mérito de corroborar o acerto da decisão.
Sempre que o juiz elenca os factos e interpreta e aplica normas jurídicas que regulam a questão jurídica que aqueles suscitam, não há falta de fundamentação. E não há, ainda que o juiz tenha deixado de atender a outros factos que interferem com a decisão a proferir e, porventura, justificar que esta seja diferente. Nessa situação, o que se ocorre é um erro da decisão a tornar necessário que se proceda à ampliação da matéria de facto que pode e deve ser considerada na decisão. Isso não constitui um vício da nulidade da decisão (por falta ou insuficiência de fundamentação), constitui um erro de julgamento, isto é, uma situação em que o juiz entendeu, mal, que os factos que seleccionou bastam para decidir adequadamente e se apura a necessidade de acrescentar nova matéria de facto e refazer a interpretação e aplicação das normas jurídicas atinentes.
Por outro lado, um erro de raciocínio, leia-se, um equívoco no percurso mental expositivo do modo como se interpretaram e aplicaram as normas jurídicas, nunca é, em regra, causa de nulidade da decisão, mas apenas um erro de julgamento, a motivar não a anulação da decisão, mas a sua revogação ou modificação.
Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, esse erro só gera a nulidade da decisão quando traduza uma contradição entre os fundamentos e a decisão ou conduza a uma ambiguidade ou obscuridade da decisão que a torne ininteligível. Ou seja, só quando o erro seja ostensivo e grave ao ponto de revelar aquela contradição ou determinar esta ininteligibilidade.
No caso, fez-se aplicação da norma legal do n.º 5 do artigo 282.º do Código de Processo Civil, não se vislumbrando que a mesma norma tenha sido interpretada de modo errado. E para o efeito consideraram-se factos que permitem contar o prazo da forma que a Mma. Juíza a quo o contou – seis meses a contar de 08.03.2022. Não há, pois, falta de fundamentação, contradição entre os factos e a decisão ou ininteligibilidade da decisão.
Certa ou não, a decisão não é nula.
IV. Fundamentação de facto:
Para além dos factos que a decisão recorrida elencou como provados, resultam dos autos ainda outros factos com interesse para a decisão a proferir, pelo que a factualidade a atender é, no seu conjunto, a seguinte:
1. O executado AA faleceu em ../../2020.
2. Com fundamento nesse facto, em 30.09.2020 o agente de execução suspendeu a execução «nos termos do art. 269.º, n.º 1, al. a), do CPC.»
3. Essa decisão foi notificada ao exequente por ofício da mesma data.
4. Em 05.08.2021, o exequente deduziu por apenso à execução incidente de habilitação de herdeiros do falecido executado AA contra a única filha e única herdeira do mesmo BB.
5. A habilitanda opôs-se alegando ter repudiado a herança do pai, juntando escritura pública de repúdio.
6. Por sentença proferida em 14.10.2021 a habilitação foi julgada improcedente por ilegitimidade da requerida.
7. Essa sentença foi notificada ao exequente por expediente elaborado na mesma data.
8. Em 21.02.2022 o agente de execução notificou o exequente para requerer o que tivesse por conveniente atenta a decisão do incidente de habilitação.
9. O exequente, não atentando que a decisão era de improcedência da habilitação, requereu a realização de buscas e penhoras.
10. O agente de execução repetiu a notificação alertando para o teor da decisão.
11. O exequente repetindo o erro insistiu na penhora do recheio da habitação.
12. Em 08.06.2022, o agente de execução notificou de novo o exequente de que uma vez que a execução estava suspensa pelo falecimento do executado a respectiva habilitação de herdeiros fora julgada improcedente, deveria requerer o que tivesse por conveniente, ficando o processo aguardar impulso processual.
13. O exequente nada disse ou requereu.
14. Em 23.11.2022, o agente de execução repetiu a notificação ao exequente antes feita.
15. O exequente nada disse ou requereu.
16. Em 23.09.2024, o agente de execução, fazendo o relatório do estado do processo, notificou o exequente de que, nada tendo requerido no entretanto, deveria «requerer o que tivesse por conveniente, sob pena de extinção da execução por falta de impulso processual nos termos do disposto no art.º 281.º do CPC.»
17. Em 05.02.2025, o agente de execução, remetendo as anteriores notificações, notificou o exequente «que os presentes autos aguardam o decurso do prazo nos termos e para os efeitos no disposto no art.º 281.º do Código de Processo Civil».
18. Em 24.02.2025, o exequente deduziu por apenso à execução novo incidente de habilitação de herdeiros, agora da herança jacente, nos termos e para efeitos do artigo 12.º, al. a), do CPC e artigos 2046.º a 2049.º do Código Civil, face à inexistência de sucessores que tenham aceitado (expressa ou tacitamente ) a herança e a mesma não ter sido declarada vaga para o Estado».
19. Em 14.03.2025, nesse apenso, o exequente foi notificado do despacho que o convidou a pronunciar-se sobre a eventual deserção da instância executiva.
20. Em 25.03.2025, o exequente respondeu defendendo que a deserção não se verifica porque em 23.09.2024 foi notificado da improcedência da habilitação de herdeiros primitiva e teve necessidade de verificar se existiam outros herdeiros do executado para deduzir novo incidente de habilitação, o que fez em 24.02.2025 antes de estarem decorridos mais de 6 meses.
21. Notificado para a mesma finalidade, o agente de execução veio dizer (em 19.03.2025) que em 23.09.2024 notificou o exequente de que os autos aguardavam impulso processual, não tendo decorrido ainda mais de seis meses desde essa notificação.
V. Matéria de Direito:
Na parte final das conclusões das alegações, o recorrente suscita aquela que é logica e juridicamente a primeira questão que se coloca no caso, qual seja a de saber se o juiz tinha poderes para declarar deserta a instância da execução.
Nos termos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. O n.º 4 acrescenta que a deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.
O n.º 5 da norma, expressamente ressalvado no n.º 1, dispõe diferentemente que no processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Sucede que o actual modelo do processo de execução vigente entre nós atribui ao agente de execução competências próprias para a prática de actos da execução que anteriormente estavam sob a direcção do juiz.
O artigo 719.º do Código de Processo Civil, precisamente sob o título «repartição de competências», estabelece que «cabe ao agente de execução efectuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz, incluindo, nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos».
Por sua vez o artigo 723.º define aquilo que é da «competência do juiz», estabelecendo que «sem prejuízo de outras intervenções que a lei especificamente lhe atribui, compete ao juiz: a) proferir despacho liminar, quando deva ter lugar; b) julgar a oposição à execução e à penhora, bem como verificar e graduar os créditos, no prazo máximo de três meses contados da oposição ou reclamação; c) julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de actos e impugnações de decisões do agente de execução, no prazo de 10 dias; d) decidir outras questões suscitadas pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes, no prazo de cinco dias.»
O artigo 849.º do Código de Processo Civil define os casos em que se dá a extinção da execução, incluindo neles a remessa para as causas de extinção da execução previstas noutras disposições da lei processual [alínea f) do n.º 1]. O n.º 3 estabelece que a extinção da execução é comunicada, por via electrónica, ao tribunal.
Parece tautológico que se a extinção é comunicada ao tribunal é porque não é o tribunal e mais especificamente o juiz a declarar extinta a execução, o que teria sempre de ocorrer mediante despacho e este só pode ser proferido no processo.
Lebre de Freitas, in A acção executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª edição, pág. 29 e seguintes, escreve que «No direito português anterior à reforma da acção executiva, cabia ao juiz a direcção de todo o processo executivo, em paralelismo com o que acontece na acção declarativa, e a norma do actual artigo 6-l aplicava-se sem especiais restrições: cumpria-lhe providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento. A jurisdicionalização da acção executiva acarretava, nesse modelo do processo executivo … o proferimento de numerosos despachos judiciais, que, na sua grande maioria, não constituíam actos de exercício da função jurisdicional. Com a reforma, o modelo foi abandonado e … optou-se por outro, em que o juiz exerce funções de tutela, intervindo em caso de litígio surgido na pendência da execução (actual artigo 723-1-b), e de controlo, proferindo nalguns casos despacho liminar (controlo prévio aos actos executivos: actuais arts. 723-1-a e 726) e intervindo para resolver dívidas (actual art. 723-1-d), garantir a protecção de direitos fundamentais ou matéria sigilosa (actuais arts. 738-6, 749-7, 757, 764-4, 767-1) ou assegurar a realização dos fins da execução (actuais arts. 759, 773-6, 782, n.os 2, 3 e 4, 814-1, 820-1, 829, n.os 1 e 2, 833-2), mas deixou de ter a seu cargo a promoção das diligências executivas, não lhe cabendo, nomeadamente, em regra (ao invés do que até então acontecia), ordenar a penhora, a venda ou o pagamento, ou extinguir a instância executiva. A prática destes actos, eminentemente executivos, bem como, em geral, a realização das várias diligências do processo de execução, quando a lei não determine diversamente, passaram a caber ao agente de execução (actuais arts.719-1 e 720-6) Foi assim deslocado para um profissional liberal o desempenho dum conjunto de tarefas, exercidas em nome do tribunal, sem prejuízo da possibilidade de reclamação para o juiz dos actos ou omissões por ele praticados (actual art. 723-1-c).»
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2024, 2.ª edição-reimpressão, pág. 55, em anotação ao artigo 719.º, defendem que «em geral, o agente de execução fica incumbido de todas as diligências de pendor propriamente executivo, com destaque para a penhora, venda e pagamento, e todos os que desempenham uma função instrumental, tal como a citação, as notificações ou as publicações. Ao agente de execução é cometido um poder geral de direcção do processo de execução, tendo uma competência ampla e não tipificada, embora com natural exclusão dos actos que apresentam natureza jurisdicional, nos termos definidos no artigo 723 e noutras normas avulsas. Ou seja, compete ao agente de execução a prática da quase totalidade dos actos de execução, com excepção dos que sejam materialmente jurisdicionais e especificamente daqueles cuja competência é legalmente deferida ao juiz.»
A seguir na anotação ao artigo 723.º, defendem que «no actual modelo da acção executiva, as competências do juiz são restritas e tipificadas, sem prejuízo da reserva de jurisdição a que alude o artigo 202º, nº 2, da CRP (RG 11-10-18, 3376/05). O juiz apenas pode fiscalizar a legalidade dos actos processuais no âmbito do que lhe for solicitado, para além de apreciar questões de conhecimento oficioso. Na pertinente síntese de Rui Pinto, A Acção Executiva, p. 66, o actual juiz de execução é o juiz das garantias dos direitos subjectivos”, competindo- lhe julgar as questões em que ocorra um litígio de pretensões.»
E na anotação ao artigo 849.º que, como vimos, regula a extinção da instância executiva por qualquer das causas que a determina, como é o caso da extinção por deserção, afirmam que «a competência para declarar a extinção da execução por deserção da instância está cometida, em primeira linha, ao agente de execução, salvo se tiver sido suscitada ao juiz pelo agente de execução ou pelas partes (al. d) do art. 723º; RG 2-12-21, 565/18, RE 19-11-20, 476/11, RL 30-6-20, 686/14, RG 30-5-18, 438/08, RE 23-3-17, 3233/07, RG I5-5-14, 5523/13). A intervenção do juiz com pro1ação de decisão de extinção é supletiva, justificando-se quando a inacção do agente de execução é atacada pelas partes por meio de reclamação (artigo 723º, nº 1, al. d); cf. RE 23-3-17, 3133/07, RG 26-6-14, 1568/09) ou quando o agente de execução se encontre suspenso de funções ou tenha sido expulso e não seja necessário realizar, antes ou após a extinção, actos especificamente cometidos ao agente de execução (art. 6º, nº 1; …)».
Isso mesmo foi decidido no Acórdão da Relação de Évora de 19-11-2015, proc. n.º 84/13.1TBF AL.E1, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler: «Não havendo atribuição da competência para o efeito, quer ao juiz do processo, quer à secretaria, cabe ao agente de execução, nos termos do art.º 719º, n.º 1, do NCPC, decidir, em primeira linha, da deserção da instância do processo executivo».
Este Acórdão mereceu comentário concordante de M. Teixeira de Sousa no blog do IPPC, entrada de 22/12/2015, Jurisprudência (251), in https://blogippc.blogspot.com, nos seguintes termos: «Como decorre da regra de competência residual estabelecida no art. 719.º, n.º 1, nCPC, o agente de execução tem competência para efectuar todas as diligências do processo executivo que não sejam da competência da secretaria (cf. art. 719.º, n.º 3 e 4, CPC), nem do juiz (cf. art. 723,º CPC). No âmbito desta competência residual cabe a decisão sobre a deserção da instância, dado que a lei não atribui a competência para a decisão sobre aquela deserção nem ao juiz, nem à secretaria. A decisão do agente de execução é naturalmente reclamável para o juiz de execução (art. 723.º, n.º 1, al. c), nCPC). A favor desta orientação pode argumentar-se com o próprio teor literal do art. 281.º, n.º 5, CPC. O preceito é claro em estabelecer que a instância executiva se considera deserta "independentemente de qualquer decisão judicial", o que demonstra que não é necessária nenhuma decisão do juiz de execução para que a instância se extinga por deserção. Em todo o caso, algum órgão tem de declarar a instância extinta e de comunicar essa extinção às partes, aos credores reclamantes e ao tribunal (cf. art. 849.º, n.º 2 e 3, CPC), pois que a extinção não ocorre sem essa declaração e não é eficaz sem essa comunicação. Esse órgão só pode ser o agente de execução. O decidido pela RE tem ainda relevância (significativa) numa outra perspectiva. Ao entender que a competência para decidir sobre a deserção da instância pertence ao agente de execução, e não ao juiz de execução, e ao revogar a decisão do juiz a quo que tinha declarada a instância executiva deserta, a RE mostra que não há nenhuma relação hierárquica entre o juiz e o agente de execução, no sentido de se poder afirmar que o que o agente de execução pode fazer o juiz de execução também pode realizar. A reclamação para o juiz de execução dos actos e das decisões do agente de execução nada tem a ver com uma relação hierárquica entre estes órgãos da execução. Como o acórdão da RE correctamente mostra, só este entendimento é admissível. Apesar de ser possível reclamar para o juiz de execução das decisões e dos actos do agente de execução (cf. art. 723.º, n.º 1, al. c), CPC), cada um destes órgãos da execução tem uma competência funcional própria. Se é evidente que o agente de execução não pode invadir a esfera de competência do juiz de execução (se isso suceder em actos de carácter jurisdicional, a consequência não pode deixar de ser mesmo a inexistência do acto ou da decisão daquele agente), também é claro que o juiz de execução não pode praticar, sob pena de nulidade, actos que pertencem à competência do agente de execução.»
O entendimento de que sendo da competência do agente de execução declarar a extinção da execução, designadamente por deserção da instância, o juiz só pode conhecer dessa questão se houver reclamação de umas das partes da decisão do agente de execução que tenha declarado a extinção ou negado essa declaração, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 723.º do Código de Processo Civil, foi afastado no Acórdão da Relação de Évora de 23-03-2017, proc. n.º 3133/07.9TJLSB.1.E1, nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 10.01.2019[1], proc. n.º 385/09. 3TBVPV-A.L1-2, de 10-02-2022, proc. n.º 19390/10.0YYLSB.L1-2, no Acórdão da Relação de Guimarães de 02.12.2021, proc. n.º 565/18.0T8AVV.G1, in www.dgsi.pt.
O argumento usado é sempre o mesmo e um só: ao encurtar o prazo da deserção e agilizar o respectivo regime o legislador pretendeu responsabilizar o exequente pelo atraso na tramitação da execução e evitar que continuem pendentes execuções paradas há mais de 6 meses por falta censurável do exequente; esses objectivos são incompatíveis com deixar que o processo continue pendente, apesar de estarem verificados os pressupostos da deserção da instância, apenas porque o agente de execução a quem está cometida tal competência não a actuou.
Com todo o devido respeito, não cremos que este argumento possa colher.
Todos os objectivos do legislador ficam por cumprir quando quem tem competência e o dever de decidir uma determinada questão não a decide ou decide-a mal. Para qualquer dessas eventualidades a lei (excepto nos casos em que se conforma com esse risco e despreza as respectivas consequências) prevê, em regra, um remédio, seja ele a arguição da nulidade por omissão de um acto prescrito, a reclamação especialmente prevista ou o recurso. São esses remédios que legalmente cabe aplicar.
A lei processual atribui a competência para julgar a extinção da instância ao agente de execução (artigo 849.º do Código de Processo Civil). E atribuí ao juiz a competência para funcionar como órgão de recurso ou reclamação dessa decisão, mas sempre e apenas se essa for a vontade das partes porque o juiz não tem poderes para avocar o processo e conhecer oficiosamente de qualquer desses meios de reacção contra a decisão (ou a inacção) do agente de execução (tal como o juiz da Relação não pode fazer o mesmo em relação a decisões do juiz da 1.ª instância quando o processo lhe chega para conhecer do recurso de outra decisão!).
Ao impor ao exequente um dever de diligência na promoção da execução a lei procura responsabilizá-lo pelo estado da execução; da mesma forma, ao exigir que as partes recorram ou reclamem das decisões do agente de execução sobre as matérias que são da sua competência para que o juiz possa intervir e fiscalizar essas decisões, a lei quer responsabilizar as partes pelo dever de controlarem a actuação do agente de execução, submetendo a sua actuação à fiscalização do juiz, sempre que o entendam necessário.
A lei não admite que uma entidade à qual, por legítima opção de política legislativa, retirou a competência para essa decisão no âmbito de uma execução, designadamente por ter entendido que na forma de processo que criou há razões para a atribuir a outra entidade, se auto-atribua a competência legal para a decisão com o argumento de que a entidade competente … não decidiu ou decidiu mal.
O artigo 6.º do Código de Processo Civil não tem a virtualidade de modificar essa conclusão porque o dever de gestão processual não desvirtua nem afasta os limites de competência fixados na lei, designadamente o juiz não pode, a coberto desse dever, praticar actos para os quais não é competente ou para os quais é competente outra entidade mas de cujas decisões cabe reclamação para o juiz que desse modo apenas intervém como órgão de recurso, não como órgão tutelar ou de supervisão da actuação da entidade competente. Por esse motivo, no âmbito do processo executivo, o artigo 6.º do Código de Processo Civil tem de ser lido respeitando a distribuição de competências entre o agente de execução e o juiz.
Diga-se que o primeiro objectivo do legislador e da ordem jurídica é que os direitos sejam respeitados e as obrigações sejam cumpridas (é essa a finalidade do …Direito). A preocupação de que não estejam mais pendentes instâncias que não estão a receber da parte o impulso necessário é uma preocupação secundária, estatística, de gestão administrativa dos recursos da justiça (independentemente de saber se estes são os que a sociedade paga e/ou merece, isto é, que devia ter).
Por isso, verdadeiramente, havia que defender que uma vez que o direito de crédito do credor continua por satisfazer, a existir conflito entre o direito substantivo à satisfação do crédito (ao cumprimento) e a necessidade de impulsionar a execução, seria sempre aquele direito material que devia prevalecer sobre este direito de natureza puramente processual.
Por outras palavras, a interpretação daqueles Acórdãos de impor a extinção da execução apesar de o crédito continuar por satisfazer acaba por redundar numa preterição do objectivo da lei, do sistema jurídico e do Direito, quando literalmente são estes que se invocam para servir de fundamento à violação de lei expressa que atribui ao agente de execução a competência para declarar a extinção da execução e à avocação de uma competência que a lei não só não reconhece, como atribui a outrem.
Por tudo isso, entendemos que a decisão judicial recorrida de julgar oficiosamente extinta a instância da execução por deserção foi proferida por quem não tem competência própria para a proferir, mas apenas competência para julgar a impugnação da decisão do agente de execução sobre essa matéria ou a ausência de decisão por parte do mesmo, impugnação que não foi apresentada e que por isso não pode ser apreciada. Desse modo, por provir de órgão sem competência para o efeito, a decisão não pode subsistir nos autos e deve ser revogada.
Fica prejudicado o conhecimento da questão de saber se a instância estava deserta.
VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente por tirar proveito do recurso e a decisão recorrida não ter sido motivada pelo recorrido, sendo que as custas se limitam à taxa de justiça já paga por não ter sido apresentada resposta ao recurso.
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 893)
1.º Adjunto: Judite Pires
2.º Adjunto: Ana Vieira
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
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[1] De referir que este Acórdão regista com inteiro a propósito que se encontram publicados muitos Acórdãos das Relações que conhecem de recursos de decisões judiciais que declararam extinta a execução por deserção da instância sem se pronunciarem sobre a questão da competência para proferir tal decisão, não obstante a mesma pareça ser de conhecimento oficioso.