I – O ónus da prova dos requisitos do enriquecimento sem causa, designadamente o da falta de causa justificativa – facto constitutivo essencial do direito a obter a restituição do indevido –, recai sobre quem pretende obter a restituição; não bastará para esse efeito que não se prove a existência de uma causa de atribuição, sendo antes necessário que se prove a sua falta de causa.
II – Alegando-se um contrato de mútuo como causa para a deslocação patrimonial ocorrida, da ausência de prova do mútuo apenas decorre que não se fez prova que a deslocação patrimonial o teve como causa, mas daí não decorre a prova da inexistência de causa para tal deslocação; a circunstância de não se lograr provar a existência desse contrato não tem a virtualidade de fazer “desaparecer” essa causa de modo a “acomodar” tal situação ao requisito de falta de causa justificativa necessário para o funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa;
III – Para a prova da referida inexistência de causa, legitimadora da obrigação de restituir, o requerente da restituição tem que provar que não houve causa para a deslocação patrimonial ou que, tendo-a havido, a mesma deixou entretanto de existir; o requerente da restituição não fica onerado com a prova de um facto negativo, porque do que se trata é de provar a causa (que é um facto positivo) e, subsequentemente, que esta realmente não existia ou deixou de existir entretanto.
Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Carlos Gil
2º Adjunto: Manuel Fernandes
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório
AA intentou ação declarativa comum contra BB e CC, pedindo a condenação destas nos termos seguintes:
“a) a reconhecer que o pagamento do bem imóvel descrito na petição inicial foi efectuado pelo A.;
b) a reconhecer que celebraram com o A. contrato de mútuo pelo qual aquele emprestou às RR. a quantia de €120.000,00, com vista à aquisição do imóvel descrito no artigo 1. da petição inicial;
c) 1) a restituir ao A. a quantia de €120.000,00, por força do cumprimento do contrato de mútuo celebrado ou 2), em caso de nulidade do mútuo por falta de forma, a restituição, por parte das RR. mutuárias, de tudo quanto hajam recebido do A. mutuante, na mesma quantia de €120.000,00,
em qualquer dos casos acrescida de juros à taxa legal desde a data da citação da presente ação até integral pagamento;
De forma subsidiária, e ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa
1. a reconhecer que, ao não pagarem ao A. a quantia de € 120.000,00, relativa ao preço do imóvel por este pago, obtiveram, de forma consciente, ilegítima e sem qualquer causa justificativa, um enriquecimento do seu património, através do ingresso neste da fração referida na petição inicial, à custa do empobrecimento do património da A., nesse exato valor;
2. a restituir ao Autor, a título de enriquecimento sem causa, o valor que este pagou para a aquisição do imóvel, ou seja, €120.000,00, acrescidos de juros à taxa legal desde a data da citação da presente ação até integral pagamento”.
Alegou para tal o seguinte:
- por escritura celebrada a 4 de Dezembro de 2020 no Cartório Notarial sito na Rotunda ..., ..., no concelho de Valongo, comprou, conjuntamente com as rés, em comum e partes iguais, uma fração autónoma que identifica, pelo valor de 120.000 euros;
- o pagamento de tal preço foi por si assumido integralmente;
- as rés são filhas de DD, a qual lhe prestou serviços como cuidadora, atenta a sua idade e o facto de viver sozinho, no período compreendido de abril até outubro de 2021, sendo que já em 2015 tinha prestado apoio à sua falecida esposa;
- sob o pretexto de que as suas filhas não tinham uma habitação condigna, e de não terem (alegadamente) possibilidade de recorrer a crédito, a referida DD, aproveitando-se da especial posição que ocupava, e do ascendente que detinha sobre si, logrou convencê-lo a adquirir a referida fração urbana conjuntamente com as suas filhas, aqui rés;
- as rés asseguraram-lhe que, a partir de janeiro de 2021, lhe pagariam cada uma a importância mensal de 300,00€, no valor global mensal de 600,00€, até perfazer a quantia de 80.000,00€, correspondente à sua quota parte do preço pago pela referida fração urbana e, após o pagamento do referido montante, venderia às rés a quota parte que detinha da referida fração pelo exato montante que a havia adquirido, ou seja, 40.000,00€, estabelecendo nesse momento, e de acordo com a capacidade das rés, a forma de pagamento do valor remanescente;
- chegados a janeiro de 2021 as rés nada pagaram, situação que se manteve nos meses subsequentes;
- após várias interpelações para que procedessem ao pagamento dos montantes em dívida, as rés disseram-lhe que não conseguiriam fazer face ao acordo efetuado, atento o valor elevado da prestação mensal, mas tinham intenção de constituir um mútuo bancário sobre a totalidade do valor de aquisição da fração, de 120.000,00€, beneficiando de maior dilação temporal para o pagamento das mensalidades, liquidando com esse montante a importância em dívida ao autor, de 80.000,00€, bem como comprariam a quota parte deste pelo valor de 40.000,00€;
- para o efeito, seria imprescindível que a fração lhes pertencesse integralmente dado que, segundo afirmaram perante si, era a única forma de o crédito bancário ser aprovado;
- assim, a 25 de maio de 2021, no Cartório Notarial de Valongo acima identificado, doou às rés, em comum e partes iguais, o direito a um terço indiviso de que era titular no imóvel, tendo as rés aceitado a referida doação;
- não obstante, até à presente data as rés nada pagaram, pese embora as suas várias interpelações, e desconhece se o referido crédito veio a ser solicitado ou se incide qualquer ónus sobre a referida fração;
- adquiriu a fração conjuntamente com as rés e pagou (só ele) integralmente o preço, no pressuposto de que estas viessem a liquidar os valores por ele despendidos com a aquisição da mesma; tais montantes configurariam um empréstimo por si conferido às rés, sem qualquer convenção de pagamento de juros, concedido apenas e tão só porquanto as rés eram filhas de DD, pessoa da sua confiança pelo cargo que ocupava;
- na sequência das inúmeras solicitações por si efetuadas às rés para que pagassem o montante em dívida, ele e DD incompatibilizaram-se, o que determinou a cessação contratual existente entre ambos a 22 de novembro de 2021, tendo ficado então claro para o si que nunca as rés tiveram qualquer intenção de restituir o montante que liquidou junto do comprador para aquisição do imóvel;
- as rés obtiveram uma vantagem patrimonial significativa, a expensas suas e do seu direto empobrecimento, sendo que viu diminuir o seu ativo patrimonial na ordem de 120.000,00€.
As rés deduziram contestação.
Nela, depois de invocarem a falta de mandato conferido pelo autor ao seu advogado (referindo para tal que a assinatura constante da procuração junta com a p.i. não pertence ao autor), alegaram o seguinte, impugnando a versão factual alegada pelo autor na petição inicial:
- a sua mãe, DD, prestou serviços, como cuidadora, ao autor e à sua falecida esposa, sendo quanto a esta de forma continuada e ininterrupta e entre 01/07/2014 a 31/01/2018 e, após esta data, ao autor, também de forma continuada e ininterrupta, até 14/10/2021;
- a relação estabelecida entre o autor, as rés e a sua mãe evoluiu para uma forte relação de amizade e familiar, de maneira que o autor passou a frequentar a residência das rés e de sua mãe, convivendo com estas; passeava com as rés e a sua mãe; passava com estas as festividades, como o Natal, Passagem de Ano, Páscoa; celebrava com estas o seu aniversário bem como os aniversários das rés e da sua; tratava e considerava as rés como suas netas e estas consideravam-no como seu avô;
- apesar do autor ter vários filhos, estes não o visitavam, não o contactavam, não lhe prestavam qualquer cuidado ou auxílio, não lhe manifestavam qualquer afeto; ignoravam-no completamente;
- o autor pretendia passar a residir com as rés e sua mãe, pois não queria acabar os seus dias sozinho ou num lar;
- por iniciativa do autor, este e as rés procuraram uma habitação para concretizar essa pretensão e, com esse intuito, vieram a adquirir, por compra, o imóvel identificado no art. 1º da petição inicial:
- tal aquisição foi feita em comum e partes iguais pelo autor e pelas rés, não obstante o preço ter sido integralmente pago pelo autor, que desta forma pretendeu mostrar reconhecimento e remunerar toda a atenção, afeto, amor, cuidados e auxílio que lhe eram prestados pelas rés;
- algum tempo após, o autor, receando que o facto de ter adquirido para si 1/3 do referido imóvel poderia, aquando do seu falecimento, ser motivo de problemas para as rés e criar dificuldades na partilha de bens a realizar, decidiu doar-lhes esse 1/3;
- quer o pagamento do preço de aquisição, quer a doação do 1/3, tratou-se de liberalidade feita pelo autor em favor das rés;
- não houve qualquer acordo entre o autor e as rés pelo qual estas se tenham obrigado a pagar qualquer importância ao autor, designadamente a partir de janeiro de 2021; nem houve qualquer acordo no sentido de que o autor venderia às rés a quota parte que detinha da referida fração; em janeiro de 2021, as rés nada pagaram ao autor porque nada tinham de pagar;
- o autor nunca interpelou as rés para procederem ao pagamento do que quer que fosse; as rés ou a mãe destas nunca veicularam o que quer que fosse quanto a qualquer dívida ou pagamento devidos, por si, ao autor; as rés e a sua mãe nunca tiveram intenção de constituir qualquer mútuo bancário.
- a mãe das rés nunca se incompatibilizou com o autor nem vice-versa; todos os dias, a mãe das rés, para além de estar com o autor, telefonava-lhe, por volta das 20 horas, ou deslocava-se a casa do autor, para lembrar e saber se ele tinha tomado a medicação e já tinha jantado;
- no dia 13/10/2021, pelas 20 horas, a mãe das rés telefonou ao autor e quem atendeu o telefonema foi o filho EE; este disse à mãe das rés que o A. tinha caído e que tinha ido para o hospital e pediu que a mãe das rés, no dia seguinte, fosse mais cedo para casa do autor; a mãe das rés assim fez, tendo no dia 14/10/2021 ido mais cedo para casa do autor; passado algum tempo, chegou o filho EE e informou a mãe das rés que, quando o autor saísse do hospital, iria para uma casa de repouso e que o trabalho da mãe das rés terminava naquele dia 14/10/2021;
- nesse mesmo dia, perto da hora do almoço, o autor regressou a casa, sozinho, numa ambulância; mal o autor acabou o almoço, o filho EE pediu à mãe das rés as chaves de casa do autor e os códigos dos cartões multibanco, o que esta entregou e forneceu;
- a mãe das rés questionou o filho EE para onde iria o autor, ao que este respondeu que ela nada tinha a ver com isso, que era um assunto que só dizia respeito aos filhos; acrescentou que a mãe das rés e estas estavam proibidas de o visitar.
- a mãe das rés e as rés vieram a tomar conhecimento de que o autor se encontrava internado num lar de idosos, mais propriamente no “A...”, em ...;
- no dia 16/10/2021, a mãe das rés telefonou ao filho do autor, FF, a perguntar quando lhe iria ser pago o que lhe era devido de retribuição respeitante aos dias de trabalho do mês de outubro e à compensação pela cessação do contrato de trabalho; na sequência de comunicações entre ambos, em 17/11/2021 aquele filho do autor informou a mãe das rés que o valor a pagar-lhe era de 1.604,14€; no dia 22/11/2021, o filho FF informou a mãe das rés de que tinha o cheque para entregar e a rescisão para assinar, tendo nesse mesmo dia a mãe das rés assinado aquele documento (junto com a PI como DOC. 5) e recebido o cheque (DOC. 3 que juntam).
Foi proferido despacho a conceder ao autor o contraditório quanto ao articulado apresentado pelas rés.
O autor pronunciou-se no sentido de ser sua a assinatura aposta na procuração passada ao seu advogado. Não obstante, juntou nova procuração ao seu advogado, com ratificação do processado e com a sua assinatura reconhecida notarialmente.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador – no qual se considerou prejudicada a deficiência de assinatura da procuração imputada pelas rés por via da junção de nova procuração com ratificação do processado e assinatura reconhecida notarialmente – e subsequente despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente por provada, e consequentemente:
1. condenam-se as Rés a reconhecer que, ao não pagarem ao A. a quantia de € 80.000,00, relativa a 2/3 do preço do imóvel por este pago, obtiveram, de forma consciente, ilegítima e sem qualquer causa justificativa, um enriquecimento do seu património, através do ingresso neste da fracção referida na petição inicial, à custa do empobrecimento do património da A., nesse exacto valor;
2. condenação das Rés a restituir ao Autor, a título de enriquecimento sem causa, o valor de € 80.000,00, acrescidos de juros à taxa legal desde a data da citação da presente acção até integral pagamento.
Custas a cargo de Autor e Rés, na proporção do respectivo decaimento.”
De tal sentença vieram as rés interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1) De harmonia com o previsto nos arts. 473.° e 474.° do CC, o enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- existência do enriquecimento;
- que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;
- que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;
- que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.
2) Inexistindo algum destes requisitos, não é de aplicar este regime jurídico.
3) A falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento terá de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências das regras gerais sobre os ónus de alegação e prova previstas no art.º 342.° do Cód. Civil.
4) Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição. É necessário provar a falta de causa justificativa.
5) Este tem sido o entendimento na Jurisprudência e na Doutrina, indicando-se, no corpo desta Alegação, a mais pertinente.
6) No caso dos autos não foi provado (ver Factos Provados) que o enriquecimento não tenha causa que o justifique.
7) Não tendo sido provado tal facto, não se verificam os requisitos previstos no art. 473.º e 474.º, do CC, para aplicação do regime do enriquecimento sem causa.
8) O ónus de prova da falta de causa justificativa impendia sobre o A..
9) Não tendo o A. feito prova desse facto, a ação deveria ter sido julgada contra si, não sendo bastante não ter sido feita prova da causa justificativa.
10) Ao não entender assim, o Tribunal Recorrido aplicou erradamente e violou o disposto nos arts. 473.º, 474.º e 342.º do CC.
11) De acordo com as regras da experiência se alguém compra conjuntamente com mais duas pessoas, filhas de alguém com quem tinha uma forte amizade, em comum e parte iguais um imóvel, passando cada uma a ser proprietária de 1/3 do mesmo, paga a totalidade do preço dessa compra, e, posteriormente, faz a doação da sua parte às restantes comproprietárias, pretende fazer uma liberalidade em benefício destas, de modo a passarem a ser as únicas proprietárias do imóvel integralmente pago por si.
12) No caso destes autos, é manifesta e evidente a intenção e espírito de liberalidade, por parte do A., ao pagar o preço de compra do 1/3 inicial, da responsabilidade de cada uma das RR., confirmando tal espírito de liberalidade, posteriormente, doando-lhes a parte restante que reservou para si, conforme resulta dos Factos Provados, com especial relevância, o que consta de 2 a 10.
13) O Tribunal Recorrido, em face dos Factos Provados, não poderia ter deixado de presumir, concluir e/ou tirar a ilação de que o A., no negócio jurídico de 4 de Dezembro de 2020, teve intenção de praticar uma liberalidade em benefício das RR..
14) Ao não entender assim, o Tribunal Recorrido violou o disposto no art. 349.º, do CC e o disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC.”
O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a tratar: apurar se é de concluir pela existência de enriquecimento sem causa das rés.
Vamos ao tratamento da questão enunciada.
É a seguinte a matéria de facto a ter em conta (a da sentença recorrida, que não foi objeto de qualquer impugnação no recurso; apenas se corrige a sua numeração, pois tem dois números “8” e incluiu-se a matéria do primeiro nº8 a par da que consta do nº7):
Factos provados
1. Por escritura celebrada a 4 de Dezembro de 2020 no Cartório Notarial sito na Rotunda ..., ..., no concelho de Valongo, o aqui A. comprou, conjuntamente com as RR, em comum e partes iguais, a fração autónoma designada pelas letras “AV”, composta por uma habitação no segundo andar direito, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., com um lugar de garagem com entrada pelo n.º ... da mesma rua, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ....
2. O valor de aquisição da referida fração urbana cifrou-se em 120.000,00€ (cento e vinte mil euros).
3. O pagamento do preço foi efetuado através da entrega de dois cheques, designadamente, o cheque sacado sobre o “Banco 1..., S.A.” com o número ..., no valor de 10.000,00€, entregue aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda da fração autónoma, na data de 24 de novembro de 2020, e o remanescente, no valor de 110.000,00€, através do cheque sacado sobre o referido “Banco 1..., S.A.” com o número ... na data de celebração da escritura, a 4 de dezembro de 2020.
4. Tendo o aqui A. assumido integralmente o pagamento do referido preço, porquanto os referidos cheques foram sacados na conta Banco 1... nº ... titulada pelo A., após resgate de PPR por si também titulados.
5.As aqui RR. são filhas de DD.
6. A 25 de Maio de 2021, no Cartório Notarial de Valongo acima identificado, o aqui A. doou às aqui RR., em comum e partes iguais, o direito a um terço indiviso de que era titular no imóvel supra identificado, tendo as RR. aceitado a referida doação.
7. A referida DD prestou serviços ao aqui A. como cuidadora ao A. e à sua falecida esposa, D. GG, tendo prestado tais serviços a esta de forma continuada e ininterrupta, de 2014 a 31/01/2018.
8. Após julho de 2020, a mãe das RR. passou a prestar os mesmos serviços ao A., tendo-o feito, de forma continuada e ininterrupta.
9. A relação contratual existente entre A. e DD cessou a 22 de novembro de 2021.
10. A relação estabelecida entre o A. e a mãe das rés evoluiu para uma forte relação de amizade.
11. Desde 14/10/2021 até à presente data o autor encontra-se internado no Lar “A...”, em ....
13. A mãe das RR. tentou visitar o A., no Lar, mas não lhe foi permitido por não estar autorizada pelos filhos.
1. Sob o pretexto de que as suas filhas não tinham uma habitação condigna, fruto dos rendimentos que auferiam, de não terem possibilidade de recorrer a crédito, e não disporem de qualquer soma para darem entrada para aquisição de uma habitação, a referida DD, aproveitando-se da especial posição que ocupava, e do ascendente que detinha sobre o A, logrou convencer este último a adquirir a referida fração urbana conjuntamente com as suas filhas, aqui RR.
2. Asseguraram as aqui RR., que, a partir de janeiro de 2021, pagariam cada uma ao A. a importância mensal de 300,00€, no valor global mensal de 600,00€, até perfazer a quantia de 80.000,00€, correspondente à quota parte das aqui RR. do preço pago pela fração urbana acima identificada.
3. Após o pagamento do referido montante, o A. venderia às aqui RR. a quota parte que detinha da referida fração, pelo exato montante que a havia adquirido, ou seja, 40.000,00€, estabelecendo, nesse momento, e de acordo com a capacidade das RR., a forma de pagamento do valor remanescente.
4. Chegados a janeiro de 2021, as aqui RR. nada pagaram.
5. Situação que se manteve nos meses subsequentes.
6. Após várias interpelações para que procedessem ao pagamento dos montantes em dívida, as aqui RR, conjuntamente com a supra referida DD, veicularam ao A. que não conseguiriam fazer face ao acordo efetuado, quanto ao pagamento do montante em dívida, atento o valor elevado da prestação mensal.
7. As rés tinham intenção de constituir um mútuo bancário sobre a totalidade do valor de aquisição da fração urbana acima identificada, de 120.000,00€, beneficiando de maior dilação temporal para o pagamento das mensalidades, liquidando com esse montante a importância em dívida ao autor – 80.000,00€, bem como comprariam a quota parte deste pelo valor de 40.000,00€.
8. Para o efeito, seria imprescindível que a fração urbana pertencesse integralmente às RR, dado que, segundo afirmaram perante o aqui A, era a única forma de o crédito bancário ser aprovado.
9. Até à presente data, as aqui RR. nada pagaram, pese embora as várias interpelações do aqui A.
10. O A. adquiriu a fração conjuntamente com as RR, e pagou (só ele) integralmente o preço, no pressuposto de que estas viessem a liquidar os valores por ele despendidos com a aquisição da mesma.
11. Na sequência das inúmeras solicitações efetuadas pelo A. às aqui RR. para que pagassem o montante em dívida, aquele A. e DD incompatibilizaram-se, o que determinou a cessação contratual existente entre ambos.
12. Tendo-se o A. apercebido, nesse momento, que se tratou apenas de um conluio das RR. (e sua mãe) para, de forma consciente, se aproveitarem da posição daquela como cuidadora, e do seu ascendente sobre o A., que vivia sozinho e necessitava de cuidados.
13. O A. doou às aqui RR. o terço indiviso de que era proprietário na fração acima identificada na estrita convicção de que tal seria condição imprescindível para que as RR obtivessem mútuo bancário sobre a totalidade do valor de aquisição da fração urbana acima identificada.
14. O A. passou a frequentar a residência das RR. e da mãe destas, convivendo com estas;
15. Passeava com as RR. e a mãe destas;
16. Passava com estas as festividades, como o Natal, Passagem de Ano, Páscoa;
17. Celebrava com estas o seu aniversário bem como os aniversários das RR. e da sua mãe;
18. Tratava e considerava as RR. como suas netas,
19. E estas consideravam o A. como seu avô.
20. Apesar do A. ter vários filhos, estes não o visitavam, não o contactavam, não lhe prestavam qualquer cuidado ou auxílio, não lhe manifestavam qualquer afeto.
21. Ignoravam-no completamente.
22. O A. pretendia passar a residir com as RR. e a mãe destas, pois não queria acabar os seus dias sozinho ou num lar.
23. Por iniciativa do A., o A. e as RR. procuraram uma habitação para concretizar essa pretensão.
24. Com esse intuito, o A. e as RR. vieram a adquirir a fração identificada na p.i.
25.O autor pretendeu mostrar reconhecimento e remunerar toda a atenção, afeto, amor, cuidados e auxílio que lhe eram prestados pelas RR..
26. Algum tempo após, o A., receando que o facto de ter adquirido para si 1/3 do referido imóvel poderia, aquando do seu falecimento, ser motivo de problemas para as RR. e criar dificuldades na partilha de bens a realizar,
27. Decidiu doar-lhes esse 1/3, o que fez através de escritura.
“(…), o aqui A. doou às aqui RR., em comum e partes iguais, o direito a um terço indiviso de que era titular no imóvel supra identificado, tendo as RR. aceitado a referida doação. Porém, relativamente aos demais 2/3 indiviso do referido imóvel, pago integralmente com dinheiro do autor, que constam na escritura celebrada a 4 de Dezembro de 2020, não se apurou que tivessem sido objecto de doação por parte do autor, nem de aceitação por parte das rés.
A importância de 80.000,00€ paga pelo aqui A, correspondente a dois terços do valor por este pago para aquisição da referida fracção, é uma vantagem patrimonial significativa para as rés, a expensas do autor e do seu directo empobrecimento, sem que exista uma causa justificativa apurada, nomeadamente uma doação.
Assim, julgam-se verificados os invocados pressupostos do enriquecimento sem causa relativamente à quantia de € 80.000,00.”
Analisemos.
Prevê-se no art. 473º nº1 do C. Civil que “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa, como resulta daquele preceito, pressupõe assim a verificação cumulativa de três requisitos: um enriquecimento de alguém; que o enriquecimento careça de causa justificativa; e que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição[1].
O ónus da prova de tais requisitos, designadamente o da falta de causa justificativa – facto constitutivo essencial do direito a obter a restituição do indevido –, recai sobre quem pretende obter a restituição.
Como neste sentido refere Antunes Varela[2], “A falta de causa da atribuição patrimonial terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no art. 342º, por quem pede a restituição do indevido. Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa” (o negrito e sublinhado são nossos).
Também Almeida Costa sufraga exatamente o mesmo entendimento[3].
Na jurisprudência, entre variados arestos, vejam-se, por exemplo, os Acórdãos do STJ de 24/3/2017 (proc. nº1769/12.5TBCTX.E1.S1), de 4/7/2019 (proc. nº2048/15.1T8STS.P1.S1) e de 11/10/2022 (proc. nº2330/20.6T8PRT.P1.S1), o Acórdão da Relação de Évora de 28/6/2012 (proc. nº2777/10.6TBPTM.E1), o Acórdão da Relação de Coimbra de 13/7/2020 (proc. nº4570/17.6T8VIS.C1) e o Acórdão da Relação de Guimarães de 9/11/2023 (proc. 70/22.0T8TMC.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso vertente, o autor alegou que o pagamento integral do preço pela compra da fração foi por si efetuado no pressuposto, assegurado pelas rés, de que estas lhe pagariam uma importância mensal até perfazer a quantia de 80.000,00€, correspondente à sua quota parte do preço pago pela referida fração e, após o pagamento do referido montante, venderia às rés a quota parte que detinha da referida fração pelo exato montante que a havia adquirido, ou seja, 40.000,00€, estabelecendo nesse momento, e de acordo com a capacidade das rés, a forma de pagamento por parte destas do valor remanescente.
Tal pagamento integral por si efetuado configuraria assim um empréstimo por si conferido às rés, sem qualquer convenção de pagamento de juros, concedido apenas e tão só porquanto as mesmas eram filhas de DD, pessoa da confiança do A. pelo cargo (cuidadora do autor) que ocupava (é assim que se exprime no artigo 19 da petição inicial).
Como decorre dos factos não provados, não se provou tal empréstimo.
Como tal, porque era ao autor que competia, nos termos do art. 342º nº1 do C. Civil, fazer a prova dos elementos constitutivos do mútuo em que fundou o seu pedido inicial e não o logrou, tal pedido inicial, deduzido com tal fundamento, teve necessariamente que improceder.
Será, porém, que da não prova do mútuo invocado pelo autor e do facto de não se apurar qualquer causa justificativa para o pagamento por si da quantia de 80.000 euros correspondente à proporção de 2/3 das rés na propriedade da fração adquirida (nomeadamente uma doação às rés da respetiva quantia, como se raciocina na sentença recorrida), resulta a ausência de causa justificativa pressuposta no enriquecimento sem causa quanto a tal quantia?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
O facto de não se ter provado a causa de pedir invocada pelo autor a título principal não é de per si suficiente para demonstrar como provada que há ausência de causa para aquele pagamento por si daquela quantia correspondente à quota das rés (2/3) na compropriedade da fração (o qual acaba por integrar uma efetiva deslocação patrimonial para estas).
Dito de outro modo, da ausência de prova do mútuo apenas decorre que não se fez prova que a deslocação patrimonial o teve como causa, mas daí não decorre a prova da inexistência de causa para tal deslocação.
Efetivamente, tal como o autor estruturou na petição inicial a sua pretensão, a deslocação de dinheiro do seu património para o património das rés que acabou por ocorrer teve como causa o contrato de mútuo. A circunstância de não ter logrado provar a existência desse contrato não tem a virtualidade de fazer “desaparecer” essa causa[4], de modo a “acomodar” tal situação ao requisito de falta de causa justificativa necessário para o funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa.
Assim, para a prova da referida inexistência de causa, legitimadora da obrigação de restituir, o autor tinha que provar que não houve causa para aquela deslocação ou que, tendo-a havido, a mesma deixou, entretanto, de existir[5] (por exemplo, que teria pago pelas rés aquela quantia em dinheiro em vista de lhes pagar um eventual débito seu para com elas que afinal se verificou que não existia, que pagou por elas aquela quantia em dinheiro por determinada causa que deixou de existir ou que pagou por elas aquele dinheiro em vista de algo que se previa ocorrer mais tarde e que acabou por não vir a ocorrer, exemplos estes que mais não são que os casos típicos especialmente previstos no nº2 do art. 473º do C. Civil).
O requerente da restituição, como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 4/12/2007[6], não fica onerado com a prova de um facto negativo, porque do que se trata é de provar a causa (que é um facto positivo) e, subsequentemente, que esta realmente não existia ou deixou de existir entretanto.
Ora, não se tendo provado o empréstimo alegado pelo autor, da factualidade provada nada mais resulta no sentido da prova de uma qualquer outra causa para a deslocação patrimonial ocorrida para as rés quanto àquela quantia de 80.000 euros (quanto à quantia de 40.000 euros restante, correspondente à quota de 1/3 na compropriedade da fração, tal questão não se põe, pois, como resulta do nº6 dos factos provados, o autor doou tal quota às rés) e da real não existência ou frustração de tal causa.
Neste conspecto, não se pode concordar com o raciocínio seguido na sentença recorrida de que anteriormente se deu conta (no sentido de considerar que, porque não se apurou uma causa justificativa para a vantagem patrimonial das rés quanto a 80.000 euros, era de concluir pelo enriquecimento sem causa destas quanto a tal montante), sendo antes de concluir, na sequência do que se veio de analisar, que, porque o autor não fez prova da falta de causa justificativa para a deslocação patrimonial ocorrida, não se pode dar como verificado o enriquecimento sem causa das rés.
Por tudo quanto se expôs, há que julgar procedente o recurso e, revogando-se a decisão recorrida, absolver as rés da condenação nesta proferida.
As custas da ação e do recurso ficam a cargo do autor/recorrido, porque decaiu (art. 527º nº1 do CPC).
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Por tudo o exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, revogando-se a sentença recorrida, absolvem-se as rés da condenação ali proferida.
Custas da ação e do recurso a cargo do autor/recorrido.