ROUBO
PESSOA COLECTIVA
INIMPUTABILIDADE
MEDIDA DE SEGURANÇA
DURAÇÃO
PERIGOSIDADE CRIMINAL
INTERNAMENTO
Sumário

I - O crime de roubo é um crime pluriofensivo, atingindo bens jurídico distintos, qualquer deles penalmente protegido por si só. Trata-se assim de um tipo de ilícito “complexo” ou “composto” porque na sua génese contém um crime contra direitos pessoais (a integridade física e /ou a liberdade) e um crime contra a propriedade de coisas móveis.
II - Sendo praticado através de actos lesivos da liberdade e ou da integridade física, não se nos afigura passível de ser cometido contra uma pessoa coletiva, pois em face da sua natureza jurídica institucional não poderia esta, ao contrário das pessoas físicas, ser alvo da componente da violência.
III - De acordo com o que foi apurado na avaliação pericial realizada ao arguido, não deverá este ser considerado imputável no momento da prática dos factos.
IV - Para a aplicação da medida de segurança, há que encontrar um mínimo e máximo, nos termos definidos nos artigos 91º e 92º/CP. Estatui o artigo 91.º do Código Penal que quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.
V - Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
VI - Estatui o n.2 do artigo 92º do Código Penal, que o internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável. No caso do facto ilícito ser qualificado por circunstâncias atinentes à ilicitude, o limite máximo do internamento corresponde ao limite máximo da moldura penal do crime qualificado. Mas no caso do facto ser qualificado, apenas por circunstâncias referentes à culpa, o limite máximo do internamento corresponde ao limite ao limite máximo da moldura penal do crime simples.
VII - No caso do cometimento de uma pluralidade de crimes pelo mesmo agente inimputável o Tribunal aplica uma só medida de segurança de internamento, cujos limites correspondem à moldura do mais grave dos factos cometidos pelo agente. Assim, a graduação da gravidade relativa aos factos cometidos pelo inimputável resulta exclusivamente das opções do legislador e não de qualquer escolha do Tribunal.
VIII - É inquestionável a perigosidade e o grave risco de repetição deste tipo de crimes (artigo 91o/1 do CP) pois tem o arguido um pesado registo de condenações por crimes contra as pessoas, pelo que deverá o arguido ser sujeito a medida de segurança a cumprir em estabelecimento psiquiátrico ou de cura adequado
IX - Deverão ser fixados os limites mínimo e máximo, o que na situação sub judice, em face do seu grau de perigosidade e das molduras dos ilícitos por si cometidos, de acordo com o disposto no artigo 91º, n.2 e 92º, n.2, do Código Penal, deverá ter a duração mínima de três anos e máxima de dez.
X- Na sujeição do arguido a esta medida de segurança, deverá ser descontado o período de privação de liberdade sofrido pelo arguido, à ordem destes autos.
XI - Deverá ainda a medida de segurança ser oportunamente revista, de acordo com o disposto no artigo 93o, no2 do Código Penal.

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem o Tribunal da Relação de Lisboa, nos seguintes termos:

1. Relatório
Não se conformado com o Acórdão proferido que o condenou como reincidente, pela prática de dois crimes de roubo agravado, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 210º, nº1 e 2, alínea b), do Código Penal, numa pena agravada de 3 anos, 10 meses e 8 dias cada e em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão veio o AA do mesmo interpor recurso, peticionando a sua revogação e que em consequência seja apreciada a imputabilidade ou inimputabilidade do arguido aquando a prática dos factos e ainda se a reclusão do arguido em estabelecimentos prisionais comuns é (ou não) prejudicial para o recorrente, ou se a sua reclusão naqueles estabelecimentos perturbará seriamente o regime de funcionamento destes;
- mais peticiona que em caso de improcedência, deva a pena de privativa da liberdade de cinco anos e seis meses ser consideravelmente diminuída, baixando para o mínimo legal aplicável ao tipo legal de do crime de roubo, na sua forma tentada;
- peticiona ainda a revogação da pena de prisão agravada pela reincidência por falta de pressuposto material e a suspensão na sua execução.
1.1.
Do dispositivo do Acórdão recorrido, resulta o seguinte:
“Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo
1. Absolver AA da prática de três crimes de roubo agravado na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 210º, nº1 e 2, alínea b) do Código Penal;
2. Condenar AA, como reincidente, pela prática de dois crimes de roubo agravado, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 210º, nº1 e 2, alínea b) do Código Penal, numa pena agravada de 3 anos, 10 meses e 8 dias cada.
3. Efetuado o cúmulo jurídico, condenar AA da prática na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
4. Determinar a recolha de amostra de ADN e subsequente inserção na base de dados prevista na Lei nº 5/2008, de 12 de fevereiro.
5. Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, as quais se fixam em 4 UC (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal e 8º, nº5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III Anexa] e honorários nos termos legais. “
*
1.2
O Acórdão tem a seguinte Fundamentação:
“Factos Provados
Em sede de audiência de julgamento, e com interesse para a causa, provou-se que:
1. No dia ... de ... de 2023, pelas 15h58, o arguido, que trajava um kispo amarelo, deslocou-se até ao supermercado ..., sito na ..., em horário de funcionamento, dirigiu-se ao caixa de pagamento localizado na zona das refeições, abordou a ofendida BB, que ali estava a trabalhar, exibiu-lhe uma navalha com o comprimento total de 15,5 cm, uma lâmina de 6,8 cm, e um cabo com as cores preta e laranja, com a qual se tinha previamente munido, e apontou-lhe a navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu as expressões: “dá-me o dinheiro todo do caixa, dá-me já o dinheiro, senão eu enfio-te a navalha!”.
2. A ofendida BB negou-se a fazê-lo e o arguido aproximou ainda mais a navalha do seu corpo e exigiu que lhe entregasse 10 euros, dizendo-lhe: “dá-me 10 € daí, senão eu espeto-te!”, o que ela voltou a recusar, respondendo-lhe que chamaria a polícia.
3. No interior da caixa registadora da caixa de pagamento operada pela ofendida BB existia uma quantia superior a 300 € em numerário.
4. BB e a sua colega CC, que ali igualmente estava a trabalhar, pediu o auxílio do segurança do estabelecimento comercial, o DD, que se aproximou da zona onde se encontravam.
5. De seguida, o arguido aproximou-se do ofendido DD, exibiu-lhe e apontou-lhe a navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu a expressão: “eu quero dinheiro! dá-me já o dinheiro!”.
6. O ofendido DD recusou-se a fazê-lo.
7. Ato contínuo, o arguido deslocou-se até ao balcão central onde estava guardado um dos cofres da loja, acedeu ao seu interior, mas perante a reação de EE, que gritou, acabou por se afastar desse local.
8. No interior do referido cofre, existia a quantia de cerca de 1 000,00€ em numerário.
9. O arguido deslocou-se então até uma linha de caixas de pagamento do supermercado, abordou o ofendido FF, funcionário do estabelecimento que se encontrava a trabalhar numa das caixas de pagamento, exibiu-lhe e apontou-lhe a navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu as expressões: “passa o dinheiro para cá! dá-me o dinheiro, dá-me todo o dinheiro!”, tendo cessado o seu comportamento após nova intervenção de DD.
10. No interior da caixa registadora da caixa de pagamento operada pelo ofendido FF existia a quantia de 500 € em numerário.
11. De seguida, o arguido saiu do supermercado, e, pelas 16h20, dirigiu-se até à ..., abordou a ofendida GG, que se encontrava em frente ao n.º 235, junto à caixa multibanco contígua às instalações do ..., depois de ter nela inserido o seu cartão multibanco, exibiu-lhe e apontou-lhe a referida navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu a expressão: “dá-me o dinheiro, todo o que tu tens!”.
12. A ofendida recuou, ao mesmo tempo em que procurava anular a operação em curso de levantamento de numerário na caixa ATM, e respondeu ao arguido que não tinha dinheiro na conta, quando na realidade tinha um saldo de pelo menos 400 €.
13. O arguido aproximou-se ainda mais dela, com a navalha empunhada, exigiu-lhe que marcasse o seu código pessoal pin na caixa multibanco, e insistiu com a ofendida, dirigindo-lhe a expressão: “levanta o dinheiro, senão enfio-te a navalha!”.
14. A ofendida aproveitou que um transeunte se encontrava no momento a atravessar a rua e a caminhar na direção do local, para encetar uma fuga.
15. O arguido agiu sempre, em todas as ocasiões, com o propósito de se apoderar, através da exibição da navalha e das expressões proferidas acima reproduzidas, de quantias em numerário que sabia não lhe pertencerem, constrangendo BB, DD, FF e GG, e colocando-os na impossibilidade de lhe resistirem, bem sabendo que agia contra a vontade da sociedade ofendida proprietária das referidas quantias em numerário e dos ofendidos, o que apenas não conseguiu por razões alheias à sua vontade.
16. À data dos eventos em apreço, o examinado tinha capacidade de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados, mas encontrava-se incapaz de se determinar de acordo com essa avaliação devido ao craving e à impulsividade associadas às patologias de que padece.
17. No âmbito do processo n.º 89/06.9PFPDL, que correu termos no Juízo Central Criminal de Ponta Delgada, por Acórdão proferido em 5 de novembro de 2008, transitado em julgado em 5 de dezembro de 2008, o arguido foi condenado pela prática, no dia ... de ... de 2007, de 1 crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, CP, na pena parcelar de 3 meses de prisão, e 1 crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2.º, n.º 1, a), 3.º, n.ºs 1 e 2, e), 4.º, 86.º, n.º 1, d), RJAM, na pena parcelar de 6 meses de prisão, e, subsequentemente, na pena única de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano.
18. Por outro lado, no processo n.º 1799/08.1PBPDL, que correu termos no Juízo Central Criminal de Ponta Delgada, por Acórdão proferido em 3 de março de 2009, transitado em julgado em 23 de março de 2009, o arguido foi condenado pela prática, entre os dias ... de ... de 2007 e ... de ... de 2008, de 4 crimes de furto qualificados na forma consumada, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, e), CP, nas penas parcelares de 10 meses, 11 meses, 10 meses e 1 ano de prisão, e 2 crimes de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.º 1, a) e b), 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, e), CP, nas penas parcelares de 9 e 8 meses de prisão, e, consequentemente, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução.
19. De seguida, no processo n.º 835/08.6PBPDL, que correu termos no Juízo Central Criminal de Ponta Delgada, por Acórdão proferido em 25 de Janeiro de 2010, transitado em julgado em 2 de Março de 2010, o arguido foi condenado pela prática, entre os dias ... de ... de 2008 e ... de ... de 2008, de 5 crimes de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1, CP, nas penas parcelares de 1 ano e 2 meses de prisão, 1 ano e 2 meses de prisão, 1 ano e 2 meses de prisão, 1 ano e 2 meses de prisão, e 1 ano e 2 meses de prisão, e 3 crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, e), CP, nas penas parcelares de 2 anos e 2 meses de prisão, 2 anos e 1 mês de prisão, e 2 anos e 1 mês de prisão, e, consequentemente, na pena única de 3 anos e 6 meses prisão, suspensa na sua execução.
20. No âmbito do processo n.º 1219/07.9PBPDL, que correu termos no Juízo Central Criminal de Ponta Delgada, por Acórdão proferido em 15 de Novembro de 2010, transitado em julgado em 16 de Dezembro de 2010, o arguido foi condenado pela prática, entre os dias ... de ... de 2007 e ... de ... de 2009, de 7 crimes de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1, CP, nas penas parcelares de 1 ano e 4 meses de prisão, 1 ano de prisão, 1 ano de prisão, 1 ano de prisão, 1 ano de prisão, 1 ano de prisão, 1 ano de prisão, 7 crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, e), CP, e 1 crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 1, f), CP, nas penas parcelares de 2 anos e 10 meses, 2 anos e 3 meses de prisão, 2 anos e 6 meses de prisão, 2 ano de prisão, 2 ano de prisão, 2 anos e 6 meses de prisão, 3 anos de prisão, e 3 anos e 2 meses de prisão, e 2 crimes de furto, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, CP, nas penas parcelares de 8 e 7 meses de prisão, e, consequentemente, na pena única de 7 anos de prisão.
21. No processo n.º 225/08.0PBPDL, que correu termos no Juízo Local Criminal de Ponta Delgada, por Sentença proferida em 10 de janeiro de 2012, transitada em julgado em 30 de janeiro de 2012, o arguido foi condenado pela prática, entre os dias ... de ... de 2008 e ... de ... de 2008, de 1 crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, CP, na pena de 1 ano de prisão efetiva.
22. No processo n.º 1865/09.6PBPDL, que correu termos no Juízo Local Criminal de Ponta Delgada, por Sentença proferida em 16 de abril de 2012, transitada em julgado em 16 de maio de 2012, o arguido foi condenado pela prática, entre os dias ... de ... de 2008 e ... de ... de 2008, de 1 crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º, CP, na pena de 2 meses e 15 dias de prisão.
23. No âmbito do mencionado processo n.º 1865/09.6PBPDL, que correu termos no Juízo Central Criminal de Ponta Delgada, foi proferido Acórdão de Cúmulo Jurídico, em 22 de março de 2013, transitado em julgado em 7 de maio de 2013, que abrangeu as condenações acima referidas, e o arguido foi condenado na pena única de 12 anos e 7 meses de prisão.
24. O arguido esteve privado da liberdade à ordem do processo n.º 1799/08.1PBPDL, desde ... de ... de 2008 até ... de ... de 2008, e, de seguida, esteve privado da liberdade à ordem do processo n.º 1219/07.9PBPDL, desde 15 de fevereiro de 2011.
25. No dia 10 de maio de 2017, o arguido foi ligado ao cumprimento de pena de prisão aplicada à ordem do processo n.º 1477/09.4PBPDL, tendo sido novamente ligado no dia 10 de novembro de 2017 ao cumprimento de pena de prisão aplicada à ordem do processo n.º1865/09.6PBPDL.
26. Por decisão do Juízo de Execução de Penas de Lisboa proferida no processo n.º 557/11.0TXLSB-A, transitada em julgado em 14 de outubro de 2021, foi concedida a liberdade condicional ao arguido, com duração até 25 de fevereiro de 2024, data do termo da pena única de prisão que lhe foi aplicada.
27. O arguido estava ciente das anteriores condenações que sofreu, bem como dos factos que as motivaram, das penas parcelares e única em que foi condenado e do período que esteve preso em cumprimento da referida pena única.
28. Não obstante, o arguido não interiorizou que tem que pautar a sua conduta pelas regras básicas de convivência social, traduzidas nas normas penais, não cometendo novos crimes, mormente da mesma natureza daqueles que levaram às anteriores condenações e, totalmente insensível à pena de prisão que cumpriu, na ocasião acima indicada, praticou os factos acima descritos.
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Das condições socioeconómicas do arguido:
29. AA é o mais velho de uma fratria de três elementos, oriundo de um agregado familiar de nível socioeconómico e cultural baixo. A infância decorreu num contexto familiar minimamente ajustado, apesar das dificuldades económicas e constrangimentos habitacionais. A satisfação das necessidades do núcleo familiar, na altura, era assegurada através do rendimento do pai, que trabalhava no sector da ... na empresa “...”, e da mãe, como ….
30. Integrou o sistema de ensino em idade própria e chegou a frequentar o ensino secundário, sem que tenha conseguido concluir a escolaridade mínima obrigatória, sendo frequentes as fugas à escola. Ainda em meio escolar, estabeleceu contacto com o mundo das drogas, nomeadamente por início do consumo de canabinóides. A fraca capacidade de supervisão e controlo parental, associada à convivência em grupos de pares socialmente problemáticos, poderá ter facilitado o acentuar daqueles consumos aditivos, vindo AA a tornar-se dependente de heroína.
31. Numa tentativa de proporcionar melhores condições de vida ao seu núcleo familiar, o pai do arguido emigrou para o ..., quando ele se encontrava na adolescência, tendo regressado poucos meses mais tarde, devido à insistência da mãe do arguido. No regresso, os conflitos familiares entre os progenitores acentuaram-se e o divórcio acabou por ocorrer, e o arguido e o irmão mais novo mantiveram-se a viver com o pai e deixaram de ter contacto com a mãe, sendo verbalizado por AA algum ressentimento e mágoa relativamente àquela.
32. Na sua história de vida refere o primeiro contacto com o Sistema de justiça em 2008, no âmbito do Processo nº 1799/08.1 PBPDL, devido à prática de vários crimes de furto qualificado e furtos qualificados na forma tentada.
33. No contexto da intervenção da DGRSP e da medida de coação que lhe foi aplicada, o arguido foi encaminhado, em ... de 2008, para realizar processo de desintoxicação, em regime de internamento, na ..., no entanto, foi expulso daquela Instituição por incumprimento das normas impostas no programa de tratamento. A ... do mesmo ano foi-lhe aplicada a medida de coação de prisão preventiva, vindo a ser libertado durante o primeiro semestre de 2009.
34. Foi acompanhado pela DGRSP no âmbito de várias medidas probatórias, sendo que a 15/02/2011 e, por acórdão transitado em julgado em 24/06/2011 foi condenado, em cúmulo jurídico, no Processo nº 1219/07.9PBPDL, do 4º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada, na pena única de 12 anos de prisão. O último acórdão condenatório cuja sentença transitada em julgado data de 07/05/2013, no Processo nº 1865/09.6PBPDL, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, fixou a pena única de 12 anos e 7 meses de prisão.
35. Libertado condicionalmente em .../.../2021, AA ficou a residir conjuntamente com familiares, designadamente, progenitor, um casal de irmãos, um cunhado e dois sobrinhos, na freguesia da ....
36. Em ... de 2022, solicitou alteração de morada, para a freguesia da ..., permanecendo a residir com o mesmo agregado.
37. No âmbito do acompanhamento e supervisão da respetiva problemática aditiva (álcool e drogas), foi solicitada a intervenção da ...) e da PSP de ..., no sentido de AA poder realizar testes de despiste dos consumos e ser alvo de intervenção médica e eventual tratamento em caso de necessidade. Solicitou-se ainda junto daquela Associação acompanhamento psicológico para o arguido.
38. Em ... de ... de 2021, o mesmo efetuou consulta de plantão na ... (primeiro atendimento na área psicossocial para avaliação de caso) e consulta médica em ..., tendo ficado integrado no Programa de Tratamento com Agonista Opiáceo com Cloridrato de Metadona.
39. Em ...de 2022, em entrevista realizada nesta Equipa, AA assumia consumos pontuais de haxixe (comprovados posteriormente mediante a realização de vários testes naquela instituição, ao longo do ano de 2022) e referiu beneficiar de acompanhamento psicossocial (nas áreas de psicologia e serviço social).
40. Em ... de ... de 2022, realizou inscrição na ... Porém e face à manutenção de uma situação de desemprego/desocupação, AA, em ... de ... de 2022, iniciou ocupação no ..., no período da manhã, sendo-lhe facultado o almoço. Contudo, aquela valência encerrou a sua atividade no dia ... de ... de 2022.
41. Algum tempo depois e segundo afirmou AA em entrevista realizada na DGRSP no dia ..., passou a exercer atividade, em regime de voluntariado, na área da ... no ... sito no ..., segundo o tutelado, das 9h00 às 15h00 e entre ... e ....
42. À data de ... de ... de 2022, AA mantinha ativa a inscrição na ...
43. Entretanto, e conforme informação prestada pela ..., no dia ... de ... de 2022, AA foi excluído do Programa Ocupacional que desenvolvia, na área da cerâmica, por motivo de faltas consecutivas e injustificadas. Foi convocado a comparecer em consulta social e de inserção laboral da instituição, no dia ..., todavia, faltou sem apresentar justificação.
44. Realizou testes de alcoolémia nos dias ... de ... de 2022, cujo resultado foi de uma TAS de 0,08 g/l, ... e ... cujo resultado foi de uma TAS de 0,00 g/l. Não compareceu para realizar teste, apesar de combinado com o próprio, no dia ... de ... de 2022.
45. Em ... de 2023, através de contacto telefónico com HH (irmã do arguido) e com o próprio, foi referido o consumo de substâncias sintéticas por parte deste, com consequente instabilidade gerada no seio do agregado familiar, afirmando, no entanto AA, que tanto o seu progenitor como o respetivo cunhado também eram consumidores de produtos estupefacientes. Nesta altura, AA mantinha-se integrado no Programa de Metadona da ... e tinha entrevista agendada nesta Equipa para dia .... Em fevereiro, segundo a irmã, o arguido manteria consumos de substâncias sintéticas e um quotidiano desregrado. AA aguardava consulta médica na ..., após ter faltado a uma agendada para dia .... Faltou a entrevista agendada para dia ..., vindo o mesmo a contactar telefonicamente a equipa no dia ..., tendo aquela sido remarcada para dia ..., à qual AA compareceu.
46. Segundo o mesmo, no dia anterior tinha passado a residir na ..., num quarto arrendado. Continuava a beneficiar da concessão do Rendimento Social de Inserção, integrado no Programa de Metadona e a consumir haxixe e substâncias sintéticas. Tinha voltado a faltar às consultas médicas agendadas para dias ... e ..., bem como a vários testes agendados ao longo do primeiro semestre de 2023.
47. AA foi expulso da moradia sita na ... (segundo o próprio, por se ter desentendido com outro residente da mesma), registando em ... de 2023 um segundo internamento no ..., desta vez em regime de internamento compulsivo. O referido Serviço aguardava resposta da ... no sentido de possível integração do arguido em residência protegida, o que acabou por não ocorrer por falta de colaboração do próprio. AA acabou por ficar na condição de sem-abrigo, não obstante o suporte disponibilizado através da ...”, verificando-se acentuados consumos de substâncias sintéticas e aparente desorientação a nível mental, tendo sido sinalizado para internamento na ...
48. Entretanto, foi preso.
49. Em meio prisional, não integra qualquer programa terapêutico, acusou consumo de substâncias ilícitas nos testes de despiste efetuados em março e abril últimos, não beneficia de acompanhamento psicológico, não tem ocupação, não regista sanções disciplinares e não recebe quaisquer visitas.
50. AA apresenta reduzidas capacidades de descentração e de autocrítica e quando sob efeito de substâncias aditivas tende a assumir um discurso verbal marcado por alguma agressividade e intolerância, acabando por se desresponsabilizar face à assunção de determinados comportamentos, o que evidencia quando confrontado com a sua atual situação jurídico-penal.
51. Continua a evidenciar também grande dificuldade em interiorizar a necessidade de mudança, não obstante a existência de alguns contextos mais apoiantes, que acaba por rejeitar.
52. O arguido padece de uma Dependência de Substâncias Ilícitas (F19 da CID-10) e de uma Psicose SOE (F29 da CID-10) com vários anos de evolução.
53. Tem vindo a apresentar desde há longa data alterações do comportamento, associadas ao consumo de substâncias ilícitas.
54. A patologia de que padece já se encontra a ser devidamente tratada com anti psicótico injetável que lhe é administrado mensalmente.
55. O examinado apresenta uma fraca (quase inexistente) rede de suporte sociofamiliar, consumo de substâncias com anos de evolução e abandono frequente da terapêutica que tem prescrita, pelo que existe fundado receio que atos como os em apreço se voltem a repetir.
56. Já foi julgado e condenado:
a) Por sentença de .../.../2007, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por 1 ano, pela prática de um crime de furto e de um crime de detenção de arma proibida a .../.../2007;
b) Por acórdão de 03/03/2009, na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual período de tempo, pela prática de dois crimes de furto qualificado na forma tentada e quatro crimes de furto qualificado, tudo em .../.../2008;
c) Por acórdão de 25/01/2010, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, pela prática de um crime de furto qualificado a .../.../2008, cinco crimes de roubo a .../.../2008, um crime de furto qualificado a .../.../2008 e um crime de furto qualificado a .../.../2008;
d) Por acórdão de 15/11/2010, na pena de 7 anos de prisão, pela prática de 7 crimes de furto qualificado a .../.../2007, 7 crimes de roubo a .../.../2008, 2 crimes de furto a .../.../2008 e um crime de furto qualificado a .../.../2009;
e) Por acórdão cumulatório de 24/06/2011, na pena única de 12 anos de prisão; f) Por sentença de 10/01/2012, na pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de furto a .../.../2008;
g) Por sentença de 05/03/2012, na pena de 6 meses de prisão, pela prática de um crime de furto a .../.../2009;
h) Por sentença de 16/04/2012, na pena de 2 meses e 15 dias de prisão, pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público a .../.../2008;
i) Por sentença cumulatória de 22/03/2012, na pena única de 12 anos e 7 meses de prisão.
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2. Factos Não Provados
Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:
a) O arguido aproximou-se da ofendida CC, que ali igualmente estava a trabalhar, exibiu-lhe e apontou-lhe a navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu a expressão: “dá-me já o dinheiro, senão enfio-te a navalha também!”.
b) CC recusou-se a fazê-lo e pediu o auxílio do segurança do estabelecimento comercial, DD, que se aproximou da zona onde se encontravam.
c) O arguido disse a FF “senão furo-te”.
3. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).
Foram assim valoradas as declarações pelo arguido e pelas testemunhas II e JJ (agentes da P.S.P.), BB, CC, DD, FF e KK (funcionários do ...) e GG (ofendida).
Relativamente à prova documental, o Tribunal teve em consideração, os autos de notícia (fls. 2/3 e fls.2/3 do apenso), o auto de visionamento de imagens e respetivo CD (32-41 e 49 do apenso), os autos de reconhecimento (fls. 23/24, 232/233 e 45/46 do apenso), as fotografias (fls. 7, 12/13) e as certidões dos processos judiciais.
Mais se atendeu ao relatório pericial de 15/10/2024.
Concretizando, o arguido começou por dizer que era tudo verdade e que pretendia dinheiro para “um quarto”, pois estava a viver na rua. Contudo, no desenrolar das suas declarações entrou em contradição, tendo negado alguns dos factos da acusação.
O Tribunal ouviu, assim, as funcionárias do estabelecimento em causa, a saber, BB e CC, as quais nos explicaram, de forma consentânea, a abordagem do arguido, negando ainda que aquele tivesse apontado a navalha para CC (até porque esta estava atrás de BB).
Também EE e FF explicaram, de forma clara, o modo como foram abordados, o dinheiro que tinham no cofre e caixa, tendo FF negado que o arguido tenha dito “que o furava”. Já o segurança DD explicou, de forma espontânea, que quando foi abordar o arguido este lhe apontou uma navalha e pediu o dinheiro da caixa, tendo sido difícil colocá-lo fora da loja, já que aquele desobedecia constantemente às suas ordens. Também GG prestou um depoimento marcadamente genuíno e espontâneo, explicando a forma de abordagem do arguido e a fuga que encetou, tendo ainda dito que apenas iria levantar cerca de 400,00€. Por fim, os agentes policiais explicaram que, após se deslocarem ao ..., foram à procura do arguido, tendo-o intercetado cerca de vinte minutos depois, ainda na posse de uma navalha. Assim, e conjugados todos estes depoimentos com as imagens de videovigilância, dúvidas inexistem quanto aos factos que se deram como provados.
Em relação aos elementos subjetivos dos factos imputados ao arguido, os mesmos decorrem da conjugação da factualidade objetiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador, conjugadas com o teor do relatório pericial, o qual refere que o arguido tinha capacidade de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados.
Não ignoramos que a perita médica conclui que à data dos eventos em apreço, o examinado tinha capacidade de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados, mas encontrava-se incapaz de se determinar de acordo com essa avaliação devido ao craving e à impulsividade associadas às patologias de que padece, pelo que deverá ser considerada uma imputabilidade diminuída para os eventos em apreço nesta avaliação. Todavia, a “imputabilidade diminuída” não é objeto de qualquer preceito legal no Código Penal, quer a nível de definição, quer a nível de efeitos que podem surgir com a sua aplicação.
Para tais casos, a doutrina e a jurisprudência têm recorrido ao disposto no artigo 20º, nº2 do Código Penal, o qual dispõe que pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
Tal norma permita ao Tribunal optar pela imputabilidade [caso em que a “imputabilidade diminuída” vai influenciar na determinação da pena (artigo 71º)] ou pela inimputabilidade do sujeito (sendo-lhe aplicada uma medida de segurança, de acordo com o artigo 91º).
De acordo com Germano Marques da Silva, é possível distinguir duas situações da diminuição da imputabilidade: a redução da capacidade de compreensão do injusto e a redução da capacidade de autodeterminação, explicando que se a primeira acarreta necessariamente a segunda, o inverso não corresponde à verdade. Isto acontece, na medida em que, algumas vezes, indivíduos portadores de certas psiconeuroses, têm plena consciência do que fazem e conseguem compreender a ilicitude dos seus atos, contudo não podem ou têm dificuldades em evitá-los (Curso de Processo Penal, III, 2ª ed. rev. e act., pg. 56).
No nosso caso, dúvidas inexistem que o arguido é imputável, mas, efetivamente, encontrava-se sobre o efeito de substâncias que comprometiam a sua capacidade de autodeterminação.
Na verdade, da leitura que fazemos do relatório pericial, concluímos que AA tem capacidade de avaliar a ilicitude, mas devido ao défice de controlo de impulsos, dificuldade em se determinar, pelo que não integra os pressupostos do artigo 20º, nº1 do Código Penal.
Justifica-se, assim, a sua imputabilidade penal, sendo que, contudo, aquando da determinação da medida de pena, teremos tal em consideração.
Já os factos da reincidência resultam não só da prova documental, como das regras da normalidade e da experiência comum, conjugadas com o relatório da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, donde se infere que as diversas condenações anteriores não serviram de suficiente advertência, sendo de censurar a sua conduta.
Por fim, atendeu-se ao certificado de registo criminal do arguido.
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III. Fundamentação de Direito
1. Enquadramento Jurídico
O crime de roubo é um crime complexo que ofende, quer bens jurídicos patrimoniais (o direito de propriedade), quer bens jurídicos pessoais (a liberdade individual de decisão e ação e, em certos casos, até a própria liberdade de movimentos) e a integridade física.
Segundo o artigo 210º, nº1 do Código Penal, a conduta típica deste crime consiste em subtrair coisa móvel alheia ou constranger à sua entrega, sendo que os próprios meios para a subtração ou para o constrangimento à sua entrega estão especificados no tipo legal: a violência contra uma pessoa, a ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física ou a colocação da vítima em impossibilidade de resistir.
Acrescente-se que, para que a violência se verifique, não é necessário que exista lesão ou contacto físico com o ofendido, o que importa é que a força física empregue pelo agente, tendo em vista o objetivo expropriativo, se revele de tal forma que se possa dizer que atingiu a liberdade de determinação do ofendido (neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de abril de 1999, in Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e comentado, 14ª edição, 2001, pág. 674).
O sujeito passivo neste tipo de ilícito é a pessoa que tem a guarda do bem, independentemente de ser o seu verdadeiro proprietário ou de apenas ser o seu detentor, podendo, em certos casos, alargar-se tal conceito à pessoa que ofereça resistência à subtração do bem, sendo certo que o objeto da violência ou do constrangimento pode ser terceiro e não o próprio detentor. Basta que tal ameaça atinja o detentor do bem, para que se considerem preenchidos os elementos essenciais do tipo.
Quanto ao elemento subjetivo, terá sempre de haver dolo, pelo menos eventual (artigo 14º, nº 3, do Código Penal).
Ora, no caso em análise, não subsistem dúvidas de que o arguido cometeu um crime de roubo, na forma tentada, no ... e outro crime, na forma tentada, contra GG. Relativamente ao ..., diga-se que, apesar da violência ter sido exercida sobre diversos funcionários de tal estabelecimento, aquele pretendia, unicamente, o dinheiro da caixa de tal supermercado e não de cada um dos funcionários que abordou.
No que se refere ao supermercado ..., alegou o defensor do arguido que estaríamos perante uma tentativa impossível, atento o elevado número de pessoas que se encontravam dentro de tal estabelecimento à hora do assalto.
A chamada "tentativa impossível" observa-se quando há carência de objeto ou quando os meios que o agente utiliza não são idóneos para produzir o resultado final, não sendo punível, nos termos do artigo 23º, nº3 do Código Penal.
Todavia, no caso em análise não só o supermercado tinha dinheiro no seu interior como o arguido se socorreu de uma arma branca para tentar constranger os funcionários a entregar-lhe tal dinheiro, o que apenas não conseguiu atenta a resistência daqueles (aliás, caso se acolhesse a tese da defesa, seriam sempre tentativas impossíveis as tentativas de roubo a estabelecimento abertos ao público pois, na teoria, existe sempre a hipótese de os funcionários e os clientes travarem a conduta em curso).
Acresce que estas tentativas de roubo são agravadas por o arguido ter consigo arma, tendo utilizado contra as vítimas, pelo que a qualificativa da alínea b) do nº 2 do artigo 210º do Código Penal está preenchida.
Realce-se que o conceito de “arma” não se cinge apenas aos instrumentos expressamente elencados no artigo 2º, nº 1 do Regime Jurídico das Armas e Munições O artigo 4º do Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de março (Decreto Preambular do Código Penal de 1995) prescreve, ainda, que para efeito do disposto no Código Penal considera-se arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou possa ser utilizado para tal fim, pelo que o conceito de “arma” previsto no artigo 204º, nº 2, alínea f) do Código Penal engloba assim tanto a arma verdadeira ou real, como a arma classificada como tal pelo legislador (elencadas no artigo 2º, nº 1 do Regime Jurídico das Armas e Munições), bem como o objeto suscetível de ser utilizado como instrumento de agressão contra o corpo de alguém (artigo 4º do Decreto-Lei nº48/95 de 15 de março), seja uma arma visível, no sentido de ter sido exibida pelo agressor e visionada pela vítima, ou uma arma oculta (escondida).
Quanto ao dolo, e atento o que resultou provado, e o que já se deixou escrito acerca da imputabilidade diminuída, mostra-se também preenchido.
Pelo exposto, e não se tendo apurado qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, será o arguido condenado pela prática de dois crimes de roubo agravados, na forma tentada.
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2. Medida da Pena
Cumpre determinar a medida da pena a aplicar ao arguido, uma vez que a todo o crime corresponde uma reação penal pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada pelo agente.
A determinação definitiva da pena é alcançada através de um procedimento que decorre em três fases distintas:
- na primeira investiga-se e determina-se a moldura penal aplicável ao caso (medida abstrata da pena);
na segunda investiga-se e determina-se a medida concreta (dita também individual ou judicial);
na terceira escolhe-se (de entre as penas postas à disposição do legislador e através dos mecanismos das penas alternativas ou penas de substituição) a espécie de pena que, efetivamente, deve ser cumprida (DIAS, Figueiredo, Direito Penal – As consequências jurídicas do crime, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 229).
Vejamos, em concreto, estas diversas etapas.
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O crime de roubo agravado, na forma tentada, é punido com pena de prisão de 7 meses e 6 dias a 10 anos de prisão [artigo 210º, nº1, alínea b) do Código Penal].
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Uma vez que o crime em causa é apenas punível com pena de prisão, não há que proceder à escolha da pena nos termos explanados no artigo 70º, nº 1, do Código Penal, passando-se, de imediato, à determinação da medida daquela pena, que se mostre adequada ao comportamento do arguido, atendendo-se, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, à culpa do agente e às exigências de prevenção, não olvidando que a medida da pena jamais pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nº 2 do Código Penal).
Nesses moldes, a prevenção geral positiva ou de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar.
Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (artigo 40º, nº 2, do Código Penal).
Dentro desses limites, cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente, considerando ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, como preceitua o artigo 71º, nº 2, do Código Penal, encontrando-se assim a pena adequada e justa.
No caso em análise, as exigências de prevenção geral são extremamente elevadas, devido à frequência com que este tipo de crime é praticado, especialmente nesta Comarca dos Açores, conforme é disso expressão o elevado número de julgamentos pela prática deste crime. Dada a grande incidência destes crimes, são acentuadas as exigências de prevenção geral no sentido de fazerem apelo a uma maior necessidade de sancionamento para que se restabeleça a confiança, validade e eficácia na norma jurídico-penal violada, sendo ainda premente uma eficaz proteção e tutela do bem jurídico violado.
Também elevadas se mostram as necessidades de prevenção especial, atendendo a que o grau de ilicitude é elevado, atendendo ao elevado número de pessoas que tentou constranger. Por seu turno, e quanto à culpa, não podemos ignorar as conclusões do relatório pericial, de que o arguido, bem sabendo o que fazia, agiu impulsivamente devido à patologia de que passou a padecer devido ao consumo de estupefacientes. No que se refere aos antecedentes criminais, o arguido conta já com um largo rol, vindo, inclusivamente, acusado como reincidente, donde se infere que a presente conduta não representou um episódio isolado na sua vida, antes denotando uma personalidade insensível perante as normas jurídicas que regulam a vida em sociedade e revela resistência em se deixar influenciar positivamente pelas penas sofridas, o que resulta também evidenciado no relatório social. O arguido continua a evidenciar também grande dificuldade em interiorizar a necessidade de mudança, não obstante a existência de alguns contextos mais apoiantes, que acaba por rejeitar.
Tudo visto e ponderado, o Tribunal decide condenar o arguido AA numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão para cada um dos dois crimes de roubo tentado.
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Da reincidência
Aqui chegados, importa descortinar a verificação da reincidência enquanto circunstância agravante modificativa com previsão legal nos artigos 75º e 76º do Código Penal.
De acordo com o nº 1 do artigo 75º são pressupostos da reincidência:
i. a comissão de crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses;
ii. à data da prática desses factos, o arguido ter já sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a seis meses por outro crime doloso; e
iii. ser de censurar a conduta do agente por a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência para o crime.
Por seu turno, estabelece o nº 2 do mesmo artigo um pressuposto “negativo” da aplicabilidade do instituto, qual seja a ausência do decurso do período de mais de cinco anos entre a prática de ambos os crimes, não sendo computado o tempo durante o qual o agente esteve em cumprimento da pena privativa da liberdade.
Feito este enquadramento, constatamos que, no caso dos autos, mostram-se reunidos os ditos pressupostos objetivos (positivos – alíneas (i) e (ii) e negativo):entre as datas dos diversos crimes que englobaram o cúmulo jurídico realizado no âmbito do processo n.º 1865/09.6PBPDL e os dias da prática dos crimes que ora se imputam ao arguido, descontado o período de privação da liberdade sofrido pelo arguido em cumprimento da pena única acima indicada, decorreram menos de 5 anos (factos 17º a 27º).
É assim de concluir que tais condenações não constituíram obstáculo bastante ao cometimento de novos crimes pelo arguido, não se logrando assegurar, pela referida condenação, as exigências de prevenção geral e especial que àquele caso cabiam, devendo aqui ser aplicada pena de prisão efetiva superior a 6 meses.
Atento o disposto no artigo 76º nº 1 do Código Penal, pelo que, levando em conta os fundamentos supra vertidos a propósito da determinação da medida da pena, consideramos justa, necessária, adequada e proporcional a aplicação da pena agravada dos crimes de roubo em 3 anos, 10 meses e 8 dias de prisão cada.
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Verificando-se, um concurso real e efetivo de infrações, a punição deve realizar-se de acordo com o disposto no artigo 77º do Código Penal.
Nos termos do nº 2 da norma acima referida, a pena única deverá ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas a todos os crimes.
Dentro desta moldura, há também que atender aos factos e à personalidade dos agentes, apreciados conjuntamente (artigo 77º, nº 1, parte final do Código Penal), que revelam uma tendência criminosa, e realizando uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade (nomeadamente a gravidade do ilícito global, atento o modo de execução dos crimes, o período temporal e os valores em causa), de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto, demonstra-se adequada a fixação da pena única em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. (…)”
2. O Recurso
2.1
O recorrente apresentou alegações, com as seguintes Conclusões:
I. Vai o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos quanto à matéria de facto e de direito.
II. O Tribunal Coletivo acordou quanto ao arguido AA:
“2) Condenar AA, como reincidente, pela prática de dois crimes de roubo agravado, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 210º, nº1 e 2, alínea b) do Código Penal, numa pena agravada de 3 anos, 10 meses e 8 dias cada.
3. Efetuado o cúmulo jurídico, condenar AA da prática na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.”
III. O Recorrente não se conforma com a posição tomada pelo Tribunal a quo atenta a contradição insanável da fundamentação e a decisão.
IV. O Tribunal a quo não ignorando a conclusão da perita médica de que à data dos eventos em apreço, o examinado tinha capacidade de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados, mas encontrava-se incapaz de se determinar de acordo com essa avaliação devido ao craving e à impulsividade associadas às patologias de que padece, deveria se considerada uma imputabilidade diminuída para os eventos em apreço nesta avaliação, ainda assim o Tribunal a quo decidiu que inexistem dúvidas que o arguido é imputável, mas encontrava-se sobre o efeito de substâncias que comprometiam a sua capacidade de autodeterminação.
V. Porém, analisando a matéria de facto provada, verificamos que, por um lado, foram dados como provados os factos 15, 16, 52, 53, 54 e
VI. O tribunal chegou a estas conclusões baseando-se no relatório médico legal junto aos autos.
VII. Tendo em conta tudo isto, cumpre-nos afirmar que existe contradição entre a fundamentação e a decisão, uma vez que se o arguido, apesar de tudo, ainda possuía capacidade para avaliar a ilicitude, mas encontrava-se incapaz de se determinar de acordo com essa avaliação devido ao craving e à impulsividade associadas às patologias de que padece (facto provado nº16) - o que prevalece a capacidade ou a incapacidade de avaliação associadas à patologia de que padece…
VIII. Entendemos, pois, que se verifica o vício do ar. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP.
IX. Assim, cumpre esclarecer se no momento dos dois crimes de roubo o arguido estava consciente dos seus atos e do seu desvalor jurídico e, em caso afirmativo, em que grau.
X. O Tribunal a quo entendeu que o arguido é imputável, mas sem atender à conclusão da perita médica no atinente à imputabilidade diminuída para os eventos em apreço nesta avaliação.
XI. E, devemos, ainda, salientar que concluir pela imputabilidade diminuída não significa automaticamente considerar que o arguido é um imputável.
XII. Na verdade, nos termos do art. 20.º, n.º 2, do CP, “pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída”.
XIII. A partir deste dispositivo o legislador “propôs-se oferecer ao juiz uma norma flexível que lhe permite, em casos graves e não acidentais (...) considerar o agente imputável ou inimputável consoante a compreensão das conexões objectivas de sentido do facto como facto do agente se revele ou não ainda possível relativamente ao essencial do facto”, como ensina Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral — Tomo 1, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 587.
XIV. Assim sendo, cabe ao julgador explicar porque entende o arguido como imputável ou inimputável.
XV. O Tribunal a quo aplica a imputabilidade ao arguido sem ter na globalidade o relatório médico-legal junto aos autos, nomeadamente, que se apurou atividade delirante de conteúdo persecutório e autoreferencial e também atividade alucinatória crónica.
XVI. Como pode o Tribunal a quo considerar o arguido com a capacidade de avaliar a ilicitude e simultaneamente incapaz de se determinar de acordo com essa avaliação devido ao défice de controlo de impulso e, consequentemente, concluir pela imputabilidade do arguido.
XVII. Não tendo sido realizado aquele juízo, devemos entender, também neste ponto, que se está perante um caso de omissão de pronúncia a determinar a nulidade da decisão, o que se submete à apreciação do Tribunal ad quem.
XVIII. Na verdade, o julgador terá que decidir sobre se o agente pode ou não ser censurado por não dominar os efeitos da anomalia, mas terá também que averiguar se para a socialização do agente será preferível que este cumpra uma pena ou antes, eventualmente, uma medida de segurança.
XIX. Caso em que estaremos perante uma imputabilidade diminuída que, todavia, ainda permite ao juiz concluir por uma inimputabilidade.
XX. Por fim, a manter-se a conclusão da perita médica de que o arguido é imputável diminuído, será necessário o Tribunal a quo fundamentar com os elementos imprescindíveis para que se possa concluir se a reclusão do arguido em estabelecimentos prisionais comuns é (ou não) prejudicial para o recorrente, ou se a sua reclusão naqueles estabelecimentos perturbará seriamente o regime de funcionamento destes, assim permitindo que o julgador possa decidir (ou não) pela aplicação do regime previsto no art.º 104.º, n.º 1, do CP.
XXI. Dada a existência do vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, nos termos do art. 426.º, do CPP, entende-se que se deve proceder a novo julgamento para averiguação precisa sobre a imputabilidade ou inimputabilidade do arguido aquando a prática dos factos e se a reclusão do arguido em estabelecimentos prisionais comuns é (ou não) prejudicial para o recorrente, ou se a sua reclusão naqueles estabelecimentos perturbará seriamente o regime de funcionamento destes, nos termos do artigo 104ºdo CP.
XXII. O Tribunal a quo na medida da pena aplicou três anos e seis meses de prisão a cada um dos crimes de roubo na forma tentada.
XXIII. Quando aplicou a reincidência aplicou a pena de 3 anos, dez meses e oito dias de prisão a cada crime de roubo na forma tentada.
XXIV. Por existir concurso real e efetivo de infrações, o Tribunal a quo fixou a pena única em cinco anos e seis meses de prisão.
XXV. A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra os arguidos (artigo 71.º do CP). Sendo que, em caso algum, a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º n.º 2 do CP).
XXVI. O artigo 71.º n.º 1 diz-nos que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, ou seja, a lei enuncia como critérios gerais de determinação da pena a culpa do agente e as exigências de prevenção.
XXVII. Em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, que atua assim como limite máximo da pena (artigo 40.º n.º 2). Uma tal ultrapassagem beliscaria a dignitas humana e seria jurídico constitucionalmente inadmissível.
XXVIII. Note-se que o Tribunal a quo se tivesse aplicado uma pena inferior ainda assim tinha acautelado as exigências de prevenção especial positiva, pois o Recorrente encontra-se: em tratamento com antipsicótico injetável que lhe é administrado mensalmente (facto provado no ponto 54) e evidenciou arrependimento na audiência de discussão e julgamento, acta de 12 de Setembro de 2024, com referência citius nº 57811437, declarações do arguido com a designação -Diligencia_2349-23.5PBPDL_2024-09-12_09-43-46- consignando-se o seu início 00:00:12 e termo a 00:00:16, cuja a audição se requer.
XXIX. O arrependimento do arguido não foi tido em conta pelo Tribunal a quo, conforme resulta da gravação das declarações do Recorrente.
XXX. Como vimos, de acordo com o artigo 71.º n.º 2 do CP, na determinação concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
XXXI. O Tribunal a quo considerou que: “Também elevadas se mostram as necessidades de prevenção especial, atendendo a que o grau de ilicitude é elevado, atendendo ao elevado número de pessoas que tentou constranger. Por seu turno, e quanto à culpa, não podemos ignorar as conclusões do relatório pericial, de que o arguido, bem sabendo o que fazia, agiu impulsivamente devido à patologia de que passou a padecer devido ao consumo de estupefacientes.”
XXXII. Apesar de ser referido pelo Tribunal a quo que o arguido agiu impulsivamente devido à patologia de que passou a padecer, não teve em conta esta circunstância em qualquer operação da determinação da pena.
XXXIII. Por outro lado, não obstante o Tribunal a quo determinar a moldura aplicável no crime de roubo agravado na forma tentada, facilmente se depreende que na quantificação a cada crime de roubo antes da operação da reincidência, a decisão de condenar numa pena de 3 anos e 10 meses e 8 dias de prisão a cada crime de roubo tentado, não foi tida a tentativa como circunstância atenuante, constituindo uma fixação da pena de prisão excessiva.
XXXIV. Entende o Recorrente que, o arrependimento e a tentativa nos crimes praticados não foram devidamente valoradas no momento do Cabral.
XXXV. O Recorrente demonstrou arrependimento.
XXXVI. Perante todo o já exposto, deve a pena de privativa da liberdade de cinco anos e seis meses ser consideravelmente diminuída ao mínimo legal para o tipo legal de do crime de roubo na forma tentada.
XXXVII. No acórdão, concretamente na medida da pena, foi consignado que “Também elevadas se mostram as necessidades de prevenção especial, atendendo a que o grau de ilicitude é elevado, atendendo ao elevado número de pessoas que tentou constranger. Por seu turno, e quanto à culpa, não podemos ignorar as conclusões do relatório pericial, de que o arguido, bem sabendo o que fazia, agiu impulsivamente devido à patologia de que passou a padecer devido ao consumo de estupefacientes. No que se refere aos antecedentes criminais, o arguido conta já com um largo rol, vindo, inclusivamente, acusado como reincidente, donde se infere que a presente conduta não representou um episódio isolado na sua vida, antes denotando uma personalidade insensível perante as normas jurídicas que regulam a vida em sociedade e revela resistência em se deixar influenciar positivamente pelas penas sofridas, o que resulta também evidenciado no relatório social. O arguido continua a evidenciar também grande dificuldade em interiorizar a necessidade de mudança, não obstante a existência de alguns contextos mais apoiantes, que acaba por rejeitar.
XXXVIII. Posteriormente, na verificação do concurso real e efetivo de infrações, o Tribunal a quo refere que: “Dentro desta moldura, há também que atender aos factos e à personalidade dos agentes, apreciados conjuntamente (artigo 77º, nº 1, parte final do Código Penal), que revelam uma tendência criminosa, e realizando uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade (nomeadamente a gravidade do ilícito global, atento o modo de execução dos crimes, o período temporal e os valores em causa), de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto, demonstra-se adequada a fixação da pena única em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.”
XXXIX. No processo de determinação da medida concreta da pena nos termos do artigo 71º do Código Penal mostram-se critérios informadores daquele processo “a culpa do agente” e “as exigências de prevenção”.
XL. Cada circunstância tem uma conexão de sentido com a culpa do agente ou com as necessidades de socialização ou inocuização do agente.
XLI. Nesta tarefa – como salienta Anabela Miranda Rodrigues, in Critério de Escolha das Penas de Substituição no Código Penal Português, 1988 – “é o juiz auxiliado pelo artigo 72º, n.º2 do Código Penal, o qual depois de estabelecer que aquele atenderá, na determinação da pena, a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, enumera de forma exemplificativa, alguns dos factores de medida da pena de carácter geral.”
XLII. Por outro lado, como sabemos resultar do princípio in dubio pro reo e bem salienta Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3ª Edição. p.360 no “concurso de circunstâncias modificativas agravantes e atenuantes, deve funcionar a circunstância mais grave e, em relação à moldura apurada, sucessivamente as circunstâncias modificativas atenuantes”.
XLIII. Isto significa que num caso concreto, e em benefício do arguido na determinação da medida concreta da pena, e depois nas operações ulteriores, devem operar em cumulação todos os factos que o beneficiam.
XLIV. Sendo que ao invés quanto aos factos que não abonam a seu favor (designadamente os antecedentes criminais) só podem operar uma vez.
XLV. Fala a este propósito a doutrina e jurisprudência em princípio da proibição da dupla valoração para significar que circunstâncias já valoradas no apuramento dos pressupostos da responsabilidade criminal ou das medidas parcelares, não podem novamente ser considerada para efeitos de determinação da medida concreta da pena ou mesmo das opções quanto a não suspensão da pena única, neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3ª Edição. p. 360.
XLVI. A dupla valoração dos antecedentes criminais e consumos de estupefacientes do arguido constitui evidente violação do princípio da proibição da dupla valoração, previsto no artigo 71º, n.º 2, do CP, e do princípio do in dubio por reo, previsto no artigo 32º da CRP, consequentemente a decisão é inconstitucional, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
XLVII. A reincidência é uma circunstância modificativa comum que altera a medida abstrata da pena, agravando-a.
XLVIII. O artigo 75.º, n.º 1, do CP, distingue dois tipos de pressupostos da reincidência: os pressupostos formais e o pressuposto material.
XLIX. O pressuposto material da reincidência consiste na culpa agravada do agente, por a anterior condenação não ter servido de suficiente advertência contra o crime.
L. A referência no segmento normativo “de acordo com as circunstâncias do caso” afasta a possibilidade do funcionamento automático da reincidência, implicando que o julgador tenha de investigar a motivação do arguido.
LI. Exige-se, ainda, uma conexão entre os crimes reiterados que devam considerar-se relevantes do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa.
LII. Para afirmar que o Arguido agiu como reincidente, nos termos e para efeito do disposto no artigo 75.º do Código Penal, era necessário que se pudesse concluir que as anteriores condenações não surtiram como advertência suficiente para não cometer novos crimes.
LIII. Ora, no caso vertente, não obstante as condenações anteriores, é necessário fazer tal juízo de prognose, tanto das declarações do Arguido e do relatório pericial junto aos autos, ficou provado que o arguido encontrava-se incapaz de determinar de acordo com essa avaliação devido ao craving e a impulsividade associadas às patologias de que padece, pelo que deverá ser considerada a imputabilidade diminuída para os eventos em apreço nesta avaliação.
LIV. A perita médica apurou que o arguido padece de dependência de substâncias ilícitas F19 da CID 10 e de uma psicose SOE F29 DA CID10 com vários anos de evolução.
LV. O tribunal a quo não teve em linha de conta o relatório pericial aquando do preenchimento o requisito material que as condenações anteriores não constituíram obstáculo bastante para o cometimento de novos crimes pelo arguido.
LVI. Assim, e se é facto que o Recorrente já antes foi condenado por crimes de da mesma natureza, também é facto que no momento presente se encontra em pleno processo de tratamento, conforme facto provado no acórdão.
LVII. O Tribunal a quo desconsiderou a situação socioeconómica do Arguido e a sua desproteção natural face ao seu próprio contexto débil.
LVIII. O tipo de crime pelo qual foi condenado não sendo substancialmente diferente dos que motivaram as condenações anteriores, ainda assim ocorreu em contexto muito específico, envolvendo ainda um comportamento aditivo.
LIX. Pelo que o não se verifica o pressuposto material da reincidência, previsto no artigo 75º, nº1, do CP, e consequentemente, a condenação do arguido agravada com a reincidência deve ser desconsiderada e reformulada a pena aplicada.
LX. Atento o quantum de pena a aplicar caso seja reduzida a pena aplicada pelo Tribunal a quo, há que ponderar a eventual aplicação pena de substituição, concretamente a de suspensão da execução da prisão – artigo 50.º n.º 1 do Código Penal.
LXI. As finalidades da punição são a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40º, n. º1, do Código Penal.
LXII. Face ao exposto, é de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 50º, n.º 1.
LXIII. O facto de o recorrente ter uma condenação anterior não obsta decisivamente à possibilidade de o Tribunal suspender a execução da pena de prisão – neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2002.
LXIV. Nos autos, estão verificados os requisitos para que o Tribunal suspenda a execução da pena de prisão, uma vez que o arguido encontra-se em tratamento e demonstrou arrependimento, o que se requer.
LXV. O Tribunal a quo não interpretou como devia as normas jurídicas constantes dos artigos 20º, nº2, º, 40º, nºs 1 e 2, 50º, nº1, 71º, nºs 1 e 2, 72º, 73º, 75º e 104º, todos do C. Penal e artigo 32º da CRP e, consequentemente, incorreu o Tribunal a quo na violação das normas citadas.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirão deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência ser apreciada a imputabilidade ou inimputabilidade do arguido aquando a prática dos factos e se a reclusão do arguido em estabelecimentos prisionais comuns é (ou não) prejudicial para o recorrente, ou se a sua reclusão naqueles estabelecimentos perturbará seriamente o regime de funcionamento destes; em caso de improcedência, deve a pena de privativa da liberdade de cinco anos e seis meses ser consideravelmente diminuída ao mínimo legal para o tipo legal de do crime de roubo na forma tentada; revogar a pena de prisão agravada pela reincidência por falta de pressuposto material; caso seja, reformulada a pena de prisão ao mínimo legal, sempre deverá ser suspensa na execução.
Em todo o caso, a matéria duplamente valorada dos antecedentes criminais e consumos de estupefacientes do arguido constitui evidente violação do princípio da proibição da dupla valoração, previsto no artigo 71º, n.º 2, do CP, e do princípio do in dubio por reo, previsto no artigo 32º da CRP, consequentemente a decisão é inconstitucional, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais Justiça! “
2.2
O Ministério Público respondeu ao recurso apresentado, concluindo da seguinte forma:
“1. Entendemos que o recorrente não tem razão, pois o acórdão impugnado não merece qualquer censura, não enferma de omissões, nulidades ou vícios. A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artigo 127.º do Código do Processo Penal.
2. O acórdão refere claramente os meios de prova que serviram para o tribunal formar a sua convicção, garantindo que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não omitindo a fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do recorrente, não constituindo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum.
3. O recorrente limita-se a expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal, e tendo, como se verificou, este formado a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formulou o recorrente.
4. O mesmo ocorre quanto alega quanto à qualificação dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, em concreto,
5. Ao contrário do que defende o recorrente, é unanimemente reconhecido, a figura da «imputabilidade diminuída» não se encontra, enquanto tal, prevista no Código Penal, cujo artigo 20.º, n.º 2, em vez disso, estabelece que pode ser declarada a inimputabilidade do arguido nas situações e condições especificadas neste preceito.
6. Desta conclusão resulta que a não declaração de inimputabilidade oferece ao juiz a possibilidade de, com flexibilidade, atender aos critérios gerais de culpa e de prevenção na decisão sobre a determinação da medida da pena (artigo 71.º do Código Penal), podendo optar por uma pena atenuada, agravada ou, sendo caso disso, por uma pena especialmente atenuada (artigo 72.º do Código Penal), ou, ainda, verificados os respetivos pressupostos, pela aplicação de uma pena relativamente indeterminada sempre que a avaliação conjunta dos factos praticados e da personalidade do agente revelar uma acentuada inclinação para o crime, que no momento da condenação ainda persista (artigo 83.º do Código Penal).
7. No caso de o juiz concluir pela não inimputabilidade, a lei não diz que a pena deva ser atenuada, pois pode haver casos em que a diminuição da imputabilidade conduza à não atenuação ou até mesmo à agravação da pena.
8. No caso dos autos, ao contrário de que defende o recorrente, a declaração de inimputabilidade ou não imputabilidade dependerá sempre de uma decisão judicial, e não clínica, quando se mostrem verificados os respetivos pressupostos legais (artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal).
9. No nosso caso, dúvidas inexistem que o arguido é imputável, mas, efetivamente, encontrava-se sobre o efeito de substâncias que comprometiam a sua capacidade de autodeterminação.
10. Na verdade, da leitura que fazemos do relatório pericial, concluímos que AA tem capacidade de avaliar a ilicitude, mas devido ao défice de controlo de impulsos, dificuldade em se determinar, pelo que não integra os pressupostos do artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal.
11. Justifica-se, assim, a sua imputabilidade penal, sendo que, contudo, aquando da determinação da medida de pena, o Tribunal recorrido teve isso em consideração.
12. Contrariamente ao alegado pelo recorrente quantos os factos da reincidência resultam não só da prova documental, como das regras da normalidade e da experiência comum, conjugadas com o relatório da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, donde se infere que as diversas condenações anteriores não serviram de suficiente advertência, sendo de censurar a sua conduta.
13. Assim, ao contrário do que defende o recorrente, perante os factos provados temos de concluir que o comportamento do arguido preenche os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de roubo tentado na qualidade de reincidente.
14. Pelo exposto o Ministério Público entende que a pena de 5 anos e 6 meses efetiva se mostra justa e adequada, em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto Acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial. E o Tribunal recorrido teve em conta que a anomalia psíquica do recorrente caracteriza, ainda, uma prognose de reincidência que a prevenção especial deve acautelar, ainda que na sua forma mais modesta e mais redutora da segurança individual ou neutralização, a qual, porém, e atuou dentro dos limites da estrita necessidade, subordinada ao princípio da proporcionalidade e da consequente proibição de excesso.
15. Em face das circunstâncias expostas, entende-se ser adequado, justo e consentâneo quer com as finalidades ínsitas à punição, quer com a medida da culpa e da consciência da ilicitude, numa moldura penal que vai de 7 meses e 6 dias a 10 anos de prisão, a pena aplicada pelo Tribunal recorrido, isto é, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão efetiva.
16. Face ao exposto, o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente, consequentemente se deve negar provimento ao recurso ora interposto, devendo manter-se a douta decisão nos seus exatos termos.
Vossas Excelências, melhor saberão fazendo, JUSTIÇA!”
2.3
Chegados os autos a este Tribunal e dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, do Código de Processo Penal, foi emitido parecer pelo Ministério Público, com o seguinte teor:
O recurso ora em apreço será de julgar em conferência, atento o disposto no art.º. 419.º, nº3, alínea c) do Código de Processo Penal.
Vem o recurso interposto pelo AA impugnar o acórdão proferido a 24 de outubro de 2024, que o condenou como reincidente pela prática de dois crimes de roubo agravado, na forma tentada, previstos e punidos pelos arts. 210.º, nºs. 1 e 2, alínea b), do Código Penal, na pena única de cinco anos e seis meses de prisão.
O Recorrente entende que o «Tribunal a quo não interpretou como devia as normas jurídicas constantes dos artigos 20.º, nº2, 40.º, nºs 1 e 2, 50.º, nº1, 71.º, nºs 1 e 2, 72.º, 73.º, 75.º e 104.º, todos do C. Penal e artigo 32.º, da CRP e, consequentemente, incorreu o Tribunal a quo na violação das normas citadas».
O Ministério Público na 1.ª Instância, respondeu ao recurso, apreciando os argumentos invocados pelo recorrente e concluindo pela sua improcedência.
Concordamos, uma vez que da simples leitura do acórdão recorrido resulta claro que o mesmo não violou os preceitos invocados pelo ora Recorrente, sendo que os factos dados como provados integram os tipos de crime pelos quais veio a ser condenado e que as penas concretas aplicadas, correspondentes aos crimes praticados, assim como a pena que resultou do cúmulo jurídico, se revelam inteiramente adequadas às exigências de prevenção geral e especial e consentidas pela culpa revelada pelo Arguido.
Pelo exposto, emitimos parecer no sentido da improcedência do recurso e confirmação do acórdão recorrido.
3.
O objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que os recorrentes apresentam cabendo a estes o ónus de sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, págs. 1027 e 1122).
Deste modo e de acordo com a delimitação das conclusões, as questões a conhecer são:
- contradição entre a fundamentação e a decisão.
- nulidade do acórdão por ausência de apreciação da imputabilidade ou inimputabilidade do arguido aquando a prática dos factos:
- adequação da reclusão do arguido em estabelecimentos prisionais comuns;
- adequação da pena concreta privativa da liberdade de cinco anos e seis meses;
- revogação de prisão agravada pela reincidência, por falta de pressuposto material;
- suspensão da pena.
- violação do disposto nos artigos 20.º, nº2, 40.º, nºs 1 e 2, 50.º, nº1, 71.º, nºs 1 e 2, 72.º, 73.º, 75.º e 104.º, todos do C. Penal e artigo 32.º, da CRP.
4. Fundamentação
A primeira questão sobre a qual temos de nos pronunciar prende-se com a alegada contradição entre a fundamentação e a decisão, que gerará vicio do Acórdão.
I -As anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do art. 410.° do CPP têm de emergir, resultar do próprio texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma; esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.
II - Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei -vícios da decisão, não do julgamento.
III - Os vícios previstos no artigo 410.°, n.º 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no art.º. 127.° do CPP.
IV - Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida; é, afinal, querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
V - Neste aspeto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art.º. 410.°, n.° 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
VI - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo suscetível de apreciação.
VII - No caso de impugnação da matéria de facto nos termos dos n.°s 3 e 4 do art.º. 412.° do CPP a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º. 412.° do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art.º 431. °, al. b), do CPP.
VIII - Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento parcelar, de via reduzida.
IX - A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica”, no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
X - A jusante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão. (…)”
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-07-2009, publicado em
www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=27649&codarea=2
Na situação colocada sob a nossa análise e decisão, o vicio indicado é claramente o da primeira situação, pois o recorrente não impugna a matéria de facto provada, afirma apenas que a mesma não foi tida coerentemente em consideração, nas conclusões a que o Tribunal a quo chegou, quanto à imputabilidade ou inimputabilidade do arguido.
Assim, o erro invocado resulta do próprio texto do Acórdão, não demandando, pelo menos de modo direto, uma intromissão do Tribunal de Recurso no julgamento.
O que o recorrente requer a este Tribunal é a apreciação de um vício de erro de contradição entre aquilo que foi dado como provado e as conclusões que dele se extraíram, quanto à aplicação do disposto no artigo 20º do Código Penal.
Estabelece o artigo 20.º do Código Penal, sob epígrafe “Inimputabilidade em razão de anomalia psíquica” que:
“1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
3 - A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.
4 - A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.”
A chamada imputabilidade diminuída pressupõe e exige a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato biopsicológico) que afete o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto e de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo).
Os pressupostos biológicos da imputabilidade diminuída são os mesmos que o art.º 20.º do CP prevê para a inimputabilidade. A diferença reside no efeito psicológico ou normativo: a capacidade de compreensão da ação não resulta excluída em consequência da perturbação psíquica, mas, antes, notavelmente diminuída. Se a imputabilidade diminuída significa uma diminuição da capacidade de o agente avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ela há-de, em princípio, refletir um menor grau de culpa (uma culpa diminuída).
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de junho de 2012, https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/440d4f41e0079e1480257aa0004ca3b1?
O Tribunal recorrido deu como facto provado, no seu artigo 16º, que:
16. À data dos eventos em apreço, o examinado tinha capacidade de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados, mas encontrava-se incapaz de se determinar de acordo com essa avaliação devido ao craving e à impulsividade associadas às patologias de que padece.
Mais deu como provado que:
52. O arguido padece de uma Dependência de Substâncias Ilícitas (F19 da CID-10) e de uma Psicose SOE (F29 da CID-10) com vários anos de evolução.
53. Tem vindo a apresentar desde há longa data alterações do comportamento, associadas ao consumo de substâncias ilícitas.
54. A patologia de que padece já se encontra a ser devidamente tratada com anti psicótico injetável que lhe é administrado mensalmente.
55. O examinado apresenta uma fraca (quase inexistente) rede de suporte sociofamiliar, consumo de substâncias com anos de evolução e abandono frequente da terapêutica que tem prescrita, pelo que existe fundado receio que atos como os em apreço se voltem a repetir.”
Fundamentou o Tribunal a quo estes factos com a prova produzida em audiência, mas sobretudo com o teor do relatório da perícia psiquiátrica ordenada, realizada já no decurso da audiência.
No entanto, na motivação da matéria de facto, apreciando já a questão da imputabilidade, concluiu o Tribunal recorrido pela imputabilidade, ainda que diminuída, afirmando que:
No nosso caso, dúvidas inexistem que o arguido é imputável, mas, efetivamente, encontrava-se sobre o efeito de substâncias que comprometiam a sua capacidade de autodeterminação. Na verdade, da leitura que fazemos do relatório pericial, concluímos que AA tem capacidade de avaliar a ilicitude, mas devido ao défice de controlo de impulsos, dificuldade em se determinar, pelo que não integra os pressupostos do artigo 20º, nº1 do Código Penal.
Justifica-se, assim, a sua imputabilidade penal, sendo que, contudo, aquando da determinação da medida de pena, teremos tal em consideração. “
Ora, aqui surge o primeiro problema que se coloca a este Tribunal de recurso: “ter dificuldade para se determinar” é distinto de ser ou estar “incapaz de se determinar”, pois independentemente da subsunção jurídica que cada uma das expressões, possa ter ao disposto no artigo 20º do Código Penal, no âmbito da mera factualidade naturalística, a expressão “incapaz de se determinar” representa uma privação da capacidade de autodeterminação e a segunda expressão representa apenas um nível de dificuldade significativa, ou não, do exercício dessa autodeterminação.
Concluiu o Tribunal pela existência desse nível de dificuldade, circunscrevendo-a à imputabilidade diminuída, daí retirando as consequências quanto à imputação do crime e à medida da pena.
Afigura-se-nos que de facto há uma contradição, porquanto a dificuldade de alguém se determinar caberá também na incapacidade de o fazer, mas o contrário já não é verdadeiro.
Cumpre, assim analisar os passos percorridos pelo Tribunal recorrido e verificar se com base nos elementos constantes dos autos, poderá este Tribunal da Relação sanar a contradição.
Pugna o recorrente pela sua inimputabilidade, ou imputabilidade diminuída, que justifique aplicação de medida de segurança a cumprir em estabelecimento adequado.
Nos termos do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e qualquer divergência do mesmo deverá ser fundamentada por juízo de igual valoração técnico-científica.
Do relatório da perícia psiquiátrica forense, resulta, na caixa destinada a Conclusões, que:
“O examinado padece de uma Dependência de Substâncias Ilícitas (F19 da CID-10) e de uma Psicose SOE (F29 da CID-10) com vários anos de evolução.
O examinado tem vindo a apresentar desde há longa data alterações do comportamento, associadas consumo de substâncias ilícitas.
À data dos eventos em apreço, o examinado tinha capacidade de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados, mas encontrava-se incapaz de se determinar de acordo com essa avaliação devido ao craving e à impulsividade associadas às patologias de que padece, pelo que deverá ser considerada um imputabilidade diminuída para os eventos em apreço nesta avaliação.
A patologia de que padece já se encontra a ser devidamente tratada com antipsicótico injetável que lhe é administrado mensalmente.
O examinado apresenta uma fraca (quase inexistente) rede de suporte sociofamiliar, consumo de substâncias com anos de evolução e abandono frequente da terapêutica que tem prescrita, pelo que existe fundado receio que atos como os em apreço se voltem a repetir.”
Do mesmo relatório, numa outra área, destinada a registo de “Dados Documentais” foi exarado o seguinte:
Registo clinico do ... : “...Utente vem ao SU por alucinações visuais e auditivas com anos de evolução... Serviço contactado pelas colegas da ... , utente encontra-se a tentar entrar no serviço, solicitado agente da PSP para acompanhar utente, informado médica assistente, regressou ao SU, informado sobre a necessidade de se manter no interior do SU. 
Novamente contactados pela cirurgia IV, utente encontra-se novamente fora do serviço, solicitado Agente do PSP, informada médica assistente, utente com alta por abandono. Acompanhado ao exterior do SU.
---...2...-11 01:52, LL--- 
Sr AA recorre ao SU por alucinações visuais e auditivas com anos de evolução, com múltiplas vindas diárias, inclusiva hoje, com alta na tarde, pelo mesmo motivo. 
Consciente e orientado nas 3 vertentes, a deambular pelo serviço, pede "calmante", dado conhecimento a médico assistente, conforme indicação clinica, cumpre com diazepam 10 mg peros. 
Ausenta-se por múltiplas vezes do serviço para o exterior, pouco cumpridor.
---...2...-11 19:24, MM--- Utente vem ao SU por alucinações auditivas e visuais com 3 dias de evolução. Refere que ia roubar porque não tem dinheiro, incumprimento terapêutico de psiquiatria 
...
---...2...-11 16:21, NN, Psiquiatria--- 
Doente de 34 anos, sem abrigo, dependente do consumo de NSPS. Veio ao SU por se ter sentido mal - cefaleias, dorsalgias. Já se dirigiu à ... e tem consulta. Não pediu até agora internamento na .... 
À observação apresenta-se em estado claro de consciência, orientado no t/e, com atenção captável e sustentada. Discurso e comportamento adequado ao contexto. Refere que não é aceite no DROPIN do NOVO DIA. Não se observam alterações major do humor. Não apresenta sintomas de descompensação psicótica aguda, embora pareçam existir ideias delirantes de que ou outros lhe azem mal. Sem ideação suicida. 
Tem alta da psiquiatria.”
Relatório Social da DGRSP “...No contexto da intervenção desta Equipa e da medida de coação que lhe foi aplicada, o arguido foi encaminhado, em ..., para realizar processo de desintoxicação, em regime de internamento, na ..., no entanto, foi expulso daquela Instituição por incumprimento das normas impostas no programa de tratamento.... Solicitada informação à PSP de ... em ..., o arguido regista várias participações que o envolvem: NUIPC: 2348/23.7PBPDL – Crimes contra a propriedade, NUIPC: 188/23.2PFPDL – Crimes contra integridade física, NUIPC: 172/23.6PFPDL – Crimes contra a integridade física, NUIPC: 242/23.0PBPDL – Crimes contra a liberdade pessoal, NUIPC: 1700/23.2PBPDL – Crimes contra a propriedade, NUIPC: 2090/23.9PBPDL – Crimes contra a propriedade, NUIPC: 2130/23.1PBPDL – Crimes contra a propriedade, NUIPC: 187/23.4PFPDL – Crimes contra a propriedade, NUIPC: 2184/23.0PBPDL – Crimes contra a propriedade e NUIPC: 2114/23.0PBPDL – Crimes contra a propriedade.”
Não pode pois este Tribunal afastar-se da factualidade que consta de tal relatório - da qual aliás o Tribunal recorrido só se poderia afastar com argumentação de ordem técnica, ou seja, equiparada à fundamentação do resultado, perante o disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal, o que manifestamente não foi o caso - sendo forçoso julgar provado que na data dos factos, o dia ... de ... de 2023, o arguido encontrava-se em crise, com alucinações visuais e auditivas, com incumprimento de terapêutica, a pedir calmantes, tendo inclusivamente recorrido ao serviço de urgência, nesse mesmo dia, já depois dos factos e também na madrugada do dia seguinte.
Acrescenta-se que a própria incapacidade do arguido para a consumação dos crimes, não obstante a presença de uma arma branca, de algum modo é significativa do seu estado de debilidade física ou psicológica. Com efeito, pese embora tenha empunhado uma faca na prática do crime, todas as vítimas ofereceram resistência (no supermercado – os empregados da caixa e o Segurança que conseguiu até colocá-lo fora do estabelecimento) ou conseguiram fugir (a vítima junto da caixa Multibanco, GG), sendo também de alterar o artigo 15º e eliminar o 28º dos factos provados, pois apesar do arguido o ter tentado, nenhuma das vítimas efetivamente ficou em situação de incapacidade de reagir, tanto, que de facto reagiram e impediram a consumação do crime, contra a vontade do arguido.
Provou-se assim, por força do resultou do relatório pericial, que no momento da prática dos factos o arguido encontrava-se num estado de “incapacidade de se determinar”, realidade a que necessariamente corresponderá ausência de capacidade para se autodeterminar.
As glosas 2. e 3. ao artigo 20º, do Código Penal, no Comentário do Código Penal à Luz da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de Paulo Pinto de Albuquerque, pág. 108, UCE, ajudam-nos a densificar os conceitos de anomalia.
Lê-se, nas referidas anotações, o seguinte:
2.A anomalia psíquica inclui não apenas a doença mental (com base orgânica) mas também as psicoses exógenas e endógenas, a oligofrenia, as psicopatias, as neuroses, as taras sexuais, as perturbações profundas da consciência (patológicas ou não patológicas). Portanto, a anomalia psíquica pode ser acidental e transitória (como instituiu Eduardo Correia na Comissão de revisão do CP de ..., contrariado por Gomes da Silva in actas CP/Eduardo Correia 1965 a 140 e 143) Mas não incluiu a tendência pra o crime, nem a herança caracterológica (também assim, Figueiredo Dias 2007; 573 e Carlota Pizarro de Almeida, 2000:84)
3.As psicoses exógenas incluem a paralisia cerebral, os delírios escleróticos as psicoses de provação, as intoxicações (por exemplo o uso de drogas ou álcool) as psicoses endógenas incluem a esquizofrenia, a loucura maníaco-depressiva, a ciclotimia, a doença bipolar que também incluía a embriagues e estados análogos. “
Na situação que nos ocupa, no relatório pericial realizado, estão expressamente indicadas, causas exógenas e endógenas de anomalia:
- a primeira, de natureza exógena, resultante da dependência do arguido de substâncias ilícitas;
- e a segunda, esta de natureza endógena, resultante da patologia de que o arguido padece, correspondente à Psicose SOE (F29 da ...) com vários anos de evolução.
O CID F29 significa Psicose sem outra especificação (SOE) que exclui o transtorno mental SOE (F99), estando definida no Manual de Intervenção mhGAP, da ..., como uma condição caracterizada pela “distorção de pensamentos e perceções, bem como pela perturbação de emoções e comportamentos. Neste sentido,
https://www.bing.com/search?q=PSICOSE+SOE+%28+F29+da+CID+10%29+&form=ANNH01&refig=6586b7b14d2042f6ad96f4e8bae29b70&pc=U531.
De harmonia com o exposto, afigura-se-nos que merece provimento o recurso apresentado, pois verifica-se, de facto, o vício previsto no artigo 410º, n.2 b) do Código de Processo Penal, sendo que os factos provados impunham uma conclusão diversa daquela a que o Tribunal a quo chegou.
Assim, entendemos que a factualidade apurada relativamente ao estado clínico do arguido, no momento da prática dos factos, integra a previsão do artigo 20º, n. 1, do Código Penal, razão pela qual a imputabilidade diminuída que foi declarada no relatório pericial, inviabiliza, a nosso ver, a aplicação de pena de prisão, reconduzindo-se assim a decisão a proferir aos efeitos jurídicos da inimputabilidade, conforme prevê a citada disposição penal.
A procedência do recurso nesta parte, naturalmente afeta a possibilidade de se manterem as penas de prisão, como consequências da prática dos crimes de roubo, sob a forma tentada, que se encontram provados.
Não dispensa, contudo, a subsunção jurídica da conduta do arguido, pois da mesma e das molduras penais correspondentes dependerá também a aplicação de medida de segurança, caso esta se mostre necessária.
O Arguido foi condenado, no Tribunal recorrido, pela prática de dois crimes na forma tentada, com a seguinte fundamentação:
«Ora, no caso em análise, não subsistem dúvidas de que o arguido cometeu um crime de roubo, na forma tentada, no ... e outro crime, na forma tentada, contra GG. Relativamente ao ..., diga-se que, apesar da violência ter sido exercida sobre diversos funcionários de tal estabelecimento, aquele pretendia, unicamente, o dinheiro da caixa de tal supermercado e não de cada um dos funcionários que abordou.» Daqui concluiu o Tribunal a quo que o arguido havia cometido 2 crimes de roubo, sob a forma tentada.
Ora, da factualidade provada resultou provado que:
1. No dia ... de ... de 2023, pelas 15h58, o arguido, que trajava um kispo amarelo, deslocou-se até ao supermercado ..., sito na ..., em horário de funcionamento, dirigiu-se ao caixa de pagamento localizado na zona das refeições, abordou a ofendida BB, que ali estava a trabalhar, exibiu-lhe uma navalha com o comprimento total de 15,5 cm, uma lâmina de 6,8 cm, e um cabo com as cores preta e laranja, com a qual se tinha previamente munido, e apontou-lhe a navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu as expressões: “dá-me o dinheiro todo do caixa, dá-me já o dinheiro, senão eu enfio-te a navalha!”.
2. A ofendida BB negou-se a fazê-lo e o arguido aproximou ainda mais a navalha do seu corpo e exigiu que lhe entregasse 10 euros, dizendo-lhe: “dá-me 10 € daí, senão eu espeto-te!”, o que ela voltou a recusar, respondendo-lhe que chamaria a polícia.
3. No interior da caixa registadora da caixa de pagamento operada pela ofendida BB existia uma quantia superior a 300 € em numerário.
4. BB e a sua colega CC, que ali igualmente estava a trabalhar, pediu o auxílio do segurança do estabelecimento comercial, o DD, que se aproximou da zona onde se encontravam.
5. De seguida, o arguido aproximou-se do ofendido DD, exibiu-lhe e apontou-lhe a navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu a expressão: “eu quero dinheiro! dá-me já o dinheiro!”.
6. O ofendido DD recusou-se a fazê-lo.
7. Ato contínuo, o arguido deslocou-se até ao balcão central onde estava guardado um dos cofres da loja, acedeu ao seu interior, mas perante a reação de EE, que gritou, acabou por se afastar desse local.
8. No interior do referido cofre, existia a quantia de cerca de 1 000,00€ em numerário.
9. O arguido deslocou-se então até uma linha de caixas de pagamento do supermercado, abordou o ofendido FF, funcionário do estabelecimento que se encontrava a trabalhar numa das caixas de pagamento, exibiu-lhe e apontou-lhe a navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu as expressões: “passa o dinheiro para cá! dá-me o dinheiro, dá-me todo o dinheiro!”, tendo cessado o seu comportamento após nova intervenção de DD.
10. No interior da caixa registadora da caixa de pagamento operada pelo ofendido FF existia a quantia de 500 € em numerário.
11. De seguida, o arguido saiu do supermercado, e, pelas 16h20, dirigiu-se até à ..., abordou a ofendida GG, que se encontrava em frente ao n.º 235, junto à caixa multibanco contígua às instalações do ..., depois de ter nela inserido o seu cartão multibanco, exibiu-lhe e apontou-lhe a referida navalha, ao mesmo tempo em que lhe dirigiu a expressão: “dá-me o dinheiro, todo o que tu tens!”.
12. A ofendida recuou, ao mesmo tempo em que procurava anular a operação em curso de levantamento de numerário na caixa ATM, e respondeu ao arguido que não tinha dinheiro na conta, quando na realidade tinha um saldo de pelo menos 400 €.
13. O arguido aproximou-se ainda mais dela, com a navalha empunhada, exigiu-lhe que marcasse o seu código pessoal pin na caixa multibanco, e insistiu com a ofendida, dirigindo-lhe a expressão: “levanta o dinheiro, senão enfio-te a navalha!”.
14. A ofendida aproveitou que um transeunte se encontrava no momento a atravessar a rua e a caminhar na direção do local, para encetar uma fuga.
O crime de roubo é um crime pluriofensivo, atingindo assim bens jurídico distintos, qualquer deles penalmente protegido por si só. Trata-se assim de um tipo de ilícito “complexo” ou “composto” porque na sua génese contém um crime contra direitos pessoais (a integridade física e /ou a liberdade) e um crime contra a propriedade de coisas móveis.
Sendo praticado através de actos lesivos da liberdade e ou da integridade física não se nos afigura passível de ser cometido contra uma pessoa coletiva, pois em face da sua natureza jurídica institucional não poderia esta, ao contrário das pessoas físicas, ser alvo da componente da violência.
Por outro lado, a norma não exige que o espoliado seja a vítima contra quem foi exercida a violência. Assim, haverá que julgar verificados tantos crimes de roubo tentado, quantas as vítimas a quem o Arguido tentou, sem êxito, extorquir dinheiro, mediante a apresentação da faca e as palavras que acompanharam tal acto.
Resulta da matéria de facto provada que foram alvo da conduta delituosa do arguido, quatro pessoas, pelo que terão sido praticados em numero de quatro os crimes de roubo, sob a forma tentada, de acordo com o disposto nos artigos 22º, 23º e 210º, n.2 por referência ao artigo 204º, n.2 alínea f), do Código Penal. Com efeito, tal como foram descritos no acórdão, os factos foram praticados contra os ofendidos BB, DD, FF, dentro do estabelecimento ... e junto do ..., contra GG.
Quanto ao ..., pessoa coletiva, praticou o arguido um crime de furto, sob a forma tentada, nos termos do disposto no artigo 203º, nº2, do Código Penal.
Conforme supra concluímos, como decorrência do que foi apurado na avaliação pericial realizada ao arguido, não deverá este ser considerado imputável no momento da prática dos factos.
Para a aplicação da medida de segurança, há que encontrar um mínimo e máximo, nos termos definidos nos artigos 91º e 92º/CP.
Estatui o artigo 91.º do Código Penal que quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (n.º1)
Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (n.2
Estes crimes, são puníveis com pena de prisão de sete meses e seis dias, até 10 anos de prisão, no que concerne ao crime de roubo e com pena de prisão de 1 mês a 5 anos e 4 meses e 10 dias, quanto ao crime de furto qualificado, todos sob a forma tentada.
Serão assim estas as molduras penais a ter em consideração.
Conforme supra concluímos, como decorrência do que foi apurado na avaliação pericial realizada ao arguido, não deverá este ser considerado imputável no momento da prática dos factos.
Estatui o artigo 91.º, do Código Penal, que quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (n.º1)
Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (n.2).
Estatui o n.2 do artigo 92º, do Código Penal, que o internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável.
No caso do facto ilícito ser qualificado por circunstâncias atinentes à ilicitude, o limite máximo do internamento corresponde ao limite máximo da moldura penal do crime qualificado. Mas no caso de facto ser qualificado por circunstâncias referentes à culpa o limite máximo do internamento corresponde ao limite máximo da moldura penal do crime simples (glosa 7, ao artigo 92.º, fls. 289).
Os crimes de roubo tentados são puníveis com pena de prisão de sete meses e seis dias, até 10 anos de prisão, por serem agravados pelo uso da faca, ou sejam um elemento relativo à ilicitude. No que concerne ao crime de furto qualificado tentado, é aplicável prisão de 1 mês a 5 anos e 4 meses e 10 dias.
Serão assim estas as molduras penais a ter em consideração.
No caso do cometimento de uma pluralidade de crimes pelo mesmo agente inimputável o Tribunal aplica uma só medida de segurança de internamento, cujos limites correspondem à moldura do mais grave dos factos cometidos pelo agente. Assim, a graduação da gravidade relativa aos factos cometidos pelo inimputável resulta exclusivamente das opções do legislador e não de qualquer escolha do Tribunal.
Deste modo, se o inimputável cometer uma pluralidade de crimes, sendo um crime contra as pessoas ou um crime de perigo comum punível com pena superior a 8 anos de prisão, o limite máximo de internamento é o correspondente a este tipo de crime.
Seguindo esta doutrina, haverá que ter em consideração as molduras penais atinentes ao tipo de crime de roubo qualificado, pois na situação sobre a qual nos debruçamos, a circunstância qualificativa (uso de arma) é atinente à ilicitude, não deixando, contudo, a moldura penal de sofrer a restrição resultante da especial atenuação da tentativa.
Assim, a moldura deverá ser encontrada através do mais grave dos crimes cometidos, isto é, o crime de roubo qualificado, sobre a forma tentada, sendo assim a moldura penal a ter em consideração aquela que tem, por limite mínimo 3 anos de prisão (artigo 91º n.1) e por limite máximo dez anos de prisão (artigo 92º/3).
Da factualidade provada resulta que:
- Em meio prisional, na data do julgamento, o arguido não integrava qualquer programa terapêutico, tendo acusado consumo de substâncias ilícitas nos testes de despiste efetuados em março e abril últimos, não beneficiava de acompanhamento psicológico, não tinha ocupação, mas não registava sanções disciplinares, nem recebia quaisquer visitas:
- O arguido apresenta reduzidas capacidades de descentração e de autocrítica e quando sob efeito de substâncias aditivas tende a assumir um discurso verbal marcado por alguma agressividade e intolerância, acabando por se desresponsabilizar face à assunção de determinados comportamentos, o que evidencia quando confrontado com a sua atual situação jurídico-penal.
- O arguido continua a evidenciar também grande dificuldade em interiorizar a necessidade de mudança, não obstante a existência de alguns contextos mais apoiantes, que acaba por rejeitar.
- O arguido padece de uma Dependência de Substâncias Ilícitas (F19 da CID-10) e de uma Psicose SOE (F29 da CID-10) com vários anos de evolução.
- O Arguido tem vindo a apresentar desde há longa data alterações do comportamento, associadas ao consumo de substâncias ilícitas.
- A patologia de que padece já se encontra a ser devidamente tratada com anti psicótico injetável que lhe é administrado mensalmente.
- O examinado apresenta uma fraca (quase inexistente) rede de suporte sociofamiliar, consumo de substâncias com anos de evolução e abandono frequente da terapêutica que tem prescrita, pelo que existe fundado receio que atos como os em apreço se voltem a repetir.
Também se provou que o arguido já foi julgado e condenado:
a) Por sentença de .../.../2007, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por 1 ano, pela prática de um crime de furto e de um crime de detenção de arma proibida a .../.../2007;
b) Por acórdão de 03/03/2009, na pena de 3 anos de prisão, suspensa por igual período de tempo, pela prática de dois crimes de furto qualificado na forma tentada e quatro crimes de furto qualificado, tudo em .../.../2008;
c) Por acórdão de 25/01/2010, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, pela prática de um crime de furto qualificado a .../.../2008, cinco crimes de roubo a .../.../2008, um crime de furto qualificado a .../.../2008 e um crime de furto qualificado a .../.../2008;
d) Por acórdão de 15/11/2010, na pena de 7 anos de prisão, pela prática de 7 crimes de furto qualificado a .../.../2007, 7 crimes de roubo a .../.../2008, 2 crimes de furto a .../.../2008 e um crime de furto qualificado a .../.../2009;
e) Por acórdão cumulatório de 24/06/2011, na pena única de 12 anos de prisão;
f) Por sentença de 10/01/2012, na pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de furto a .../.../2008;
g) Por sentença de 05/03/2012, na pena de 6 meses de prisão, pela prática de um crime de furto a .../.../2009;
h) Por sentença de 16/04/2012, na pena de 2 meses e 15 dias de prisão, pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público a .../.../2008;
i) Por sentença cumulatória de 22/03/2012, na pena única de 12 anos e 7 meses de prisão.
Assim, excluindo os cinco ilícitos sob apreciação nestes autos, quatro roubos e um furto, todos sob a forma tentada, o arguido foi já condenado por vários crimes contra o património, em concreto, por doze crimes de roubo e por crimes contra a liberdade pessoal e a integridade física.
Afigura-se-nos ser inquestionável a sua perigosidade e o grave risco de repetição deste tipo de crimes (artigo 91º/1 do CP) pois tem o arguido um pesado registo de condenações por crimes contra as pessoas, pelo que deverá ser sujeito a medida de segurança a cumprir em estabelecimento psiquiátrico ou de cura adequado
Tão pouco poderá haver apreciação e aplicação do instituto da reincidência, pois estando excluída a culpa, pela inimputabilidade no momento dos factos, não pode haver lugar à avaliação da interiorização do grau de advertência decorrente das anteriores condenações.
Conforme tem sido decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça “No caso de o agente ter praticado diversos ilícitos-típicos, não haverá que falar de cúmulo jurídico de medidas de segurança, desde logo, porque “não há, neste caso, a fixação, como nas penas, de um quantum exato, em que a pena parcelar mais elevada funcionasse como limite mínimo e o somatório delas como limite máximo” Sumário de Acórdão de 02-02-206, publicado em https://pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=21835.
Nestes termos, deverão ser fixados os limites mínimo e máximos, o que na situação sub judice, em face do seu grau de perigosidade e das molduras dos ilícitos por si cometidos, de acordo com o disposto no artigo 91º, n.2 e 92º, n.2, do Código Penal deverá ter a duração mínima de três anos e máxima de dez.
Na sujeição do arguido a esta medida de segurança, deverá ser descontado o período de privação de liberdade sofrido pelo arguido, à ordem destes autos.
Deverá ainda a medida de segurança ser oportunamente revista, de acordo com o disposto no artigo 93º, nº2 do Código Penal.

5. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar provido o recurso interposto pelo arguido e consequentemente:
- absolver o arguido do crime de roubo em que foi condenado, contra o ....
- determinar a retirada dos factos descritos nos artigos 15º com o seguinte teor” colocando-os na impossibilidade de lhe resistirem, bem sabendo que agia contra a sua vontade” e de todos os descritos no artigo 28º.
- Julgar verificada a prática pelo AA, de quatro crimes de roubo agravado, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 20º n.1 e 2, 22º, 23º, 91º e 210º, nº1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204º, nº2 alínea f) do Código Penal, e de um crime de furto qualificado p. e p. no artigo 204º, nº2 alínea f) do mesmo diploma, igualmente na forma tentada.
- declarar o arguido inimputável.
- determinar a sujeição do arguido a medida de segurança, a cumprir em estabelecimento psiquiátrico ou de cura adequado às suas patologias, pelo período mínimo de 3 anos e máximo de 10 anos.
- declarar que na contagem dos períodos máximo e mínimo acima referidos há que descontar o tempo sofrido em prisão preventiva ou regime de permanência na habitação.
Esta medida deverá ser revista de acordo com o disposto no n.2 do artigo 93º do Código Penal.
Sem custas.

Lisboa, 4 de junho de 2025.
Ana Cristina Guerreiro da Silva
Maria da Graça dos Santos Silva
Francisco Henriques