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REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES
SERVIÇOS REGIONAIS DE SAÚDE
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
Sumário
Sumário: (Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – artº 663º nº 7 do Código de Processo Civil) I - Os Serviços Regionais de Saúde das Regiões Autónomas revestem-se de autonomia em relação ao Serviço Nacional de Saúde, e este não os integra. II - O regime do DL nº 218/99, de 15/06, alterado pela Lei nº 64-B/2011, de 30/12, especificamente o regime prescricional estabelecido no seu artº 3º, é apenas aplicável aos créditos das instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde. III - Diversamente do que se verifica na Região Autónoma da Madeira, que pelo Decreto Legislativo Regional nº 1/2000/M, de 31/01, adaptou à Região Autónoma da Madeira o DL nº 218/99, de 15/06, tal não se verificou na Região Autónoma dos Açores. IV - E o quadro legislativo regional dos Açores relativo ao seu Serviço Regional de Saúde não apresenta norma que estabeleça um prazo específico de prescrição para a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no seu Serviço Regional de Saúde, sendo assim aplicável o disposto no artº 317º al. a) do CCivil. V - Tratando-se de prescrição presuntiva, que se funda na presunção de cumprimento, ela é ilidível, quer nas especiais circunstâncias previstas nos artigos 313º e 314º do CCivil, quer por qualquer forma que encerre o reconhecimento de que o pagamento não ocorreu.
Texto Integral
Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
“Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira, EPER”, pessoa colectiva com o NIPC 512105030, com sede na Canada do Breado, em Angra do Heroísmo, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma única de processo comum, contra
ARRV, contribuinte fiscal nº …, residente na Rua …, em …,
e
“Generali Seguros, S.A”, pessoa colectiva com o NIPC 500940231, com sede na Av. da Liberdade nº 242, em Lisboa, os quais indicou, respectivamente, como 1º Réu e 2º Réu,
e, do mesmo passo, disse requerer a intervençãodo “Fundo de Garantia Automóvel” e de FMASL, este como interessado, relativamente aos quais, após vicissitudes várias que os autos espelham, veio a esclarecer que também estes eram demandados como Réus (cfr. despacho de 12/07/2023 e requerimento do A. de 18/07/2023), o que foi aceite e se mostra estabilizado nos autos,
com fundamento em assistência hospitalar que, no período compreendido entre 15/11/2016 e 25/07/2017, prestou a FMASL na sequência de acidente de viação em que interveio o 1º Réu, o qual havia transferido para a 2ª Ré a responsabilidade civil decorrente da circulação do seu veículo; tendo enquadrado a sua actuação alegando, em síntese, que é uma pessoa colectiva de direito público cujo objecto principal é a prestação de cuidados de saúde integrado no Serviço Regional de Saúde (SRS), regendo-se pelas mesmas regras do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com as especificidades do Decreto Legislativo Regional que criou o Estatuto do SRS dos Açores.
Concluiu pedindo «1. Que seja dada como provada a despesa de saúde efetuada pelo Autor ao Interessado (FMASL), no valor de € 17.653,55 (dezassete mil seiscentos e cinquenta e três euros e cinquenta e cinco cêntimos); 2. Que seja declarado o direito do Autor a ser ressarcido das despesas de saúde; 3. Que o 1.º Réu (ARRV) seja declarado responsável pelo acidente e, em consequência, responsável pelas despesas de saúde do Interessado; 3.1. Que, ao abrigo da responsabilidade declarada em 3., a 2.ª Ré seja condenada a pagar as despesas de saúde do Interessado, ao abrigo da apólice 90.020594486, da marca Açoreana, sem prejuízo de eventual direito de regresso sobre o 1.º Réu, de acordo com o n.º 1 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto; e 3.2. Em caso de insuficiência, que seja acionado o Fundo de Garantia Automóvel, de acordo com o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 291/2007; ou 3.3. Seja acionado o FGA para garantia de despesas de saúde de terceiros, para os efeitos dos artigos 47.º, 48.º, 49.º e 50.º do Decreto-Lei n.º 291/2007. 4. Que, independentemente da culpa do 1.º Réu, seja acionado o FGA para garantia de despesas de saúde de terceiros, para os efeitos dos artigos 47.º, 48.º, 49.º e 50.º do Decreto-Lei n.º 291/2007. 5. Para tanto, mais se requer a Intervenção provocada, ao abrigo do artigo 316.º do CPC, de: 5.1. Fundo de Garantia Automóvel, de acordo com os números anteriores; e de 5.2. FMASL, como Interessado (…)»
Os Réus contestantes invocaram, além do mais, a prescrição do crédito da Autora. O Réu AV fê-lo sob invocação do artº 498º nº 1 ou, à cautela, por aplicação do nº 3 desse artº 498º; a Ré “Generali” abonou-se no artº 3º do DL nº 218/99, de 15/06 e, à cautela, no artº 498º nº 1 CCivil; também o FGA se sustentou no artº 3º do DL nº 218/99, de 15/06.
Na sequência de convite do Tribunal nesse sentido, o Autor respondeu à matéria de excepção, sendo que na sua resposta às contestações do 1º e 2ª RR., rechaçando a aplicabilidade do regime contido no artº 498º CCivil e aceitando ser aplicável a regra contida no artº 3º do DL nº 218/99, de 15/06, defendeu tratar-se a aí prevista de uma prescrição presuntiva e desse modo ser-lhe aplicável o regime decorrente dos artºs 312 e 313º CCivil, sendo, porém, a defesa de qualquer desses RR. contrária à presunção de pagamento; já na resposta à contestação do FGA a sua defesa conteve-se a que o prazo de prescrição aplicável é o estabelecido do artº 317º al. a) CCivil e tratando-se, assim, de uma prescrição presuntiva a mesma não foi devidamente alegada.
Em acta de audiência prévia realizada em 14/10/2024 o Tribunal - após absolver FMASL da instância por conhecimento oficioso da sua ilegitimidade - apreciou a excepção de prescrição julgando-a procedente e, consequentemente, absolveu os demais RR. do pedido, em decisão do seguinte teor :
«B. CONHECIMENTO IMEDIATO DA EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA DE PRESCRIÇÃO
*
Veio a Autora HOSPITAL DE SANTO ESPÍRITO DA ILHA TERCEIRA, E.P.E.R., com sinais nos autos, propor acção declarativa comum relativa ao pagamento de créditos derivados de assistência hospitalar prestada a FMASL, no que ora interessa contra ARRV, GENERALI SEGUROS, S.A. e FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, todos também com sinais nos autos, pedindo a condenação dos Réus no pagamento à Autora de € 17.653,55.
*
Citados, cada um dos Réus em causa veio alegar que o crédito da Autora está prescrito, em termos que aqui se dão por reproduzidos, pugnando a Autora pela não verificação da excepção em causa, também em termos que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
Com base no teor da Petição Inicial, mormente do teor integral do art. 12.º, da Petição Inicial, e com base no teor dos AR´s de fls. 16, 17 e 105 encontra-se provado o seguinte:
1. A Autora peticiona, nos presentes autos, créditos derivados de assistência hospitalar alegadamente prestada a FL, relativa ao período compreendido entre 15/11/2016 e 25/07/2017.
2. A Autora instaurou a presente acção no dia 11/05/2021.
3. O Réu AV foi citado para os presentes autos a, pelo menos, 19/05/2021;
4. A Ré Generali Seguros, S.A. foi citada para os presentes autos a 27/05/2021;
5. O Réu Fundo de Garantia Automóvel foi citado para os presentes autos a 28/09/2023.
*
Isto posto, cumpre decidir.
A questão que aqui se nos coloca consiste em saber se as obrigações peticionadas se encontram prescritas (dispensando, por isso, a produção de prova sobre a sua existência ou não), tal como afirmaram os Réus.
Vejamos.
Note-se, antes de mais, que, havendo legislação específica, ao contrário do sustentado pelo Autor, a questão não se coloca aqui nos termos do art. 317.º, al. a), do Código Civil, nem nos temos do art. 498.º, n.º 1, do Código Civil, conforme sustenta o Réu AV, mas sim nos termos do art. 3.º, do DL 218/99, de 15 de Junho, conforme pugnado pelos demais.
Ora, nos termos do art. 3.º, do DL 218/99, de 15 de Junho, os créditos hospitalares prescrevem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem.
Está assente que a Autora invoca a prestação de assistência hospitalar a FL, bem como que reclama créditos dos Réus derivados desta assistência (e isto independentemente da concreta assistência prestada e seu valor).
Se assim é, é inequívoca a aplicação à obrigação reclamada do prazo de prescrição constante do art. 3.º, do DL 218/99, de 15 de Junho, porquanto o que é peticionado nos autos é um crédito hospitalar.
Está também já assente que os créditos que a Autora peticiona (independentemente de virem a ser demonstrados) são no período compreendido entre 15/11/2016 e 25/07/2017 (art. 12.º, da PI).
Por conseguinte, temos que, para efeitos do art. 3.º, do DL 218/99, de 15 de Junho, a cessação da prestação dos serviços que deu origem aos créditos reclamados nos autos pela Autora data de 25/07/2017, sendo, pois, desde essa datas que há-de processar-se a contagem do prazo de prescrição em causa.
Ora, se assim é, sendo o prazo de prescrição de 3 anos, e tendo a Autora instaurado a presente acção no dia 11/05/2021, fácil se torna de concluir que os créditos reclamados se encontravam prescritos já na data de instauração da acção (tendo expirado o prazo de prescrição a 1/01/2021, considerando as interrupções da prescrição ínsitas nos arts. 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e 6.º-B, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na versão dada pela Lei n.º 4.º-B/2021, e 1 de Fevereiro), sendo até, por via disso, irrelevante o momento em que ocorreu a citação dos Réus (art. 323.º, do Código Civil), indelevelmente posterior à mencionada instauração.
Atento o decurso de tal prazo prescricional, estando em causa excepção peremptória que, embora não sendo de conhecimento oficioso, foi invocada pelos três Réus em causa (art. 303.º, do Código Civil), é inequívoco que a mesma tem, sem mais, de proceder totalmente (pois contende com todos os créditos reclamados), sendo, em consequência, os três Réus em causa totalmente absolvidos do pedido formulado (art. 576.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
*
Pelo exposto, e ao abrigo das normas legais supra invocadas, decide-se julgar totalmente procedente a excepção peremptória de prescrição invocada pelos Réus ARRV, GENERALI SEGUROS, S.A. e FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL e, em consequência, absolvem-se totalmente os Réus ARRV, GENERALI SEGUROS, S.A. e FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL do pedido formulado nestes autos pelo Autora HOSPITAL DE SANTO ESPÍRITO DA ILHA TERCEIRA, E.P.E.R...
Custas pela Autora (art. 527.º, do CPC).
Registe e Notifique.».
É desta sentença que o A., inconformado, interpõe o presente recurso de apelação sustentando que a decisão recorrida deve ser revogada e em seu lugar proferida outra que considere não prescrito o crédito por si reclamado.
Das suas alegações extraiu o Recorrente as seguintes
Conclusões
«1. O saneador/sentença objeto de recurso declarou prescrito o direito de crédito da recorrente.
2. Para tal, aplicou o prazo de 3 anos, previsto no artigo 3.º, do DL n.º 218/99, de 15 de junho.
3. O prazo de prescrição aplicável é o do artigo 317.º, alínea a), do Código Civil.
4. A prescrição prevista no referido artigo é uma prescrição presuntiva e não extintiva.
5. Os RR não alegaram tal prescrição.
6. Motivo pelo qual deveriam as exceções terem sido julgadas improcedentes.
7. Nesse mesmo sentido, veja-se os acórdãos da Relação de Lisboa, processos n.ºs 3565/07.YXLSB-1 e 185/11.0TJLSB.L1-7, respetivamente, in www.dgsi.pt.
8. Acresce ainda que o recorrente não faz parte integrante do Serviço Nacional de Saúde, a que se refere o DL n.º 218/99, de 15 de junho.
9. A recorrente faz parte e está integrada no serviço regional de saúde dos Açores, o qual é autónomo financeira e administrativamente do serviço nacional de saúde (DLR n.º 28/99/A, de 31 de julho, na redação atual).
10. Pelo que o crédito da recorrente não se encontra prescrito.
11. Assim sendo, a decisão recorrida violou as normas do artigo 3.º, do DL n.º 218/99, de 15 de junho.
Termos em que o presente recurso deverá ter provimento, e, em consequência, deverá a decisão recorrida ser revoga e substituída por outra que considere que o direito de crédito da recorrente não se encontra prescrito. Com as consequências legais.»
Todos os RR. contra-alegaram pugnando pela confirmação do julgado.
O R. ARRV Vieira alinhou as seguintes
Conclusões
«1. É claro que a cobrança dos créditos relativos à prestação de cuidados de saúde, por parte de instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde se rege pelo regime especial previsto no DL n.º 218/99, de 15 de junho.
2. Pelo que, para efeitos de prescrição de créditos desse tipo de serviços deve ser aplicável o art. 3º de tal decreto.
3. Ora, as Regiões Autónomas são dotadas de autonomia financeira e administrativa, no entanto, em termos legislativos, é certo que podem existir lacunas na lei regional quanto a diversas matérias por falta de regulamentação. É o que sucede quanto a esta matéria em concreto.
4. Apesar de o autor pertencer ao Serviço Regional de Saúde, a verdade é que ao abrigo do princípio da unidade do Estado e dos princípios adjacentes à unidade da Administração Pública do Estado, é parte integrante do Estado português.
5. Aliás, o próprio autor na sua petição inicial alega que no seu art. 2º “é uma das entidades que integra o Serviço Regional de Saúde (SRS) e rege-se pelas mesmas regras que o Serviço Nacional da Saúde com as especificidades do Decreto Legislativo Regional n.º 28/99/A, de 31 de julho (…)”
6. A base do sistema regional de saúde é o sistema nacional de saúde.
7. Assim, recorrendo à analogia iuris, não havendo um regime especial criado pelo legislador regional quanto à cobrança de dívidas de serviços prestados pelos hospitais do SNS, dúvidas não restam que se aplica, analogicamente, à cobrança da dívida em discussão nos autos o regime específico do DL n.º 218/99, de 15 de junho.
TERMOS EM QUE, E NOS MELHORES DE DIREITO SE REQUER QUE O PRESENTE RECURSO APRESENTADO PELO AUTOR E RECORRENTE SEJA TOTALMENTE IMPROCEDENTE, FAZENDO-SE, ASSIM, A TÃO ACOSTUMADA JUSTIÇA!»
Por sua vez, a Ré “Generali Seguros, S.A” concluiu que «… terá necessariamente a pretensão do Recorrente que soçobrar, não merecendo a decisão do tribunal a quo qualquer censura, porquanto formal e materialmente correta, mantendo-se a douta decisão nos seus precisos termos.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. melhor suprirão, deverá o presente recurso ser julgado integralmente improcedente e, em consequência, manter-se a sentença nos seus exatos termos, pois só assim se aplicará o Direito e se fará a verdadeira JUSTIÇA!»
Por seu turno, o R. Fundo de Garantia Automóvel terminou as suas contra-alegações dizendo «…vistos os fundamentos invocados pela recorrente, julgamos que a pretensão da mesma, não pode merecer provimento. Com efeito, entendemos que a decisão quanto à excepção de prescrição peremptória de prescrição encontra-se correcta e de acordo com os normativos legais aplicáveis, encontrando-se devidamente fundamentada.
Termos em que, deve o recurso apresentado pelo Hospital de Santo Espirito Santo da Ilha Terceira, EPER, ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a absolvição do aqui Réu.»
*-*
Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 662º nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. artº 5º nº 3 do mesmo Código).
No caso, a questão a decidir consiste em saber se o crédito reclamado pelo A., que é um Hospital EPER (Entidade Pública Empresarial da Região Autónoma), se encontra ou não prescrito, passando por averiguar se lhe é aplicável o regime consagrado no DL nº 218/99, de 15/06 [alterado pela Lei nº 64-B/2011, de 30/12].
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
A factualidade relevante é a que se mostra consignada no relatório supra, incluindo a matéria de facto atendida na decisão sob recurso que nesse relatório se encontra reproduzida.
B) DE DIREITO
É inequívoco que o DL nº 218/99, de 15/06, alterado pela Lei nº 64-B/2011, de 30/12, prevê no seu artº 3º que “Os créditos a que se refere o presente diploma prescrevem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem.”
Acontece que esse diploma regula o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados – o que consiste no seu objecto, como tal definido no artº 1º desse diploma.
Pese embora a circunstância de o DL nº 218/99, de 15/06, se apresentar como lei geral da República, às Regiões Autónomas assiste competência legislativa para desenvolver, em função do interesse específico, as leis de bases do Serviço Nacional de Saúde.
Com efeito, logo na primeira Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei nº 48/90, de 24/08, e que era vigente à data de entrada em vigor do citado DL nº 218/99, de 15/06, sem prejuízo de, naturalmente e em respeito pelos valores constitucionais, estabelecer que a política de saúde tem âmbito nacional e obedece a directrizes fixadas nessa mesma Lei de Bases (cfr. Base II), estipulou-se na sua Base VIII, sob a epígrafe Regiões autónomas, que “1 - Nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira a política de saúde é definida e executada pelos órgãos do governo próprio, em obediência aos princípios estabelecidos pela Constituição da República e pela presente lei. 2 - A presente lei é aplicável às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, que devem publicar regulamentação própria em matéria de organização, funcionamento e regionalização dos serviços de saúde”; redacção que se manteve nesses precisos termos quando a Lei de Bases da Saúde foi alterada pela Lei nº 27/2002, de 08/11, versão que vigorava à data em que foram prestados os cuidados de saúde em causa nos autos [regra que, naturalmente, se encontra presente na actual Lei de Bases, aprovada pela Lei nº 95/2019, de 04/09 – cfr. Base 7].
Tal constitui uma concretização do princípio constitucional de gestão descentralizada e participada do Serviço Nacional de Saúde consignado à época, como hoje, no artº 64º da Constituição da Républica, e harmoniza-se com os artºs 3º al. j) e 59º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei nº 39/80, de 05/08 (revisto e renumerado pelas Leis nº 9/87 de 26/03, nº 61/98 de 27/08 e nº 2/2009 de 12/01), mediante a atribuição aos órgãos de Governo da Região Autónoma da competência para modelar o Serviço Nacional de Saúde à sua realidade particular, atento o seu estatuto jurídico-constitucional autonómico.
Neste enquadramento legislativo o Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma dos Açores reveste-se de autonomia em relação ao Serviço Nacional de Saúde[1], tendo o mesmo sido criado pelo Decreto Legislativo Regional nº 32/80/A, de 11/12.
Aliás, se atentarmos no primeiro Estatuto do Serviço Nacional de Saúde - aprovado pelo Decreto-Lei nº 11/93, de 15/01, em desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela primeira Lei de Bases da Saúde aprovada pela citada Lei nº 48/90, de 24/08 - verificamos que as regiões de saúde em que o SNS foi organizado respeitam todas a regiões de Portugal Continental (cfr. seus artºs 3º e 4º), assim se mantendo até ao actual Estatuto do Serviço Nacional de Saúde aprovado pelo DL nº 52/2022, de 04 de Agosto (cfr. seus artºs 5º e 6º).
Por sua vez, o Estatuto do Serviço Regional de Saúde dos Açores foi estabelecido pelo Decreto Legislativo Regional nº 28/99/A, de 31/07, aí se prevendo a composição do Serviço Regional de Saúde dos Açores, compreendendo um conjunto de Unidades de Saúde da Ilha (USI), uma por cada das ilhas do arquipélago.
Esse Estatuto foi objecto de sucessivas alterações, e com as operadas pelo Decreto Legislativo Regional nº 2/2007/A, de 24/01 - que permitiu a transformação dos hospitais regionais em entidades públicas empresariais e aprovou o respectivo regime jurídico e estatutos - foram criados o Hospital Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, EPE., o Hospital da Horta, EPE e o Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo, EPE; este último, que ao caso interessa, objecto de alteração de designação para Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira, EPER (cfr. Decreto Legislativo Regional nº 22/2015/A, de 18/09), ou seja o Hospital ora Autor.
É, portanto, indubitável que o Autor integra o Serviço Regional de Saúde dos Açores, como inequívoco também é que o Serviço Nacional de Saúde não incorpora os Serviços Regionais de Saúde, concretamente o dos Açores, no que ao caso importa.
Por conseguinte, não é aplicável à situação dos autos o regime do DL nº 218/99, de 15/06, alterado pela Lei nº 64-B/2011, de 30/12, especificamente o regime prescricional estabelecido no seu artº 3º, porquanto apenas aplicável aos créditos das instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde por eles prestados.
Diversamente do que se verifica na Região Autónoma da Madeira, que pelo Decreto Legislativo Regional nº 1/2000/M, de 31/01, adaptou à Região Autónoma da Madeira o DL nº 218/99, de 15/06, tal não se verificou na Região Autónoma dos Açores; e averiguado e analisado o quadro legislativo regional dos Açores relativo ao seu Serviço Regional de Saúde não detectamos norma que estabeleça um prazo especifico de prescrição para a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no seu Serviço Regional de Saúde.
Deste modo somos remetidos para os regimes comuns fixados no Código Civil, sendo os créditos reclamados pelo Autor integráveis na previsão do artº 317º al. a), porquanto estão em causa créditos de estabelecimento de assistência ou tratamento relativamente aos serviços prestados.
Esse normativo, fixando o prazo prescricional em dois anos, integra-se na subsecção relativa às prescrições presuntivas, as quais se fundam na presunção de cumprimento.
Resulta da sua própria natureza – encontrando-se sobejamente debatido na doutrina e na jurisprudência – que as prescrições presuntivas são presunções de pagamento com fundamento em que as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e relativamente a elas não é costume exigir quitação do seu pagamento. Decorrido o prazo legal presume, pois, a lei que a dívida está paga, dispensando, assim, o devedor da prova do pagamento, que lhe poderia ser difícil ou mesmo impossível por falta de recibo de quitação.
E porque presunções as mesmas são ilidíveis, quer nas especiais circunstâncias previstas nos artigos 313º e 314º do CCivil, quer por qualquer forma que encerre o reconhecimento de que o pagamento não ocorreu. Diferentemente da prescrição extintiva, que opera mesmo que o devedor confesse que não pagou, a prescrição presuntiva fica ilidida se o devedor confessa que deve ou se a sua actuação revela o reconhecimento de que não pagou.
Por isso têm-se as mesmas por ilididas quando o devedor, apesar de alegar a prescrição, discute a existência da dívida, o respectivo montante, a sua obrigação de pagar, etc, pois essa atitude tem como pressuposto o reconhecimento do não pagamento.
E no caso os RR. que invocaram a prescrição [e únicos que permanecem na lide, face à absolvição da instância de FL por ilegitimidade] discutem a própria existência da obrigação, a sua responsabilidade pelo respectivo pagamento, o que encerra a assunção da não realização deste.
Tanto basta para concluir que a presunção de pagamento que subjaz à prescrição aplicável ao caso mostra-se ilidida, e, por conseguinte, não se verifica a excepção, a qual, por isso, se julga improcedente.
Assim, no provimento da apelação, revoga-se a sentença sob recurso e determina-se o prosseguimento dos autos.
III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação procedente, julgando-se não verificada a prescrição dos créditos reclamados, e, consequentemente, revoga-se a sentença de 1ª instância e determina-se o prosseguimento dos autos.
Custas pelos Recorridos.
Notifique.
Lisboa, 05/06/2025
Amélia Puna Loupo
Maria Carlos Calheiros
Marília Leal Fontes