I - A realização de perícia – arts. 153º a 161º do Código de Processo Penal ocorre quando o processo e a decisão que neste haverá de ser tomada implicam conhecimentos específicos científicos, técnicos ou artísticos, que impõem que o tribunal seja coadjuvado por quem possui tais conhecimentos para que possa emitir um juízo especializado.
II – Concedendo a lei a possibilidade de os peritos serem convocados para prestarem esclarecimentos complementares, impõe-se que tal aconteça apenas quando esses se revelem de interesse para a descoberta da verdade (art. 158º e 340º do Código de Processo Penal).
III - A realização de exame em lugar, ou coisa, que se encontre em casa habitada ou sua dependência fechada não depende da verificação dos pressupostos da busca domiciliária, pois a realização do exame está intimamente ligado à notícia do crime e à necessidade de preservação da prova com vista à descoberta da verdade, não constituindo por isso prova proibida (art. 126º, nº 3 do Código de Processo Penal).
IV - Mesmo entendendo-se que a entrada na habitação do agente pressuporia uma validação prévia ou posterior, o certo é que o conhecimento da existência das armas e munições decorreu da intervenção ativa de terceiros, conhecedores da sua localização que a deram a conhecer à Polícia Judiciária que as apreendeu, tendo tal apreensão sido validada pelo Mº Público, o que sempre afastaria o efeito à distância de qualquer eventual prova proibida.
V - As situações de imputabilidade diminuída (art. 20º, nº 2 do Código Penal) quando as conexões de sentido entre o facto e o agente ainda são compreensíveis e, por isso, o agente deve ser considerado imputável, não conduzem, sem mais, a uma atenuação da culpa.
VI – As qualidades especiais do caracter do agente entram no juízo da culpa e se estas “forem especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente relevante” podem, ao invés, fundamentar uma agravação da pena.
VII - A noção de meio insidioso prevista na al. i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, não é unívoca, devendo integrar elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da ação.
VIII – Na integração desta qualificativa deve considerar-se o meio/arma utilizado mas também todos os contornos da atuação do agente levando-se em conta fatores como a imprevisibilidade da atuação, a distância do agente à vitima, a (im)possibilidade de resistência desta, a zona do corpo atingida, a forma, o momento e local escolhido para a agressão, e todos estes conjugados, podem caracterizar o meio utilizado como insidioso.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I.1 No âmbito do processo comum coletivo n.º611/23.6JACBR.C1 que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, em 13.12.2024, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este tribunal colectivo em julgar parcialmente procedentes a acusação e os pedidos de indemnização, e, consequentemente, decidem:
A)- absolver o arguido AA da prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, que lhe era imputado relativamente a BB;
B)- absolver o arguido AA do cometimento de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, no que respeita às imputadas alíneas e) e j), do nº 2, do artigo 132º, do Código Penal, sem prejuízo da sua condenação pela prática do imputado crime quanto às alíneas b) e i) relativamente a CC e à alínea i) quanto a DD e EE, todas alíneas do mesmo nº 2;
C)- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 131º, e 132º, nº 2, alíneas b) e i), todos do Código Penal, na pena de sete anos e seis meses de prisão, cometido sobre CC;
D)- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 131º, e 132º, nº 2, alínea i), todos do Código Penal, na pena de seis anos e seis meses de prisão, cometido sobre DD;
E)- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 131º, e 132º, nº 2, alínea i), todos do Código Penal, na pena de cinco anos e seis meses de prisão, cometido sobre EE;
F)- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, por referência aos artigos 2º, n.º 3, alínea ad) 3.º n.º 1 e 2 alínea v) e artigo 4.º do mesmo diploma, na pena de cinco meses de prisão;
G)- condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de treze anos de prisão efectiva;
H)- condenar o arguido AA no pagamento de dez UC’s de taxa de justiça e demais encargos, nos termos conjugados dos artigos 513º, nºs 1, 2 e 3 e 514º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP e tabela III;
I)- julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB condenando o demandado AA a lhe pagar a quantia de 5.000,00 euros (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento;
J)- julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD, condenando o demandado AA a lhe pagar, a título de
indemnização, pelos seguintes danos:
J.1)- dano biológico, a quantia de 60.000,00 (sessenta mil) euros;
J.2)- danos não patrimoniais, a quantia de 30.000,00 (trinta mil) euros;
J.3)- dano estético, a quantia de 50.000,00 (cinquenta mil) euros;
J.4)- pelo quantum doloris e défice funcional, a quantia de 25.0000,00 (vinte e
cinco mil) euros; no valor total de 165.000,00 (cento e sessenta e cinco mil) euros, acrescido de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento, do mais peticionado o absolvendo;
K) - julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD, na parte respeitante aos danos futuros, condenando o demandado AA a lhe pagar as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença, respeitantes ao pagamento de despesas médicas futuras, nos termos do artigo 82º, nº 1, do Código de Processo Penal;
L) - julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD, na parte respeitante aos danos futuros, condenando o demandado AA a lhe pagar as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença, respeitantes aos danos patrimoniais e não patrimoniais futuros que se vierem a liquidar em execução de sentença, na sequência do pedido anterior, nos termos do artigo 82º, nº 1, do Código de Processo Penal;
M) - julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por EE, condenando o demandado AA a lhe pagar, a título de indemnização, pelos seguintes danos:
M.1)- dano biológico, a quantia de 30.000 (trinta mil) euros;
M.2)- danos não patrimoniais, a quantia de 20.000,00 (vinte mil) euros;
M.3)- dano estético, a quantia de 10.000,00 (dez mil) euros;
M.4)- pelo quantum doloris e défice funcional, a quantia de 15.000,00 (quinze mil) euros; no valor total de 75.000,00 euros (setenta e cinco mil) euros, acrescido de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento, do mais peticionado o absolvendo;
N) - julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido por EE, na parte respeitante aos danos futuros, condenando o demandado AA a lhe pagar as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença, respeitantes ao pagamento de despesas médicas futuras, nos termos do artigo 82º, nº 1, do Código de Processo Penal;
O) - julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido por EE, na parte respeitante aos danos futuros, condenando o demandado AA a lhe pagar as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença, respeitantes aos danos patrimoniais e não patrimoniais futuros que se vierem a liquidar em execução de sentença, na sequência do pedido anterior, nos termos do artigo 82º, nº 1, do Código de Processo Penal;
P)- condenar demandantes e demandado, nos termos conjugados dos artigos 4º, nº 1, alínea n), ‘a contrario’, do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo DL nº 34/2008, de 26 de Fevereiro), 523º, do Código de Processo Penal e 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, no pagamento das custas dos pedidos de indemnização civil, na proporção dos respectivos decaimentos;
Q)- ordenar a recolha de amostra para obtenção de perfil de ADN do AA e posterior inserção na base de dados respectiva, nos termos do disposto nos artigos 8º, nº 2 e 18º, nº 3, ambos da Lei nº 5/2008, de 12.02;
R)- declarar perdida a favor do Estado a espingarda caçadeira, semiautomática, de calibre 12, da marca Benelli, modelo Raffaello 121, com o número de série ...40, bem como os cinco cartuchos zagalote, da marca RIO, nos termos do artigo 109º, nº 1, do Código Penal;
S)- ordenar a restituição ao arguido AA de todas as demais armas, munições, objectos e documentos melhor descritos no auto de apreensão de fls 103 a 108, nos termos do artigo 186º, nº 2, do Código de Processo Penal;
T)- ordenar a restituição, a EE, do polo verde apreendido, nos termos do artigo 186º, nº 2, do Código de Processo Penal.
“DESPACHO
“Em decisão relativa ao referido requerimento apresentado pelo arguido cumpre-me decidir nos seguintes termos:
O arguido AA foi notificado dos relatórios periciais de psicologia e psiquiatria forense e veio requerer em síntese:
I)- ao abrigo do artigo 340.º, do Código de Processo Penal, por se revelar pertinente, quer para a (in)validação de tais referências conclusivas, quer para a descoberta da verdade material, a notificação da Sra. Perita para vir proceder a junção aos autos dos registos clínicos incluídos na plataforma Registo de Saúde Electrónico da SPMS EPE, consultados pela mesma;
II)- ao abrigo do artigo 157.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que a Sra. Perita venha esclarecer, fundamentando, se no momento em que o arguido actuou (ou seja, quando andou aos tiros aos demais, e não quando atentou contra a própria vida), se era ou não possível que a sua condição mental e física fosse de tal monta que poderia o arguido não ter a necessária autodeterminação para os seus actos (ou seja, se poderá ser considerada uma inimputabilidade propriamente dita, ao invés da indicada imputabilidade diminuída, dita também artificial, ou duvidosa).
III)- ao abrigo do artigo 157.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, esclarecer:
a) Por que razão (e como), pôde/conseguiu a Sra. Perita concluir a perícia sem essa entrevista complementar, que considerara anteriormente como necessária;
b) Em que medida essa entrevista era relevante para as conclusões a que ainda assim chegou: isto é, em que medida poderia a realização de tal entrevista, ainda em falta, ter influenciado esse seu juízo e respectivas conclusões periciais.
Além disso, invoca que:
IV)- inexiste nos autos a prestação do compromisso a que alude o artigo 156.º do Código de Processo Penal por parte de ambas as Sras. Peritas subscritoras dos relatórios em causa.
Trata-se de uma irregularidade que expressamente se argui, nos termos do artigo 123.º do CPP.
Decidindo
No essencial, dos diversos pontos apresentados, trata-se de saber se se justifica, ou não, desde logo a junção dos registos clínicos incluídos na plataforma do registo de saúde electrónica que são referidos.
Quanto a isso, o tribunal colectivo entende que face ao teor do respectivo relatório não se justifica tal junção e, nem a mesma teria qualquer interesse para a descoberta da verdade material, tratar-se-ia apenas de uma actividade meramente dilatória e sem qualquer consequência vantajosa para a descoberta da verdade material, pelo que essa junção se indefere.
Relativamente aos esclarecimentos da Sr.ª Perita nos três pontos referidos no requerimento apresentado também não se percebe em que medida esses esclarecimentos podem ser, ou ter relevância para a descoberta da verdade material e nos termos do artigo 158.º do Código do Processo Penal, os novos esclarecimentos às Sr.ª Peritas devem ter lugar quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade ora, não nos parece que possa ter qualquer interesse e, por isso se entende que devem ser indeferidos esses dois pontos do requerimento e portanto, não convocar a Sr.ª Perita ou as Sr.sª Peritas para qualquer esclarecimento relativamente à irregularidade referida.
Quanto à falta de compromisso a que alude o artigo 156.º do Código do Processo Penal, o arguido tem razão, na verdade, não existe nos autos qualquer prestação de compromisso.
No entanto, nos termos do artigo 91.º, n.º 6, alínea b), do Código do Processo Penal os Sr. Peritos não prestam juramento quando forem funcionários públicos e intervierem no exercício das suas funções; nesses casos, não prestam qualquer compromisso.
Portanto, é verdade que não existe compromisso nos autos, mas também a Lei já prevê essa situação, e desse compromisso, nesta situação concreta, estão dispensadas.
Assim sendo, se entende que não existe qualquer irregularidade relativamente ao compromisso ou à falta de compromisso por parte das Sr.ªs Peritas, uma vez que as mesmas, sendo funcionárias do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, nos termos do artigo 91.º, n.º 6, alínea b) do Código do Processo Penal não prestam qual compromisso.
Notifique.
“Notificado do douto despacho do tribunal relativamente ao indeferimento ora da irregularidade e relativamente à ausência de compromisso por parte dos senhores peritos, ora do indeferimento dos eh pedidos de esclarecimento à senhora Perita, tal qual elencados no requerimento referido de 20 de novembro, cumpre arguir uma nulidade por omissão de prova. Relativamente a prática a todos os pontos que foram indeferidos nos seguintes termos:
Sobre a prestação do compromisso em falta. Faz-se notar que no relatório preliminar que foi entregue aos autos, houve referência a uma perícia médico legal forense feita ao abrigo do artigo 159º, nº 2 do Código de Processo Penal. O Artigo 159º, nº 2 do Código Penal refere que excecionalmente perante manifesta impossibilidade dos serviços, as perícias referidas no número anterior podem ser realizadas por entidades terceiras, públicas ou privadas, contratadas ou indicadas para o efeito pelo instituto.
Mais à frente, no relatório de psicologia que foi dado a conhecer ao arguido diz-se que tal relatório subscrito pela senhora perita FF havia sido solicitado pelo serviço de Clínica e Patologia Forense, Unidade Funcional de Clínica Forense, delegação do Centro.
Ora bem, sendo certo que nos termos do artigo 91ºnº 6, não há de facto necessidade de que quem sendo funcionário preste o dito esclarecimento, estas normas permitiriam desde logo duvidar se os subscritores dos ditos relatórios são efetivamente ou não funcionários públicos.
A lei 45/2004 de 19 de agosto refere no artigo 2º nº 2 e 4 que aqui nos abstemos de repetir à exaustão. Mas de facto há referência até pelo artigo 28º a que há possibilidade de contratação, do artigo 28 da lei 45/2004, que há possibilidade de contratação de terceiros a título de prestadores de serviços que efetivamente podem fazer este serviço, desconhecendo se a entidade a que foram solicitadas, pese, embora constar do relatório um papel timbrado IML, desconhece se estas técnicas são estas peritas são efetivamente dos quadros do IML ou não.
E portanto, desconhecendo se esses subscritores são funcionários públicos, efetivamente ou são entidades privadas em regime de contratação de serviços. Julga-se essencial apurar-se, antes de assumir que são funcionários públicos, se o são ou não, o que eh redundará na nulidade prevista no artigo 120º número 1, alínea d) do CPP, que expressamente se invoca.
Relativamente ao indeferimento da junção dos registos da plataforma, refere o tribunal que de facto não se justifica, uma vez que não tem interesse, tratar-se-ia de diligência dilatória sem quaisquer consequências.
Ora bem, em sede de alegações, a defesa pugnou, desde logo, por uma prisão suspensa, subordinada a regime de prova, seguramente em tratamento, eh, e condicionado ao pagamento de uma qualquer indemnização, pelo que, a menos que estejamos a agir já na presunção de que o arguido irá ser condenado em prisão efetiva e que efetivamente estava plenamente consciente da prática dos factos, como aliás se depreende da promoção do digno magistrado do Ministério Público que se teve a oportunidade de consultar via citius, parece de facto que é essencial para a descoberta da verdade material e nomeadamente para justificar se a possibilidade desse regime de prova ainda em aberto, sendo então uma nulidade que igualmente se argui a obrigo 120º número 2, alínea d) do CPP.
(…)
Quanto ao esclarecimento que foi pedido sobre a conclusão da alta probabilidade de condutas auto e hétero lesivas a que chega à senhora perita, também o tribunal entendeu inexistir a qualquer relevância para a descoberta dessa verdade material.
Ora bem, os relatórios em causa, nomeadamente o de psicologia forense, conclui pela imputabilidade diminuída. O que, segundo a jurisprudência, poderá deixar ao critério de deste tribunal decidir-se ora pela imputabilidade, ora pela inimputabilidade, ao abrigo do artigo 20º número 4 do CP.
Ora bem, no caso de vossas excelência, se decidir pela imputabilidade do arguido, crê-se que essa diligência seria relevante para a medida da pena, caso Vossa Excelência se decidir pela inimputabilidade do arguido, tal seria relevante para se aferir da perigosidade do arguido.
Em todo o caso, essa alta probabilidade continua por estar esclarecida ou fundada cientificamente. Muito pelo contrário, a senhora Perita diz que, efetivamente, cientificamente não é possível apurar e ou prever atos futuros do arguido, pelo que, uma vez mais, se argui a nulidade por omissão essencial quanto ao indeferimento desse desses pedidos de esclarecimentos, uma nulidade e por omissão de diligências que se reputam essenciais para essa verdade material abriga o 120º número 2 alínea d) do código penal.
No que se reporta ao pedido de esclarecimentos sobre a conduta do arguido no momento da prática do facto e isto aqui sem necessidade de muito mais considerações, o pedido de esclarecimentos é justamente no sentido de responder ao que foi solicitado pelo tribunal, não resultando da perspetiva da defesa clara a razão de ciência da conclusão que formular justamente aquele juízo técnico científico inerente à prova pericial que alude com o artigo 163º do Código de Processo Penal e que, em princípio, salvo, posição em contrário do tribunal devidamente fundamentada, se impõe ao julgador.
Uma vez mais, trata-se, por exemplo, portanto, o indeferimento do requerido esclarecimento, uma omissão que se reputa de nula ao abrigo do artigo 120, número 2 alínea d) do CPP.
Por fim, quanto ao indeferimento sobre o esclarecimentos da relevância e possibilidade de conclusão do relatório, sem a informação complementar da entrevista a uma pessoa próxima e aqui não propriamente um familiar, como também refere o Ministério Público nas suas e na sua douta promoção.
Quanto este um pouco mais denso, convirá dizer que anteriormente veio a defesa pedir esclarecimentos ao à senhora Perita, se não seria possível realizar a conclusão da perícia sem se ouvir alguém. Invocou-se oportunamente a irregularidade.
O tribunal, por despacho de 10 de outubro de 2024, com a referência 952 96546, veio responder que o juízo sobre a necessidade da realização de entrevista à familiar do Arguido e aqui apenas se refere a familiar, não a pessoa próxima que pode ser ou não familiar, para conclusão da perícia ordenada nos presentes autos, apenas pertence ao senhor perito do INML no âmbito da sua autonomia técnica e científica.
Portanto, o juízo pertence ao senhor perito. O juízo do seu perito não é propriamente insindicável, deverá conter dados objetivos no âmbito de uma autonomia que se quer científica.
A primeira questão que se põe é porque é que não foi concluído esse juízo antes porque veio-se fazer referência à necessidade dessa prova. Se poderia ter concluído sem esse juízo, podê-lo ter feito antes, com os elementos que tinha disponíveis.
Mas parece que a resposta, e aqui e vem daqui a confusão, é que da consulta aos Citius constatou-se novo despacho de Vossa Excelência desta feita de 11 de outubro de 2024. Teve-se a oportunidade agora de consultar que é de folhas 1113. É o despacho com a referência 95308125, com a nota de que esse despacho jamais foi dado a conhecer ou arguido, jamais lhe foi notificado, em que o tribunal ordena ao Instituto Nacional de Medicina Legal que prossiga o seu esforço para concluir a perícia com os elementos disponíveis.
Ora, se por um lado o dito despacho olvidou que não era necessário ouvir-se um dos filhos, e essa era apenas uma sugestão do Instituto de Medicina Legal, portanto o IML fez a sugestão dos filhos ou de uma pessoa próxima e, portanto, acelerou o procedimento do INML, não levando em consideração essa exigência pericial. Por outro, a ordenar que se concluísse o relatório com os elementos disponíveis, coarctou ou poderá ter coarctado o juízo do INML, além do que se contradiz com o despacho proferido a 10 de outubro de 2024, retirando, ao fim e ao cabo com esse despacho a anteriormente defendida a autonomia do INML que eh, enfim, se dizia que que existia.
Portanto, com esse despacho terá ou poderá ter coartado essa independência e autonomia funcional do INML.
É, pois essencial à descoberta da verdade apurar-se junto à senhora perita se esse despacho condicionou ou não a sua intenção de fazer a entrevista a mais alguém a título de informação complementar para concluir-se o seu relatório. E nem se diga que o INML poderia ter feito as notificações que entendesse necessárias, eh, assim como terá feito o contacto ao filho do Arguido GG, porque o INML não faz notificações. Aliás, vamos termos artigos 156, número 3, do Código de Processo Penal. Tanto que a notificação que foi feita à filha do arguido, HH, foi feita justamente pelo tribunal.
É, pois essencial ouvir-se da própria perita a importância/relevância para o relatório da informação em falta e bem assim se eu ser da própria perita se essa desconsideração dessa informação complementar foi voluntária ou se foi decorrente do despacho do tribunal de 11 de outubro de 2024 a que se fez a referência que já se referiu nunca foi notificado ao arguido. Pelo que se insiste neste ponto quanto à existência da nulidade prevista no artigo 120º número 2 al. d) do Código de Processo Penal por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade material.
Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho [transcrição]:
“O arguido AA, através do seu Ilustre Mandatário veio invocar diversas nulidades que por economia processual e, por terem sido invocadas há minutos não se justifica estar aqui a repeti-las.
O tribunal colectivo entende que não existe qualquer nulidade e mantém o despacho nos seus precisos termos.
Sempre se diga, no entanto, relativamente à questão do desconhecimento do facto de os subescritores, serem, ou não, funcionários do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, não se verifica, também, quanto a isso qualquer nulidade; e a questão de só por si se suscitar essa possibilidade corresponde a uma interpretação que não tem suporte no artigo 91.º, n.º 6, alínea b) do Código do Processo Penal, o qual presume que os subscritores em causa são funcionários daquele Instituto.
A invocação feita pelo arguido, é meramente abstracta, partindo de uma hipótese que não tem qualquer suporte, e nestes casos, não cabe ao Tribunal, indagar hipóteses abstractas só porque essa possibilidade legal existe, se as Srªs Peritas assinaram nos termos em que estão nos relatórios periciais, nada apontam que se ponham em causa a autenticidade das funções em que estavam no exercício da respectiva actividade.
Relativamente às demais diligências referidas, reafirma-se que não existe qualquer omissão ou qualquer contradição que ponham em causa, ou que sejam susceptíveis de fundar qualquer uma das invocadas nulidades, tal como, nada existe que justifique esclarecer quanto eventual influência dos referidos despachos do tribunal, relativamente ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e igualmente, não se vislumbra, nem tal decorre do teor dos mesmos, qualquer contradição nos invocados despachos quanto à independência e autonomia técnica do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, sendo manifesto que não houve qualquer influência na decisão do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses quanto à relevância, ou não, de ouvir ou não ouvir outras pessoas.
Em suma, entendemos que não existe qualquer nulidade, pelo que, se mantém o despacho nos seus precisos termos.
Notifique.”
I.1 Recurso dos despachos exarados a 24.11.2024:
Inconformado com os despachos proferidos em audiência de julgamento veio o arguido deles recorrer apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“Conclusões
1. Vem o presente recurso interposto das decisões, ora a proferida na audiência de 25-11-2024, que indefere as nulidades (120.º, n.º 2 alínea d), in fine do CPP) oralmente invocadas pelo ora recorrente, na sequência de um requerimento (de 20-11-2024) de pedido de junção de documentos e prestação de esclarecimentos ao relatórios periciais que lhe foram dados a conhecer na audiência de 15-11-2024, ora desse requerimento, também erradamente indeferido.
2. Vai igualmente interposto da decisão que, nessa mesma data de 25-11-2024, indefere a irregularidade invocada no final desse requerimento de 20-11-2024, mormente da falta de prestação de compromisso nos autos por parte das Sras. Peritas subscritoras dos relatórios periciais, afectando a validade de tais relatórios.
3. De facto, neste último particular, deveria o Tribunal ora recorrido ter apurado, sob pena de nulidade (artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP) se as subscritoras dos relatórios periciais existentes nos autos eram ou não efectivamente funcionárias públicos do INMLCF- IP, pois que, não o sendo (e atenta a indicação do artigo 159.º, n.º 2 do CPP constante do relatório dito preliminar, assinado pela Sra. Perita, de 09-10-2024, referência 95284287, conjugado com o disposto nos artigos 2.º, n.º 2 e 4 e artigo 28.º da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto, tudo indica que não o fossem) não estão eximidos de prestar o seu consentimento.
4. Quanto ao demais decidido, todas as diligências requeridas a 20-11-2024, ao contrário do que refere o despacho recorrido, eram, nos termos do que foi sobejamente invocado oralmente a 25-11-2024 (vide gravação do requerido pelo mandatário ora subscritor na audiência dessa data) absolutamente essenciais à descoberta da verdade material, tendo errado o Tribunal quer anteriormente (ao não deferi-las), quer posteriormente, ao não deferir, na sequência de tal invocação, as nulidades prontamente suscitadas em audiência (nomeadamente, de omissão de diligências, previstas no artigo 120.º, n.º 2 alínea d) do CPP), pois que estas poderão contender com as conclusões da perícia psiquiátrica.
5. Foram violados com o despacho em crise os artigos (artigos 2.º, n.º 2 e 4 e artigo 28.º da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto), os artigos 151.º, 156.º, 157.º, 158.º do CPP e o artigo 32.º, n.º 1 da CRP.
Nestes termos e noutros de Direito que melhor acorrerão a V/Exas., deve o presente recurso ser recebido e julgado procedente, revogando-se em consequência as decisões sub judice, com todas as consequências legais.
Só assim se fazendo a pretendida Justiça!”
I.2 - Recursos da decisão final
I.2.1 – Recurso do arguido AA
Inconformado com a decisão constante do acórdão final dela interpôs o arguido AA recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos nas motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“Conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto, de matéria quer de facto quer de direito, quer da parte criminal, quer da parte cível, do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo de 1.ª Instância a 12-12-2024, vindo expressamente requerer, nos termos do artigo 411.º, n.º 5 do CPP, a realização de audiência, para debate de todos os pontos que se seguem.
2. Desde já aponta o recorrente, nos termos do artigo 412.º, n.º 5 do CPP, que manifesta interesse na apreciação do recurso interlocutório, por si interposto no dia 26-12-2024, a subir conjuntamente com o presente, pois que, além do mais, se encontram muito pouco claras as conclusões do relatório de fls. 1127 e ss., que dão o arguido como imputável diminuído, sendo apenas segura e fidedigna a conclusão, baseada no relatório de urgência de fls. 90, de que, no momento em que actuou, o arguido efectivamente se encontrava fortemente embriagado.
3. A este respeito, por ser relevante para os autos (vide tal relatório, a fls. 90 e ss), deveria desde logo ter sido dado como provado que o arguido deu entrada no serviço de urgência pelas 20:12 de 01-05-2023, tendo, após colheita de sangue para análises (pelas 20:17), sido apurada (às 21:58) uma efectiva TAS de 1,58 g/ls.
4. Atenta esta TAS (que era certamente muito superior meras horas antes, no momento da prática dos factos, considerando o tempo decorrido, não superior a uma hora, desde a ingestão de bebida no convívio de caça de onde vinha), e face a melhores esclarecimentos acerca das conclusões periciais (esclarecimentos que não chegaram a ser prestados, pois que não foram deferidos pelo Tribunal a quo), por sua vez conciliados com a ausência de um qualquer motivo para a estapafúrdia e inexplicável actuação do arguido, os factos que lhe foram imputados poderiam efectivamente vir a consubstanciar, ao invés do que veio acusado e condenado, antes um crime de embriaguez e intoxicação, p.p. pelo artigo 295.º do CP.
5. Seja como for, e sempre com o incontido respeito, desde logo se alega que errou o Tribunal recorrido, ao ter considerado preenchida, com a actuação do arguido relativamente às 3 vítimas, a alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, com o que deveria ter, ao invés, absolvido o arguido da prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada relativamente aos assistentes DD e EE, condenando-o ao invés pela prática de 2 crimes de homicídio simples, na forma tentada, relativamente a estes indivíduos, e condenado o arguido igualmente por um crime de tentativa de homicídio qualificado na forma tentada, quanto a CC (sua esposa), mas considerando apenas a alínea b) do artigo 132.º, n.º 2 do CP.
6. De facto, a actuação do arguido, documentada em filme constante dos autos por câmaras de vigilância, em cada um dos crimes em apreço, não constitui nem o meio insidioso a que alude tal alínea, nem a especial perversidade a que alude o artigo 132.º. n.º 1 do CP, não tendo havido actuação traiçoeira, surpresa, premeditação, emboscada, ou impedimento de fuga de quem quer que fosse, pelo menos uma que justifique tal qualificação, tendo o arguido, além do mais, agido perfeitamente “às claras”, de forma frontal e não dissimulada.
7. Aliás, deverá ser alterado o ponto 36 dos factos provados em função da visualização dessas imagens de video-vigilância, dado que não resulta delas que o arguido se tenha colocado “em fuga” antes se limitou abandonar, pouco apressadamente, o local.
8. Deverá igualmente ser dado como não provado o ponto 19 dos factos provados, pois que nenhuma prova apontou, ou foi produzida, no sentido de que a sua deslocação a casa, após ter saído da empresa, onde esteve com os presentes minutos antes, fosse feita com o intuito de ir buscar a arma para aquele propósito.
9. Deverá ainda ser dado como não provado, face ao constante das imagens de video-vigilância, o que consta do ponto 17 dos factos provados, a saber, que o arguido tenha estacionado o veículo “junto” do veículo de marca Smart, mas antes que o estacionou alguns metros depois deste.
10. E encontra-se também erradamente dado por provado no ponto 24 dos factos provados, a circunstância de o arguido ter surpreendido a vítima DD, o que é desde logo contraditório com o facto, dado correctamente por provado no ponto 25 dos factos provados, a saber, que o DD tinha sido alertado pelos tiros anteriores (se já estava alerta, não foi surpreendido).
11. Com o devido respeito, o Tribunal recorrido fez um subtil, mas errado, raciocínio, no sentido de ter considerado todo o cenário, que engloba todos os crimes, para qualificar cada um deles, ao invés de analisar cada dos crimes isoladamente, e depois fazer as considerações devidas em sede concurso, na pena única. Fez pois, ao cabo e ao resto, uma dupla - e indevida - valoração da culpa do arguido.
12. Não consta dos autos que a busca efectuada ao domicílio do arguido tenha sido autorizada pelo arguido ou pela sua esposa - os únicos titulares de tal espaço - , ou previamente ordenada por juiz. É por isso esta busca nula, constituindo método proibido de prova, nos termos do artigo 126.º, n.º 3 do CPP, e sendo consequentemente imprestáveis como meio de prova todas as apreensões decorrentes da entrada naquele domicílio, mormente as armas e munições apreendidas, com todas as consequências legais.
13. Mesmo que assim não se entenda, deveria ainda assim o arguido ter sido absolvido do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos artigos 2.º, n.º 3, alínea ad), 3.º, n.º 1 e n.º 2, alínea v) e artigo 4.º daquele diploma, pois que inexistem na acusação, como inexistem quer nos factos provados, quer nos autos (mormente do auto de exame directo constante de fls. 109 a 113, donde não consta medição, fotografia, ou suficiente descrição pormenorizada das munições) os imprescindíveis elementos objectivos que permitam considerar que os 5 (cinco) cartuchos apreendidos ao arguido preenchem efectivamente a definição de cartuchos “zagalote” nos termos do mencionado artigo 2.º, n.º 3, alínea ad) do RJAM, ou seja, que os “bagos” examinados (e foram-no apenas a olho nu, por um perito que é tão-somente avaliador, tendo prestado compromisso - vide fls. 114 - apenas nos termos do DL n.º 11/2007, de 11-01, não consubstanciando prova pericial) tivessem efectivamente mais de 4,5 mm de diâmetro. O Tribunal concluiu de direito, mas sem factos.
14. E mesmo que assim não se entenda, o demais provado nos autos aponta para que o arguido, caçador, devidamente licenciado, e detentor de um “arsenal” perfeitamente legal, tivesse efectivamente sido meramente negligente, devendo ser absolvido (tal crime é punível apenas na vertente dolosa).
15. Caso assim não se entenda, poderia e deveria o arguido, nomeadamente face à ausência de antecedentes criminais, ter sido condenado em pena de multa, próxima do mínimo, e não em pena de prisão de 5 meses, aliás excessiva.
16. Também as penas aplicadas por cada um dos crimes de homicídio na forma tentada (7 anos e 6 meses quanto à sua esposa, 6 anos e 6 meses quanto a DD e 5 anos e 6 meses quanto a EE), mesmo a considerar-se ser de manter a sua qualificação, foram exageradas, atento desde logo o arrependimento do arguido, o pronto pagamento de indemnizações os lesados, o facto de as vítimas (segundo os relatórios fls. 387, 733 e 856) não terem corrido perigo de vida, e o facto de este se encontrar completamente embriagado.
17. Convirá desde já apontar, pugnando pela coerente impugnação e alteração da sequência de acontecimentos vertidos na matéria de facto erradamente dada por provada nos pontos 18 e 29 a 34, que não ficou provado que o arguido, além do disparo que depois de tudo deu a si próprio, tivesse feito efectivamente mais do que um total 5 disparos às 3 vítimas. O que resulta da leitura do relatório pericial de fls. 717 (que refere uma capacidade máxima do carregador de tal arma de apenas 4 tiros, mais obviamente uma no cano) conjugado com a visualização das imagens de videovigilância (que evidenciam que o arguido nunca chegou a recarregar a arma) foi que o arguido deu apenas 5 disparos, a saber: 2 (dois) dirigidos ao EE, 1 (um) dirigido ao DD e 2 (dois) na direcção da sua esposa CC, não tendo logrado, já por falta de munições, um terceiro disparo na sua direcção. Foi o 5.º e último disparo, ou seja, aquele feito depois dos 3 iniciais e do outro (o 4º) que se alojou no assento do condutor do veículo Hyndai, que levou a que esse projéctil, por ricochete na parede, fosse depois embater no portão da garagem da empresa, o que não deixa de ser relevante para minorar a sua culpa.
18. Também a expressão referida no ponto 27 dos factos provados deve igualmente ser dada como não provada (vide a respeito as contradições entre a gravação do depoimento de BB, prestado na audiência de 16-04-2024, do minuto 10:00 ao minuto 13:38, a instâncias do Sr. Magistrado do Ministério Público e do minuto 20:27 até ao minuto 21:11, a instâncias da defesa e o por si alegado no artigo 24.º do pedido de indemnização formulado, em que expressamente refere não se recordar do que terá sido dito pelo arguido), tendo tal expressão, indevidamente provada, sido base para um acréscimo indevido de culpa, e portanto, da pena que lhe foi aplicada relativamente à esposa.
19. E deve ser dado como não provado, no ponto 58 dos factos provados, mas que serve de fundamento à decisão, que a consumação do homicídio não tenha ocorrido por “motivos alheios à sua vontade, designadamente face à pronta assistência médica prestada aos ofendidos”, pois que segundo as conclusões dos relatórios periciais de fls. 387, 733 e 856 nunca tais vítimas estiveram em concreto perigo de vida.
20. O Tribunal valorou ainda indevidamente, quanto às excessivas medidas de pena, as informações constante do documento de fls. 996/1000 (nota de alta do Serviço de Psiquiatria do CHUC), pois que continha declarações de CC, que, na qualidade de esposa do arguido à data dos factos, em julgamento se recusou validamente a depor. De resto, tal documento, estando sujeito a sigilo médico, não poderia ter sido, sem consentimento do arguido, ou levantamento prévio desse sigilo, junto aos autos.
21. Deveria ter tido lugar, face a tudo quanto resultou do julgamento, uma atenuação especial da pena, nos termos do art. 72.º, n.º 1 e n.º 2 alínea c), do CP, com todas as consequências legais.
22. Sem prescindir, também a pena única resultante do cúmulo, em 13 anos de prisão, foi excessiva (relembrando, além do mais, que o próprio MP se bastou, em alegações, com a aplicação de uma pena de 11 anos de prisão, considerando a condenação por todos os crimes de que acusou o arguido). Não deverá ser jamais descartada a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão, em cúmulo, de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, subordinada a regime de prova e à eventual obrigação de pagamento das indemnizações devidas às vítimas.
23. Por fim, quanto à parte criminal de que nos vimos ocupando, o arguido não deveria ter sido condenado em mais que 3UC’s a título de taxa de justiça, tendo sido desde logo violados, com a condenação pelo Tribunal a quo em 10 UC’s, o artigo 8.º, n.º 9 e os limites da tabela III anexa ao RCP, que prevê um máximo de 6 UC’s.
24. No que se reporta às indemnizações a que o arguido foi condenado a pagar aos demandantes DD e EE, estas, com o devido respeito, face aos danos que resultaram provados, foram excessivas, em todas e cada uma das suas parcelas, tendo sido violado com a decisão em apreço o artigo 566.º do CC.
25. Desde logo, diga-se que foi erradamente dado por provado (ponto 226 dos factos provados) que o demandante II tivesse 63 anos à data dos factos (01-05-2023).
Face à sua data de nascimento (../../1953, tal-qual consta do relatório médico pericial de fls. 732 e da informação de fls. 72, e de fls. 96) deveria ao invés ter sido dado como provado que este, à data dos factos, tinha já 69 anos, quase 70, de idade.
26. E deveria, desde logo, igualmente ter sido dado como provado, aditando-se aos factos, que o lesado EE, atingido no seu braço esquerdo, e já prestes quase a fazer 64 anos (vide data de nascimento constante do relatório de fls. 855) era dextro, não tendo por isso ficado assim tão limitado no seu dia-a-dia (vide quer o exame objectivo constante do relatório pericial a fls. 869, quer o depoimento da testemunha JJ na audiência de 16 de Abril de 2024, cujo registo de gravação consta do Citius, mormente do minuto 13:26 ao minuto 13:30).
27. Aliás, resultou da prova produzida que este já é inclusivamente capaz de conduzir um carro com mudanças (vide depoimento de KK, disponível via Citius, na audiência de 19-04-2024, do minuto 4:15 a 4:39 e do minuto 6:00 a 6:10), devendo por isso ser dado como não provado o ponto 165 dos factos provados.
Pelo que, nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser recebido e julgado procedente, alterando-se além do mais a matéria de facto acima elencada, e por aditar, revogando-se as apontadas decisões sub judice e substituindo-a(s) por outra(s) nos termos expostos, com todas as consequências legais, só assim se fazendo a pretendida Justiça!”
I.2.2 – Recurso do Ministério Público
Inconformado com o acórdão final dele interpôs o Mº Público recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos nas motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“IV – Conclusões
1ª O arguido AA foi nestes autos condenado, além do mais, na pena única de treze anos de prisão efectiva, pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de três crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, ps. e ps. nos arts. 22º, 23º-1-2, 131º e 132º-2-b)-i), todos do Código Penal; e de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, p. e p. nos arts. 2º-3-ad), 3º-1-2-v), 4º e 86º-1-e), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições.
2ª Discordamos do douto acórdão proferido nos presentes autos a 12.12.2024 apenas na parte em que decidiu ordenar a restituição, ao arguido AA, das armas, munições, licenças para uso e porte de arma e cinco livretes de manifesto de armas, objectos melhor descritos nos autos de apreensão e de exame de fls. 103 a 108 e 109 a 113 dos autos.
3ª Considerou o Colectivo, erradamente, que tais objectos não têm “qualquer” relação com os crimes cometidos pelo arguido e que se mostram “em situação legal”.
4ª Tal decisão é chocante e incompreensível, mesmo aos olhos do cidadão comum, em face dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, cometidos com o uso de arma caçadeira, tendo atentado contra a vida de três pessoas.
5ª O Colectivo, ao assim decidir, foi indiferente à gravidade dos factos cometidos pelo arguido, à sua evidente perigosidade e ao sério risco de tais armas e munições poderem vir a ser utilizadas, no futuro, para o cometimento de novos crimes de idêntica natureza.
6ª Cumpre também destacar que o Colectivo não teve em consideração o requerimento apresentado pelo arguido a fls. 1056-vº, nem a posição assumida pelo Ministério Público a fls. 1062.
7ª O próprio arguido assume, no seu requerimento ditado para a acta na sessão da audiência de julgamento de 02.07.2024, que nunca mais pretende “pegar” em qualquer arma de fogo.
8ª E o Ministério Público, na sua promoção de 09.07.2024, logo pugnou pela declaração de perda a favor do Estado de tais armas e munições.
9ª Os factos dados como provados revelam a total inaptidão do arguido para poder deter quaisquer armas e munições, tendo violado ostensivamente as obrigações que sobre si recaíam, enquanto titular de licenças válidas de uso e porte de arma.
10ª O arguido, para praticar os factos, deslocou-se previamente à sua residência onde, de entre o “manancial” de armas e munições que ali guardava, escolheu uma espingarda caçadeira e recolheu vários cartuchos.
11ª Em seguida, como decorre da factualidade dada como provada, o arguido, fazendo uso de tal arma e munições, efectuou diversos disparos na direcção da sua esposa e de mais duas pessoas, assim querendo ceifar-lhes a vida.
12ª O quadro factual apurado impõe, necessariamente, a conclusão de que o arguido não reúne as condições necessárias para o uso e porte de arma de qualquer categoria, sendo evidente e cristalino o perigo de, caso venha a ter em sua posse outras armas de fogo, as possa vir novamente a utilizar para o cometimento de outros crimes.
13ª A situação dos autos é demasiado grave, tendo o arguido demonstrado completa frieza, desnorte e indiferença pela vida humana.
14ª Acrescendo ainda que, por motivos alheios à sua vontade, o arguido não conseguiu os seus intentos, tendo as três vítimas sobrevivido ao seu violento ataque.
15ª Em suma, impõe-se a revogação do acórdão nesta parte, devendo as armas, munições e objectos melhor descritos no ponto II da motivação e elencados nos autos de apreensão e de exame de fls. 103 a 108 e 109 a 113 dos autos serem declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do art. 109º-1 do Código Penal, norma esta que foi ostensivamente violada pelo Tribunal a quo.
Termos em que, dando-se provimento ao recurso e, em consequência, revogando-se o acórdão recorrido e substituindo-o por outro onde se declarem como perdidas a favor do Estado as armas, munições e objectos supra descritos e identificados, ao abrigo do preceituado no art. 109º-1 do Código Penal e nos termos sobreditos, farão V. Ex.ªs a costumada JUSTIÇA!
Notificados os assistentes DD e EE da interposição de recurso do arguido da decisão cível vieram interpor recurso subordinado apresentando a respetiva motivação de onde extraíram as seguintes conclusões[transcrição]:
“CONCLUSÕES
I. Reclama o assistente, ora Recorrente, DD do valor da indemnização cível decidida pelo Tribunal a quo de € 60.000,00 pelo dano biológico, € 30.000,00 pelos danos não patrimoniais e de € 25.000,00 pelo quantum doloris e défice funcional.
II. Ficou provado que o assistente/recorrente perdeu do globo ocular direito, com consequente perda da vista direita, tendo ficado com parte da face direita completamente desfigurada.
III. Tal dano, porque afeta gravemente o sentido da visão, afetou o seu campo de visão, com redução do campo periférico e dificuldade para definir profundidade.
IV. Por força do referido dado, o Recorrente, que perdeu parte significativa do seu campo visual, careceu de ajuda de terceiros para realizar a mais diversas tarefas do seu dia-a-dia, que se tornaram mais difíceis, exigindo uma atenção redobrada, esforço acrescido e um maior dispêndio de tempo na sua realização.
V. Acresce que o demandante/recorrente DD, com 69 anos, embora reformado, era pessoa dinâmica e ativa, praticava atividades desportivas, estava envolvido na direção social da Associação ..., prestava apoio familiar à sua filha e neto e realizava todas as suas tarefas domésticas, profissionais, pessoais e sociais com total independência e autonomia, tudo conforme resulta dos factos dados como provados.
VI. Pelo que o arguido deveria ter sido condenado a pagar ao assistente uma indemnização de 150.000 € pelo dano biológico, em vez da quantia sentenciada de 60.000 €.
VII. Na sequência da prática dos crimes pelos quais o arguido foi acusado e condenado, o Demandante/Recorrente DD sofreu vários danos não patrimoniais.
VIII. Danos esses que se reportam não só momento do ferimento, tendo ficado provado que o Recorrente sofreu fortes dores e um forte choque psicológico quando foi atingido na sua face direita, mas também às dores e ao sofrimento que passou ao longo de todo o período do seu tratamento, o qual ainda está a decorrer.
IX. Para além das dores fortes (físicas e psicológicas) que sofreu e ainda sofre, o ora Recorrente sofreu uma grande angústia com a perda da sua visão, e as inerentes limitações daí decorrentes, bem como com o fato de ter a sua face desfigurada, necessitando de óculos de sol para esconder a lesão.
X. Passou a depender de terceiros para as mais variadas tarefas do seu quotidiano, que deixou de conseguir realizar com a mesma autonomia que fazia à data dos factos, desde tarefas domésticas, profissionais, pessoais e sociais, as quais passaram a exigir atenção redobrada, esforço acrescido e maior dispêndio de tempo.
XI. Viu-se obrigado a alternar os seus hábitos diários; deixou de praticar as atividades que lhe davam prazer e passou a dedicar a sua rotina aos tratamentos médicos.
XII. Foi submetido a várias intervenções cirúrgicas, compareceu em dezenas de consultas e tratamentos, com todos os transtornos, despesas e inconvenientes que tais procedimentos e deslocações obrigaram.
XIII. Tudo isto deixou o Recorrente frustrado, ansioso, apreensivo e preocupado; sentiu e sente ainda vergonha e constrangimento pelo seu aspeto físico, o que afetou e afeta a sua auto-estima e confiança.
XIV. Pelo que, provado que ficou que o Assistente sofreu os danos supra descritos, deveria ter sido decidido condenar o arguido a pagar ao assistente a quantia de 100.000,00 € em vez da quantia sentenciada, no valor de € 30.000,00 a título de danos não patrimoniais.
XV. Ficou ainda demonstrado que o Assistente/Recorrente DD sofreu as seguintes lesões: destruição óssea malar importante, perda de substância de tecidos moles; fraturas orbitrárias múltiplas das paredes da órbitra direita com fragmentação do pavimento da mesma, hemorragias intra-orbitrárias, e rotura do globo ocular direito, lesões essas que culminaram na perda da vista direita e desfiguraram por completo a face direito do Assistente.
XVI. Por força das referidas lesões, o Assistente/Recorrente ficou com a face direita completamente desfigurada e foi submetido a vários tratamentos e intervenções, nomeadamente, cirúrgicas, com vista à reestruturação das paredes ósseas da órbita e consequente colocação de prótese ocular.
XVII. O Assistente/Recorrente sofreu e ainda sofre, um grande trauma psicológico.
XVIII. Os tratamentos a que foi submetido – e a que continua e continuará a ser submetido – provocaram-lhe grande angústia e sofrimento.
XIX. Apesar dos vários tratamentos realizados ao longo dos últimos meses, face à complexidade do seu caso e dos tratamentos a que tem vindo a ser sucessivamente submetido, o Assistente DD ainda não se encontra clinicamente curado, não sendo possível até à presente data reunir as condições clínicas para a colocação da prótese ocular.
XX. Não obstante a colocação da prótese que virá a ocorrer em momento ainda incerto, o Assistente DD perdeu, sem possibilidade de um dia voltar a recuperar, a sua vista direita.
XXI. Por conta desse dano, o recorrente perdeu parte significativa do seu campo de visão, incapacidade que se traduz na dificuldade de definir profundidade (estereopsia) e na redução do campo periférico, com as necessárias e consequentes repercussões que tal défice acarreta no seu dia-a-dia.
XXII. Pelo que, provado que ficou os danos, as lesões e o défice funcional do ora Recorrente, deveria o Arguido ter sido condenado ao pagamento de uma indemnização pelo quantum doloris e défice funcional de 50.000,00€ conforme peticionado em vez de 25.000,00 € sentenciados.
XXIII. Reclama o Assistente, ora Recorrente, EE o valor da indemnização civil decidida pelo Tribunal a quo de 30.000,00 pelo dano biológico, 20.000,00 pelos danos não patrimoniais, € 10.000,00 pelo dano estético e 15.000,00 pelo quantum doloris e défice funcional.
XXIV. Provado que ficou que o Recorrente sofreu ferimentos ligeiros no peito e ferimentos no braço esquerdo, mais concretamente no antebraço, tendo sofrido perfuração, fractura dos ossos (nomeadamente rádio, em 10 cm) e ruptura de ligamentos.
XXV. O Recorrente EE ficou com o braço desfigurado e incapacitado, com perda de mobilidade no braço e ainda na mão.
XXVI. Os danos sofridos consubstanciam uma incapacidade fisiológica, que teve (e continua a ter nos dias de hoje) repercussões diretas nas atividades diárias do Recorrente.
XXVII. Devido à imobilização do braço, deixou de conseguir realizar, de forma autónoma, várias tarefas do seu quotidiano, tendo necessitado de ajuda para a sua realização.
XXVIII. O Recorrente, com 63 anos de idade, embora reformado há um ano, era uma pessoa dinâmica e ativa; organizava e participava de várias atividades no seio da Associação ..., dedicava-se, nos seus tempos livres, à sua horta, semeando, plantando e colhendo os frutos inerentes, ocupação cuja prática ficou condicionada e dificultada, atenta à incapacidade descrita.
XXIX. Pelo que, provado que o Assistente, ora recorrente sofreu os danos supra elencados, deveria o douto acórdão ter condenado o arguido ao pagamento da quantia de € 50.000,00 a título de dano biológico, em vez da quantia de 30.000,00 sentenciada.
XXX. Ficou ainda provado que o Assistente/Recorrente sofreu vários danos morais, que se reportam não apenas ao momento dos ferimentos, mas também a todas as dores e sofrimento que viveu ao longo do período do seu tratamento, ainda a decorrer.
XXXI. O Recorrente, ao ser atingido por dois disparos, sofreu fortes dores quando foi atingido, tendo sofrido ainda grande choque, por ter sido apanhado de surpresa, tendo ficado assustado e com receio pela sua vida.
XXXII. Dores que se prolongaram no tempo, durante o decurso do tratamento, e que lhe causaram (e causam) um mal-estar constante.
XXXIII. Por força dos referidos danos, designadamente, pelo facto de ter ficado com o braço e a mão imobilizados, o Recorrente careceu de ajuda para realizar as várias tarefas do seu dia-a-dia, as quais sempre desempenhou com autonomia e independência.
XXXIV. O que deixou o Assistente/Recorrente bastante angustiado, frustrado, abatido, e preocupado com a evolução do seu estado clínico.
XXXV. Acresce que o Recorrente e a sua família residem nas imediações da empresa “A..., Lda., local onde tudo aconteceu, sendo diariamente confrontados com tal episódio, sentindo um constante desconforto e mal-estar sempre que passam no exterior da mesma.
XXXVI. Os danos elencados, pela sua gravidade e extensão merecem a tutela do Direito, devendo a indemnização pelos danos morais ser fixada de forma equilibrada e ponderada, atendendo ao grau de culpa do ofensor, à situação económica deste e do lesado bem como às demais circunstâncias do caso.
XXXVII. Pelo que, provado que ficou que o Assistente sofre os danos supra referidos, deveria ter sido decidido condenar o Arguido a pagar ao Assistente/Recorrente a quantia de 100.00,00 € conforme peticionada, em vez da quantia de 20.000,00 € a título de danos não patrimoniais.
XXXVIII. Ficou ainda provado que o recorrente EE ficou com uma cicatriz no peito, ferimentos graves no braço esquerdo, que ficou bastante desfigurado, com perda de massa muscular e uma cicatriz de 50 cm de comprimento.
XXXIX. Pelo que, no que diz respeito ao dano estético, deveria o arguido ter sido condenado ao pagamento de uma indemnização ao assistente no valor de 50.000,00€, conforme peticionado, em vez da quantia de 10.000,00€ conforme peticionado.
XL. O Demandante/Recorrente EE sofreu várias lesões, nomeadamente, ferimentos graves no braço esquerdo, que ficou bastante desfigurado, perda de massa muscular e uma cicatriz de 50 cm de comprimento.
XLI. Por força das referidas lesões, o Recorrente foi submetido a várias intervenções e tratamentos, com vista à recuperação da mobilidade do braço e da mão, sem sucesso, dado ter sido atingido no nervo radial.
XLII. Não há perspetiva de o Recorrente vir a recuperar, pelo menos de forma total, a mobilidade perdida, com todas as consequências daí decorrentes.
XLIII. O Recorrente sofreu e ainda sofre com toda esta situação.
XLIV. Vivenciou momentos de choque, pânico, medo, mas também de frustração, angústia e desconsolo pelo seu estado de saúde, por se sentir limitado na realização das suas tarefas e, por isso, dependente de terceiros para a sua realização.
XLV. Sofreu e sofre muitas dores, quer quando foi atingido, quer no decurso dos tratamentos que realizou.
XLVI. Alterou por completo as suas rotinas; deixou de ser alegre e despreocupado, tendo passado a viver com medo, em estado de constante alerta.
XLVII. Pelo que provados que ficaram os danos supra descritos, deveria o arguido ter sido condenado apagar ao assistente/recorrente a quantia de 50.000,00€, a título de indemnização pelo quantum doloris e défice funcional, conforme peticionado, em vez da quantia de 15.000,00€.
Termos em que, e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser
alterada a decisão recorrida e, por via disso:
- ser o Arguido condenado a pagar ao Assistente, ora Recorrente, DD a quantia de €
150.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico; € 100.000,00 a título de indemnização pelos danos não
patrimoniais e € 50.000,00 a título de indemnização pelo quantum doloris e défice funcional;
- ser o Arguido condenado a pagar ao Assistente, ora Recorrente, EE a quantia
de € 50.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico; € 100.000,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais; 50.000,00 a título de indemnização pelo dano estético e 50.000,00 a título de indemnização pelo quantum doloris e défice funcional:
Assim se fazendo a habitual e necessária JUSTIÇA!”
I.4 – Respostas aos recursos:
Efetuadas as legais notificações:
I.4.1 – Resposta do Mº Público
O Ministério Público respondeu aos recursos interpostos pelo arguido concluindo nos seguintes termos [transcrição]: “Em suma, as presentes pretensões recursivas terão, em nosso entender, que naufragar, atendendo à carência de qualquer fundamento legal que as suporte.
Pelo que se expôs e em nosso entender, na parte objecto de recurso por banda do arguido AA, bem fica demonstrada a coerência e correcta fundamentação dos despachos e do acórdão do Tribunal a quo, os quais, não se encontrando feridos de qualquer nulidade processual e não merecendo qualquer censura, nesta parte, deverão ser mantidos, com a condenação, a final, do recorrente pelos crimes que, efectivamente, cometeu.
Termos em que, se V.Ex.ªs julgarem improcedentes os recursos, com as legais consequências e adequada tributação, farão a habitual justiça.”
I.4.2 – Resposta do arguido ao recurso interposto pelo Mº Público
Notificado veio o arguido responde tendo apresentado as seguintes conclusões [transcrição]:
“Conclusões
1. Incide a presente resposta sobre o recurso interposto pelo Ministério Público da Douta Decisão proferida pelo Tribunal Colectivo de 1.ª Instância a 12-12-2024, pela qual se ordenou, em respeito pelo disposto no artigo 109.º, n.º 1 do CP a restituição ao arguido das armas, munições e demais objectos que lhe foram apreendidos, constantes no auto de apreensão de fls. 103 a 108.
2. Salvo o devido respeito, decidiu bem o Tribunal recorrido, dado que as armas, munições e objectos cuja devolução se ordenou não foram utilizados na prática de qualquer facto ilícito, muito menos resultando dos autos, face ao arrependimento do arguido e à demais factualidade provada nos autos, que estivessem ou pudessem vir a ser destinadas à prática de qualquer crime.
3. O Ministério Público, pretendendo na realidade privar o arguido do uso de armas no futuro, salvo o devido respeito confunde os pressupostos da perda de objectos a favor do Estado, aqui em causa (109.º do CP), com o que seriam os efeitos decorrentes de uma condenação em pena acessória ou medidas de segurança (90.º e ss do RJAM), em que o arguido não vem condenado; aliás, nem disso foi acusado.
Pelo que, nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o Douto Suprimento de V/ Exas., deve o recurso apresentado pelo Ministério Público ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, porque conforme à Lei.
I.4.3 Resposta do arguido ao recurso subordinado interposto pelos assistentes
Notificado veio o arguido responder ao recurso subordinado apresentando a seguinte conclusão [transcrição]:
“Quer os montantes inicialmente peticionados pelos demandantes e ora recorrentes DD e EE, quer os constantes da decisão recorrida (tal como já alegado no recurso interposto pelo ora recorrido), quer até os montantes que já foram cautelarmente pagos, são exagerados face aos danos por estes sofridos, devendo improceder o presente recurso subordinado.
Pelo que, nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o Douto Suprimento de V/ Exas., deve o recurso subordinado a que ora se responde ser julgado totalmente improcedente, com todas as consequências legais, só assim se fazendo Justiça.”
O Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos [transcrição]:
“A – Recursos interpostos pelos arguido (interlocutório e versando o acórdão proferido a 12.12.2024):
1. Adere-se ao pugnado pelo Sr. Procurador da República junto do Tribunal a quo no sentido da respetiva improcedência.
2. Para além do referido pelo Sr. Procurador da República, destacaremos o seguinte relativamente a algumas das questões colocadas pelo recorrente:
2. a) Quanto às alegadas «Das erradas condenações com base na alínea i) do artigo 132.º, n.º 2 do CP» não cremos que a argumentação empreendida deva ser acolhida, aderindo-se àquela que foi a fundamentação firmada no acórdão recorrido e que consta a fls. 56 a 63 pela sua assertividade, nada havendo, s.m.o. a censurar quanto à posição assumida.
2. b) O arguido, em vários segmentos recursivos, numa tentativa de reforçar a(s) sua(s) tese(s), veio contestar vários dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, que entende que deveriam ser alterados/não provados.
Contudo, o mesmo, relativamente a esses factos, apenas esgrimiu argumentos interpretativos relativamente à prova produzida, colocando hipóteses alternativas de leitura da mesma, o que, como se sabe, não é suficiente para alterar a matéria de facto em fase recursiva, uma vez que esta fase não se trata de um segundo julgamento, destinando-se, apenas, à aplicação de correções cirúrgicas perante evidentes e pontuais erros de julgamento que cumpria ao recorrente evidenciar.
Na verdade, para obter o seu desiderato – correspondente a uma impugnação ampla da matéria de facto/erro de julgamento –, o arguido – que não é quem julga -, como é de todos sabido, teria que indicar provas, para cada um desses factos, que impusessem (não bastando que o permitissem) decisão diversa, conforme exige o artº 412º, nº 3, al. b) do CPP.
Tais ónus não foram cumpridos, nem na motivação/fundamentação nem nas conclusões apresentadas, pelo que tais factos devem ser dados como definitivamente assentes.
2. c) Quanto ao facto provado nº 24 - «Logo, sem que nada o fizesse prever e surpreendendo-o pela retaguarda2, o arguido apontou a espingarda caçadeira em direção a DD e efetuou um disparo na direção do mesmo», além de, em seu entender, ter sido erradamente dado como provado, estaria em contradição com o facto provado nº 25 - «O projétil assim disparado pelo arguido entrou pelo vidro traseiro da viatura Volvo, atingiu o encosto de cabeça do banco do lado direito do condutor e, por sua vez, atingiu a face e a região ocular do lado direito de DD, que nesse momento se tinha virado para trás alertado pelo barulho dos primeiros disparos, provocando-lhe uma hemorragia» - pois «… a saber, que o DD tinha sido alertado pelos tiros anteriores (se já estava alerta, não foi surpreendido)» [Conclusão nº 10, in fine, sem que se vislumbre a existência de outra argumentação digna de nota].
Cremos que, e salvo o devido respeito, a própria literalidade dos factos provados em causa permite concluir que não há antinomia entre ambos: o facto deste ofendido se ter virado para trás alertado pelo barulho dos primeiros disparos (facto provado nº 25) não é incompatível com a surpresa do mesmo ao ser ele próprio surpreendido, com um outro (novo) disparo da espingarda caçadeira, pelas costas (retaguarda), desta vez visando-o a ele mesmo (facto provado nº 24); aqueles primeiros disparos não foram na sua direção, mas alertaram-no, tendo feito com que o mesmo se virasse para trás; o novo disparo surpreendeu-o, pois, vindo da sua retaguarda, dirigiu-se conta o mesmo, atingindo-o gravemente.
Questiona-se, ainda que retoricamente: quem não ficará surpreendido ao ver outrem de arma de fogo em riste, a aproximar-se, pelas costas, ou de frente, apontar e de seguida contra ele disparar, tal a extrema violência do ato em causa, com uma alta probabilidade de haver consequências letais ou muito gravosas para a vida e/ou para a integridade física?
Se a ausência de contradição, reiteramos, se pode retirar, tão só, do que o Tribunal a quo firmou nos factos provados em causa, tal convicção sai reforçada se considerarmos o acórdão na sua globalidade, quer quanto aos demais factos apurados quer quanto à respetiva fundamentação, que permite, no seu todo, percecionar a elevada dinâmica do pedaço de vida em julgamento, de extrema violência, sem poder deixar de se ter presente as regras de experiência, sempre boas conselheiras.
Assim, cremos, estar liminarmente afastada a existência do vício decisório previsto na al. b) do nº 2 do artº. 410º do Código de Processo Penal [«A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão»] – que o recorrente nunca invocou expressamente, mas que se perceciona pretendeu trazer à colação – que, além do mais, tendo presente a sua definição normativa e os contributos que a doutrina e a jurisprudência há muito firmaram sobre o mesmo, só terá aptidão para afetar o valor da decisão em causa quando a contradição, a existir (o que não se concede), for insuscetível de ser ultrapassada, isto é, de todo insuprível (na letra da lei, “insanável”).
Não é o caso.
2. d) Relativamente à alegada «errada condenação pelo crime de detenção de arma proibida», verifica-se que arguido desdobra a questão em dois planos, mas, s.m.o., sem que lhe assista razão em qualquer deles.
2. d) i. Segundo o mesmo:
« Foram apreendidos pela PJ, por auto datado de 04-05-2023 (vide fls. 33 e seguintes) vários objetos na residência do arguido, entre os quais (vide o seu ponto 38.6) cinco cartuchos zagalotes de 9 bagos, da marca "RIO", em caixa própria, dentro de um saco térmico azul.
Constata-se ainda que a busca efetuada ao domicílio do arguido (que nada teve que ver com a prática de factos criminosos, esses ocorridos nas imediações das instalações da empresa, inexistindo por isso quaisquer razões plausíveis para ali entrar) não foi lograda legalmente, já que não resulta dos autos ter sido autorizada pelo arguido nem pela sua esposa - os únicos titulares de tal espaço -, nem previamente ordenada por juiz. É por isso nula, constituindo método proibido de prova, nos termos do artigo 126.º, n.º 3 do CPP, sendo imprestáveis como meio de prova todas as apreensões decorrentes da entrada naquele domicílio, mormente as armas e munições apreendidas, com todas as consequências legais» [ Cfr. fls. 8 da motivação/fundamentação; conclusão nº 12].
Ora, cremos que a apreensão em causa teve um contexto que a coloca a coberto da lei.
Na verdade, conforme decorre dos documentos iniciais do processo, elaborados pela GNR e pela PJ (cfr., designadamente, as referências Citius nº 8038230 de 2.5.2023, nº 8040470 de 3.5.2023, nº 8046738 de 5.5.2023 e nº 8050483 de 8.5.2023), desde logo haveria dois locais de crime em que teria de ser feito o respetivo exame – Inspeção Judiciária - pelo OPC competente, neste caso a PJ [Cfr. o artº. 7º nº 1, nº 2, al. a), e nº 3, al. h), da LOIC] (competindo à GNR a preservação desses locais, como foi feito)[ Cfr. o artº. 5º nº 1 da LOIC].
Tratava-se do local em que o arguido tinha feito múltiplos disparos com arma de fogo, visando a então esposa (CC) e outras pessoas, bem como a residência do casal, para onde o mesmo se tinha dirigido logo a seguir a esses disparos e onde tinha tentado suicidar-se.
Num momento inicial, sublinhe-se, em que são conhecidos - mas com quase tudo ainda por esclarecer - tais factos, locais e circunstâncias não se poderia excluir a residência do arguido (e da vítima CC), como sítio também a examinar/inspecionar pelo OPC competente, a PJ, antes pelo contrário, pois na primeira fase de cada investigação tem de ser colocadas, em aberto, todas as hipóteses alternativas relativamente ao sucedido, à sua explicação, à sua motivação…
Ora, tal implica pesquisar, recolher e apreender (ainda que cautelarmente), o mais precocemente possível, o máximo de objetos/vestígios/provas existentes nos locais pertinentes, que possam estar relacionados com os crimes em investigação e o seu autor/autores - ainda que remotamente -, para que, depois, conjugados todos os elementos disponíveis, se possa chegar, na medida do possível, à verdade material, procurando-se contribuir para a realização da Justiça.
É o que resulta da conjugação do disposto em várias normas do CPP, designadamente dos artºs. 171º, 178º nº 1, nº 4 e nº 5, 249º nº 1 e nº 2, als. a), b) e c), 251º, nº 1, al. a), 270º nº 1 e nº 4, bem com dos artºs. 1º, 2º9, 7º nº 1, nº 2, al. a), e nº 3, al. h), da LOIC e 2º, 3º, 5º, 8º, 9º e 34º da LOPJ. [ Cfr. artº. 2º nº 3 da LOIC: «Os órgãos de polícia criminal, logo que tomem conhecimento de qualquer crime, comunicam o facto ao Ministério Público no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias, sem prejuízo de, no âmbito do despacho de natureza genérica previsto no n.º 4 do artigo 270.º do Código de Processo Penal, deverem iniciar de imediato a investigação e, em todos os casos, praticar os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova»].
Mais:
Conjugando o conteúdo da mencionadas referências Citius, retira-se que, não obstante o auto de apreensão em causa tenha, formalmente, a data de 4.5.2023[Cfr., designadamente, fls. 92 a 97 da referência Citius 8050483 de 8.5.2023], a PJ fez a inspeção judiciária aos referidos locais, bem como as referidas apreensões, logo no dia em que os factos ocorreram, isto é a 1.5.2023, e logo que deles teve conhecimento, conforme se retira de fls. 20 a 40 da referência Citius 8050483 de 8.5.2023, acrescendo que a fls. 36 desse documento consta o seguinte (insere-se a respetiva imagem):
Na parte final do relatório dessa Inspeção Judiciária - relatório esse cuja redação e assinatura só foi concluída a 5.5.2023 e no qual estão descritas as múltiplas diligências de recolha/preservação de prova feitas pela PJ que se impunham no imediato -, a fls. 40 desse documento, mais ficou consignado o seguinte (insere-se a respetiva imagem):
bem como (insere-se a respetiva imagem):
Ora, foi em todo este contexto – de facto e de direito - acabado de descrever que se deu a agora contestada apreensão, cremos que devidamente justificada, não se podendo olvidar que, nessa altura, quer o arguido quer a sua então esposa (e vítima das violentas agressão daquele) estavam hospitalizados em estado bastante grave, de tudo tendo sido dado conhecimento ao Ministério Público, nos termos do disposto no artº. 253º do CPP, que, a 8.5.2023, validou as apreensões efetuadas.
2. d) ii. Neste segmento recursivo, veio ainda o arguido contestar os factos provados nºs. 55, 56 e 60 [«55- O arguido detinha ainda nesse cofre uma caixa, contendo cinco cartuchos zagalote de 9 bagos, da marca RIO, de classe A».
«56- O arguido não possuía qualquer licença para a detenção desses cinco cartuchos zagalote».
«60- O arguido atuou ainda de forma livre, com o propósito de deter e guardar na sua habitação os cartuchos zagalote apreendidos, conhecendo a natureza e características de tais objetos, não podendo deter os mesmos e bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo, uma vez que não era titular de qualquer licença, o que representou»], relacionados com a referida apreensão e que estiveram na base da sua condenação pelo crime de detenção de arma proibida (artº. 86º, nº 1, al. e), da Lei n.º 5/2006, de 23.2, por referência aos artºs. 2º, nº 3, al. ad), 3º nº 1 e nº 2, al. v), e 4.º do mesmo diploma).
Em suma, o recorrente contesta que o Tribunal a quo tenha dado como provados tais factos, bem como a fundamentação usada pelo mesmo para chegar a essa conclusão, pondo a tónica, no essencial, no facto de a PJ não ter feito uma verdadeira perícia às munições em causa – cinco cartuchos zagalote.
Vejamos:
Conforme se retira de fls. 98 a 105 da já invocada referência Citius 8050483 de 8.5.2023, a PJ, ao analisar essas munições, não qualificou essa sua atividade como perícia.
Na verdade, sob a epígrafe de exame direto, a fls. 102, os Srs. Inspetores LL e MM concluiriam estar perante «27.6 - Cinco cartuchos zagalote de 9 bagos da marca “RIO” em caixa própria”.
Como é sabido, a PJ é um corpo superior de polícia criminal (artº. 1º nº 1 da LOPJ), que se dedica à investigação dos crimes mais complexos, graves e violentos (artº. 7º da LOIC), sendo os seus funcionários de investigação de criminal, maxime os Inspetores, desde que entram na instituição, formados, entre muitas outras matérias, no conhecimento e manuseamento de armas de fogo e respetivas munições, de vários tipos e calibres.
Tal faz obrigatoriamente parte da sua formação inicial, bem como da sua formação anual “comum”, com sessões teóricas e práticas sujeitas a avaliação, o que, por si só, lhes confere um saber acrescido na matéria.
Mas há igualmente que ter em conta – em abono da sua competência - que os Srs. Inspetores que fizeram o exame às munições em causa são também instrutores de tiro na Diretoria do Centro da PJ, isto é, estão habilitados com um curso próprio ministrado pelo Instituto da Polícia Judiciária e Ciências Criminais (artº. 26º da LOPJ) para poder ensinar outros colegas (ou magistrados, por ex.).
Em suma: o seu saber relativamente à matéria em causa é altamente especializado.
Daí que, quando os mesmos, no exame em causa, concluíram que se estava perante “Cinco cartuchos zagalote de 9 bagos…”, não puderam deixar de ter presente que, nos termos do disposto no artº. 2º, nº 3, al. ad), do RJAM, as munições em causa só poderiam merecer tal enquadramento por serem projéteis com diâmetro superior a 4,5 mm. - embora, é certo, não tenham feito referência expressa a essa medida, expressando-se conclusivamente -, fazendo parte de um conjunto de múltiplos projéteis para serem disparados em armas de fogo; se não tivessem a dimensão exigida não poderiam ser considerados “cartuchos zagalote”.
Ainda que, na tese que o arguido defende, tal não possa ser valorado como uma prova pericial [Não a tendo “contestado” como tal, designadamente à luz das possibilidades previstas no artº. 158º do CPP ] – esta teria um valor “tarifado”, subtraído à livre convicção do julgador, que, perante eventual divergência, a teria que fundamentar, nos termos do disposto no artº. 163º do CPP -, sempre será uma prova perfeitamente admissível e válida, ainda que considerada como um “simples exame” (artº. 125º do CPP), a ser apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador (artº. 127º do CPP).
Mais acresce que na fundamentação de facto – que, como se sabe, não tem de ser feita facto a facto nem prova a prova - outro elemento probatório referente a esta matéria também foi tido em conta pelo Tribunal a quo, desde logo as declarações do próprio arguido, que admitiu estar-se perante “zagalotes”:
- fls. 32 e 33:
«O arguido admite os factos referindo que as imagens do filme estão certas, mas “a memória que eu tenho não é essa … não sabe explicar a existência dos zagalotes, nunca comprou esse tipo de munições, pode ter sido troca com outro colega …»;
- fls. 34:
«A atitude do arguido é algo estratégica, apresentando algumas incongruências; na verdade, aceita o óbvio (constante dos registos visuais), mas deixa factos cobertos pela sua declaração de esquecimento…
igualmente pouco clara e pouco convincente foi o modo como diz que não sabia da detenção dos cinco cartuchos zagalote de 9 bagos».
De qualquer forma, o pretendido pelo arguido quanto aos factos provados nºs. 55, 56 e 60 corresponde a uma tentativa de impugnação ampla da matéria de facto/erro de julgamento.
Pretendendo o arguido a alteração de tais factos dados como provados, tal como já acima referimos em 2. b) era seu ónus indicar prova ou provas, para cada um desses factos, que impusessem (não bastando que o permitissem) decisão diversa, conforme exige o artº 412º, nº 3, al. b) do CPP (e pela forma legal), o que não foi cumprido.
B – Recurso interposto pelo Ministério Público:
Aderimos, no essencial, à argumentação empreendida pelo Sr. Procurador da República junto do Tribunal a quo.
Cremos que as circunstâncias do caso concreto poderão merecer acolhimento no nº 1 do artº. 109º do CP, sobretudo se tivermos em conta o segmento final dessa norma. *****
P. que seja dado cumprimento ao disposto no artº. 417.º nº 2 do CPP. |
Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal.
***
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
***
Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante, [a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 379º do Código de Processo Penal ou o artigo 410º do Código de Processo Penal [Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95].
Assim, são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação dos respetivos recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
Recurso intercalar:
® Da essencialidade à descoberta da verdade material da junção dos registos clínicos consultados pela Sra. perita médica na plataforma Registo de saúde eletrónico da SPMS EPE.
® Da essencialidade à descoberta da verdade material da prestação de esclarecimentos por parte da Sra. Perita médica.
® Da irregularidade pela inexistência do compromisso a que se refere o art. 156º do Código de Processo Penal.
® Da verificação da nulidade prevista no art. 120º, nº 2 al. d) do Código de Processo Penal, com o indeferimento do requerido.
Recurso do acórdão condenatório
® Por relevante deveria ter sido aditado um facto relativo à entrada do arguido no Serviço de urgência e a hora da colheita de sangue e respetiva TAS, bem um facto relativo à idade do demandado EE e que este é dextro.
® Da integração da conduta do arguido no crime de embriaguez e intoxicação.
® O Tribunal errou ao considerar preenchida com a atuação o arguido relativamente a todas as vítimas a alínea i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, pelo que deve ser condenado pela prática de dois crimes de homicídio simples, relativamente aos assistentes DD e EE e qualificado mas apenas pela al. b) relativamente a CC.
® Do erro de julgamento dos pontos 17, 18 19, 29 a 34, 36, 53, 55, 56, 58, 60 165, 226 dos factos provados.
® Da contradição entre os factos provados nº 24 e 25.
® Da nulidade da busca efetuada a casa do arguido por não ter sido autorizada por este nem pela sua esposa, constituindo assim prova proibida – art. 126º, nº 3 do Código de Processo Penal, sendo imprestáveis como meio de prova as apreensões decorrentes da entrada naquele domicílio ( factos 53, 55 e 56).
® Da absolvição do crime de detenção de arma proibida previsto e punível pelo art. 86º, nº 1 al. e) por referência aos arts. 2º, nº 3 al. ad) 3º, nº 1 e nº 2 al. v) e art. 4º da lei 5/2006 de 23.02, seja por inexistência de prova pericial quanto cartuchos “zagalotes” e bagos apreendidos seja porque configura uma atuação meramente negligente do arguido (pontos 55 e 60 dos factos provados).
® Do excesso da pena aplicada pelo crime de detenção de arma proibida.
® Do excesso das penas aplicadas a cada um dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada.
® Da indevida valoração do documento constante de fls. 996/1000 (nota de alta dos serviço de Psiquiatria do CHUC) quer porque continha declarações de CC que se recusou validamente e depor quer porque estando sujeito a sigilo médico não podia ter sido junto sem o consentimento do arguido ou do levantamento prévio do referido sigilo.
® Da atenuação especial da pena nos termos do disposto no art. 72º nº 1 e 2 al. c) do Código Penal.
® Do excesso da pena única de 13 anos.
® Da possibilidade de aplicação de uma pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução com regime de prova e subordinada à condição do pagamento das indemnizações.
® Do excesso da tributação em 10 UC de taxa de justiça.
® Do excesso das indemnizações fixadas.
Do recurso do Mº Público
® Da perda a favor do Estado nos termos do disposto no art. 109º, nº 1 do Código Penal, das armas e munições elencadas nos autos de exame de fls. 103 a 108 e 109 a 113 dos autos.
Do recurso subordinado
® Da insuficiência dos montantes atribuídos a título de indemnização aos assistentes DD e EE.
As questões serão analisadas por ordem de precedência lógica.
Começaremos por analisar o recurso intercalar interposto.
Analisando o despacho recorrido verificamos que o tribunal a quo indeferiu a junção de documentos requerida pelo arguido e os esclarecimentos a prestar pela Sra. Perita por entender que os mesmos não se afiguravam necessários à descoberta da verdade material.
O Tribunal pode ordenar a produção da prova requerida pelo arguido durante a audiência, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal, se o seu conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
Nos termos do disposto no artigo 340.º, n.º 4, alíneas c) e d), do CPP, um requerimento de prova é indeferido se for notório que o meio de prova em causa é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou se o requerimento tiver finalidade meramente dilatória.
Considera-se inadequado um meio de prova quando o mesmo não permite fazer prova sobre um determinado facto, nada permite demonstrar ou estabelecer, de nada serve para a decisão da causa (Oliveira Mendes in “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição, p. 1063).
O referido artigo 340.º do Código de Processo Penal que consagra o principio da investigação (que mitiga o principio geral do acusatório) outorga ao juiz um poder-dever de direção do processo, na fase de produção de prova, que lhe permite rejeitar liminarmente as diligências probatórias notoriamente irrelevantes, supérfluas, inadequadas ou meramente dilatórias, mas no contraponto o poder-dever de determinar as diligencias de prova que entenda essenciais à descoberta da verdade material e boa decisão da causa com o objetivo da descoberta da verdade material.
Assim, o tribunal apenas deve admitir as provas que se mostrem necessárias para a descoberta da verdade e deve indeferir ( por via do princípio da adequação) todas as provas que são inadequadas, dilatórias ou irrelevantes.
Por seu turno, nos termos do disposto no art. 158º, nº 1 do Código de Processo Penal, em qualquer altura do processo, pode a autoridade judiciária competente determinar oficiosamente ou a requerimento, quando isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade, que os peritos sejam convocados para esclarecimentos complementares.
O critério decisivo será, portanto, o da utilidade dos esclarecimentos para a descoberta da verdade material.
A realização de perícia – arts. 153º a 161º do Código de Processo Penal ocorre quando o processos e a decisão que neste haverá de ser tomada implicam conhecimentos específicos científicos, técnicos ou artísticos, que impõem que o tribunal seja coadjuvado por quem possui tais conhecimentos para que possa emitir um juízo especializado.
E daí também as especificidade de regras procedimentais inerentes à sua concreta realização, entre as quais as da Lei 45/2004-19agosto, as quais concretizam a realidade do art. 163.ºCPP.
Ora, nos termos do art. 163º, nº 1 do Código de Processo Penal “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.” E, no nº2 do mesmo preceito, determina-se que “sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos deve aquele fundamentar a sua divergência”.
Como refere Luís Filipe de Sousa [A Valoração da Prova Pericial, Revista Portuguesa do Dano Corporal (27), 2016, p. 19] “A prova pericial tem que ser apreciada pelo julgador a três níveis:
(i) Quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal);
(ii) Quanto à base de facto pressuposta na perícia e
(iii) Quanto à própria conclusão da perícia.
No que tange ao primeiro nível, há que aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, se não foi produzida contra proibições legais e examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente. Quanto à base de facto - cuja perceção e/ou apreciação não exija especiais conhecimentos - pressuposta na perícia, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não é posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria. Ou seja, o Tribunal mantém a liberdade de apreciação da prova se a divergência se confinar aos factos em que se apoia o juízo pericial”.
E é pela circunstância de estarmos perante prova tarifada que, na busca da verdade material (fim último do processo-penal) se concede a possibilidade de serem os peritos convocados para prestarem esclarecimentos complementares.
Importante e necessário é, como acima já salientamos - que tais esclarecimentos se revelem de interesse para a descoberta da verdade, aqui sendo pertinentes as considerações já expendidas quanto aos princípios da necessidade e adequação..
Como refere Oliveira Mendes [ Código de Processo Penal Comentado, p. 1063]:O juízo de necessidade ou desnecessidade de produção de prova cabe ao tribunal, ou seja, aos juízes que o compõem, isto é, ao juiz ou aos juízes e jurados, consoante o tribunal que julga a causa. A decisão sobre a necessidade ou desnecessidade da prova, sobre a admissibilidade da prova, pertence naturalmente àqueles que têm de apreciar a prova e julgar a causa.”
Temos então que este poder-dever, apenas deve ser exercido quando os esclarecimentos sejam necessários à busca da verdade, devendo indeferir a sua realização quando essa necessidade não esteja presente, porquanto também cabe ao juiz analisar a relevância do requerido de modo a evitar que a prova se perpetue ou se afaste do objeto processual.
Defende o arguido que perante a expressão usada no relatório pericial que da consulta dos registos SPMS EPE “resultam registadas várias ausências a consultas previamente agendadas de várias especialidades e de incumprimento terapêutico” se impunha a notificação da Sra. Perita para junção de tais registos aos autos.
Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal, T. II, pág.117] escreve, a propósito da admissibilidade/rejeição das provas requeridas pelas partes: “A preocupação do legislador em estabelecer o controlo judicial das provas (…) surge da necessidade de as limitar às que são imprescindíveis para a decisão, eliminando as que não têm que ver com os factos objecto do processo ou as que, ainda que tendo relação com eles, não representam novidade alguma que possa influir na decisão.”
O Código de Processo Penal harmoniza assim o princípio da investigação ou da verdade material, o princípio do contraditório e as garantias de defesa, de tal forma que nem o primeiro princípio nem as garantias sofrem restrição durante a audiência, mas o segundo princípio não deixa de ser aplicado a qualquer prova que o juiz considere necessária para boa decisão de causa.
Assim, as provas requeridas nesta fase processual devem, para além da sua admissibilidade e legalidade e para além de terem relação com o objeto do processo, representar novidade que possa influir na decisão da causa. Daí que o sujeito processual que as requer deva fornecer ao julgador, a quem são conferidos os poderes de disciplina na produção da prova, elementos necessários para que tal avaliação possa ser feita, isto é, deve, no requerimento, alegar as razões da eventual relevância ou utilidade da sua novidade para o desfecho da causa para que aquele possa aferir da notoriedade ou não do seu carácter irrelevante ou supérfluo, inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa ou ainda da sua finalidade meramente dilatória.”
Note-se que o julgador tem que harmonizar, por um lado, os princípios da investigação ou da verdade material, do contraditório e das garantias de defesa com os princípios da economia e celeridade processuais.
Ora, no requerimento em apreço solicita a junção de tais elementos “quer para a (in)validação de tais referências conclusivas quer para a descoberta da verdade material”.
Concordamos com o Tribunal a quo quando refere que face ao teor do relatório em causa não se justifica tal junção. Na verdade, trata-se apenas da menção à informação complementar obtida que surge após se salientar que “da consulta dos registos clínicos incluídos na plataforma Registo de saúde Eletrónico SPMS EPE, não foi encontrada qualquer referência a antecedentes de patologia neurológica ou psiquiátrica prévia, incluindo hábitos de consumo abusivo continuado ou imoderado de álcool”. Assim, tendo em conta o teor do relatório elaborado não se vislumbra qualquer relevância da junção dos ditos elementos clínicos no âmbito da perícia psiquiátrica forense realizada, e, tal como referido pelo Tribunal a quo, concordamos que se trataria de uma diligência meramente dilatória e inadequada e - como refere o Tribunal a quo - “sem qualquer consequência vantajosa para a descoberta da verdade material”.
Por outro lado, não cremos que se imponha que todas as afirmações efetuadas pelos Exmos. peritos necessitem de comprovação pela junção dos respetivos documentos, não havendo quaisquer razões objetivas – que também não foram alegadas - para questionar a validade do descrito pela Sra. Perita.
Ora, como acima referimos o art. 340 º concede ao juiz um poder de direção do processo, na fase de produção de prova, que lhe permite rejeitar liminarmente as diligências probatórias notoriamente irrelevantes, supérfluas, inadequadas ou meramente dilatórias, que foi o que o tribunal a quo fez, sem que mereça censura.
Relativamente aos esclarecimentos pedidos.
O relatório pericial em causa mostra-se adequadamente fundamentado, é claro, e não traz em si qualquer contradição com o relatório complementar de psicologia.
Não pode o recorrente pretender isolar um parâmetro de avaliação de entre vários constantes do relatório complementar, no caso relativo a valores de hostilidade, e descontextualizando-o pretender invocar uma putativa contradição a justificar esclarecimento. Aliás, no relatório elaborado transcreveram-se as conclusões vertidas no relatório psicológico que foram, como tal, aceites e utilizadas.
Por outro lado, a Exma. Sra. Perita justifica, de forma clara e assertiva, na discussão e conclusões as razões que a levaram ás conclusões vertidas no relatório. Tais conclusões estão sustentadas na metodologia utilizada, ou seja, no exame direto, nos exames complementares de diagnóstico, na consulta dos registos clínicos do examinado (para os quais este deu o seu consentimento) e das informações que daí recolheu. Foi, então, com base nesses dados que formulou as conclusões que, por comodidade, transcreveremos porque elucidativas dos passos seguidos e, consequentemente, para a desnecessidade para a descoberta da verdade e muito concretamente no âmbito em causa para a aferição da eventual perigosidade ou risco de reincidência dos esclarecimentos solicitados.
Repare-se que embora a Sra. Perita faça menção à tentiva de suicídio por parte do arguido, ao seu estado psíquico aquando do internamento e ao seu estado atual, como critérios auxiliares e explicativos das conclusões vertidas, não deixou a Exma. Sra. Perita de, com clareza, explicitar o quadro em que, na sua análise pericial, ocorreram os factos e porque razão o afirma.
Ali se escreveu: “Dos elementos reunidos para a apreciação do presente caso, designadamente do exame clínico-psiquiátrico, realizado numa perspectiva psiquiátrico-forense, e das fontes de informação consultadas em termos de história pessoal, constatou-se que o examinando é portador de uma Perturbação Depressiva, episódio único, atualmente em remissão parcial (código 6A70.6 da Classificação Internacional de Doenças, 11ª Revisão - CID11), despoletada pelas consequências dos actos praticados, visto não haver historial de episódios depressivos anteriores, e ainda manter alguns sintomas, embora não suficientes para cumprir os requisitos da definição para um episódio depressivo.
À data da realização deste exame, não foram apuradas alterações psicopatológicas que o impedissem de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua avaliação, além de distinguir o lícito do ilícito, reconhecendo a ilicitude dos actos para os quais se encontra indiciado, mas afirmando que, no dia em que ocorreram os mesmos, não se encontrava bem.
Tendo em conta, não se ter apurado um padrão de consumo continuado abusivo de álcool ou de alterações do comportamento de índole semelhante associadas e manifestas nos actos praticados (pela informação disponibilizada nos elementos dos Autos, e sobretudo assente nas declarações e auto-descrição do examinado), e o valor da Alcoolémia, aquando da avaliação no Serviço de Urgência do CHUC, pode afirmar-se que a prática dos actos ilícitos para os quais se encontra indiciado, ocorreu em contexto de intoxicação etílica aguda, consignando o diagnóstico de Uso nocivo do álcool, episódio único (código 6C40.0 da CID11). Trata-se de uma condição transitória que se desenvolve durante ou logo após o consumo de álcool, caracterizada por perturbação da consciência, da cognição, da percepção, do comportamento, com diminuição do controlo do impulso e da coordenação, podendo até chegar ao coma.
De referir, que o álcool afecta os processos inibitórios do Sistema Nervoso Central, podendo actuar como estimulante e induzir estados de desinibição comportamental, com euforia, agitação ou agressividade. No caso em apreço, resultou em comportamento danoso que prejudicou a sua saúde e a de terceiros.
A tentativa de suicídio com arma de fogo praticada neste contexto motivou o seu internamento, ocorrido entre 2/05/2023 e 15/06/2023, nos Serviços de Cirurgia Maxilo-Facial e de Psiquiatria do CHUC. No decorrer do mesmo, não foram apuradas alterações psicopatológicas ou da personalidade que o impedissem de se avaliar e de
se determinar de acordo com a sua avaliação, além de distinguir o lícito do ilícito, reconhecendo a ilicitude dos actos para os quais se encontra indiciado.
A anamnese e observação clínica revelam-se compatíveis com o quadro clínico acima descrito, não se apurando sintomatologia dita psicótica (com interferência na avaliação da realidade) ou uma Perturbação de personalidade grave. Face à Avaliação Psicológica realizada, a personalidade prévia configura-se, porém, como insuficientemente estruturada e algo imatura, com tendência a evidenciar um estado de alerta e de medo e desconfiança perante os outros. Procura maximizar a atenção e os favores que recebe, manipulando os factos de uma forma superficial e entusiasta.
Apurou-se ainda, a presença de irritabilidade fácil, marcada desconfiança, reserva, rigidez de pensamento e uma tendência no examinado para manifestar mais problemas emocionais e mnésicos dos que os que realmente experiencia, apontando para um exagero de queixas e de sintomas de mal estar psicológico/transtornos afetivos e mnésicos podendo, por isso, não ser representativos do real funcionamento do examinado.
Por outro lado, é sobejamente conhecido do público em geral, o papel do álcool na prática de crimes violentos, nomeadamente nos crimes de homicídio com armas de fogo, além de que o próprio arguido revelou ter conhecimento de que a prática de certos actos, por exemplo, a condução de veículos, num estado de embriaguez, é punida por lei e pode ter consequências graves. O acto de atentar contra a própria vida, após os factos ocorridos, indicia que terá tido noção da gravidade dos mesmos.
Ainda assim, e face aos elementos apurados (nomeadamente a inexistência de comportamentos análogos), sem prejuízo do atrás afirmado, não pode deixar de ser tido em conta que o estado de intoxicação alcoólica foi facilitador da prática dos actos para os quais está indiciado, condicionando o exercício da sua capacidade de autodeterminação (sensivelmente diminuída) em relação aos actos ilícitos, apesar da crítica para avaliar e compreender a ilicitude à data da prática dos mesmos, o que possibilita afirmar a exclusão parcial da sua imputabilidade (imputabilidade diminuída conforme consignada no nº2 do art.20º do Código penal).
Ou seja, à data da prática dos factos referidos nos Autos, embora o examinando tivesse consciência da ilicitude do seu comportamento criminal e processamento cognitivo minimamente conservado (tendo em conta a sucessão temporal dos acontecimentos), a sua capacidade para se abster de o fazer, a sua vontade, encontrava-se diminuída em razão do seu estado de embriaguez.
Como já referido, à data da realização desta avaliação pericial, o examinando possui a capacidade de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação. Não sendo, todavia, cientificamente possível predizer com rigor as condutas ou actos futuros do mesmo, embora a suceder um estado de embriaguez semelhante, poderá, com uma alta probabilidade, condicionar alterações psíquicas semelhantes às descritas e com a directa repercussão ao nível do seu comportamento, com elevado risco para a sua integridade física e/ou de terceiros. (negritos e sublinhados nossos).
Em suma, o relatório pericial responde com clareza ao que se impunha obter da perícia psiquiátrica forense, e não padece de contradições ou omissões que necessitassem de quaisquer esclarecimentos, constando os critérios e exames concretamente elaborados e considerados, que sustentam as conclusões vertidas e, assim, os esclarecimentos solicitados não se mostravam efetivamente necessários à descoberta da verdade – no caso e concretamente saber se o arguido padecia de anomalia psíquica; se no momento da prática dos factos tinha capacidade para avaliar a ilicitude destes ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída; na afirmativa se existe receio de que venha a cometer factos da mesma espécie e se o mesmo é suscetível de gerar perigosidade social, ao que o referido relatório dá resposta cabal, sustentada nos elementos científicos ali mencionados, sendo igualmente claro o percurso intelectual feito pela Sra. Perita para as conclusões vertidas.
Por outro lado, verificamos que a Sra. Perita teve como suficientes os elementos recolhidos até então e por isso o elaborou e enviou aos autos.
Cremos não estar em causa a idoneidade profissional da Sra. Perita, pois só assim se poderia conceber que esta fosse questionada sobre a suficiência dos elementos recolhidos para o que escreveu. Se assim o não entendesse tê-lo-ia escrito. Não tendo o INMLCF, através da sua perita e em face dos elementos entretanto recolhidos mantido a posição de necessidade da concretização de qualquer outra entrevista, e não resultando essa necessidade do texto do relatório apresentado ou do relatório complementar que o acompanha, não se vislumbra que os esclarecimentos solicitados fossem essenciais ou sequer relevantes para a descoberta da verdade.
Assim, nada há a censurar quanto ao seu indeferimento.
No que concerne à questão da eventual irregularidade por falta de compromisso.
Cremos, tal como refere o Tribunal a quo tratar-se de uma questão meramente hipotética.
Na verdade, os relatórios periciais foram realizados no INML I.P., Delegação do Centro, e realizada pelas respetivas peritas médicas em funções no mesmo, pelo que nos termos do disposto no art. 91º, nº 6 do Código de Processo Penal, não era necessário qualquer compromisso de honra.
Na verdade, tendo sido a perícia atribuída ao INMLCF, e subscrevendo os respetivos relatórios as senhoras peritas em nome desta entidade, tem de concluir-se que o fazem ao abrigo de um trabalho em funções públicas, no caso de funções médico-legais e forenses, sendo indiferente para este efeito que pertençam ao mapa de pessoal do INMLCF, I.P. ou que o façam mediante vínculo de emprego público através de contrato de prestação de serviços nos termos definidos na LTFP.
Como se refere no art. 28º da Lei 45/2004 de 19.08, na redação da Lei nº 53/2021 de 16.07:
“1 - Os médicos não pertencentes ao mapa de pessoal do INMLCF, I. P., podem exercer, na sequência de procedimento trienal, funções periciais em regime de contrato de prestação de serviços.
2 - A seleção de médicos, a contratar para o exercício de funções médico-legais e forenses é feita através do procedimento adequado à formação de contratos de prestação de serviços nos termos estabelecidos na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, na sua redação atual, e, subsidiariamente, no Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, na sua redação atual.
3 - Os critérios de pontuação ou ponderação para a seleção e avaliação dos candidatos são estabelecidos em conformidade com os princípios consagrados na LTFP, no CCP e no Código do Procedimento Administrativo, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, na sua redação atual.”
Isto é, as Exmas. Peritas médicas que subscrevem os relatórios periciais em nome do INMLCF I.P. Delegação de Coimbra, temos que concluir que têm relativamente a este um vínculo pelo menos nos termos do disposto no art. 28º nº 2 da referida lei nº Lei 45/2004 de 19.08, na redação da Lei nº 53/2021 de 16.07 e por isso consideradas funcionárias públicas.
Cumpre ainda salientar mais uma vez que a perícia foi atribuída ao INMLCF, I.P., isto é a serviço oficial apropriado, e por este foi realizada, tendo sido o referido Instituto que distribuiu a tarefa às concretas Sras. Peritas que o realizaram, e de quem são técnicas, tendo a respetiva faturação sido foi efetuada ao INMLCF ( cf. entre o mais fls. 1102), pelo que por esta via também não se impunha qualquer compromisso.
Neste sentido pode ver-se o Acórdão do TRL de 06.02.2019 [Processo nº 264/13.0TELSB.L1-3, disponível in www.dgsi.pt] onde se escreve: “O legislador estabelece uma ordem de preferência na nomeação de peritos, partindo do princípio de que tudo o que é oficial é melhor, pelo seu padrão de qualidade e competência .
Para se determinar se a nomeação abrange ou não todos os engenheiros que realizaram a perícia, há que interpretar o despacho proferido de harmonia com todos os elementos constantes nos autos.
Sendo a Instituição Laboratório Nacional de Engenharia Civil que foi nomeada perita, tendo indicado um determinado engenheiro e respectiva equipa para concretização dos trabalhos tendentes à avaliação que se ordenou, e elaboração do respectivo Relatório, tendo sido esta instituição que definiu os timings necessários, quantos investigadores iriam ficar afectos à realização dos trabalhos tendentes à sua concretização , tendo ainda definido as condições de realização e de pagamento.
Ao ser nomeada uma instituição pública ou laboratório as pessoas que por esta são indicadas ou a quem esta distribui a realização efectiva da perícia não têm que prestar juramento.”
Em face de todo o exposto, inexistiu qualquer irregularidade como decidiu o Tribunal a quo.
Recorre ainda o arguido do despacho que indeferiu a verificação das nulidades previstas no art. 120º, nº 2 al. d) do Código de Processo Penal e que resultariam do indeferimento das diligências requeridas.
No citado artigo 120.º do Código de Processo Penal prevê-se o seguinte:
1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.”
3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) (…)
b)(…)
c) (…)
d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.
Como acima já deixamos expresso apesar da estrutura acusatória do processo o tribunal tem o poder-dever na fase de julgamento – art. 340º do Código de Processo Penal – “de esclarecer e instruir autonomamente – i é, independentemente das contribuições da acusação e da defesa – o facto sujeito a julgamento, criando ele próprio as bases necessárias à sai decisão (Jorge Figueiredo Dias , 1974, p. 72). Se não o fizer o acto será inválido podendo ser anulado. [cf. João Conde Correia Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, T. I, pág. 1297].
Na análise que efetuamos supra já nos pronunciamos acerca da circunstância da junção dos elementos clínicos e bem assim dos esclarecimentos solicitados não serem essenciais à descoberta da verdade e, como tal, reiterando aqui todos os argumentos já acima expendidos entendemos que o Tribunal a quo efetuou uma análise adequada e correta das pretensões apresentadas pelo arguido em termos probatórios, tendo concluído no sentido de que os meios de prova em presença não justificavam, nem conduziam a, uma qualquer relevância tendo em conta o objeto dos autos, e portanto da sua essencialidade para a descoberta da verdade material e subsequente boa decisão da causa.
Cumpre apenas acrescentar porque no âmbito da invocação da nulidade por referência ao indeferimento da junção dos registos clínicos, o arguido se refere à possibilidade da suspensão da execução da pena de prisão, que não se vê, sem mais, qual a concreta relação a estabelecer entre os registos clínicos e consultas e tratamentos a que eventualmente tenha faltado e o juízo de prognose a efetuar quando em presença de uma pena de prisão que permita a sua suspensão ou do regime de prova a implementar, nem o recorrente o esclarece limitando-se a afirmá-lo sem qualquer sustentação, pois que qualquer regime de prova que se entendesse aplicar a uma eventual suspensão da execução da pena não estaria dependente desses elementos clínicos.
No que concerne à nulidade decorrente de se ter indeferido o esclarecimento quanto à necessidade da entrevista a familiar ou pessoa próxima e se essa entrevista poderia levar a conclusões diferentes, remete-se para as considerações acima expostas, no sentido de que a autonomia técnica do INMLCF, IP, levou a que a Sra. Perita assim o tenha entendido.
Porém, quando coloca em causa o despacho de indeferimento invocando a pretensa nulidade nos termos do art. 120º, nº 2 al. d) do Código de Processo Penal, acrescentou não saber se a prolação do despacho exarado a 11.10.2024 coartou ou poderia ter coartado a da Sra. Perita subscritora ao ordenar-lhe que terminasse a perícia com os elementos existentes e como tal torna necessário ouvi-la para perceber da importância ou relevância da informação em falta e se a desconsideração dessa informação foi voluntária ou decorreu do despacho exarado a 11.10.2024.
Esta trata-se de uma nova perspetiva que não havia sido colocada no requerimento previamente apresentado, isto é, do hipotético - porque é assim que o recorrente também a coloca quando refere coartou ou poderá ter coartado” – condicionamento da Sra. Perita pelo despacho exarado a 11.10.2025.
Cumpre salientar que por duas vezes mencionou o ora recorrente que não havia sido notificado de tal despacho. Porém, essa omissão de notificação implicaria uma mera irregularidade que teria de ser invocada pelo interessado o que manifestamente não fez, antes pelo contrário fez uso do mesmo despacho para invocar a mencionada nulidade.
O Despacho em causa apenas refere o entendimento de que não deverão ser desencadeados meios coercitivos para fazer comparecer HH, ( filha do arguido) justificando a razão de ser dessa decisão e exarando entre o mais: “ A utilização de meios coercivos para fazer comparecer a senhora HH também seria ineficaz porquanto, legitimamente ou não, a mesma não iria colaborar.
Tudo redundaria em mais atrasos sem qualquer proveito para a boa decisão da causa.
Percebendo-se, igualmente, o melindre da situação familiar e firmeza da posição agora (re)assumida, a sensibilização da senhora HH para o dever de colaborar não seria relevante nem afastaria a dúvida, que se instalaria, acerca do conteúdo de quaisquer declarações que a mesma trouxesse à entrevista.
Nesta conformidade, a esse respeito, nada mais se justifica decidir seja em termos jurídicos seja em meios coercivos.
Assim, sendo certo que a senhora HH se coloca numa posição de não colaboração, deve o INMLCF prosseguir o seu esforço, para concluir a perícia, com os elementos disponíveis.
Tal comunicação da intenção da senhora HH, por outro lado, também, poderá permitir ao INMLCF avançar com mais celeridade a conclusão da perícia.
Dê conhecimento ao INMLCF”.
Como já referimos supra os despachos proferidos nos autos são claros quanto à autonomia e independência do INMLCF, e tanto assim é que se aguardou por vários meses pela elaboração do respetivo relatório atendendo às informações que iam do referido Instituto chegando.
O Tribunal tem de trabalhar com dados objetivos e não pode, nem deve, partir de meras hipóteses.
Ora, analisando a tramitação processual e o relatório pericial em causa dele se retira que a Exma. Sra. Perita entendeu que os elementos até então recolhidos lhe permitiam a sua elaboração e por isso não cabe conjeturar eventuais ou supostos condicionamentos que não têm qualquer sustentação quer no documento produzido, quer na tramitação processual que o antecedeu.
E assim, concordamos com o tribunal a quo quando afirma “cremos que não existe qualquer omissão ou qualquer contradição que ponham em causa, ou que sejam suscetíveis de fundar qualquer uma das invocadas nulidades, tal como, nada existe que justifique esclarecer quanto eventual influência dos referidos despachos do tribunal, relativamente ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e igualmente, não se vislumbra, nem tal decorre do teor dos mesmos, qualquer contradição nos invocados despachos quanto à independência e autonomia técnica do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, sendo manifesto que não houve qualquer influência na decisão do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses quanto à relevância, ou não, de ouvir ou não ouvir outras pessoas”.
Em suma, reiterando todo ao acima exposto, nada há a censurar ao despacho que considerou inexistirem as nulidades invocadas nos termos do disposto no art. 120º nº 2 al. d) do Código de Processo Penal.
Improcede assim in totum o recuso intercalar interposto.
III.1 Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar a decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
“A) De facto
Realizada a audiência de discussão e julgamento, provaram-se os seguintes factos:
1- O arguido AA e CC contraíram casamento em ../../1988, o qual foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 12 de Julho de 2023, transitada em julgado.
2- Em 01 de Maio de 2023, o arguido AA e CC eram sócios-gerentes da sociedade A..., Lda., com sede em ..., ..., em ....
3- No dia 01 de Maio de 2023, durante a tarde, CC reuniu-se com DD, EE e BB nas instalações daquela empresa A..., Lda., em ..., a fim de tratar de assuntos da “... – Associação de Desporto para Todos de ...”.
4- Aquela associação tem por objectivo promover e organizar caminhadas e da qual aqueles integravam os órgãos sociais.
5- Pelas 18:00 horas, depois de terminada a reunião, dirigiram-se os quatro para a cozinha/refeitório, a fim de lancharem.
6- Nessa tarde, o arguido esteve, na zona da ..., num convívio com os seus companheiros de caça, no âmbito do qual ingeriu bebidas alcoólicas.
7- Por motivos não concretamente apurados, o arguido abandonou esse convívio e dirigiu-se, conduzindo o seu veículo, para a sede da referida empresa.
8- Por volta das 18:20 horas, o arguido AA surgiu à porta da divisão onde se encontravam as referidas pessoas.
9- O arguido AA permaneceu à porta da cozinha/refeitório da empresa durante menos de um minuto.
10- Nessa altura, CC apresentou o arguido aos presentes, com excepção de EE, que já era seu conhecido, tendo o arguido proferido poucas palavras e abandonado as instalações da empresa pouco depois.
11- Cerca das 18:34 horas, CC, DD, EE e BB saíram igualmente da empresa e dirigiram-se às respectivas viaturas, a fim de abandonarem o local.
12- DD e BB encaminharam-se para a viatura de marca Volvo, com a matrícula ..-ZP-.., propriedade daquele, que se encontrava estacionada na berma da estrada, fora das instalações da empresa e de frente para o portão.
13- DD sentou-se no lugar do condutor e BB no lugar de passageiro do banco da frente.
14- EE seguiu para a sua viatura de marca Smart, com a matrícula ..-GU-.., que se encontrava estacionada na berma da estrada, imediatamente atrás do veículo de marca Volvo, mas com a frente virada para a estrada.
15- Por sua vez, CC dirigiu-se à viatura de marca Hyundai, com a matrícula ..-VO-.. que estava aparcada no pátio exterior das instalações da empresa.
16- Nessa altura, cerca das 18:36 horas, o arguido AA regressou ao local, conduzindo a viatura de marca Ford, modelo Transit, com a matrícula ..-ST-...
17-Ali chegado, o arguido estacionou aquele veículo na berma, fora das instalações da empresa e junto ao veículo de marca Smart.
18- O arguido AA trazia consigo uma espingarda caçadeira, semiautomática, de calibre 12, da marca Benelli, modelo Raffaello 121, com o número de série ...40, com sistema de percussão central e indirecta, com um cano de alma lisa com o comprimento de 695mm, municiada com cartuchos de calibre 12 com projéctil único.
19- O arguido tinha ido buscar aquela arma à sua residência, que dista cerca de 3 kms do local, com o intuito de tirar a vida a EE, a DD e à esposa CC.
20- Já depois de EE ter iniciado a condução do veículo Smart para inverter o seu sentido de marcha, o arguido AA saiu repentinamente da sua viatura empunhando aquela espingarda.
21- Acto seguido, o arguido dirigiu-se ao veículo conduzido por EE e, sem que nada o fizesse prever e sem que aquele o visse, efectuou dois disparos em direcção do tronco de EE, estilhaçando os vidros laterais do veículo.
22- Um dos projécteis atingiu EE de raspão na zona do peito do lado direito e o outro atingiu-o no braço esquerdo, provocando-lhe uma ferida incisa com fractura exposta do rádio esquerdo a nível proximal e exposição óssea, com perda hemática.
23- De seguida, o arguido AA avançou em direcção à traseira da viatura de marca Volvo.
24- Logo, sem que nada o fizesse prever e surpreendendo-o pela retaguarda, o arguido apontou a espingarda caçadeira em direcção a DD e efectuou um disparo na direcção do mesmo.
25- O projéctil assim disparado pelo arguido entrou pelo vidro traseiro da viatura Volvo, atingiu o encosto de cabeça do banco do lado direito do condutor e, por sua vez, atingiu a face e a região ocular do lado direito de DD, que nesse momento se tinha virado para trás alertado pelo barulho dos primeiros disparos, provocando-lhe uma hemorragia.
26- Esse projéctil depois saiu pelo pára-brisas, indo atingir o portão principal de acesso ao recinto da empresa e posteriormente a parte inferior da porta lateral frontal do veículo Hyundai, onde já se encontrava CC, sentada no banco do condutor.
27- De seguida, em passo firme, o arguido AA dirigiu-se às instalações da referida empresa, verbalizando “agora é que vais ver”, sempre empunhando a espingarda caçadeira.
28- Acto contínuo, o arguido apontou a arma em direcção a CC, que se encontrava sentada no banco do condutor do veículo de marca Hyundai e efectuou, pelo menos, dois disparos com a espingarda na direcção da mesma, designadamente à sua cabeça.
29- Um dos disparos atingiu CC na zona retroauricular esquerda, tendo o projéctil perfurado o lado direito do pára-brisas do veículo, ficando alojado no encosto de cabeça do referido banco do condutor.
30- No segundo disparo, o projéctil passou a menos de um metro da viatura onde estava CC e atingiu uma estrutura de vidro que se encontrava entre o veículo e a parede da empresa, fazendo ricochete na parede.
31- CC conseguiu sair da viatura e tentou fugir pela parte traseira do Hyundai.
32- Então, o arguido efectuou mais um disparo na direcção da parte superior do corpo daquela, mas não a atingiu, tendo o projéctil atingido o portão da garagem do armazém.
33- Sem interromper a marcha, o arguido AA perseguiu CC, alcançando-a nas traseiras do Hyundai.
34- Tendo ficado sem munições, o arguido levantou a espingarda no ar com as duas mãos e desferiu, com a mesma, duas fortes pancadas na cabeça de CC, atingindo-a na nuca e na região parietal do lado esquerdo, tendo esta caído inanimada no chão.
35- Durante o ataque, CC levantou o braço esquerdo para se tentar defender.
36- Logo após e vendo que CC se encontrava inconsciente, o arguido colocou-se em fuga.
37- O arguido abandonou o local na referida viatura Ford e dirigiu-se para a sua residência, sita na Rua ..., ..., em ....
38- Chegado ao logradouro da sua casa, o arguido efectuou um disparo sobre si próprio.
39- O arguido permaneceu ferido até à chegada da filha HH, que providenciou por socorro.
40- Nesse dia, no interior da residência do arguido, foi encontrada uma mensagem manuscrita por AA em duas folhas de papel, na qual o mesmo pedia perdão aos filhos e apelidava a esposa de vigarista.
41- CC, EE e DD foram socorridos no local e transportados ao Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, aí sendo assistidos clinicamente de urgência.
42- Em consequência directa das condutas do arguido acima descritas, EE sofreu dores, uma ferida na zona do peito do lado direito e uma ferida incisa com fractura exposta do rádio esquerdo a nível proximal e exposição óssea, com perda hemática abundante.
43- EE foi submetido a cirurgia no dia 2 de Maio de 2023, tendo ficado internado até ao dia 12 de Maio de 2023.
44- Nessa data, EE teve alta hospitalar, continuando a ser seguido em consulta de ortopedia, apresentando pseudartrose o braço esquerdo por insuficiência óssea e paralisia do nervo radial.
45- Em consequência directa das condutas do arguido acima descritas, DD sofreu dores e um esfacelo da hemiface direita, com envolvimento do globo ocular, da pálpebra inferior direita e da região malar, ferida em toda a extensão da pálpebra inferior direita com perda de substância e ferida do globo ocular direito na região límbica temporal, que lhe determinou a perda do globo ocular direito.
46- DD apresentava fracturas orbitárias múltiplas das paredes da órbita direita com múltipla fragmentação do pavimento orbitário e parede lateral, com perfuração do globo ocular direito e hemorragia intra-orbitárias e intra e extra-cónicas com proptose e hematoma da região malar homolateral, prolongando-se para a fossa posterior direita associada a múltiplas fracturas da arcada zigomática e paredes do seio maxilar homolateral, fracturas múltiplas fossos próprios do nariz e fractura do ramo da mandíbula à direita.
47- DD foi submetido a cirurgia no dia 1 de Maio de 2023, tendo ficado internado até ao dia 10 de Maio de 2023.
48- DD foi novamente intervencionado cirurgicamente em 12 de Julho de 2023 para evisceração do globo ocular direito e colocação de implante, continuado a ser avaliado em consultas de cirurgia maxilo-facial e oftalmologia, tendo perdido o globo ocular direito e perdido total e irreversivelmente a função visual a nível do olho direito, sofrido lesão complexa da pálpebra inferior direita.
49- Em 7 de Dezembro de 2023, DD apresentava perda de volume ósseo e de tecidos moles da região malar e periorbitária à direita, a condicionar assimetria facial, com perda de sensibilidade do território do nervo infraorbitário.
50- Na sequência das condutas do arguido, CC sofreu dores, traumatismo crânio-encefálico grave, com perda de consciência, designadamente ferida craniana temporoparietal esquerda estreada, fractura com afundamento ósseo na região parietal esquerda e lesão dural, com contusão cerebral, subaracnóide e coleções gasosas, assim como uma fractura dos ossos do antebraço esquerdo. 51- Em resultado de tais lesões, CC foi submetida a uma intervenção cirúrgica de urgência, no dia 1 de Maio de 2023, de cranioplastia de defeito ósseo com recurso a malha de titânio, ficando internada até ao dia 5 de Maio de 2023.
52- No dia 16 de Maio de 2023, CC foi intervencionada cirurgicamente ao antebraço esquerdo, tendo estado internada até ao dia 18 de Maio de 2023, continuando a ser seguida em consultas de ortopedia e neurocirurgia.
53- No dia 4 de Maio de 2023, cerca das 17h00, o arguido detinha no interior da sua residência, em ..., acondicionadas em cofre, quatro carabinas, quinze espingardas caçadeiras, uma espingarda de ar comprimido e diversas munições.
54- As armas carabinas e espingardas em causa constam registadas/manifestadas em seu nome, sendo o arguido titular de licença de uso e porte de arma das classes C e D.
55- O arguido detinha ainda nesse cofre uma caixa, contendo cinco cartuchos zagalote de 9 bagos, da marca RIO, de classe A.
56- O arguido não possuía qualquer licença para a detenção desses cinco cartuchos zagalote.
57- Ao disparar das formas descritas aquela espingarda caçadeira, na direcção de EE, DD e da esposa CC, designadamente à cabeça e tronco, em zonas que alojam órgãos vitais e ao desferir as fortes pancadas na zona da nuca e cabeça de CC, o arguido agiu de forma livre e voluntária, com o propósito de atentar contra a vida de DD, EE e CC.
58- O arguido sabia que aqueles disparos da espingarda caçadeira (tal como as pancadas na cabeça de CC), dirigidos a zonas vitais eram aptos a lhes causar morte, o que representou, mas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade, designadamente face à pronta assistência médica prestada aos ofendidos.
59- O arguido actuou de forma súbita e inclusive pela retaguarda, de modo a diminuir as possibilidades de defesa das vítimas e dirigindo-se individualmente a cada um, indiferente ao sofrimento e temor que causava.
60- O arguido actuou ainda de forma livre, com o propósito de deter e guardar na sua habitação os cartuchos zagalote apreendidos, conhecendo a natureza e características de tais objectos, não podendo deter os mesmos e bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo, uma vez que não era titular de qualquer licença, o que representou.
61- O arguido sabia que aquelas suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
62- À data da prática dos factos, embora o arguido tivesse consciência da ilicitude do seu comportamento criminal e o processamento cognitivo minimamente conservado, a sua capacidade para se abster de o fazer, a sua vontade, encontrava-se diminuída em razão do seu estado de embriaguez.
63- O arguido pagou aos demandantes todos os valores peticionados a título de danos patrimoniais, sendo 1.185,92 euros a EE, 4.217,18 euros a DD e 14.140,03 euros à “Unidade de Saúde Local de Coimbra, E.P.E.”.
64- O arguida manifesta arrependimento.
65- No registo criminal do arguido nada consta.
66- AA nasceu a ../../1967, em ..., sendo o quarto de sete filhos de uma família que sempre viveu em ...; apesar de algumas dificuldades socioeconómicas, o ambiente familiar era bom, mantendo um relacionamento próximo com os irmãos e os sobrinhos; os pais já faleceram.
67- No seu percurso escolar, o arguido reprovou 2 vezes, na 1ª classe e no 1º ano do ciclo, tendo saído da escola, com cerca de 12/13 anos para ir trabalhar; já em adulto, frequentou o programa das “Novas Oportunidades”, que lhe deu equivalência ao 11º ano.
68- Quando saiu da escola, AA começou a trabalhar como servente de pedreiro, acompanhando o pai, mas sem receber ordenado.
69- Aos 16 anos de idade, foi trabalhar numa empresa, na construção de auto-estradas e dava parte do seu salário à mãe para as despesas domésticas.
70- Passado pouco tempo, na fase em que conheceu a esposa, AA começou a trabalhar na oficina de caixilharia de alumínio do pai de CC.
71- Entretanto, CC engravidou e casaram-se, ficando o arguido a trabalhar com o sogro.
72- Quando o sogro adoeceu, o arguido assumiu um papel mais relevante na empresa e, após o falecimento daquele, em 1999, este e a esposa herdaram o negócio, que mantiveram até ao divórcio.
73- Em relação à sua vida afectiva, o arguido só teve uma namorada, com quem casou.
74- Deste relacionamento com CC, nasceram um filho e uma filha, ambos já com vidas autónomas.
75- O divórcio, amigável, solicitado pela esposa, aconteceu após a ocorrência dos factos supra descritos.
76- O arguido sente-se triste e magoado porque a filha deixou de se relacionar com ele, após o sucedido; o filho continua a visitá-lo e a dar-lhe algum apoio.
77- Nos seus tempos livres, o arguido ocupava-se com pequenos trabalhos de agricultura e gostava de ir à caça.
78- O arguido começou a caçar aos 23 anos de idade, após ter tirado a carta de caçador; das caçadeiras e carabinas que possui, algumas foram adquiridas por si e outras foram “dadas pelos velhotes, que tinham deixado de caçar” e que ele mandava restaurar; gostava especialmente de fazer esperas ao Javali.
79- O arguido detinha as armas guardadas, descarregadas, e com as chaves escondidas e as munições eram guardadas à parte.
80- No final de 2022, deixou de ir caçar com tanta frequência, pois sentia-se mais cansado e afastou-se dos amigos; andava sobrecarregado com o trabalho, muito cansado, não dormia bem; pensava que no Verão ia melhorar, como já sucedido em anos anteriores, pelo que não foi ao médico.
81- Em termos de consumo de bebidas alcoólicas bebia 3 a 4 copos de vinho, quando ia ter com clientes ou quando estes lá iam pagar algum serviço, e, por vezes, 1 ou 2 copos ao almoço, no fim-de-semana; em convívio com os amigos ou em festas é que, por norma, bebia mais vinho e também cerveja.
82- O arguido está preso preventivamente, desde 16 de Julho de 2023, à ordem do presente processo, no estabelecimento prisional de Aveiro, evidenciando esforços de adaptação e desenvolvimento pessoal.
83- No estabelecimento prisional, o arguido desempenha funções laborais, como 1º ajudante no sector da manutenção das instalações, desde 04.09.2023, com excelente desempenho, mantendo comportamento adequado, cordial e respeitador das normas e deveres institucionais, sem registo de infracções disciplinares; tem beneficiado de acompanhamento psicológico.
84- Quando a demandante BB ouviu dois “estrondos” não se apercebeu, de imediato, do que se tratava.
85- Inicialmente, a demandante BB julgou que o barulho que ouvira correspondia a um som proveniente do portão das instalações da empresa, junto ao qual se encontrava ainda a viatura.
86- Poucos segundos após, ouviu novo “estrondo”, que instintivamente a levou a manter a posição mais baixo no banco, apercebendo-se de imediato que estava coberta com estilhaços de vidro.
87- A demandante BB reparou que DD, que ocupava o lugar de condutor, estava ferido na face direita da cara, coberto com muito sangue e logo identificou o som que ouvira como sendo disparos, um dos quais o tinha atingido.
88- Perante tal cenário, a demandante BB entrou em pânico.
89- Tentando recompor-se do choque, saiu da viatura, a fim de pedir socorro.
90- Primeiro, procurou assistência junto de EE, cuja viatura já iniciara a marcha, mas que se encontrava naquele momento imobilizada junto à estrada.
91- Ao chegar junto do Smart de EE, apercebeu-se de que não estava ninguém no interior da viatura, situação que a deixou bastante apreensiva e confusa.
92- Então, regressou para junto da viatura Volvo, com intenção de procurar ajuda junto de CC.
93- A demandante BB apercebeu-se que o demandado se dirigia em sua direcção, empunhando uma arma, o que lhe provocou um grande susto e pânico.
94- Sensação que permaneceu, mesmo quando a demandante BB percebeu que o demandado, apesar de manter constante contacto visual, seguiu caminho em direcção ao portão da empresa, dirigindo palavras a CC, em tom de voz elevado.
95- Por isso, a demandante BB, instintivamente, escondeu-se atrás da viatura Volvo, de maneira a proteger-se de eventuais novos disparos.
96- A demandante BB receou que o arguido desferisse um disparo sobre si, atentando contra a sua vida e integridade física.
97- Receio que se manteve, mesmo quando este abandonou as instalações da empresa, pois temia que ele voltasse, proferindo novos disparos e/ou agressões.
98- A demandante BB, tentando recompor-se do choque que estava a vivenciar, providenciou por prestar auxílio a CC e DD, tendo como preocupação imediata ligar para o INEM para pedir socorro.
99- Ainda em pânico e muito nervosa, a demandante BB telefonou para o INEM, a fim de relatar o sucedido e solicitar socorro.
100- No decorrer da chamada telefónica com o INEM, a demandante BB foi assistida, via telefone, por um profissional do foro psicológico, pois era evidente o choque psicológico que a mesma estava a viver.
101- Essa chamada telefónica teve de ser interrompida para prestar assistência às vítimas, tendo chegado o INEM alguns minutos depois.
102- Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a demandante BB sofreu um grande choque psicológico, vivenciando verdadeiros momento de terror e pânico.
103- A actuação do demandado aconteceu sem razão ou motivo perceptível para a demandante BB, o que lhe causou grande choque e surpresa, dado que nada fazia prever tal acontecimento.
104- A demandante BB ficou num estado de nervosismo que nunca tinha experienciado, tendo receado não só pela sua própria vida, como também pela das demais vítimas.
105- Vendo-se confrontada com o choque que perante o cenário descrito tinha vivido, mas também com a responsabilidade de assistir, com a maior urgência e da melhor maneira possível, as vítimas e providenciar por socorro.
106- Situação que deixou a demandante BB visivelmente abalada, nervosa e com grande stress.
107- De tal forma que, após terem chegado os meios de socorro e terem começado a ser prestados os primeiros cuidados e auxílio às vítimas, perdeu temporariamente a memória, não tendo grandes recordações do que se terá passado de seguida.
108- Por forma a recuperar do trauma vivenciado, a demandante BB optou por continuar a trabalhar, não usufruindo de qualquer baixa médica.
109- Por um lado, a demandante BB acreditava que seria esta a forma mais fácil de superar o choque vivenciado, retomando à sua rotina “normal”, por outro, temia ficar sozinha em casa.
110- Nas semanas que se seguiram, a demandante BB, embora estando a laborar, não conseguiu apresentar a mesma postura de antes, alegre e descontraída, nem o mesmo desempenho e rendimento.
111- A demandante BB sentia-se ainda muito ansiosa e assustada com tudo o que vivenciara.
112- Nas semanas que se seguiram, a demandante BB viveu em constante sobressalto; estava distante, preocupada, constantemente a reviver o sucedido, passando a ter grande dificuldade em se concentrar.
113- Teve vários episódios de insónia e ataques de ansiedade.
114- Assustando-se facilmente, o que era frequente quando ouvia sons que a faziam recordar o barulho de disparos.
115- Mesmo no seu local de trabalho, a demandada apresentava-se abalada e sentiu que não conseguia dar o seu normal rendimento.
116- De igual forma, durante algum tempo não se sentiu capaz de despender a mesma atenção de outrora junto dos seus familiares e amigos.
117- A condição psíquica da demandante BB prolongou-se para um quadro de agudo stress pós-trauma, apresentando disforia e culpabilidade excessiva.
118- Por essa razão, foi recomendado acompanhamento psicológico, por forma a ajudar a gerir a violenta experiência que presenciou e reduzir os danos.
119- Depois de ter sido atingido no braço esquerdo, EE apercebeu-se que o autor dos disparos tinha sido o demandado AA.
120- Tentando recompor-se do choque do que tinha acabado de presenciar, EE saiu de imediato do carro, correndo em busca de socorro.
121- Procurou abrigar-se em segurança, uma vez que ficou com receio de que o demandado o seguisse e fizesse novos disparos contra si.
122- Já um pouco distante da sua viatura, ouviu mais alguns disparos, sem saber o que se teria passado ao certo.
123- Só alguns momentos mais tarde, quando conseguiu regressar em segurança para junto da sua viatura, é que se apercebeu que DD e CC também estavam feridos.
124- O demandante EE ficou em pânico, confuso e assustado com o que se estava a passar e com dores e sofrimento pelos ferimentos do raspão no peito e no braço esquerdo.
125- A ferida do braço ficou a sangrar bastante e a necessitar de cuidados médicos.
126- O demandante EE foi assistido no local, por terceiros que se encontravam nas redondezas e que, alertados pelos barulhos, começaram a aproximar-se para prestar auxílio.
127- Posteriormente, o demandante EE foi assistido e encaminhado para os Serviços de Urgência dos CHUC.
128- Foi levado por Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VIMER), para a sala de emergência da cirurgia geral, uma vez que apresentava ferida com fractura exposta e com hemorragia activa do braço esquerdo, com exposição óssea, e abundante perda hemática;
129- Já no serviço de Urgência foi submetido a diversos exames, tendo-lhe sido ainda administrada diversa medicação e efectuados os atinentes procedimentos de urgência.
130- Foi ainda observado na cirurgia vascular, tendo-se constatado que apresentava ferida exposta do antebraço esquerdo, com pulso radial palpável.
131- E ainda na ortopedia, verificando-se uma fractura exposta do radio esquerdo a nível proximal, parésia do radial, tendo sido realizada a lavagem do membro, o qual foi colocado em goteira e encaminhado para o bloco operatório.
132- O demandante EE foi encaminhado, ainda nesse dia, para o serviço de Cirurgia Geral, a fim de ser intervencionado de urgência.
133- Na sequência da intervenção cirúrgica realizada, ficou internado doze dias, para observação e acompanhamento, com indicação para ser seguido na especialidade de Ortopedia.
134- Tem mantido acompanhamento e registado evolução, mantendo avaliação clínica periódica.
135- Os disparos efectuados pelo demandado, ao atingirem o demandante de raspão no peito e no braço, provocaram-lhe ferimentos ligeiros no peito e ferimentos no braço esquerdo, mais concretamente no antebraço, tendo sofrido perfuração, fractura dos ossos (nomeadamente rádio, em 10 cm) e ruptura de ligamentos.
136- As lesões descritas causaram, e ainda causam, grande sofrimento ao demandante EE.
137- Acresce que, por força da imobilização do seu braço esquerdo, nas semanas que se seguiram o demandante careceu de ajuda para realizar as mais diversas tarefas do seu quotidiano.
138- Tendo contado com a ajuda da sua esposa e do seu filho, especialmente numa fase mais inicial, para realização das mesmas.
139- Deixou de poder conduzir, necessitando também aqui da ajuda de terceiros para se deslocar às suas consultas e tratamentos.
140- Ficou com o braço desfigurado e incapacitado, situação que o deixou e ainda deixa angustiado.
141- Sendo confrontado diariamente com a frustração de depender de terceiros, pois até então sempre tinha sido autónomo.
142- Ao fim de doze meses de acompanhamento, o demandante apresentava “esfacelo com fractura exposta do rádio proximal com perda de substância, em pseudarte por insuficiência óssea”, bem como “paralesia no nervo radial”.
143- Continuou a ser seguido na especialidade de Ortopedia, e a frequentar consultas de fisioterapia três e depois duas vezes por semana.
144- A lesão sofrida no braço foi reavaliada na consulta marcada para dia 06.05.2024 assinalando já sem indicação de intervenção para paralisia, restando a pseudartrose do rádio, bem tolerada, pouco sintomática.
145- Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o demandante EE ficou com o braço esquerdo imobilizado durante várias semanas, estando actualmente, com mobilidade reduzida do mesmo.
146- Com a lesão sofrida no braço, o demandante passou de carecer de ajuda para realizar o seu cuidado pessoal, nomeadamente, para se vestir, dada a dificuldade que sente por falta de mobilidade no braço e mão esquerda.
147- Tem um mal-estar permanente e dores constantes, resultante da perda de sensibilidade parcial da mão esquerda.
148- Durante várias semanas deixou de poder conduzir, carecendo da ajuda de terceiros para realizar as mais diversas deslocações que antes fazia com plena autonomia, nomeadamente para se deslocar a serviços e a consultas médicas.
149- Na consulta de 06.05.2024, para reavaliação do trauma, não apresentava dores na pseudartrose radial, registava recuperação dos extensores do punho em M4+ e extensores dos dedos e punho com tendência para desvio radial.
150- Nas semanas imediatamente seguintes à prática dos actos do demandado, o demandante EE, além das fortes dores que sentia, ficou muito assustado.
151- Durante as semanas que se seguiram, o demandante não conseguiu retomar a sua rotina normal.
152- O demandante EE sentia-se constantemente sobressaltado, com receio de sair de casa; assustava-se facilmente e qualquer som fazia recordar, involuntariamente, o trauma que viveu.
153- De igual forma, sempre que na rua passava por algum veículo parecido ao do demandado, assustava-se.
154- Teve frequentes episódios de pânico, com ataques de ansiedade.
155- Situação que ainda hoje se verifica, ainda que com menor frequência.
156- Acresce que o demandante EE vive nas imediações da empresa “A..., Lda.”, local onde tudo aconteceu.
157- Pelo que o demandante EE e a sua família, mercê desta circunstância, são confrontados diariamente com tal episódio, sentindo um desconforto e mal-estar sempre que passam no exterior da mesma.
158- À data dos acontecimentos o demandante EE tinha 63 anos e encontrava-se reformado há 1 ano.
159- No tempo livre que dispunha, realizava várias actividades, sendo pessoa activa e dinâmica no seu seio familiar e social.
160- Desde logo, estava envolvido nos órgãos societários da Associação ....
161- Nas actividades da referida a Associação, o demandante EE organizava e participava em vários eventos e realizava caminhadas com frequência.
162- Também se dedicava, nos seus tempos livres, à sua horta, semeando, plantando e recolhendo os inerentes frutos, ocupação cuja prática passou a ser condicionada/dificultada, atenta à incapacidade do braço esquerdo.
163- Tem um mal-estar permanente e vive preocupado com a evolução do seu tratamento, sendo certo que sofre lesões que são irreversíveis, as quais continuam a exigir uma constante adaptação na realização de determinadas tarefas no seu quotidiano.
164- Como consequência directa e necessária da conduta do demandado, o demandante EE ficou com uma cicatriz no peito e com ferimentos graves no braço esquerdo, que ficou bastante desfigurado, com perda de massa muscular e uma cicatriz de 50 cm de comprimento.
165- Perdeu a mobilidade do braço esquerdo e ainda da mão.
166- Na consulta de 23.08.2024, por estabilização do quadro funcional teve alta da consulta de Medicina Física e Reabilitação.
167- Durante o internamento o demandante EE recebeu a administração, e ainda em período posterior, de diversa medicação.
168- Durante todo esse período sofreu dores, que persistiram mesmo após alta do serviço de urgência.
169- Para além das dores físicas, o demandante EE sentiu ainda grande frustração ao sentir-se limitado na realização das suas tarefas diárias, pois sentia fortes dores e tinha a mobilidade reduzida.
170- Devido à imobilização do seu braço esquerdo, carecia de ajuda da sua mulher para a realização de algumas tarefas, nomeadamente para se vestir, e ainda assim com dores.
171- O demandante EE não conseguia levantar objectos mais volumosos, devido à imobilização do braço esquerdo, dificuldade que ainda se mantém.
172- Por isso, vê-se obrigado a realizar um esforço acrescido com o seu braço direito.
173- Situação que o deixa bastante angustiado e frustrado, pois sempre foi pessoa autónoma e independente.
174- O demandante EE terá ainda de realizar tratamentos cujo valor não é possível determinar.
175- O demandante DD desconhecia, até àquele momento, o demandado.
176- O demandante DD preparava-se para iniciar a marcha quando foi surpreendido pelo som dos disparos, dirigidos ao veículo de EE e dos vidros a serem estilhaçados, o que o fez estremecer.
177- Confuso, sem saber o que se estava a passar, olhou para o lado.
178- Nesse momento, um disparo efectuado pelo demandado em direcção à viatura do demandante DD, atingiu o vidro traseiro da mesma.
179- O referido disparo foi dirigido ao encosto de cabeça do banco do condutor, do lado direito e veio atingir a face direita do demandante DD, na região ocular.
180- O demandante DD entrou em choque, pois apercebeu-se de imediato que estava gravemente ferido e a sangrar.
181- O demandante DD ficou temporariamente paralisado, sem se conseguir mexer, consciente que necessitava rapidamente de cuidados médicos.
182- Por força do ferimento que acabara de sofrer teve de ser assistido de imediato no local, ainda no interior da viatura, pois continuava sem se conseguir mexer.
183- Primeiro por auxílio de terceiro, por uma senhora que se aproximou e identificou como médica.
184- Por volta das 18:50 horas, chegaram ao local os primeiros meios de socorro, tendo o demandante DD sido de imediato assistido, ainda no interior da sua viatura.
185- Após ter sido retirado da viatura, o demandante DD foi transportado para os serviços de Urgência dos CHUC.
186- No Serviço de Urgência, o demandante DD foi avaliado pela Cirurgia Maxilo Facial com evidencia de traumatismo balístico do terço médio da face à direita com destruição óssea malar importante, perda de substância de tecidos moles e aparente rotura do globo ocular direito.
187- O demandante DD foi ainda avaliado pela Cirurgia Geral, Neurocirurgia e Oftalmologia.
188- Neste contexto de urgência o demandante DD foi submetido a cirurgia para evisceração ocular.
189- O demandante DD ficou internado entre o dia 01.05.2023 e 10.05.2023, data em que teve alta, com indicação para ser seguido nas especialidades de Oftalmologia (Oculoplástica) e Cirurgia Maxilofacial.
190 - O demandante DD sofreu as lesões físicas e traumatismos:
- fracturas orbitárias múltiplas das paredes da órbita direita com fragmentação do pavimento da mesma;
- hemorragias intra-orbitrárias e intra-cónicas a condicionar proptose do globo ocular direito;
- rotura do globo ocular direito;
- encarceramento do músculo reto medial associado a fractura de lâmina papirácea.
191- O demandante DD foi submetido a nova cirurgia, em 12 de Julho de 2023.
192- O demandante DD, ao longo dos meses seguintes, compareceu a dezenas de consultas para acompanhamento da evolução do seu estado clínico.
193- Por força das lesões sofridas, o demandante DD viu-se obrigado a adaptar-se à sua nova condição de visão, tanto mais que vive sozinho.
194- E, durante o período que seguiu o evento descrito, o demandante DD careceu de ajuda para realizar diversas tarefas do seu quotidiano.
195- Tendo contado, desde logo, com o apoio da sua filha, que se deslocava diariamente à sua residência para lhe ministrar tratamento, ajudando-o a limpar a ferida e a aplicar gotas e compressas para tapar a ferida e tomar os medicamentos a que diariamente estava obrigado.
196- Igualmente o auxiliava na confecção de comida, e ainda na realização de algumas tarefas domésticas que o demandante se viu, de repetente, impedido de realizar.
197- O demandante DD contou ainda com o apoio da sua amiga NN que, à semelhança da sua filha, também se deslocava à sua residência, com o mesmo intuito.
198- O que o fez sentir-se bastante frustrado, pois sentia que por força da sua dependência, causava transtorno às pessoas que o rodeavam.
199- Acresce que a lesão sofrida desfigurou completamente a face direita do demandante DD, que se vê agora obrigado a esconder o olho com óculos escuros e que, durante longas semanas, o impediu de sair de casa, deslocando-se tão apenas para o estritamente necessário.
200 - O demandante DD perspectiva colocar uma prótese ocular, encontrando-se em acompanhamento em consultas de maxilo-facial, aguardando reconstrução por CMF para depois reconstruir fundo de saco inferior.
201- Sabe que ainda será submetido a nova intervenção cirúrgica, o que o deixa bastante nervoso e apreensivo.
202- O demandante DD vive numa angústia constante, pois sofre com o facto de não saber quando e em que termos ficará o seu estado clínico consolidado.
203- O demandante DD, por força da conduta ilícita do demandado, perdeu o globo ocular direito, com consequente perda de visão da vista direita, tendo ficado com parte significativa da face direita completamente desfigurada.
204- A perda da visão direita, por perda globo ocular direito com ligeira ptose da pálpebra inferior e, da qual resulta para o demandante DD grave afectação do sentido da visão, configuram lesões com sequelas permanentes para o demandante.
205- A incapacidade fisiológica decorrente de tal perda ainda não se mostra determinável.
206- Tal dano apresenta repercussões directas nas actividades diárias do demandante DD, que exigem agora um maior esforço despendido na realização das mesmas.
207- Isto porque, por conta desse dano, o demandante DD perdeu parte significativa do seu campo visual.
208- Tal incapacidade traduz-se na dificuldade para definir profundidade (estereopsia) e na redução do campo periférico,
209- Tornando mais penosas tarefas que anteriormente eram simples, ficando limitadas/condicionadas as actividades do seu quotidiano, em particular aquelas que exigem visão periférica.
210- Por força do referido dano o demandante DD viu-se ainda obrigado a ser submetido a intervenções cirúrgicas, bem como a frequentar diversos tratamentos e a ser acompanhado regularmente nas especialidades médicas de Oftalmologia e Maxilo-facial.
211- Em 18 de Junho de 2024 encontrava-se em lista de espera pra cirurgia reconstrutiva para correcção do volume da órbita e da projecção malar, mantendo seguimento em consulta externa de Cirurgia Maxilofacial, não sendo possível prever em que data e em que condições ficará definida a sua situação clínica.
212- O demandante DD viu-se obrigou a alterar a sua rotina, que é agora dedicada ao tratamento, dentro do possível, da sua situação clínica.
213- Vive numa constante adaptação à sua nova condição, o que o transtorna profundamente.
214- O demandante DD sentiu e sente grande dificuldade na adaptação à sua visão monocular.
215- Com a agravante de ter passado a depender, sobretudo numa fase inicial, da ajuda de terceiros, designadamente, da sua filha, para realizar grande parte das suas tarefas pessoais e domésticas, que antes realizava sozinho com plena autonomia.
216- Deixou ainda de poder conduzir, carecendo mais uma vez da ajuda de terceiros para realizar as mais diversas deslocações, nomeadamente para consultas médicas.
217- O demandante DD sofreu muito, e ainda sofre, pelo facto de ter perdido um olho.
218- Vivendo confrontado com as consequências das lesões sofridas, nomeadamente, a perda de visão e inerentes limitações.
219- O demandante DD experienciou e continua a experienciar, grande frustração ao sentir-se limitado na realização das suas tarefas diárias e por carecer de ajuda para realizar as tarefas que sempre realizou sozinho e de forma autónoma.
220- O demandante DD encontra-se a ser seguido nas especialidades de oftalmológica oculoplástica, a realizar tratamento da estrutura à volta do olho, designadamente, reconstrução da pálpebra direita, para posteriormente efectuar prótese ocular.
221- Procedimento que ainda será submetido a testes e exames.
222- O demandante deverá ser submetido a novo exame médico-legal desconhecendo-se a data da alta das consultas de Oftalmologia e de Cirurgia Maxilofacial.
223- O demandante DD sente-se apreensivo com a sua situação de incapacidade e com as suas consequências.
224- Situação que consubstancia também um grande sofrimento e lhe provoca stress e ansiedade.
225- Nos últimos meses, o demandante DD foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, compareceu em dezenas de consultas e tratamentos, tendo ficado privado de todas as actividades que lhe davam prazer, com todas as despesas, transtornos e inconvenientes que tais procedimentos e deslocações obrigaram.
226- O demandante DD, com 63 anos, embora já reformado, era uma pessoa dinâmica e activa.
227- Realizava ainda alguns trabalhos na área da engenharia informática, ainda que sem carácter retributivo ou natureza patrimonial, sendo que actualmente não consegue passar o mesmo tempo em frente ao computador, pois fica facilmente cansado da vista.
228- O demandante DD tinha uma vida activa e praticava actividades desportivas, nomeadamente caminhadas, frequentemente.
229- O demandante DD era uma pessoa social, envolvido na Direcção Social da Associação ..., através da qual organizava e participava em diversas actividades e eventos onde exercia funções, actividades que abrangia uma parte significativa das suas actividades de lazer.
230- O demandante DD prestava ainda apoio familiar à sua filha e aos seus netos, os quais ficavam a seu cargo quando a filha lhe solicitava, indo buscá-los à escola e levando-os depois à casa de mãe, na sua viatura, ou simplesmente indo visitá-los sempre lhe aprouvesse.
231- O demandante DD fazia a sua gestão doméstica, deslocando-se a serviços, supermercados, enfim, a todos os lugares, pelos seus próprios meios, não dependo de terceiros para esse efeito.
232- O demandante DD realizava a suas tarefas domésticas, profissionais, pessoais e sociais com total independência e autonomia.
233- Actualmente, tais tarefas encontram-se dificultadas e/ou condicionadas em virtude do dano sofrido.
234- Tarefas anteriormente simples passaram a exigir atenção redobrada, esforço acrescido e um maior dispêndio de tempo.
235- O demandante DD não sente a mesma segurança a conduzir, apesar de actualmente já ir fazendo pequenos percursos, o que continua a fazer sentir limitado na sua autonomia e, consequentemente, frustrado.
236- Desde que sofreu o dano, o qual é irreversível, que o demandante DD continua a aprender a adaptar-se à sua nova condição.
237- Teve de adaptar toda a sua rotina, quer em algumas actividades de higiene (tendo inicialmente necessitado de ajuda para proceder à limpeza da ferida na região ocular), quer nas actividades caseiras (desde a manuseamento e confecção de alimentos à necessidade de se deslocar para realização de consultas, tratamentos, idas a farmácias, supermercados), quer ainda para realizar pequenos trabalhos, tarefas e demais actividades de lazer.
238- Tal adaptação consubstancia um longo processo, que provoca ainda grande dor e sofrimento ao demandante DD.
239- A desfiguração supra referida, com a qual o demandante DD tem de se confrontar diariamente, obriga à utilização de óculos escuros na presença de outras pessoas.
240- O que o deixa envergonhado, afectando a sua auto-estima e confiança.
241- Não obstante estar a ser seguido nas especialidades de oftalmologia oculoplástica e de maxilo-facial, com objectivo de colocar uma prótese ocular, o demandante encontra-se ainda na presente data a aguardar a realização de mais exames e consultas, bem como o agendamento de nova(s) cirurgia(s).
242- Sendo imprevisível o tempo de espera até que a sua situação esteja consolidada, ou qual a sua aparência “final”.
243- A perda do olho direito provocou e ainda provoca no demandante DD grande sofrimento, não só pelo dano corporal e estético que tal representa, como pela dor que sentiu ao ser “perfurado” no olho por um disparo.
244- E ainda pelas dores e sofrimento que vivenciou ao ser submetido a duas intervenções cirúrgicas de remoção do globo ocular (evisceração), bem como as vivenciadas no tempo em que ficou internado (01.05.2023-10.05.2023).
245- As quais se mantiveram nas semanas seguintes.
246- O demandante DD terá ainda de realizar tratamentos e cirurgias cujas quantias não é possível determinar.
Factos não provados
Nenhuns outros factos relevantes para a discussão da causa se provaram em audiência de julgamento, nomeadamente não ficou demonstrado que:
I- pretendeu tirar a vida à esposa, a EE e a DD por ter ficado desagradado com a referida reunião;
II- o arguido não atingiu BB por esta se ter desviado (de facto, o arguido não disparou na direcção dela);
III- BB só não foi atingida porque se baixou no momento do disparo;
IV- o arguido apontou a espingarda caçadeira em direcção a BB;
V- o arguido efectuou um disparo na direcção de BB;
VI- o arguido admitiu como possível tirar a vida a BB, nem que se tenha conformado com tal possibilidade;
VII- tenha havido um segundo disparo contra a viatura de DD.
O tribunal colectivo seguiu o ensinamento do Senhor Desembargador Belmiro Andrade no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.03.2014 [processo 811/12.4JACBR.C1, disponível em www.dgsi.pt (onde se encontram todos os acórdãos sem indicação de origem)]: A enumeração dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e da indemnização e não aos factos conclusivos, inócuos ou repetitivos, mesmo que descritos na acusação.
Por isso, as afirmações que revistam tal natureza não foram avaliadas para efeitos de definição da “factualidade” relevante supra analisada, nomeadamente quanto a expressões conclusivas/valorativas como por exemplo: “de modo dissimulado”, “grande hemorragia incontrolável”, “devidamente acondicionadas”, “motivo insignificante e com frieza de ânimo, de forma controlada e ponderada” ou “com a maior brevidade possível”.
Nos termos do artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos Tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.
O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97º, nº 4 e 374º, nº 2 exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção.
São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º do Código de Processo Penal).
O artigo 127º do Código de Processo Penal determina que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Este é o princípio fundamental sobre a regra da livre apreciação da prova.
No entanto, não é um princípio absoluto, já que a própria lei lhe estabelece excepções, designadamente as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (artigo 169º), à confissão integral e sem reservas no julgamento (artigo 344º) e à prova pericial (artigo 163º).
Tais excepções enquadram-se no princípio da prova legal ou tarifada, que se acha radicado na segurança e certeza das decisões, consagração da experiência comum e facilidade e celeridade das decisões.
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz lança-se à procura do “realmente acontecido” conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca derivados da(s) finalidade(s) do processo [vide Cristina Líbano Monteiro, “Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo”, Coimbra, 1997, p. 13].
A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito dos julgadores pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica [Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 12.ª ed., 2001, p. 339, com citações de Alberto dos Reis, Cavaleiro de Ferreira, Eduardo Correia e Marques Ferreira.].
Daqui resulta, como realça Marques Ferreira, um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo, de modo a permitir-se um efectivo controlo da sua motivação [Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 228].
Quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal.
Na verdade, a convicção do Tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos, perícias e outras provas constituídas, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos [para maiores desenvolvimentos sobre a comunicação interpessoal e linguagem não verbal, ver por todos: Ricci Bitti/Bruna Zani, “A comunicação como processo social”, editorial Estampa, Lisboa, 1997, Allan e Barbara Pease, “Linguagem Corporal”, Editora Pergaminho, Lisboa, 2017; James O. Pyle e Maryan Karinch “As perguntas certas”, Editora Pergaminho, Lisboa, 2015; ou Janine Driver, “Como observar as pessoas”, Editora Bizâncio, Lisboa, 2010].
Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram.
Efectivamente, segundo pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder [6 Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14; para o antropólogo Ray Birdwhistel as palavras correspondem a 35% da mensagem transmitida e o não verbal (tom de voz e linguagem corporal) será 65% da comunicação porque recebemos as mensagens através do nossos sentidos: na medida de 87% através dos olhos, 9% dos ouvidos e 4% dos outros sentidos: citado por Alexandre Ribeiro, “Os segredos que o nosso corpo revela”, Editora Manuscrito, Lisboa, 4ª edição, 2017, pág. 18].
A linguagem corporal engloba um acervo de informação não verbal, rica, imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Por isso, os juízes devem ter uma atitude crítica de “avaliação da credibilidade do depoimento” não sendo uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha disser, sem indicar razão de ciência do seu pretenso “saber” [acórdão de 14JAN1994, do 2º Juízo Criminal de Lx.ª, processo 363/93, 1ª Sec., in Sub Judice n.º 6-91].
A prova produzida na audiência de discussão e julgamento foi ponderada pelo tribunal colectivo e analisada segundo os parâmetros deste crivo de definição genérica.
A decisão do tribunal colectivo, tomada em consciência e após livre apreciação crítica das provas produzidas em audiência, fundou-se na análise crítica e conjugada das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas, dos relatórios periciais e demais documentos.
O arguido admite os factos referindo que as imagens do filme estão certas, mas “a memória que eu tenho não é essa”; vinha de um convívio (na ...) que abandonou por já não se sentir pois já tinha bebido demais (onde bebera cerveja, vinho, licor beirão), não estava em condições por estar alcoolizado, no caminho para casa viu que a empresa estava aberta e parou para ir ver o que era, não sabia que havia a reunião, subiu as escadas, foi ao pé deles mas não os viu, só tem imagem da CC, depois saiu e não sabe o que se passou, não se lembra de ter ido a casa nem de ter dado os tiros; não sabe explicar o porquê disto ter acontecido, diz que andava com excesso de trabalho, não dormia bem, sono descontrolado, falta de medicação e a bebida; não tinha qualquer problema com a mulher não encontra explicação para o que aconteceu, não se lembra de ter dito “agora é que vais ver”; não tem ideia de ter escrito a mensagem (mas reconhece que a letra é sua) nem de dar o tiro contra si (só tem ideia de ouvir a filha HH a gritar); não sabe explicar a existência dos zagalotes, nunca comprou esse tipo de munições, pode ter sido troca com outro colega, é caçador há 35 anos (tordos e “caça grossa: javalis e veados: usa carabinas, não caçadeira); tinhas as chaves do cofre das armas escondidas a CC também tinha acesso ao cofre (guardava lá dinheiro); nunca viu as outras pessoas das caminhadas, apenas conhece EE há 35-40 anos (era cliente e amigo), não tinha nada contra o facto de a CC estar na associação, até a incentivou, também não desconfiava que tivesse qualquer caso extra-conjugal; não se recorda de ter regressado a casa, para poder dar cinco tiros teve que ter recarregado a arma (a arma leva no máximo três munições e encrava muito); a empresa funcionava bem, tudo organizado e sem dívidas; não sabe porque trocou de carro para voltar à empresa.
Acerca da sua situação pessoal referiu: eram sete irmãos, sendo ele o do meio; andou na escola até ao 1º ciclo, começou a trabalhar aos 9 anos de idade, ajudava o pai (construtor) nas obras, a mãe tratava dos filhos e fazia “agricultura no campo”; aos 16 anos foi trabalhar como ajudante de mecânico, onde andou dois anos, aos 18 anos foi trabalhar como ajudante de pedreiro, começou a namorar com CC, aos 19 anos começou a trabalhar com o pai dela, como serralheiro; tinha 21 anos quando casou, mantendo-se o casamento até Julho de 2023; o sogro sofreu de uma doença oncológica durante 9 anos, acabando por falecer em 1999, altura em que, juntamente com a esposa CC, tomou conta da empresa; há 7/8 anos a mãe dela caiu de uma varanda e faleceu; têm dois filhos: um de 31 anos é militar da GNR e ela (35 anos) é formada em direito; no estabelecimento prisional até Setembro de 2023 não fez nada e desde então trabalha como serralheiro; desde que está preso, quase todos os dias, recebe visitas de amigos e do filho (a filha HH não fala consigo); na empresa tinha sete empregados mais o arguido, a esposa CC e a filha HH, esta saiu de uma empresa de recuperação de créditos, em Lisboa, e começou a trabalhar na empresa dos pais em Abril de 2023; quando esteve internado, do serviço de cirurgia passou para o de psiquiatria, onde começou a ser medicado e quando foi detido já estava “mais preparado”, continua com medicação do hospital e com acompanhamento psiquiátrico no estabelecimento prisional, refere que a psicóloga do estabelecimento prisional lhe diz que se não tivesse acontecido “aquilo” já não estava vivo; tem como projectos trabalhar para pagar as indemnizações, não quer mais caça e deseja vender as armas; acha que a cadeia não lhe está a fazer bem.
Na sessão da audiência de discussão e julgamento de 16.04.2024 (fls 970), o arguido juntou um documento do estabelecimento prisional de Aveiro do qual consta que “desempenha funções laborais, como 1º ajudante no sector da manutenção das instalações do EP, desde 04.09.2023, com excelente desempenho, mantendo comportamento adequado e respeitador das normas e deveres institucionais, sem registo de infracções disciplinares”.
A atitude do arguido é algo estratégica, apresentando algumas incongruências; na verdade, aceita o óbvio (constante dos registos visuais), mas deixa factos cobertos pela sua declaração de esquecimento. A sua versão do relacionamento com a esposa deixa lacunas e incongruências (que poderiam ajudar a compreender o motivo e sentido da sua actuação) e que o tribunal colectivo não conseguiu apurar, nomeadamente quanto ao desentendimento (de inícios de Março) que o mesmo relatou nos serviços de psiquiatria ou ao sentido do escrito que foi encontrado e que o mesmo pretendia deixar (saliente-se a palavra “vigarista”), ou, ainda a paragem (como que a escutar, desconfiado) na subida das escadas das instalações da empresa quando se dirigia para onde estavam as pessoas, tal como a frase que proferiu quando se dirigia para esposa, durante os disparos (“agora é que vais ver”) ou, ainda, apenas ter disparado contra os homens e a esposa e nunca se ter dirigido a BB; igualmente pouco clara e pouco convincente foi o modo como diz que não sabia da detenção dos cinco cartuchos zagalote de 9 bagos.
O tribunal colectivo indagou acerca da compra e venda da fracção autónoma em ... (fls 1022/8) e do contrato-promessa de compra e venda e caderneta predial urbana e registo predial (fls 1043/8), mas nada se revelou quanto a eventual ligação entre esses actos e os factos praticados pelo arguido, nem que o papel usado para a mensagem escrita pelo arguido tivesse qualquer ligação com a sua actuação.
As referidas dúvidas podem enquadrar-se na observação obtida no exame psicológico como “tendência a evidenciar um estado de alerta e de medo e desconfiança perante os outros” ou a “marcada desconfiança, reserva, rigidez de pensamento e uma tendência no examinado para manifestar mais problemas emocionais e mnésicos dos que os que realmente experiencia, apontando para um exagero de queixas e de sintomas de mal estar psicológico/transtornos afetivos e mnésicos podendo, por isso, não ser representativos do real funcionamento do examinado”.
EE pertencia aos órgãos sociais do “grupo das caminhadas”, foi a primeira vez que se reuniram ali (das outras vezes tinha sido em ...), já tinham acabado a reunião quando o arguido apareceu, estavam a lanchar, a CC apresentou-o e ele nem a mão estendeu, não se lembra o que ele disse, falou pouco tempo, não houve qualquer comentário sobre a presença do arguido; quando ia embora, já tinha entrado no carro, ia para entrar na estrada quando o arguido apareceu, deu-lhe passagem e depois arrancou, após a ouvir os barulhos e o arguido disparou da sua direita, foi atingido no braço esquerdo e ao de leve no peito, partiram-se vidros do lado direito e esquerdo, fugiu para a residência próxima de um colega, quando saiu veio ter com as outras pessoas e já nem viu o arguido; não explicação para isto, o arguido nunca esteve presente em reuniões das “caminhadas”; relatou os incómodos e sofrimentos decorrentes da actuação do arguido tal como consta do pedido de indemnização civil.
DD diz que a reunião já tinha acabado, estavam a comer, quando o arguido chegou, não passou da porta, o EE ofereceu-lhe cerveja e ele disse que não queria e foi-se embora; depois, a testemunha entrou no Volvo, ouviu um primeiro disparo de um tiro e olhou para o lado, viu uma pessoa com uma “t-shirt” da mesma cor da do arguido, esse disparo não atingiu o seu veículo e ouviu um segundo disparo, nem se apercebeu de onde veio a bala que o atingiu, veio de trás, nunca perdeu os sentidos; quando sentiu o impacto, a BB estava sentada ao seu lado, estava dobrada, baixada, não saiu do banco, foi atingido pelo terceiro disparo, ainda estava com a cara ligeiramente virada para a direita, apenas se lembra de ter dito à BB para pedir socorro; puseram-lhe panos na cara porque sangrava muito, houve uma senhora que o socorreu dizendo que era médica dos intensivos; não tem explicação para o que se passou.
OO, militar da GNR, foi ao local por terem sido chamados para conflito com arma de fogo, quando ia a caminho foi informado para se deslocar a casa do arguido; quando chegou, o arguido estava já dentro da ambulância, ficou lá e isolou o local aguardando pela chegada da Polícia Judiciária, acompanhou a Polícia Judiciária às instalações da empresa.
BB diz que a reunião era para passar trabalho de secretariado da associação, nunca tinha falado com o arguido; naquele dia, o arguido não passou da porta, estavam a comer, ofereceram-lhe e ele disse que não queria, achou-o pouco simpático, esteve ali um ou dois minutos, não fizeram qualquer comentário acerca do aparecimento do arguido na sala; a testemunha tinha vindo com DD, estava sentada no “lugar do pendura”, estava baixada quando ouviu barulho e pensou que fosse o portão avariado, com o segundo som pensou que o portão estava avariado, esteve sempre dobrada, não sabia o que seria, depois ouviu estrondo mais forte, cobriu-se com as mãos e viu os vidros do carro estilhaçados, pensou que o carro tivesse explodido; o terceiro som foi logo a seguir ao segundo; quando tirou as mãos da cabeça olhou para DD e viu que ele estava ferido, pensou em ir pedir ajuda ao EE; viu o carro deste parado na estrada e quando chegou ele já não estava lá, não viu o arguido, como não encontrou o EE pensou em ir pedir ajuda à CC, foi então que se cruzou com o arguido, ele olhou-a e seguiu em frente na direcção da empresa e da CC, disse “agora é que vais ver, agora é que te apanhei”, levava a arma levantada e não a apontou à testemunha; não se recorda de mais nada, a única preocupação foi ligar ao INEM; depois, só o viu passar com a carrinha pela estrada, não se lembra de ele passar por si; o “senhor EE” apareceu depois, quando a testemunha chegou junto da CC ela já tinha recuperado os sentidos embora “não falasse com sentido”; esclarece que só percebeu que fossem tiros quando viu o arguido com a arma a dirigir-se para a CC; reafirma que no “terceiro som” ainda estava baixada, baixou-se para colocar a mala no chão e ainda estava em baixo quando surgiu o terceiro som.
PP mora “mesmo em frente”, mas não conhecia o arguido; não presenciou, quando chegou ao local já tudo tinha acontecido, ficou a dar apoio até à chegada do INEM, já não viu o arguido nem o carro dele.
QQ chegou ao local do almoço (em ..., ...) pelas 17:00 horas, já tinham almoçado, estavam “bem bebidos”, conversou com o arguido e viu que ele estava “visivelmente embriagado”, quando este saiu, veio atrás dele porque ele “não estava em condições”, veio atrás dele, até ele sair do IC2 junto à “B...”, ele vinha com “condução agressiva”: rápida e com ultrapassagens; demorou cerca de 15-20 minutos entre ... e a saída do IC2; quando ele saiu do IC2 e ele disse-lhe que já estava a chegar a casa, depois estava a jantar quando lhe ligaram a dizer o que se tinha passado; esclarece o arguido estava eufórico, agitado, a voz não estaria normal, “nitidamente não estava em condições de pegar no carro”; considera-o uma pessoa extremamente responsável e cuidadoso com as armas, tanto na caça como no tiro desportivo (“tiro aos pratos”); excelente pessoa, extremamente trabalhador, não se queixava.
RR é amigo do arguido, da caça, esteve no convívio, quando saiu o arguido ainda lá ficou; diz que houve “abuso de bebida e comida”, o arguido bebeu demais em relação ao que era habitual, beberam cerveja, vinho e Licor Beirão, depois do almoço continuaram a beber; quando veio embora o arguido estava “bem bebido”.
JJ, filho do demandante EE, não assistiu a nada quando chegou já estavam a ser assistidos, estava em casa a 500 metros, o pai estava consciente, foi na ambulância para o hospital; quando saiu do hospital, o pai não conseguia mexer o braço; vive em casa com o pai e mãe, depois disto, para se vestir, o pai precisava de ajuda da mãe, tinha falta de sensibilidade na mão e dores, tomou medicação para a dor; antes conduzia e depois, durante um tempo, era a testemunha que o conduzia; esclarece que a empresa esta no caminho entre a casa do arguido e o IC2; o pai ainda participa na associação das caminhadas; o braço ficou com limitações; esclarece que o pai é dextro.
KK, esposa do demandante EE, diz que o marido era chefe dos serviços prisionais, antes ele cultivava um terreno onde colhiam o que consumiam, depois perdeu força no braço e a testemunha tem que o ajudar; quando regressava das intervenções cirúrgicas tinha dores, mal estar e dormia mal; ainda dorme mal, tem pesadelos; antes conduzia, depois esteve sem conduzir, mas agora já conduz, um carro com “mudanças normais”; passa todos dias no local para ir para casa, fica muito incomodado.
SS, filha do demandante DD, não vive em casa do pai há mais de 20 anos; o pai vive sozinho, dá apoio ao pai; já estava reformado, por invalidez; tinha a rotina de ir ao ginásio, jantares, associação de caminhadas; depois de reformado não mais trabalhou, cuidava dos terrenos/vinhas em ... para onde se deslocava no seu automóvel; depois “disto”: não pôde ir ao ginásio, só saía para ir fazer o penso ao hospital, teve que lhe dar mais apoio, tratar do olho logo após sair do hospital (eram 3 vezes ao dia durante um mês, depois duas vezes de pois uma e após nova operação duas vezes por dia), deixou de conduzir, de ajudar os netos, manifestou sempre alguma dor, em termos psicológicos não saía de casa, teve constrangimentos na socialização, já fazia ginásio da mesma forma; esteve indicado pelo hospital para consultas de psicologia, mas nunca foi chamado; faz consultas de psicologia e tem seguimento de psiquiatria particular.
TT conhece o demandante DD há mais de 30 anos; diz que ele era um homem muito social, convivia com muita gente, tinha almoços com amigos, idas ao ginásio, grupo de caminheiros; vivia sozinho, a testemunha deu-lhe apoio quando a filha não podia, ia pôr gotas no olho, compressas e ia com ele ao supermercado, ele deixou de poder conduzir, tinha dificuldades em sair de casa, de se mostrar aos outros.
UU, pai da demandante BB, diz que a filha vive sozinha, ma todas as semanas vem dormir a casa dos pais; é dinâmica, activa, licenciada em contabilidade, contabilista numa empresa; depois disto ficou perturbada e psicologicamente abatida, deixou de ser activa.
VV, amido “de longa data” do ar, considera-o pessoa séria, honesta, que honra compromissos, “amigo do amigo”, nunca ouviu falar mal dele, tinha um “relacionamento normal” com a CC; almoçavam muitas vezes juntos (também é caçador), nos convívios nunca o viu abusar do álcool.
WW, conhece o arguido desde pequeno, considera-o “bom senhor”, respeitado pela freguesia toda, sempre foi um bom rapaz, trabalhador, bom trato com a CC, bom pai; quando o sogro faleceu ele e a CC ficaram a trabalhar e a empresa, com a ajuda ele, subiu.
XX, conhece o arguido há 14/15 anos, são vizinhos, caçaram juntos em várias ocasiões; é um caçador responsável, principalmente com a segurança das armas, privavam em casa de um e de outro, nos jantares pareceu-lhe uma relação saudável, sem conflitos com a esposa; considera o um bom amigo, fiável, bom profissional e pronto a ajudar os outros; nada fazia prever isto, foi um “choque tremendo”.
As testemunhas mereceram credibilidade pelos seus depoimentos isentos, serenos e coerentes.
Não se justifica uma análise crítica de cada um dos depoimentos tendo em conta que, nos pontos comuns, são concordantes e não foram suscitadas dúvidas nem contradições entre as testemunhas.
Foi igualmente relevante a análise dos seguintes documentos:
- comunicação da GNR ... à Polícia Judiciária acerca da ocorrência, constante de fls 38; irrelevante como meio de prova;
- documento correspondente a um manuscrito encontrado em casa do arguido, de fls 68 (e não fls 66, como consta da acusação);
- documento respeitante à “... caminheiro”, de fls 74 a 76;
- termos de consentimento - declaração de dispensa de sigilo de telecomunicações, assinados por CC, DD e EE, de fls 77 a 79;
- elementos clínicos de fls 90/1 (igual à “informação clínica” de fls 504/5): episódio de urgência nº ...73, de 01.05.2023, respeitante a AA, com entrada no CHUC pelas 20:12 horas
- elementos clínicos de fls 92/3 (igual à “informação clínica” de fls 501/2): episódio de urgência nº ...47, de 01.05.2023, respeitante a CC, com entrada no CHUC pelas 19:35 horas;
- elementos clínicos de fls 94/5 (igual à “informação clínica” de fls 494/6): episódio de urgência nº ...52, de 01.05.2023, respeitante a EE, com entrada no CHUC pelas 19:45 horas;
- elementos clínicos de fls 96/7 (igual à “informação clínica” de fls 498/9): episódio de urgência nº ...55, de 01.05.2023, respeitante a DD, com entrada no CHUC pelas 19:47 horas;
- elementos clínicos de fls 208/214: episódio de urgência nº ...47, de 01.05.2023, nota de alta médica de 05.05.2023 e relato cirúrgico, respeitante a CC;
- informação do serviço de Neurocirurgia do CHUC acerca da evolução de CC e da respectiva alta clínica, constantes de fls 992/4 e 1060/1;
- informação clínica prestada pelos serviços de Cirurgia Maxilo-Facial e Oftalmologia do CHUC, datada de 07.12.2023, respeitante a DD, de fls 625/8; onde consta consulta de óculo-plástica agendada para 19.12.2023;
- informações dos serviços de Cirurgia Maxilo-Facial e Oftalmologia do CHUC acerca da evolução de DD após a informação de 07.12.2023, constantes de fls 1008/1012 e 1051/2 (Oftalmologia) e fls 1036/7 e 1058/9 (Cirurgia Maxilo-Facial);
- informação clínica prestada pelo Serviço de Ortopedia do CHUC, datada de 07.12.2023, respeitante a EE, de fls 629/635; onde consta que a próxima consulta para 06.05.2024;
- informações dos Serviços de Psiquiatria, Ortopedia e Medicina Física e Reabilitação do CHUC acerca da evolução de EE após a informação de 07.12.2023, constantes de fls 1004/7 (Ortopedia), fls 1014/1015 (Psiquiatria) e fls 1152/3 (Medicina Física e Reabilitação);
- informação clínica prestada pelos serviços de Neurocirurgia e Ortopedia do CHUC, datada de 07.12.2023, respeitante a CC, de fls 637/651;
- informação do Serviço de Psiquiatria do CHUC (“nota de alta”) relativamente ao arguido AA, quanto à evolução/avaliação psiquiátrica realizada ao mesmo durante o internamento entre 02.05.2023 e 15.06.2023, onde é descrita a história clínica, história pessoal, evolução do internamento, diagnóstico de saída, proposta de monitorização e tratamento, constante de fls 996/1000;
- informação do Departamento de Armas e Explosivos da PSP, de fls 99; segundo o qual AA tem Licença de Uso e Porte de Armas para as armas de classe C e D, válida até 06.06.2027 em tem manifestadas/registadas em seu nome as 20 armas que identifica (16 espingardas de classe C e 4 carabinas de classe C);
- auto de apreensão de fls 101 (uma espingarda caçadeira, dois cartuchos de calibre 12 carregadas cada um com projecteis/bala, dois projécteis/bala deformados, 6 cartuchos deflagrados, calibre 12, vários fragmentos de bucha de plástico um fragmento de plástico pertencente a base da coronha de espingarda de caça, um polo azul escuro com orifício na região abdominal direita-face anterior);
- auto de apreensão de fls 102 (imagens do sistema de videovigilância da empresa “A..., Ldª”, duas pastas contendo um total de 16 ficheiros de vídeo do dia 01.05.2023 entre as 13:29:30 –a que corresponde a hora real de 14:29:30 e as 21:24:12 – a que corresponde a hora real de 22:24:12);
- auto de apreensão de fls 103 a 108 (armas, munições, licença para uso e porte de arma e cinco livretes de manifesto de armas);
- autos de exame directo das armas e munições apreendidas e compromisso de perito avaliador, de fls 109 a 114;
- fichas de registo automóvel de fls 115 a 117, respeitante aos veículos Hyundai ..-VO-.., volvo ..-ZP-.. e Smart ..-GU-..;
- termos de entrega de fls 118 a 122; relativos às viaturas Smart, Hyundai e Volvo bem como aos espólios recolhidos no CHUC;
- auto de visionamento de imagens de fls 123 a 161 e imagens gravadas em PEN, juntas à contracapa do Volume I, respeitantes às imagens captadas pelas câmaras de videovigilância, salientando-se que “a hora que surge no canto superior esquerdo dos fotogramas se encontra uma hora adiantada e que em virtude de tal desfasamento horário as legendas dos fotogramas fazem referência à hora real); estas imagens documentam a chegada dos ofendidos às instalações, movimentações e actuação e disparos efectuados pelo arguido;
- certidão permanente de fls 175 a 180, relativa à sociedade “A..., Ldª”, onde constam o arguido e a esposa CC como sócios e gerentes;
- “recortes” de imprensa (retirados dos sites dos jornais “Diário de Coimbra” e “Correio da Manhã”) de fls 181 a 182; irrelevante como meio de prova porquanto corresponde apenas a notícias que não revelam a fonte nem resultam de conhecimento directo;
- auto de notícia elaborado pelo GNR, datado de 01.05.2023, dando conhecimento da deslocação ao local do subscritor, de fls 187 a 189;
- certificado do registo criminal do arguido (“nada consta acerca da pessoa acima identificada”) constante de fls 167; não se compreende a razão de o CRC ser indicado como meio de prova na acusação, da qual não consta qualquer facto a esse respeito, sendo que para a audiência de discussão e julgamento esse documento já não teria valor probatório;
- termo de entrega, a 04.05.3023, a GG, de um aparelho de DVR e de um porta-chaves em pele, com duas chaves acopladas e um comando, de fls 524; entrega completamente irrelevante para efeitos probatórios, em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo em conta o objecto do processo, não se vislumbrando para que factos possa interessar;
- cota de fls 578, datada de 30.11.2023, relatando que o senhor inspector YY efectuou contacto telefónico com EE e DD no sentido de apurar a respectiva situação clínica; irrelevante em termos probatórios (sem prejuízo do que poderia ter orientado em termos de investigação);
- assento de nascimento de CC, de fls 617/8, do qual o averbamento da dissolução do casamento por divórcio decretado por sentença de 12 de Julho de 2023 transitada em 01 de Outubro de 2023.
A acusação indica como meio de prova documental o “relatório final de fls. 593 a 606”; tal corresponde ao relatório final de investigação elaborado pelo senhor inspector da Polícia Judiciária (que “não vislumbrando a realização de outras diligências suscetíveis de produzir quaisquer outros resultados úteis”) dirigido ao senhor inspector “Coordenador de Investigação Criminal”, o qual considerando que “encontram-se realizadas todas as diligências para o cabal esclarecimento dos factos” remete os autos juntamente com o apreendido ao DIAP de Coimbra, “com proposta de acusação”; ora tal “relatório final”, salvo o devido respeito por diferente entendimento, não pode valer como meio de prova, pela sua própria natureza, circunstâncias e finalidade da respectiva elaboração.
Os pagamentos efectuados relativamente aos danos patrimoniais peticionados, resultam do teor dos documentos de fls 917/9 (comprovativo pagamento - ZZ: 4.217,18 euros), 920/922 (comprovativo pagamento – EE 1.185,02 euros) e 897/8 (“Unidade de Saúde Local de Coimbra, E.P.E.” - 14.140,03 euros).
Foi igualmente relevante a prova pericial analisada:
- relatório de inspecção judiciária de fl.s 47 a 67; sendo irrelevantes, em termos probatórios, as opiniões dos investigadores (e as descrições do que lhes foi dito em “contacto informal”), sendo atendidas apenas as fotografias colhidas no local e os elementos objectivos;
- auto de exame directo às armas e munições apreendidas, constante de fls 219 a 227; saliente-se, no ponto 27.6 cinco cartuchos zagalote de 9 bagos da marca “RIO” em caixa própria (e a referência como pertencente à classe A);
- relatório de exame pericial do Laboratório de Polícia Científica da Directoria do Centro da Polícia Judiciária, respeitante às instalações da empresa “A..., Ldª”, de fls 235 a 294; relevante a descrição do local e dos veículos, bem como dos vestígios, recolha e localização dos mesmos;
- relatório de exame pericial do Laboratório de Polícia Científica da Directoria do Centro da Polícia Judiciária, respeitante à residência do arguido, na Rua ..., ..., de fls 296 a 321; relevante a descrição do local e dos veículos, da arma utilizada, bem como dos vestígios, recolha e localização dos mesmos;
- relatório de exame pericial (nº ...67 - CBA) do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, Área de Criminalística, de fls 580 a 592 (repetido a fls 701/726), respeitante a arma de fogo (espingarda), componente de arma de fogo (chapa de coice), dois cartuchos carregados, 6 cartuchos deflagrados, buchas, discos e fragmentos de plástico; com testes de funcionamento de arma de fogo estado de conservação/limpeza/lubrificação: mau estado e apresenta vestígios de eventual origem hemática na sua carcaça, coronha, fuste e cano), teste de utilização de munições e/ou cartuchos, exame microscópico, comparações microscópicas (identificação armas de fogo);
- auto de exame directo a um polo azul escuro de marca ...”, tamanho ... com um orifício na região abdominal direita (face anterior), conspurcado com sangue, de fls 331 a 332;
- relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, datado de 14.06.2023, do exame efectuado a 19.05.2023, realizado pelo Serviço de Clínica e Patologia Forenses, da Delegação do Centro do INMLCF, respeitante a CC, de fls 385 a 388 (referência 8146387); onde se refere que deverá ser submetida a novo exame após a data da alta da Consulta de Neurocirurgia e Ortopedia; apesar de a situação não estar estabilizada, é possível concluir que do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida da examinada;
- relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, datado de 28.02.2024, do exame efectuado a 27.02.2024, realizado pelo Serviço de Clínica e Patologia Forenses, da Delegação do Centro do INMLCF, respeitante a CC, de fls 946/7 (referência 8737302); apresenta as seguintes sequelas: crânio: cicatriz curvilínea de concavidade anterior, na região parieto-occipital esquerda, com áreas rosadas e outras nacaradas, oculta por cabelo, medindo depois de rectificada 12,5cm de comprimento e membro superior esquerdo: cicatriz cirúrgica, linear, nacarada, disposta longitudinalmente no 1/3 distal do bordo cubital do antebraço medindo 9cm, sem limitação das mobilidades articulares do cotovelo e punho que se revelam indolores; no final, conclui que “Para uma avaliação mais completa das consequências médico-legais do evento: Dado que a situação ainda não se encontra estabilizada, deverá a examinanda ser submetida a novo exame após a data da alta da consulta de Neurocirurgia do CHUC”;
- relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, datado de 20.12.2023, do exame efectuado a 20.12.2023, realizado pelo Serviço de Clínica e Patologia Forenses, da Delegação do Centro do INMLCF, respeitante a DD, de fls 732/4; onde se refere que deverá ser submetido a novo exame após a data da alta das consultas de Oftalmologia e Cirurgia Maxilofacial; apesar de a situação não estar estabilizada, é possível concluir que do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do examinado; sendo que “do evento, resultaram para já, para o examinado consequências permanente (ausência do globo ocular direito, com afundamento da pálpebra superior; presença de secreções no canto interno da cavidade ocular; ectropion exuberante; afundamento da região malar direita; discreto desvio da pirâmide nasal, para a esquerda; sem ressalto nas articulações temporomandibulares; sem limitação da abertura bucal; assimetria do hemilábio superior direito ao sorriso), as quais, sob o ponto de vista médico-legal, se traduzem em privação de importante órgão e desfiguração grave actualmente), assim como afectação grave da possibilidade de utilizar o corpo e os sentidos;
- relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, datado de 05.01.2024, do exame efectuado a 18.12.2023, realizado pelo Serviço de Clínica e Patologia Forenses, da Delegação do Centro do INMLCF, respeitante a EE, de fls 856/7; onde se refere que deverá ser submetido a nova avaliação a ser agendada para data posterior à alta das consultas de Ortopedia, Psiquiatria e tratamentos de fisioterapia no CHUC; atendendo à informação clínica enviada do CHUC aquando da sua entrada no serviço de urgência, do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do examinado;
- relatório da perícia psiquiátrica forense (“exame médico psiquiátrico singular em Direito Penal” e perícia complementar em psicologia forense de fls 1133/1137), constante de fls 1127 a 1132 o relatório preliminar de fls 1103/7 não tem autonomia e encontra-se integrado e reproduzido no relatório final], de cuja “discussão e conclusões” se salienta: “Tendo em conta, não se ter apurado um padrão de consumo continuado abusivo de álcool ou de alterações do comportamento de índole semelhante associadas e manifestas nos actos praticados (pela informação disponibilizada nos elementos dos Autos, e sobretudo assente nas declarações e auto-descrição do examinado), e o valor da alcoolémia, aquando da avaliação no Serviço de Urgência do CHUC, pode afirmar-se que a prática dos actos ilícitos para os quais se encontra indiciado, ocorreu em contexto de intoxicação etílica aguda, consignando o diagnóstico de Uso nocivo do álcool, episódio único (código 6C40.0 da CID11). Trata-se de uma condição transitória que se desenvolve durante ou logo após o consumo de álcool, caracterizada por perturbação da consciência, da cognição, da percepção, do comportamento, com diminuição do controlo do impulso e da coordenação, podendo até chegar ao coma. (…)
A anamnese e observação clínica revelam-se compatíveis com o quadro clínico acima descrito, não se apurando sintomatologia dita psicótica (com interferência na avaliação da realidade) ou uma perturbação de personalidade grave. Face à Avaliação Psicológica realizada, a personalidade prévia configura-se, porém, como insuficientemente estruturada e algo imatura, com tendência a evidenciar um estado de alerta e de medo e desconfiança perante os outros. Procura maximizar a atenção e os favores que recebe, manipulando os factos de uma forma superficial e entusiasta. Apurou-se ainda, a presença de irritabilidade fácil, marcada desconfiança, reserva, rigidez de pensamento e uma tendência no examinado para manifestar mais problemas emocionais e mnésicos dos que os que realmente experiencia, apontando para um exagero de queixas e de sintomas de mal estar psicológico/transtornos afetivos e mnésicos podendo, por isso, não ser representativos do real funcionamento do examinado. (…)
Ainda assim não pode deixar de ser tido em conta que o estado de intoxicação alcoólica foi facilitador da prática dos actos para os quais está indiciado, condicionando o exercício da sua capacidade de autodeterminação (sensivelmente diminuída) em relação aos actos ilícitos, apesar da crítica para avaliar e compreender a ilicitude à data da prática dos mesmos, o que possibilita afirmar a exclusão parcial da sua imputabilidade (imputabilidade diminuída conforme consignada no nº2 do art.20º do Código penal).
Ou seja, à data da prática dos factos referidos nos Autos, embora o examinando tivesse consciência da ilicitude do seu comportamento criminal e processamento cognitivo minimamente conservado (tendo em conta a sucessão temporal dos acontecimentos), a sua capacidade para se abster de o fazer, a sua vontade, encontrava-se diminuída em razão do seu estado de embriaguez.
Como já referido, à data da realização desta avaliação pericial, o examinando possui a capacidade de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação. Não sendo, todavia, cientificamente possível predizer com rigor as condutas ou actos futuros do mesmo, embora a suceder um estado de embriaguez semelhante, poderá, com uma alta probabilidade, condicionar alterações psíquicas semelhantes às descritas e com a directa repercussão ao nível do seu comportamento, com elevado risco para a sua integridade física e/ou de terceiros.”
A conclusão apresentada nos referidos relatórios periciais (fls 387, 733 e 856) de que “do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do examinado” não contende com a intenção de matar ou com a idoneidade da actuação do arguido para provocar a morte.
Pois, como salienta o Tribunal da Relação de Lisboa [9 Acórdão de 21.09.2021 (processo 1031/20.0PBOER-A.L1-5)], “A intenção de matar não resulta necessariamente do facto de a vítima ter, ou não, concretamente corrido perigo de vida. Este desiderato extrai-se das lesões provocadas, a localização das mesmas, o número de lesões, o instrumento utilizado e bem assim todo o circunstancialismo onde se insere/desenrolou a agressão, conjugados com as regras de experiência e/ou as leis científicas.”.
O dolo, dada a sua natureza subjectiva, é insusceptível de apreensão directa, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da causalidade ou das regras gerais da experiência [cfr., entre outros, acórdãos: TRE de 26.02.2013, pº n.º 9/06.0TAAVS.E1, e de 6.09.2011, pº n.º 241/07.0PCSTB.E1, TRC de 13.12.2011, pº n.º 41/10.0JACBR.C1, e de 9.12.2009, pº n.º 1873/09.7PTAVR.C1].
Ora, toda a actuação do arguido e demais circunstâncias são suficientes para concluir pelo preenchimento dos elementos subjectivos do crime de homicídio demonstrando que o arguido representou e actuou com intenção de conseguir a morte das pessoas contra quem disparou, devendo ter-se em conta que a sua vontade se encontrava diminuída em razão do seu estado de embriaguez, como resulta do relatório da perícia psiquiátrica forense (fls 1127/132) supra referido.
A convicção do tribunal acerca do arrependimento do arguido resultou da sua atitude em audiência de discussão e julgamento ao aparentar vontade de colaborar, sem procurou desviar o julgamento para uma definição diversa da realidade, sendo relevante o seu esforço por ressarcir os danos causados; demonstrando assim que interiorizou a gravidade dos seus comportamentos, embora com uma memória com “lapsos estratégicos”.
No essencial, em termos de análise crítica da prova, não se justificam maiores desenvolvidos, pois as questões que poderiam considerar-se controversas já se mostram analisadas, seja quanto aos depoimentos seja quanto aos documentos seja acerca dos relatórios periciais.
A ausência de antecedente criminais do arguido resulta da análise do certificado de registo criminal de fls 1143.
A situação pessoal do arguido foi apurada a partir das suas declarações em audiência de discussão e julgamento [ Não foi elaborado relatório social porquanto o arguido não se disponibilizou para prestar quaisquer declarações aos serviços da DGRSP, como o mesmo esclarece na contestação (fls 901 verso)] e dos depoimentos das testemunhas de defesa, bem como do que consta dos relatórios e episódios hospitalares quanto ao seu histórico (por exemplo fls 998).
Também foi analisado o documento junto na sessão de 25.11.2024 como “informação clínica” do estabelecimento prisional (fls 1155/6) e a “declaração” do estabelecimento prisional de Aveiro, já referida supra (de fls 970).
Os factos respeitantes aos pedidos de indemnização apresentados resultaram, como já referido, para além da referida prova testemunhal, do teor dos documentos respeitantes às diversas intervenções e episódios hospitalares e da actual situação dos demandantes.
No que respeita aos factos não provados, nada permite concluir que o arguido pretendesse atingir BB.
Com efeito, tendo apontado apenas um tiro contra o veículo Volvo, o arguido somente disparou na direcção do condutor, sendo que BB estava no lugar ao lado; sendo impossível alvejar duas pessoas, naquelas circunstâncias somente com um tiro 12 , se o arguido a pretendesse alcançar teria assestado um segundo tiro; além disso, de imediato, quando passou junto à mesma nada fez que manifestasse qualquer animosidade contra ela.
Perante isto, é manifesto que o arguido nunca poderia ter pretendido atingir e, muito menos, tirar a vida a BB.
III - Apreciação do recurso
III.1 – Da indevida valoração do documento de fls. 996 a 1000, por conter declarações de quem se recusou validamente a depor e por não poder ser junto sem o consentimento do arguido ou levantamento do sigilo.
Vendo o acórdão recorrido verificamos que o documento de fl.s 996 a 1000 foi um dos documentos tidos em conta para a fundamentação da decisão.
Analisando a ata de audiência de julgamento do dia 07.05.2024, data que havia sido anteriormente designada para a realização (e ouvida respetiva gravação) verifica-se que foi exercido o contraditório relativamente à pretensão do tribunal de ser solicitada informação ao Serviço de psiquiatria acerca dos exames realizados pelo mesmo e avaliação psiquiátrica realizada ( a ter ocorrido).
E dada a palavra entre o mais ao arguido na pessoa do seu ilustre mandatário por este foi dito nada ter a dizer ou requerer.
Tal documento foi junto aos autos e dele foi dado conhecimento ao ilustre mandatário do arguido a 27.05.2024 (Refª Citius 94321384).
Tal documento foi então enviado ao INMLCF, para elaboração da perícia psiquiátrica ordenada na sessão da audiência de julgamento que teve lugar a 28.05.2024 (cf. fls. 1016).
Tendo em atenção esta tramitação processual verificamos que a junção do documento em causa foi precedida do contraditório, sendo que nesse momento o arguido através do seu ilustre mandatário referiu “nada ter a dizer ou a requerer” (como consta da ata devidamente corrigida).
Ora, pretendendo opor-se à junção do aludido documento designadamente por entender que este contendia com o sigilo médico, seria este o momento para deduzir oposição, o que manifestamente não fez.
E, sendo notificado do despacho que requereu tais elementos – portanto no pressuposto de que não houve uma expressa oposição ao requerido - o arguido nada disse, ou requereu ao Tribunal, sendo esse o momento que se impunha que – sendo essa a sua posição - o esclarecesse, para que então pudesse ser ponderada.
Acresce que notificado da junção do aludido documento - art. 165º, nº 2 do Código de Processo Penal- o arguido igualmente nada disse, aceitando a junção do mesmo aos autos, e igualmente o nada disse ou requereu quando foi determinado o seu envio ao INML para instruir a perícia psiquiátrica determinada (cf. ata de fls. 1016 a 1018), tudo atos demonstrativos de que aceitou a junção do aludido documento aos autos.
E cumpre referir que não se compreende bem a posição ora manifestada em recurso, porquanto o arguido quando foi objeto de exame pericial de psiquiatria forense, expressamente autorizou a consulta dos registos clínicos incluídos na plataforma Eletrónica SPMS E.P.E, onde se inclui o referido documento, que aliás é mencionado expressamente no referido relatório pericial, dele se transcrevendo significativas partes.
Alega ainda o recorrente que tal documento não podia ser valorado porque continha declarações de quem se recusou validamente a depor.
Aqui se reitera que o recorrente nunca colocou tal questão ao Tribunal a quo, designadamente quando foi notificado da sua junção.
Ora, como se salienta no Acórdão do TRL de 18.05.2011 [processo nº 199/07.5GHSNT.L1-3, disponível in www.dgsi.pt], sumariado da seguinte forma: “De harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 164.º do CPP, “é admissível prova por documento, entendendo-se por tal a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal”.
II – A esta luz, reveste a natureza de documento toda a declaração materializada num escrito, perceptível para a generalidade das pessoas, que, possibilitando reconhecer o emitente, seja idónea a provar um facto juridicamente relevante.
III – Se para a definição do conceito de documento se atendesse apenas ao indicado n.º 1 do art. 164.º do CPP e às alíneas a) e b) do art. 255.º do C.P., para que aquele remete, qualquer auto lavrado num processo, contivesse ou não declarações, seria um documento e, como tal, poderia ser valorado para a formação da convicção do tribunal nos termos e nas circunstâncias enunciadas no art. 355.º daquele Corpo de leis.
IV – Uma tal conclusão entraria em conflito com o disposto nos arts. 356.º e 357.º, ambos do CPP, disposições que obstam, por regra, a valoração, para a formação da convicção do tribunal, de diligências de prova realizadas nas fases preliminares do processo, designadamente a valoração de autos de inquérito que abarquem declarações do assistente.
V – Para delimitar os conceitos processuais de prova documental e de auto (art. 99.º do CPP), deve partir-se da ideia de que o objecto representado pelo documento é um acto realizado fora do processo ao qual ele vem a ser junto.
VI – Se, pelo contrário, o objecto representado é um acto do processo em causa, qualquer que ele seja, então estamos perante um auto que é nele lavrado e que está sujeito a um regime diferente do reservado à prova documental.
VII – Um auto não pode, nomeadamente, ser valorado para a formação da convicção do tribunal a não ser nos apertados limites traçados pelos arts. 356.º e 357.º ambos do CPP.”
Ora, o documento em causa é uma nota de alta do serviço de Psiquiatria dos CHUC e não um qualquer auto onde CC tenha deposto acerca dos factos. Tal documento foi valorado como informação clínica no âmbito da perícia psiquiátrica levada a cabo, com o objeto traçado pelo Tribunal.
Esse documento não constitui qualquer auto, mas antes um documento clínico que, nesse contexto pode ser valorado, não resultando da motivação expressa pelo tribunal que este documento tenha sido utilizado para quaisquer outros efeitos que não estes.
Assim, não tendo a questão do sigilo médico ou da inclusão na nota de alta de uma entrevista feita pelo médico a CC tenha sido suscitada pelo arguido, resultando de toda a tramitação que o arguido nunca se opôs à junção do aludido documento e que até autorizou a sua consulta aquando do exame psiquiátrico, e não se tratando de prova proibida (art. 126º, do Código de Processo Penal), nada impedia o Tribunal de o ter em conta, sendo que, além do mais, estas questões nunca sequer foram colocadas ao Tribunal a quo, para que sobre elas pudesse emitir pronúncia.
Improcede, assim, igualmente neste segmento o recurso interposto.
III.2 – Considerações gerais
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido precito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente:
Assim refere Damião Cunha [O caso Julgado Parcial, 2002, pág. 37], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros [Cf. neste sentido, o Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e o Acórdão do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt].
Invoca o recorrente e com inteira razão que no ponto 82, consta erradamente que o arguido está em prisão preventiva desde 16 de julho de 2023, quando na verdade se encontra em prisão preventiva desde 16 de junho de 2023.
Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 380º do Código de Processo Penal, “o tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.”
Como se salienta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-05-2021[Processo n.º 143/17.1GDEVR.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt]: “(…) o legislador processual penal, preservando aquela regra do auto-esgotamento do poder de julgar, consagrou regime específico que autoriza o mesmo tribunal a, por sua iniciativa ou mediante requerimento, expurgar do acórdão que proferiu “erros, lapsos, obscuridades ou ambiguidades cuja eliminação não importe modificação essencial” da decisão – arts. 425º n.º 4 e 380 n.º 1, al.ª b), ambos do CPP.”
Erro, para efeito do regime legal em análise é somente o de expressão ou de cálculo, nunca o erro de apreciação nem o erro de raciocínio. Corrigível é, assim, apenas o defeito da decisão que ocorre quando o juiz mencionou nomes, empregou palavras e frases ou utilizou números que, manifestamente, não exprimem corretamente o seu raciocínio. Erro é unicamente aquele que a mera leitura do acórdão imediatamente demonstra, evidenciando que os nomes que refere, determinada palavra ou alguma expressão, certos algarismos e operações de cálculo surgem ali manifestamente descontextualizados.
Se o erro de escrita ou de cálculo não se depreende claramente do texto do acórdão, não admite correção nos termos das normas citadas.”
Analisando fls. 97 a 99 facilmente se constata que efetivamente ocorreu o invocado erro de escrita pois ali se escreve (como efetivamente resulta da tramitação processual) que o arguido está sujeito à medida de coação de prisão preventiva que lhe foi imposta a 16 de junho de 2023.
Nesta medida, tendo em conta o disposto no art. 380º, nº 2 do Código de Processo Penal, entendemos proceder à correção do acórdão em apreço, passando a ler-se no ponto 82 dos factos provados “16 de Junho de 2023” onde até agora se lia “16 de Julho de 2023”.
Do mesmo modo se verifica que a fls. 73 do acórdão recorrido no primeiro parágrafo se escreveu “ - um crime de homicídio simples, na forma tentada, na pessoa de DD( …)” e no segundo parágrafo “um crime de homicídio simples, na forma tentada, na pessoa de EE”, quando decore da análise efetuada previamente e muito concretamente de fls. 53 a 63 do mesmo acórdão que se entendeu que por referência também a estas duas vítimas estava preenchida a agravante prevista no art. 132º, nº 1 e 2 al. i) do Código Penal.
Deste modo, porque se trata igualmente de um erro de escrita deve passar a ler-se a fls. 73 do acórdão recorrido no primeiro parágrafo “ - um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, na pessoa de DD( …)” e no segundo parágrafo “um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, na pessoa de EE (…)” “DD.
III.3 – Da impugnação ampla da matéria de facto – art. 412º do Código de Processo Penal
O recorrente insurge-se ainda contra a decisão da matéria de facto, alegando que os factos dados como provados nos pontos 17 a 19, 24, 27, 29 a 34, 36, 58, 165 e 228 deveriam ser considerados como não provados.
Mais invoca, por referência aos pontos 53, 55, e 60, que a apreensão das armas e munições assentou em prova proibida, nos termos do disposto no art. 126º, nº 3 do Código de Processo Penal, por ter ocorrido uma busca ilegal dada a inexistência de razões plausíveis para a entrada na habitação do arguido.
Entende ainda que deveriam ser aditados dois factos aos provados, um relativo à entrada do arguido no Serviço de Urgência e à hora da colheira e respetiva TAS e outro dando como provado a idade da vítima EE e que este era dextro.
Apreciando, desde já este último segmento da pretensão recursiva, cabe dizer, desde logo, que o recorrente visa o aditamento de factos sobre os quais o tribunal a quo não emitiu qualquer decisão.
A impugnação da matéria de facto visa a correção do erro de julgamento, que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Deste modo, o erro de julgamento pressupõe que os factos submetidos à apreciação do tribunal superior tenham sido apreciados na 1.ª instância e, como tal, tenham sido elencados na decisão recorrida, seja nos factos provados, seja nos factos não provados.
No caso, verificamos que os factos que o recorrente pretende ver aditados à matéria de facto provada, não constam da decisão recorrida, não figuravam na acusação pública ou pedido de indemnização civil, nem se trata de matéria alegada pelo arguido na contestação, nem no início da audiência, nos termos do disposto no artigo 339º., nº. 2 do Código de Processo Penal, e que não se enquadram em qualquer insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Como se escreve no Acórdão do TRC de 12.07.2023 [processo nº 95/09.1GBPMS.C3, disponível in www.dgsi.pt]: “– Só é possível verificar-se erro de julgamento, passível de ser conhecido pelo tribunal de recurso, relativamente aos factos concretos sobre os quais o tribunal a quo se pronunciou, dando-os como provados ou não provados, e não também relativamente a factos que não constam da sentença recorrida, que não figuravam na acusação, nem foram alegados, designadamente nas contestações, pedidos de indemnização civil ou no início da audiência, no momento referido no nº 2 do art. 339 do C.P.P., mesmo que resultantes da discussão da causa e relevantes para a decisão.
E também no Acórdão do TRE de 22.11.2011 [processo nº 130/10.0JAFAR.E1] :“Embora constituam objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis e ainda os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil (cf. art. 124.º do CPP) e em julgamento, sem embargo do regime aplicável à alteração dos factos (art. 358.º e 359.º), a discussão da causa tenha por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os art.368.º e 369.º do CPP, a impugnação da matéria de facto não pode extravasar os limites vertidos na sentença ou acórdão e que, em obediência ao disposto no n.º2 do art. 374.º do mesmo diploma, hão-de ser enumerados na sentença, sob pena de nulidade.
Se a sentença não enumera factos, que eventualmente resultaram da discussão da causa e tinham relevância para a decisão, essa omissão não pode ser suprida por uma reapreciação da prova pelo tribunal de recurso. Não foi essa a solução processual querida pelo legislador. A motivação do recurso não é o meio adequado para introduzir factos novos no objecto da acção penal.”
Assim, sendo improcede neste segmento o recurso interposto.
Vejamos então o invocado erro de julgamento.
A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente, como sobredito, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6.
Exige-se ao recorrente a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.
Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.
O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
O recorrente deverá referir o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Ainda quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
Saliente-se que a remissão para os suportes técnicos não é a simples remissão para a totalidade das declarações prestadas, mas para os concretos e precisos locais da gravação/transcrição, que suportam a tese do recorrente, só assim se dando cumprimento à especificação das “concretas provas” que é dizer do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida [Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed., 2009, Universidade Católica Editora, anotação ao art.412, pag.1121].
Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc., o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares e precisas passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem ao facto impugnado.
Seguindo a ordem indicada no recurso e relativamente ao ponto 36 invoca o recorrente a gravação das imagens de videovigilância afirmando que destas não se retira que o arguido se tenha colocado em fuga, antes se limitou a abandonar, pouco apressadamente o local.
No facto nº 36 refere-se apenas que após, vendo que CC se encontrava inconsciente se colocou em fuga.
Ora, analisando as imagens de videovigilância e muito concretamente o ficheiro MP4 identificado como Channel 5_202305011327451684044 não consideramos que estas imagens imponham decisão diversa. Não é por o arguido não ir, por hipótese a correr, que não está em fuga.
Na verdade, as imagens são claras no sentido de que após ter atingido com duas fortes pancadas na cabeça a CC, se colocou em fuga. No trajeto para a carrinha, sempre em passo largo e firme, encontra BB que se procura proteger colocando-se na lateral do veículo Volvo, mas mesmo dirigindo-lhe algumas palavras nunca deixa o arguido de prosseguir o seu caminho sendo visível que o arguido arranca ao volante da carrinha e prossegue a marcha, efetivamente fugindo do local onde tinha acabado de atingir com violência três pessoas.
Não basta – como se referiu - que a prova indicada admita outra qualquer interpretação mas antes que a imponha e, no caso presente, tal não ocorre.
Assim, deve manter-se o ponto 36 dos factos provados.
No tocante ao ponto 19 não indica o recorrente qualquer prova que imponha decisão diversa, limitando-se a discordar da convicção formada pelo tribunal a quo, com respeito pelas regras da experiência comum, não competindo a este tribunal ad quem censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do CPP.
No caso o arguido apenas afirma não ter memória desse momento , confirmando que a sua casa se situa a cerca de 3,5Km do local, pelo que a diferente interpretação dos factos por parte do arguido, por si só, não impõe a alteração factual pretendida, mostrando-se a resposta dada plenamente justificada em face da prova produzida e examinada em julgamento, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer.
No tocante ao ponto 17 dos factos provados entende o recorrente que não pode dar-se como provado que estacionou junto ao veículo Smart mas a alguns metros deste.
Trata-se de uma mera divergência linguística. A palavra “junto”, podendo ter o significado de estar perto de [veja-se neste sentido o “Dicionário on line Priberam, in dicionario.priberan.org]
Analisadas as imagens de videovigilância percebe-se que o veículo do arguido está estacionado muito perto de um contentor do lixo existente na berma da estrada e vendo as imagens de videovigilância quando o arguido saiu das instalações da fábrica e se ausenta do local vemos que este dá cerca de 8 passos desde a traseira do veículo Volvo, até chegar muito próximo da sua carrinha.
Ora, o veículo Smart esteve estacionado atrás do veículo Volvo, pelo que, tendo o advérbio “junto” também o significado de estar perto, ou estar próximo, as provas indicadas não impõem, decisão diversa.
No tocante aos pontos 53, 55, 56 e 60.
Invoca em primeira linha a utilização de prova proibida nos termos do disposto no art. 126º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Vejamos então:
São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125º do Código de Processo Penal).
E relativamente aos “métodos proibidos de prova”, além de outras situações que aqui não importa considerar, dispõe o nº 3 do artigo 126.° do mesmo Código que “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, sem o consentimento do respectivo titular.”
Tal nulidade, por “abusiva intromissão”, está igualmente consagrada no n.º 8 do artigo 32° da CRP.
Trata-se, atenta a redação das normas, de uma nulidade relativa, na medida em que essa “intromissão” pode estar legitimada (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-05-2013, CJ III, pág. 108).
Estaria em causa na perspetiva do recorrente de uma busca domiciliária sem a autorização do arguido ou da sua esposa, que afirma serem os únicos titulares daquele espaço.
Importa para correta perceção da dinâmica dos eventos ter em conta o teor de fls. 20 a 40 dos autos.
Na verdade, verificamos que os eventos em discussão nestes autos tiveram lugar em dois locais distintos, uma primeira atuação do arguido nas imediações da empresa “A..., Lda., e a segunda na residência do arguido, então suspeito e assim foi entendido como resulta do teor dos documentos elaborados inicialmente quer pela Guarda Nacional Republicana quer pela Polícia Judiciária ( cf. refª Citius 8038230 e 8050483 de 02.05.2023, 80840470 de 03.05.2025 e nº 8046738 de 05.05.2023).
Em ambos os locais a GNR, ao abrigo do disposto no art. 5º, nº 1 da LOIC efetuou a preservação dos locais e a Polícia Judiciária, que era a autoridade competente para realizar a respetiva inspeção ao local, nos termos do disposto no art. 7º, nº 1, nº 2, al. a) e nº 3 al. h) da Lei 49/2008 de 27.08 (daqui em diante LOIC).
Como refere Pedro Soares Albergaria, em comentário ao art. 171º do Código de Processo Penal Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, T.II, pág. 605 “O exame de lugar é por regra levado a efeito onde os factos criminalmente relevantes ocorreram, podendo destinar-se à recolha de vestígios resultantes do crime (p. ex. impressões digitais, sémen, sangue), mas indícios do mesmo. (…)
Mas, naturalmente o exame não tem que recair sobre o local da prática do crime, pois, vestígios e indícios deste podem ser colhidos noutros lugares- ali dá-se o caso p. ex., dos vestígios hemáticos encontrados no lugar para onde a vítima já morta , foi transportada; aqui dá-se aquele, p. ex., das impressões digitais deixadas na loja onde o suspeito comprou a faca que usou na prática do crime.
O lugar a examinar poderá ainda coincidir com o domicílio do suspeito ou de terceiro.”
Na situação que apreciamos, verificamos que, à data, havendo conhecimento de que o ora recorrente alegadamente teria disparado sobre três pessoas e que se havia recolhido em casa, e que ali alegadamente teria tentado suicidar-se.
Tendo em conta todo este envolvimento, encontrando-se o recorrido ferido e a ser levado para o Hospital e estando presente a sua filha, haveria efetivamente que preservar o local e realizar o seu exame, de forma a que, perante todas as hipóteses em aberto - sendo esta também a residência de uma das vítimas que teria sido alvejada pelo arguido ele também ferido com arma de fogo – pudessem ser recolhidos vestígios como indícios relevantes para a explicação do ocorrido.
E essa atividade – como refere o Mº Público no parecer elaborado – “implica pesquisar, recolher e apreender (ainda que cautelarmente), o mais precocemente possível, o máximo de objetos/vestígios/provas existentes nos locais pertinentes, que possam estar relacionados com os crimes em investigação e o seu autor/autores – ainda que remotamente-, para que, depois, conjugados todos os elementos disponíveis, se possa chegar, na medida do possível, à verdade material, procurando-se contribuir para a realização da justiça.”
E como salienta Santos Cabral em anotação ao art. 171º do Código de Processo Penal [ in Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira, António Pires Henriques da Graça, pág. 672 e 673] “O exame dos vestígios e dos indícios, não carece de autorização ou ordem da autoridade judiciária, porque faz parte do elenco de actividades típicas , e técnicas, próprias da investigação.
Acrescentando “A realização de exame em lugar, ou coisa, que se encontre em casa habitada ou sua dependência fechada não depende da verificação dos pressupostos da busca domiciliária, pois que são totalmente distintos os fundamentos de funcionamento dos dois institutos, nomeadamente em fase de inquérito. Na verdade, no momento crítico da realização do exame, qualquer que seja a forma como se configure, está iminentemente ligado com a notícia do crime e a necessidade de preservação da prova da prova com vista à descoberta da verdade. A necessidade do exame surge em concomitância com a notícia do crime pelo que a entrada em casa é um imperativo resultante dessa necessidade”.
Ora, no caso presente resultava dos elementos então coligidos ( designadamente das comunicações recebidas pelos OPC) que o recorrente após ter efetuado disparos junto às instalações da empresa A..., Lda.”, se dirigiu a casa onde foi encontrado pela sua filha com ferimentos de arma, encontrando-se no pátio da casa a viatura que havia conduzido nesse mesmo final de tarde, designadamente para as instalações da referida empresa e depois para casa, bem como a arma que teria sido utilizada.
Acresce que, a filha do recorrido ali presente deu a conhecer a existência de um escrito que se encontrava no interior da casa, o qual estaria aparentemente associado ao arguido (no caso teria sido escrito por este), o que desde logo legitimava a inspeção que foi realizada no interior da casa, cujo acesso foi franqueado inicialmente pela filha do arguido e depois por ambos os filhos do casal (arguido e vítima CC), sendo que os seus pais, à data, estavam ambos a ser transportados para o Hospital em virtude dos ferimentos que sofreram, alegadamente por ação do arguido.
Por outro lado, do relatório elaborado resulta que pelos filhos do arguido foi transmitida a existência de outras armas e munições na residência, e que estes solicitaram a sua apreensão. Constando do respetivo expediente – “no âmbito das medidas cautelares, a que se associou a manifesta vontade dos filhos do casal, nomeadamente do GG, militar da GNR, foram apreendidas as diversas armas e munições que AA guardava em casa, as primeiras em cofre e as segundas numa arrecadação do rés-do-chão ( cf. auto de apreensão junto).
Neste momento inicial dos acontecimentos sabia-se que alegadamente tinha sido utilizada uma arma de fogo pelo arguido para atingir outras pessoas e também para se atingir a si próprio já após se ter dirigido à residência. Havia ainda o conhecimento da existência de um “escrito” que havia sido feito pelo arguido e que estava no interior da residência. Todo este circunstancialismo – como já referimos - legitimava a entrada na casa para recolha destes vestígios e indícios dos crimes em investigação. E veja-se que é, então, que os próprios filhos do arguido, pessoas que no momento têm a disponibilidade do local (os seus pais haviam ambos sido transportados ao Hospital em virtude de ferimentos causados por arma de fogo), dão a conhecer a existência de outras armas e munições e solicitam a sua apreensão.
Estando em causa o alegado cometimento de crimes com arma de fogo e perante a indicação por parte dos filhos do casal da existência de outras armas de fogo e munições na casa, e da solicitação que expressaram quanto às mesmas, cremos que a sua apreensão cautelar efetivamente se impunha, além do mais, porque se desconhecia naquele momento da legalidade da respetiva detenção (são apreendidos livretes mas a licença que consta apreendida havia expirado em 2017).
E assim foi efetuado, lavrando-se o competente relatório, nos termos do disposto no art. 253º do Código de Processo Penal (fls. 47 a 57) e posteriormente os respetivos autos de apreensão (fls. 101 a 108), tendo as apreensões efetuadas sido validadas pelo Mº Público nos termos do disposto no art. 178º, nº 1, 3 e 6 do Código de Processo Penal, como consta de fls. 169.
Ora, tendo em conta toda esta tramitação cremos que a conclusão a retirar é a de que as apreensões realizadas no exterior e interior da residência resultaram do aludido exame ao local e que a entrada na residência está legitimada por via da realização da mencionada inspeção.
Acresce que como consta do relatório elaborado nos termos do disposto no art. 253º do Código de Processo Penal, as referidas armas foram apreendidas a indicação dos filhos do ora arguido.
Temos, pois, por assente que a entrada no domicílio ocorreu por via da necessidade de realizar o exame ao local e, portanto, o acesso ao interior da casa, naquele momento estava legitimado, mas, também, que a apreensão das armas decorreu de um meio licito alternativo, que no caso decorreu da indicação por parte dos filhos do arguido da existência de armas de fogo e munições em casa e da solicitação da sua apreensão cautelar.
Assim, ainda que se considerasse – o que não defendemos – que a entrada na residência deveria obedecer às regras das buscas domiciliárias, certo é que pela intervenção de terceiros - no caso dos filhos do arguido que indicaram a existência de armas de fogo e manifestam a vontade que estas fossem retiradas da casa - essa “mancha inicial” teria sido limpa.
Como se refere no Acórdão do STJ de 12.03.2009 [ processo nº 09P0395, disponível in www.dgsi.,pt] referindo-se às proibições de prova e muito concretamente ao art. 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa: “Porém, uma visão redutora e fundamentalista do normativo em causa ignora o delicado equilíbrio que é necessário desenhar entre a defesa das regras que consubstanciam valores fundamentais e aqueles valores que derivam da imposição resultante de outros campos de concretização da pessoa com é o seu direito á segurança e realização da vida em sociedade.
Concretamente, o efeito á distância da prova proibida nunca poderá alcança uma abrangência que congregue no seu efeito anulatório provas que só por uma mera relação colateral, e não relevante, se encontram ligadas á prova proibida ou que sempre se produziriam, ou seria previsível a sua produção, independentemente da existência da mesma prova proibida. (6) .
(…)
Para a excepção da descoberta inevitável (inevitable source), surgida como um aperfeiçoamento da teoria da prova independente (7) o fundamento reside na circunstância de que é possível chegar validamente a uma conclusão probatória, obtida de forma licita de que um determinado facto aconteceu, ainda que se tenha conhecido esse mesmo facto através de forma ilícita, sempre que a prova válida seja independente, ou seja, sem conexão causal com a prova ilícita directa ou derivada. Se pela prova licita se chega inevitavelmente ao conhecimento do facto delitivo está eliminada a eficácia reflexa da prova proibida(8) (9)
Como refere Helena Mourão (10) em ambas as excepções é necessário que exista um clean path, um caminho lícito, que conduza às provas secundárias, mas, enquanto neste último caso esse percurso é actual, no primeiro revela-se meramente hipotético ("imminent, but in fact unrealized source of evidence").
Em nosso entender nada obsta a que as provas mediatas possam ser valoradas, quando provenham de um processo de conhecimento independente e efectivo, uma vez que não há nestas situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida. Pode-se afirmar que o efeito metastizante da violação das regras de proibição de prova apenas têm razão de ser em relação á prova que se situa numa relação de conexão de ilicitude.
Para além desta situação, adianta a mesma Autora, cabe ainda analisar o caso da chamada purged taint exception ou attenuation .Segundo tal limitação, poderá ser utilizada no processo toda a prova secundária a que os órgãos de investigação criminal não teriam chegado, de uma perspectiva de relação causal, sem a violação da proibição de prova, mas relativamente à qual se pode dizer que já nenhum nexo causal efectivo subsiste entre tal prova mediata e a violação inicial.
(…)
Perfilha-se o entendimento de que se coaduna com os critérios da norma constitucional, e se enquadra numa perspectiva teleológica do regime das regras de proibição de prova, a conclusão de que não está abrangida pela conexão de ilicitude a prova produzida quando os órgãos de investigação criminal dispõem de um meio alternativo de prova, ou seja, de um processo de conhecimento independente e efectivo, quer nas situações em que a "mancha" do processo é apagada pelas próprias autoridades judiciárias ou, através de uma actuação livre do arguido ou de um terceiro.”
Deste modo, mesmo entendendo-se que a entrada na casa pressuporia uma validação prévia ou posterior, o certo é que o conhecimento da existência das armas e munições e a sua subsequente apreensão decorreu da intervenção ativa de terceiros, conhecedores da sua localização e que – como decorre do expediente elaborado – as deram a conhecer, no caso à Polícia Judiciária que as apreendeu – e cuja apreensão foi validade pelo Mº Público.
Como se salienta no mencionado acórdão do STJ: “É inequívoca a conclusão de que o conteúdo normativo do direito fundamental previsto no art. 32.º, n.º 8, da CRP inclui no seu âmbito o efeito remoto da utilização de métodos proibidos de prova.
XII - O efeito à distância da prova proibida nunca poderá alcançar uma abrangência que congregue no seu efeito anulatório provas que só por uma mera relação colateral, e não relevante, se encontram ligadas à prova proibida ou que sempre se produziriam, ou seria previsível a sua produção, independentemente da existência da mesma prova proibida.
XIII - Nada obsta a que as provas mediatas possam ser valoradas quando provenham de um processo de conhecimento independente e efectivo, uma vez que não há nestas situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida. Pode afirmar-se que o efeito metastizante da violação das regras de proibição de prova apenas tem razão de ser em relação à prova que se situa numa relação de conexão de ilicitude.
XIV - Não está abrangida pela conexão de ilicitude a prova produzida quando os órgãos de investigação criminal dispõem de um meio alternativo de prova, ou seja, de um processo de conhecimento independente e efectivo, nem nas situações em que a “mancha” do processo é apagada pelas próprias autoridades judiciárias ou através da actuação livre do arguido ou de um terceiro.”
Em face de todo o exposto, entende-se que não estamos perante uma busca domiciliária não autorizada. Mas mesmo que se entendesse que a entrada no domicilio não era legítima, tendo a apreensão das armas e munições sido efetuada a partir da intervenção voluntária dos filhos do arguido e muito concretamente do seu filho GG, esta atuação livre deste terceiro constituiu um processo de conhecimento independente e efetivo, isto é, um meio alternativo de prova que não tem qualquer relação com o alegado comportamento ilícito inicial e que sempre tornaria válida a apreensão das armas e projéteis efetuada.
Inexiste, pois, qualquer prova proibida que não possa ser valorada.
Porém, como já referimos, apesar do auto de apreensão de fls. 103 a 108 estar datado de 04.05.2023 ( data da sua elaboração) dele consta expressamente que a apreensão decorreu da inspeção ao local e diligências subsequentes, e menciona-se que o auto de Apreensão está a ser elaborado na Diretoria do Centro da Polícia Judiciária. Aliás o mesmo consta do auto de apreensão de fls. 101, que estando igualmente datado de 04.05.2023 ( data da sua elaboração) resulta que a apreensão foi efetuada na inspeção ao local.
Esta conclusão imporá que se corrija o ponto 53 dos factos provados, passando dele a constar dia 1 de maio de 2023, onde constava dia 4 de maio de 2023, pelas 17 horas, pois todos os elementos coligidos nos autos apontam para essa data, e do teor dos próprios autos decorre que o dia 04.05.2023, pelas 17 horas é a data da elaboração do auto e não da efetiva apreensão.
No que concerne aos pontos 55 e 56 dos factos provados afirma o arguido que dos autos, mormente do exame direto de fls. 109 a 113, não consta medição, fotografia, ou suficiente descrição pormenorizada das munições para poder concluir que restas preenchem a definição de zagalote. Mais afirma que o compromisso de honra foi apenas prestado como perito avaliador nos termos do disposto no DL nº 11/2007 de 11.01 não consubstanciando prova pericial que tivesse mais de 4,5mm de diâmetro.
Analisando os autos verificamos que a Polícia Judiciária ao realizar a análise das armas e munições apreendidas nos autos fê-lo ao abrigo do que denominou auto de exame direto.
Do teor de fls. 109 a 113 resulta que quem examinou as armas e munições apreendidas foram LL e MM, ambos inspetores da Polícia Judiciária e Instrutores de Tiro e a fls. 114 mostra-se junta a cópia de um auto de compromisso de perito avaliador, assinado por LL onde consta, por referência à nomeação efetuada deste nos termos do DL nº 11/2007 de 18 de janeiro, por parte do Senhor Diretor Nacional da Polícia Judiciária e onde consta que o perito avaliador se identificou da seguinte forma:
«- LL, inspetor da PJ, a exercer funções na Diretoria do centro.
Foi-lhe explicado que a recusa em prestar o compromisso ou a ele faltar o fará incorrer em responsabilidade criminal(art. 91º nº 3 e 4 do C.P.Penal)
De seguida, o perito avaliador prestou compromisso de cumprir conscienciosamente a função que lhe é cometida, tendo declarado:
- “Comprometo-me, por minha honra, em desempenhar fielmente as funções que me são confiadas”.»
Salientamos neste ponto, por assertivo, o constante do parecer do Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto com o qual concordamos inteiramente e, por isso transcreveremos: “Como é sabido, a PJ é um corpo superior de polícia criminal (artº. 1º nº 1 da LOPJ), que se dedica à investigação dos crimes mais complexos, graves e violentos (artº. 7º da LOIC), sendo os seus funcionários de investigação de criminal, maxime os Inspetores, desde que entram na instituição, formados, entre muitas outras matérias, no conhecimento e manuseamento de armas de fogo e respetivas munições, de vários tipos e calibres.
Tal faz obrigatoriamente parte da sua formação inicial, bem como da sua formação anual “comum”, com sessões teóricas e práticas sujeitas a avaliação, o que, por si só, lhes confere um saber acrescido na matéria.
Mas há igualmente que ter em conta – em abono da sua competência - que os Srs. Inspetores que fizeram o exame às munições em causa são também instrutores de tiro na Diretoria do Centro da PJ, isto é, estão habilitados com um curso próprio ministrado pelo Instituto da Polícia Judiciária e Ciências Criminais (artº. 26º da LOPJ) para poder ensinar outros colegas (ou magistrados, por ex.).
Em suma: o seu saber relativamente à matéria em causa é altamente especializado.
Daí que, quando os mesmos, no exame em causa, concluíram que se estava perante “Cinco cartuchos zagalote de 9 bagos…”, não puderam deixar de ter presente que, nos termos do disposto no artº. 2º, nº 3, al. ad), do RJAM, as munições em causa só poderiam merecer tal enquadramento por serem projéteis com diâmetro superior a 4,5 mm. - embora, é certo, não tenham feito referência expressa a essa medida, expressando-se conclusivamente -, fazendo parte de um conjunto de múltiplos projéteis para serem disparados em armas de fogo; se não tivessem a dimensão exigida não poderiam ser considerados “cartuchos zagalote”.
De facto, embora apelidado de auto de exame direto foi efetuado por dois inspetores da Polícia judiciária, que são também instrutores de tiro, o que pressupõe como salientou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto conhecimentos e formação que lhes conferem um saber acrescido na matéria. Por outro, mostra-se junto um compromisso de honra que, embora relativo a “perito avaliador”, está subscrito pelo Inspetor LL que efetuou a referida análise das armas e munições apreendidas.
Nos autos, como decorre da acusação deduzida nos autos, foi tal exame considerado prova pericial, e os conhecimentos dos inspetores que elaboraram o referido auto de exame e o auto de compromisso que está anexo, permitem tal conclusão.
É certo que o expediente em causa formalmente não está absolutamente conforme com a lei processual penal, designadamente no que tange ao respetivo compromisso de honra de quem teve intervenção na perícia.
Porém, certo é que este expediente foi indicado como prova pericial na acusação deduzida nos autos e, portanto, dele e da sua classificação foi dado conhecimento ao arguido, que não invocou qualquer irregularidade, designadamente quanto à sua elaboração ou quanto ao compromisso de honra prestado, nem suscitou quaisquer esclarecimentos que, porventura, entendesse necessários, relativamente à mesma como lhe permitia o art. 158º do Código de Processo Penal.
Assim, temos de concluir que qualquer ilegalidade cometida na elaboração do expediente em causa, ou do respetivo compromisso de honra, constitui mera irregularidade, que não foi atempadamente invocada pelo que, nos termos do disposto no art. 123º, nº 1 do Código de Processo Penal já se encontra sanada. [Neste sentido o Acórdão do TC nº 197/2007 e o acórdão do STJ de 15.06.2005, ambos citados por Luís Lemos Triunfante in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, pág. 1031].
E, no caso, cremos ser suficiente a descrição efetuada para as conclusões no mesmo vertidas, pois que descrevendo no ponto 27.6 “cinco cartuchos zagalote de 9 bagos da marca Rio em caixa própria” e acrescentando por referencia à Lei nº 5/2006 de 23.02 com a alteração da lei 50/2019 de 24.07 [em diante identificado RJAM – Regime Jurídico das Armas e Munições], e em conclusão que “relativamente às munições de arma de fogo o presente normativo só classifica as que se enquadram no art. 3º, nº 1 e nº 2, al. q), r, v, z, nº 3, al. d); nº 7, al. c) ou nº 9 al. h)e, nesse contexto, de todo o acervo de munições examinadas apenas são classificados os cartuchos Zagalotes, pertencendo à classe A conforme art. 3º nº 1 e nº 2 al. v)”. [realce nosso].
Na verdade, a conclusão vertida pelos peritos examinadores tem subjacente a definição de Zagalote constante da al. ad) do nº 3 do art. 2º do referido RJAM da qual consta que são “«Zagalotes» os projéteis, com diâmetro superior a 4,5 mm, que fazem parte de um conjunto de múltiplos projéteis para serem disparados em armas de fogo com cano de alma lisa;”. Deste modo, embora não expressamente mencionado, já que apenas se mencionam os bagos (sendo que um bago é um objeto pequeno arredondado) a dimensão de 4,5 mm é o pressuposto da própria definição de Zagalote e, por isso, entende-se suficiente a descrição efetuada, que reitera-se, devidamente notificada não suscitou quaisquer duvidas ou pedido de esclarecimento.
De todo o modo, a referir que mesmo que se entendesse que não estávamos perante prova pericial, «o exame direto», sempre seria passível de valoração, dado que a lei não impõe a realização de perícia e o exame direto efetuado por dois inspetores da Polícia Judiciária que são ao mesmo tempo instrutores de tiro, pode e deve ser valorado nos termos do disposto no art. 127º do Código de Processo Penal.
E, no caso presente, o próprio arguido não questionou, quando prestou declarações que efetivamente eram Zagalotes, apenas referindo (no que não mereceu a credibilidade do Tribunal) que não sabia explicar o porquê de os ter em sua casa, afirmando que nunca os havia adquirido e admitindo que pudesse ter havido alguma troca com algum colega numa montaria ou numa loja no armeiro ( minutos 22.06 a 23.44 da sessão do dia 16.04.2023).
Em suma, não se impõe resposta diferente ao ponto 55 e 56 dos factos provados.
No que concerne ao ponto 60 dos factos provados, não invoca o recorrente qualquer prova que impusesse decisão diversa, limitando-se a pretender substituir a sua interpretação pessoal da prova produzida àquela efetuada pelo Tribunal.
E lendo a motivação expressa pelo tribunal vemos que este não atribuiu credibilidade às declarações do arguido quando referiu não se recordar de ter adquirido os zagalotes e admitir poder ter havido troca com outro colega caçador escrevendo: “igualmente pouco clara e pouco convincente foi o modo como diz que não sabia da detenção dos cinco cartuchos zagalote de 9 bagos.
Analisada, pois, a explanação aduzida pelo recorrente constata-se que o mesmo se limita a colocar em crise a convicção do tribunal recorrido, e acaba por pretender simplesmente impor a sua própria e subjetiva leitura crítica da prova, em detrimento daquela que alicerçou a convicção adquirida pelo tribunal recorrido e que o acórdão explicita de forma clara.
Salienta-se novamente que a alteração da matéria de facto decorre, por via do recurso, da mera possibilidade de a prova produzida permitir uma decisão de sentido distinto da tomada pelo julgador, mas antes se exige que essa decisão diversa se imponha por ser evidente ou flagrante o erro do tribunal a quo, em função das provas produzidas, no julgamento da matéria de facto e este erro de julgamento invocado não se verifica.
Questiona o recorrente a matéria de facto provada nos pontos 18 e 29 a 34, invocando para fundamentar a sua divergência o relatório pericial de fls. 717 que refere uma capacidade do carregador de tal arma de apenas 4 tiros, mais uma no cano, conjugado com as imagens de videovigilância ( que evidenciam que o arguido nunca chegou a carregar a arma.
Analisando as imagens de videovigilância, delas não se extrai que o arguido tenha carregado a arma em questão a partir do momento em que a sua imagem se torna visível, sendo certo que não são visíveis os dois primeiros disparos em direção ao veículo Smart.
Analisando os fotogramas de fls. 145 a 159 extraídos das referidas imagens de videovigilância verificamos que neles é possível verificar um disparo cujo projétil entra pelo vidro traseiro do veículo Volvo (fotograma nº 63) um outro que atinge o vidro dianteiro do veículo Hyundai (fotogramas 66 e 67) e outro que é retratado nos fotogramas 71, 72, 73 e 74). Vemos ainda (fotograma 76) que AA aponta a rama na direção de CC.
Do auto de apreensão de fls. 101 verificamos que foram apreendidos no total 6 cartuchos deflagrados.
Resulta do relatório de inspeção judiciária que dois cartuchos deflagrados foram encontrados próximo ao veículo Smart, identificados com os nº 3 e 4 (Cf. fls. 57 fotos 14 a 17) um outro foi encontrado perto, mas antes da traseira do veículo Volvo identificado com o nº 2 (Cf. fotos 20 a 23 de fls. 58) e outro mais perto do muro da empresa identificado com o nº 1 ( Cfr. Fotos nº 26, 27 e 28 a fls. 59 e 60). Dentro do recinto da empresa um outro identificado como nº 5 ( fotos 29 a 31 a fls. 60). O outro cartucho deflagrado apreendido Nobel Sport que de acordo com o auto de inspeção foi o recolhido no habitáculo da viatura aparcada no pátio da residência do arguido (Cf. fotos 5 a 9 de fls. 52).
E do relatório do exame pericial efetuado resulta que o cartucho identificado como vestígio 16 foi o encontrado por baixo do banco da frente do lado direito da carrinha ( cf. fls. 296 a 321 e em particular fls. 315, 316, 318, 320 e 321).
Confrontando, pois, estes elementos de prova e nada resultando dos restantes elementos de prova, relativamente a um eventual recarregamento da arma, antes de a imagem do arguido ser visível, cremos que, apesar de haver um vestígio do embate de um projétil no portão da garagem do armazém, esse vestígio - na ausência de qualquer outro elemento que sustente um outro disparo - é insuficiente para se concluir que o arguido ainda efetuou um sexto disparo quando a vítima CC já estava no exterior do veículo e que a não atingiu. Vemos o arguido a apontar a arma, mas inexiste qualquer outro cartucho deflagrado para além dos já mencionados, não é visível a ejeção de qualquer cartucho (como ocorreu no disparo anterior) e considerando a capacidade da dita arma, não pode com a certeza que se impõe concluir-se que foi efetuado este sexto disparo.
Deste modo, cremos que a prova produzida e muito concretamente aquela acima mencionada impõe que o ponto 32 dos factos provados passe ao elenco dos não provados.
Quanto aos restantes pontos da matéria de facto a prova produzida e identificada no acórdão de que se recorre, incluindo as declarações do arguido – que se reconheceu nas imagens de videovigilância – embora afirmando não ter memória clara do evento, levam às conclusões vertidas nos pontos 18 e 29 a 31 , 33 e 34, pelo que devem manter-se nos factos provados.
No que concerne ao ponto 27 dos factos provados e à concreta expressão ali constante, invoca o arguido o depoimento de BB prestado na sessão de 16.04.2023 dos minutos 10:00 a 13:38 e do minuto 20:27 a 21:11 e, ainda, o teor do alegado do ponto 24º do Pedido de indemnização civil deduzido onde refere que não se recordar do que terá sido dito pelo arguido.
O constante do art. 24º do Pedido de indemnização civil, é meramente um facto alegado no respetivo articulado e não constitui qualquer meio de prova a valorar.
Certo é que ouvido o depoimento da testemunha BB verificamos que esta, de forma espontânea, referiu a expressão que ouviu o arguido dizer quando passou por si, especificou que o arguido ia na direção da empresa e que entendeu que a expressão era dirigida à CC.
De facto, BB no seu depoimento e designadamente nos segmentos indicados pelo arguido recorrente refere a expressão constante do ponto 27 e muito concretamente dos minutos 11.17 a 12.32 disse:
“Eu estava junto ao nosso ao meu carro.
Sim. Mas quando o viu a passar viu-o na direção da Dona CC?
Sim. Sim.
A si como é que como é que ele passou? Tinha… viu a arma na altura?
Ele passou à minha frente. Eu estava junto ao carro.
Sim.
Na esquina traseira. E ele passou à minha frente,
mas a sair da empresa?,
Não, na direção da empresa.
Então o que é que a senhora viu depois quando viu passar? Ele falou, disse-lhe alguma coisa na nessa altura.
Ele olhou para mim e seguiu em frente na direção da empresa.
Sim.
E disse algo do tipo, como eu já, pronto deve estar nos autos eh, agora é que vais ver, agora é que te apanhei. Foram as palavras mais ou menos nestas expressões que ele me disse.
Mas essas palavras não eram para si ou entendeu que eram para si?
Não, não, não, não. Ele olhou para mim,
sim,
e continuou e em frente na direção da empresa e disse estas palavras, creio eu, à dona CC.
E nessa altura ele já levava a arma com ele,
Certo.
E como é que levava a arma nessa altura?
Levantada.
Mas não achegou a apontar a si nessa altura?
Não.
E dos minutos 20:26 a 20.58 referiu a perguntas da defesa:
“ (…) quando a senhora refere aquela expressão “agora é que vais ver, agora é que te apanhei”, que foi aquilo que… a ideia que a senhora teve que ouviu, a senhora estava fora do carro ou dentro do carro? Não percebi bem?
Estava fora.
Estava fora do carro. E essa expressão foi feita quando o AA vinha a sair da empresa ou quando ia a caminho da empresa?
Quando ia a caminho da empresa foi quando passou por mim.
Tem certeza?
Tenho.”
Nada resultando do depoimento desta testemunha - que ouvimos na íntegra - que faça abalar a espontaneidade com que referiu a expressão em causa e por isso a prova indicada não impõe conclusão diversa, antes sustenta efetivamente a resposta que foi dada ao ponto 27 dos factos provados.
Quanto ao ponto 58 dos factos provados: Entende o arguido que deve ser dado como não provado este ponto da matéria de facto, porquanto resulta dos relatórios periciais que as vítimas nunca estiveram em concreto perigo de vida.
Como salientou o tribunal recorrido na fundamentação apresentada “A conclusão apresentada nos referidos relatórios periciais (fls 387, 733 e 856) de que “do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do examinado” não contende com a intenção de matar ou com a idoneidade da actuação do arguido para provocar a morte.
Pois, como salienta o Tribunal da Relação de Lisboa [Acórdão de 21.09.2021 (processo 1031/20.0PBOER-A.L1-5)] “A intenção de matar não resulta necessariamente do facto de a vítima ter, ou não, concretamente corrido perigo de vida. Este desiderato extrai-se das lesões provocadas, a localização das mesmas, o número de lesões, o instrumento utilizado e bem assim todo o circunstancialismo onde se insere/desenrolou a agressão, conjugados com as regras de experiência e/ou as leis científicas.”.
O dolo, dada a sua natureza subjectiva, é insusceptível de apreensão directa, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da causalidade ou das regras gerais da experiência [cfr., entre outros, acórdãos: TRE de 26.02.2013, pº n.º 9/06.0TAAVS.E1, e de 6.09.2011, pº n.º 241/07.0PCSTB.E1, TRC de 13.12.2011, pº n.º 41/10.0JACBR.C1, e de 9.12.2009, pº n.º 1873/09.7PTAVR.C1.10].
Ora, toda a actuação do arguido e demais circunstâncias são suficientes para concluir pelo preenchimento dos elementos subjectivos do crime de homicídio demonstrando que o arguido representou e actuou com intenção de conseguir a morte das pessoas contra quem disparou, devendo ter-se em conta que a sua vontade se encontrava diminuída em razão do seu estado de embriaguez, como resulta do relatório da perícia psiquiátrica forense (fls 1127/132) supra referido.
E, na verdade, como resulta dos factos apurados o arguido efetuou dois disparos dirigidos ao tronco da vítima EE, um que o atingiu de raspão na zona do peito do lado direito e outro no braço esquerdo provocando uma fratura exposta do rádio esquerdo a nível proximal e exposição óssea; apontou a caçadeira na direção do DD, tendo o projétil disparado entrado pelo vidro traseiro atingido o encosto de cabeça e a face e região ocular do lado direito de DD provocando-lhe uma hemorragia, fraturas orbitárias múltiplas das paredes da órbita direita com fragmentação do pavilhão orbitário e parede lateral, perfuração do globo ocular direito e hemorragia associada a múltiplas fraturas da arcada zigomática e paredes do seio maxilar homolateral, fraturas múltiplas dos fossos do próprio nariz e fratura da mandíbula à direita.
O arguido efetuou ainda dois disparos na direção de CC um dos quais atingiu a CC na zona retro auricular esquerda, e tendo ficado sem munições desferiu duas fortes pancadas na cabeça da referida CC atingindo-a na nuca e na região parietal do lado esquerdo tendo esta caído inanimada no chão. CC sofreu traumatismo crânio encefálico grave , com perda de consciência, designadamente ferida craniana temporo parietal esquerda estreada, fratura com afundamento ósseo na região parietal esquerda e lesão dural, com contusão cerebral, subaracnoide e coleções gasosas assim como fratura dos ossos do antebraço.
Todas as vítimas foram assistidos no local pelas equipas de socorro e as vítimas CC e DD foram submetidos a intervenções cirúrgicas no próprio dia 1 de maio (referindo-se expressamente no relatório pericial que CC foi submetida a intervenção cirúrgica de urgência) e EE no dia 2 de maio.
Salienta-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.09.2021[Disponível in www.dgsi.pt.] que “A intenção de matar não resulta necessariamente do facto de a vítima ter, ou não, concretamente corrido perigo de vida.
- Este desiderato extrai-se das lesões provocadas, a localização das mesmas, o número de lesões, o instrumento utilizado e bem assim todo o circunstancialismo onde se insere/desenrolou a agressão, conjugados com as regras de experiência e/ou as leis científicas”.
Ora, na situação em apreço nada temos a apontar à conclusão vertida no ponto 58, porquanto, se é certo que as vitimas não correram concreto risco de vida, certo é também que foram sujeitas a socorro pelas equipas que logo se deslocaram ao local e submetidas a tratamentos médicos e medicamentosos, incluindo todos cirurgias e tratamentos que, obviamente, evitaram a ocorrência desse concreto risco.
Uma fratura exposta como a sofrida pela vítima EE, ou as inúmeras fraturas e lesões orbitais e fratura da arcada zigomática com hemorragia, ou um traumatismo crânio encefálico grave que determinou entre o mais a fratura e afundamento ósseo na região parietal esquerda, são tudo lesões graves que, efetivamente, não implicaram risco de vida porque foram devida e atempadamente tratadas – como resulta dos respetivos relatórios periciais e dos factos provados.
Por outro lado, como resulta dos autos o arguido é caçador desde os seus 23 anos de idade, sendo uma atividade a que se dedicava nos tempos livres, isto é, não era alguém que não soubesse manusear uma arma de fogo, designadamente como aquela com que disparou, e portanto, sabedor também do potencial das munições usadas que aliás é evidente designadamente pela perfuração que se mostra visível quer nos veículos quer no portão de abertura para o exterior da fábrica.
Em suma, tudo ponderado, nada se censura à motivação expressa pelo tribunal a quo, e, consequentemente, entendemos também, que os relatórios periciais invocados não impõem decisão diversa, devendo, assim, manter-se o ponto 58 nos factos provados.
Impugna o recorrente o ponto 165 dos factos provados, invocando para o efeito o exame pericial de fls. 869 e o depoimento de JJ ( 16.04.2024, minutos 13:26 a 13:30 e de KK a 19.04.2024 (minutos 4:15 a 4:39 e 6:00 a 6:10).
No ponto 165 consta “ Perdeu a mobilidade do braço esquerdo e ainda da mão.
Analisando o relatório pericial e na sua conjugação com os depoimentos prestados pelas testemunhas KK e JJ (esposa e filho da vítima EE) concluímos que não houve perda total da mobilidade do braço e mão, mas apenas uma perda parcial.
No exame pericial escreve-se quanto ao membro superior esquerdo:
“Membro superior esquerdo:
▪ Complexo cicatricial rosado, estendendo-se pelos terços proximal e médio da face póstero-lateral do antebraço, medindo 11cm de comprimento e 3,5cm de maior largura (no terço proximal), com áreas retráteis e deprimidas por perda de substância;
▪ Complexo cicatricial rosado, no terço proximal da face anterior do antebraço, medindo 12cmx5,5cm, com áreas retráteis e deprimidas por perda de substância;
▪ Ligeiro encurtamento do antebraço, clinicamente evidente;
▪ Mobilidades articulares do ombro e cotovelo praticamente completas, embora dolorosas, com ausência total de supinação;
▪ Mão em ligeiro desvio radial, quando em repouso;
▪ Limitação da dorsiflexão activa do punho, sendo as restantes mobilidades possíveis, mas dolorosas;
▪ Mobilidades dos dedos:
• Limitação das mobilidades da metacarpofalângica do primeiro dedo;
• Ausência de dorsiflexão activa do terceiro dedo;
▪ Hiperestesia na metade radial do dorso da mão;”
Dos depoimentos das testemunhas KK e JJ ( que ouvimos na íntegra) e tendo em conta os concretos segmentos invocados pelo recorrente temos de concluir que efetivamente não há uma perda total de mobilidade do braço esquerdo e mão, mas sim uma perda parcial.
Deste modo, facto nº 165 deve passar a ter a seguinte redação: “Perdeu parte da mobilidade do braço e ainda da mão.
No que concerne ao facto nº 226 resulta efetivamente do teor da informação recolhida nos Serviços de Identificação Civil ( cf. fls. 72 relativa ao cartão de cidadão de DD) que este nasceu a ../../1953, e como tal tinha efetivamente 69 anos à data dos factos que se apreciam (01.05.2023).
Deste modo, o ponto 226 da matéria de facto deve passar a ter a seguinte redação: o demandante DD, com 69 anos de idade, embora já reformado, era uma pessoa dinâmica e activa”.
Defende o recorrente que o tribunal a quo incorreu em contradição insanável da fundamentação nas respostas dadas aos pontos 24 e 25 da matéria de facto provada.
Argumenta, para o efeito, que dizer-se que o arguido surpreendeu a vítima DD com o disparo é contraditório com a menção efetuada no ponto 25 de que este nesse momento ( do disparo) se tinha virado para trás alertado pelo barulho dos primeiros disparos.
Mais argumenta que não constando da matéria de facto elementos suficientes para a integração do crime de detenção de arma proibida.
Vejamos:
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”, que:
“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”
Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios decisórios esses que, conforme se referiu supra, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada [A propósito deste vício veja-se, entre outros, o Ac. do TRP de 15.11.2018 e de 09.01.2020, ambos acessíveis em www.dgsi.pt].
Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, de um “vício de confeção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir , tanto no plano objectivo como subjectivo, o julgador quedou –se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário” [Acórdão do STJ de 08-01-2014, Processo n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.].
Ou como referem Simas Santos e Leal Henriques [Recursos em processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros , pág. 69]: “Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adotada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objeto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal”.
Cumpre, desde já, referir que a insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente possam ter sido dados como provados.
Como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.07.2013 [Disponível in www.dgsi.pt]: “Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal. O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa”.
Tal vício ocorrerá se o tribunal a quo deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum.
Ora, analisado o texto da decisão recorrida não se constata a existência do apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, pois, não só a matéria de facto provada é suficiente para fundamentar a decisão de direito a que se chegou [encontram provados os factos que sustentam a integração dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art.86º, nº 1, al. e) da lei nº 5/2006 de 23.02 por referência ao arts. 2º nº 3 al. ad) e 3º, nº 1 e 2, v) e art. 4º do mesmo diploma legal] mas também porque não decorre da sentença recorrida que o tribunal a quo tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão, remetendo aqui para as considerações já expostas aquando da apreciação do invocado erro de julgamento concernente ao ponto 55 da matéria de facto, sendo certo que a argumentação que apresenta para fundamentar este vício não decorre do próprio texto da decisão nem desta conjugada com as regras da experiência comum, mas antes foi suscitada invocando os meios de prova utilizados e muito concretamente o teor de fls. 109 a 114 dos autos.
Na verdade, o Tribunal recorrido não omitiu qualquer pronúncia sobre a matéria de facto objeto do processo, nem omitiu o apuramento de factos que podia e devia investigar.
Saber se essa matéria de facto que constitui o objeto do processo devia ou não ter sido dada como provada, é questão que escapa ao vício da apontada insuficiência.
Não se verifica, pois, o invocado vício, improcedendo igualmente neste segmento o recurso.
Invoca ainda o recorrente a contradição insanável entre os factos provados nº 24 e 25.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques [Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol., pág.379] “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”
Ora, não se constata, pela simples leitura do teor da decisão recorrida, o invocado vício de “contradição insanável da fundamentação,” a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.
Com efeito, lida a decisão recorrida, constata-se que da mesma não resulta qualquer incompatibilidade - e muito menos insuscetível de ser ultrapassada, através da própria decisão recorrida - entre estes dois pontos da matéria de facto.
Repare-se que o que ali se afirma no ponto 25 é que a vítima DD se virou para trás alertado pelo barulho dos primeiros disparos (os que atingiram o veículo e a pessoa de EE), mas essa circunstância não é de modo algum contraditória com o facto de ter ficado surpreendido com um novo disparo de espingarda caçadeira provindo da traseira do seu veículo e visando-o a si mesmo (facto nº 24).
E vista toda a matéria de facto e motivação do acórdão é percetível toda a dinâmica do evento, com uma rápida sequência de atuação do arguido dirigida a três pessoas diferentes, sendo que no caso da vítima DD, como resulta dos pontos 176 e 177 dos factos provados, este estremeceu ao ser surpreendido pelo som dos disparos dirigidos ao veículo de EE e do estilhaçar dos vidros, ficando confuso e sem perceber o que estava a acontecer, e é nesse contexto que, quando volta a sua cabeça o disparo é efetuado em direção à sua viatura atingindo o vidro traseiro, o encosto da cabeça do banco do condutor do lado direito e a sua face na região ocular.
Inexiste, pois qualquer contradição, e muito menos insanável, entre estes dois pontos da matéria de facto.
A pretexto do vício da contradição insanável, o recorrente mais não faz do que confrontar com os factos provados e muito concretamente com os pontos 24 e 25 da factualidade provada a sua interpretação da apreciação da prova para, desse modo, colocar em causa a valoração que o Tribunal a quo efetuou.
Porém, em relação a estes factos nenhuma contradição insanável se vislumbra no texto da decisão recorrida, quer entre si e aqueles dados como não provados, quer em relação à fundamentação probatória que os suporta.
Não se verifica, pois, este vício.
IV – Da Integração da conduta do arguido no crime de embriaguez e intoxicação, previsto e punível pelo art. 295º do Código Penal (conclusão 4)
Dispõe o art. Artigo 295.º do Código Penal, sob a epígrafe “Embriaguez e Intoxicação” o seguinte:
“1 - Quem, pelo menos por negligência, se colocar em estado de inimputabilidade derivado da ingestão ou consumo de bebida alcoólica ou de substância tóxica e, nesse estado, praticar um facto ilícito típico é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - A pena não pode ser superior à prevista para o facto ilícito típico praticado.
3 - O procedimento criminal depende de queixa ou de acusação particular se o procedimento pelo facto ilícito típico praticado também dependesse de uma ou de outra”.
O tipo objetivo de crime consiste na autocolocação em estado de inimputabilidade derivado, entre o mais, da ingestão de bebidas alcoólicas. Como refere Paulo Pinto Albuquerque [Comentário do Código Penal, 5ª Edição, pág. 1132] “A disposição não se aplica aos casos em que a colocação em estado de inimputabilidade é provocada por terceiro (…), nem aos casos em que o agente se coloca em estado de semi-imputabilidade”.
No mesmo sentido refere Américo Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense do Código Penal, T. II, p. 1118] quando afirma relativamente aos casos de imputabilidade diminuída autoprovocada: “Assim, quem pratica um ilícito típico num momento em que, por responsabilidade própria, tinha a sua capacidade de avaliação da ilicitude/ou determinação de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída, responderá pelo crime que, nesse estado efetivamente tiver praticado(p. ex. homicídio doloso ou negligente, dano, se tiver agido dolosamente, etc.) sendo-lhe aplicável a pena legalmente cominada para tal crime”.
O tipo subjetivo admite o dolo e a negligência.
Ora, nos autos resultou provado entre o mais que:
“57- Ao disparar das formas descritas aquela espingarda caçadeira, na direcção de EE, DD e da esposa CC, designadamente à cabeça e tronco, em zonas que alojam órgãos vitais e ao desferir as fortes pancadas na zona da nuca e cabeça de CC, o arguido agiu de forma livre e voluntária, com o propósito de atentar contra a vida de DD, EE e CC.
58- O arguido sabia que aqueles disparos da espingarda caçadeira (tal como as pancadas na cabeça de CC), dirigidos a zonas vitais eram aptos a lhes causar morte, o que representou, mas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade, designadamente face à pronta assistência médica prestada aos ofendidos.
59- O arguido actuou de forma súbita e inclusive pela retaguarda, de modo a diminuir as possibilidades de defesa das vítimas e dirigindo-se individualmente a cada um, indiferente ao sofrimento e temor que causava.
60- O arguido actuou ainda de forma livre, com o propósito de deter e guardar na sua habitação os cartuchos zagalote apreendidos, conhecendo a natureza e características de tais objectos, não podendo deter os mesmos e bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo, uma vez que não era titular de qualquer licença, o que representou.
61- O arguido sabia que aquelas suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
62- À data da prática dos factos, embora o arguido tivesse consciência da ilicitude do seu comportamento criminal e o processamento cognitivo minimamente conservado, a sua capacidade para se abster de o fazer, a sua vontade, encontrava-se diminuída em razão do seu estado de embriaguez.”
Como decorre da matéria de facto provada e designadamente destes factos acima transcritos verificamos que estes não permitem a integração dos elementos objetivos acima referidos, encontrando-nos numa situação de quem pratica um ilícito típico num momento em que, por responsabilidade própria, tinha a sua capacidade de avaliação da ilicitude/ou determinação de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída, que como vimos não integra aquele tipo legal de crime.
Improcede, pois, neste segmento o recurso interposto.
IV.1 – Do preenchimento da al. i) do art. 132º, nº 2 do Código Penal
Alega o recorrente que o tribunal errou quando considerou preenchida com a atuação do arguido, relativamente às três vítimas, a al. i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, pugnando pela sua condenação relativamente aos assistentes DD e EE pela prática de dois crimes de homicídio simples na forma tentada e quanto à vítima CC por um crime de homicídio qualificado na forma tentada, mas apenas por referência à al. b) do art. 132º, nº 2 do Código Penal.
Entende o recorrente que a sua atuação em cada um dos crimes em apreço não constitui nem o meio insidioso a que se refere tal alínea nem a especial perversidade a que se refere o art. 132º, nº 1 do Código Penal.
No artigo 132º do Código Penal, que qualifica o homicídio, foi introduzida a técnica dos “exemplos padrão”.
O fundamento da agravação da pena encontra, assim, suporte num grau especialmente elevado da culpa. A conduta do agente suscita, pois, uma censura especialmente enérgica em função das circunstâncias em que a morte foi provocada.
Trata-se, neste caso, de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que o crime foi cometido são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.
Com a referência à especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade (cfr. Teresa Serra, Homicídio Qualificado - Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, págs. 63 e 64).
No caso apurou-se que o arguido agiu de forma livre voluntária e consciente com o propósito de tirar a vida a DD, EE e CC, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e bem assim que à data dos factos, embora tivesse consciência da ilicitude do seu comportamento criminal e o processamento cognitivo minimamente conservado, a sua capacidade de se abster de o fazer encontrava-se diminuída em razão do seu estado de embriaguez.
Porém, na situação presente não podemos esquecer que estamos perante a ingestão voluntária de álcool – provou-se que o arguido esteve num convívio de caça e aí ingeriu bebidas alcoólicas – e estamos, pois, perante uma situação acidental (estado de embriaguez) e que lhe é censurável.
Como refere Eduardo Correia [citado por Paulo Pinto Albuquerque in Comentário do Código Penal, 5ª Edição atualizada pág199] “Ao que o art. 18º (atual art. 20º, nº 2 ) procura responder, é sim, àqueles casos limite de imputabilidade diminuída em que o homem, além de ter a sua capacidade de avaliação e decisão sensivelmente diminuída, não pode bem vistas as coisas ser censurado e responsabilizado pela sua personalidade”.
Aliás, repare-se que as situações de imputabilidade diminuída que pressupõem a existência de uma anomalia psíquica grave não acidental e cujos efeitos o arguido não domina, sem que por isso possa ser censurado, não conduzem, sem mais, a uma atenuação da culpa.
Como se salienta no Acórdão do STJ de 15.02.2023 [Processo nº 799/21.0JAPDL.S1, disponível in www.dgsi.pt] “No direito português, que opta por um sistema monista de reações criminais, diferentemente do que sucede em sistemas que nos são próximos, que adotam sistemas dualistas, ao delinquente a quem é aplicada uma pena não se aplica, cumulativamente uma medida de segurança, para responder às necessidades de prevenção. Recorrendo ao pensamento de Eduardo Correia, “supera-se a ‘aparente irredutível antinomia do direito criminal’ porque se faz apelo a uma culpa referida à personalidade do delinquente, a uma culpa que se traduz na omissão permanente, por parte do criminoso, do cumprimento do dever de orientar a formação ou preparação da personalidade de modo a torná-la apta a respeitar os valores jurídico-criminais”. Culpa que, nos casos de inimputabilidade diminuída “significa, concretamente, uma culpa do agente por não ter tratado o seu modo de ser de maneira a modelá-lo de harmonia com o tipo de personalidade que os valores jurídico-criminais de um certo sistema pressupõem”.
(…)
O que vem de se expor, com a inevitável convocação de doutrina que, projetada no texto da lei[21], possibilita uma devida apreensão da ratio e do sentido do n.º 2 do artigo 20.º do CP, permite, pois, firmar a conclusão de que a pena aplicável ao agente de um crime com «imputabilidade diminuída», não declarado inimputável, não tem de necessariamente ser atenuada. À «imputabilidade diminuída» não corresponde necessariamente uma diminuição da culpa; pode, como se viu, justificar a agravação da pena, nos termos gerais (artigo 71.º do CP), ou mesmo, verificados os respetivos pressupostos, a aplicação de uma pena relativamente indeterminada, pelas qualidades pessoais desvaliosas e censuráveis de personalidade projetadas, documentadas e reveladas no facto ilícito típico”.
Salienta Figueiredo Dias [ Direto Penal Parte Geral, 3ª Edição, pág. 683]: “Como se vai reconhecendo já, não se trata aqui de uma diminuição da imputabilidade da aceção do seu menor grau, ou sequer de uma capacidade de controlo e consequentemente capacidade de inibição”. Acrescentando [Ob. Cit. Pág. 684]: “Se nos casos de imputabilidade diminuída, as conexões objetivas de sentido entre a pessoa do agente e o facto são ainda compreensíveis e aquele deve por isso ser considerado imputável, então as qualidades especiais do seu caracter entram no objeto do juízo da culpa e por elas tem o agente de responder. Se essas qualidades forem especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente relevante elas fundamentarão – ao contrário do que sucederia na perspetiva tradicional - uma agravação da culpa e um ( eventual) aumento da pena; se pelo contrário elas fizerem com que o facto se revele mais digno de tolerância e aceitação jurídico-penal, poderá justificar-se uma atenuação da culpa e uma diminuição da pena. Nesta medida o problema dito da imputabilidade diminuída não merece tratamento legislativo especial e deve pôr-se e resolver-se num espaço livre de legislação, à luz daquilo que se considere materialmente a culpa e a (in)imputabilidade”.
Na situação presente cremos que não se tendo comprovado uma qualquer anomalia psíquica grave e não acidental cujos efeitos o arguido não dominasse e que não lhe fosse censurável, não se mostra, por esta via, afastada a possibilidade da verificação das agravantes do homicídio, o que, aliás, o arguido também não contesta nas conclusões apresentadas, pois que além do mais aceita a verificação da qualificativa prevista no art. 132º, nº 2 al. b) do Código Penal.
Mas, mesmo entendendo-se que a embriaguez em que se encontrava, pudesse ser classificada como uma psicose exógena [Cf. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, 5ª edição atualizada, pág. 198] tal não obsta, em face do acima exposto - porque as conexões objetivas de sentido entre a pessoa do agente e o facto são ainda compreensíveis e o arguido é considerado imputável - que as qualidades especiais do seu caracter entrem no objeto do juízo da culpa e, consequentemente por elas o arguido tenha de responder, e que sendo elas “especialmente desvaliosas de um ponto de vista jurídico-penalmente relevante” fundamentem “uma agravação da culpa”.
Ora, no acórdão recorrido a propósito da qualificativa prevista no art. 132º, nº 2 al. i) do Código Penal escreveu-se:
“Também está imputada ao arguido a agravante qualificativa prevista na alínea i), na parte em que prevê a utilização de “meio insidioso”. Acerca desta qualificativa seguiremos o estudo desenvolvido no acórdão de 30.11.2011 do Supremo Tribunal de Justiça [processo 238/10.2JACBR.S1.] Como se colhe dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-05-2002 e de 11-07-2007, a noção de meio insidioso, embora tenha recebido contributos úteis da doutrina e jurisprudência, não é unívoca, girando sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da acção [processo n.º 1214/02-3.ª e processo n.º 1583/07-3.ª, respectivamente].
Há que avaliar a conduta global do arguido com vista a perscrutar uma especial censurabilidade da sua culpa, que o faça distinguir dos casos vulgares [acórdãos de 03-04-1991, CJ1991, tomo 2, pág. 15 e BMJ n.º 406, pág. 314; de 18-10-1991, processo n.º 42116, BMJ n.º 410, pág. 367].
Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a “natureza do meio/instrumento/arma, que é utilizado”, e por outro, averiguar as “circunstâncias acompanhantes”, isto é, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto concreto de circunstâncias em que aquela concreta arma/meio/instrumento de agressão, no caso de bens eminentemente pessoais, foi utilizada: a distância a que o agressor se encontrava da vítima (a curta distância, com disparo à queima roupa, ou não), a situação em que esta se encontrava (prevenida ou desprevenida, desprotegida, descuidada, indefesa, com possibilidade de resistência ao agressor ou não), a zona do corpo atingida, o momento e o local escolhido para a agressão, com actuação em espaço fechado, ou aberto, com ou sem espera, com ou sem emboscada, com ou sem estratagema, com ou sem traição, com ou sem perfídia, disfarce, surpresa, dissimulação, engano, abuso de confiança, ou distracção da vítima, ou não, de forma subreptícia, ou não, de forma imprevista ou não, com ataque súbito, inesperado, sorrateiro, ou não, com ou sem possibilidade de a vítima oferecer resistência, enfim, todo o conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes/determinantes do evento letal, ou quase letal, no traço de um desenho panorâmico, de uma imagem multifacetada, de supervisão, de síntese, a final, de um retrato vivencial, de uma fotografia, guardadora de eventos ocorridos, condensada, definida, a jusante, com todos os contornos e pormenores, independentemente dos retoques, e que mais do que a natureza da arma ou instrumento utilizado, indiciam o meio utilizado naquele analisado concreto agir, como particularmente perigoso ou insidioso.
Daí que, a análise da jurisprudência não se possa ficar apenas pelo que é dito a propósito da (ir)relevância configuradora do instrumento utilizado, de per si, desligado do contexto da, por vezes, complexa, acção em que determinado meio é empregado.
No que respeita à qualificação do instrumento utilizado como integrando a expressão de “meio insidioso”, há diferenças no enquadramento.
No sentido de que a arma ou outro instrumento utilizado na prática do crime não constitui só por si um meio insidioso, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça por várias vezes. No acórdão de 11-06-1987 [processo n.º 39009, BMJ n.º 368, pág. 312], num caso em que a mulher mata marido batendo-lhe com um pé de cabra, salienta: “Quando a lei (artigo 132.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal) fala em «meio insidioso» não quer necessariamente abarcar os instrumentos usuais de agressão (o pau, o ferro, a faca, a pistola, etc.), ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir tanto às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, como aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossíveis a defesa da vítima.
A título exemplificativo e enquanto extravasam o que se prevê no âmbito dos crimes de perigo comum, estão previstos na referida alínea f) a utilização de certas armadilhas, as instalações eléctricas em casas de banho adrede preparadas para matar logo que se ligue o chuveiro, a introdução de ar ou de vírus mortais no sistema venoso sob o pretexto de se injectar um medicamento, a narcotização do paciente para depois o matar, o acto de conduzir enganosamente a futura vítima a local isolado para aí ser abatida, etc.
Esses e outros “meios” similares não deixarão de ser insidiosos e susceptíveis de revelarem a especial censurabilidade do arguido ou a sua perversidade”.
Noutros casos, o Supremo Tribunal de Justiça não atende apenas à natureza do meio utilizado mas salienta que não é o instrumento em si que constitui o “meio insidioso”, mas antes o seu uso em determinadas circunstâncias, que revelam uma carga de perfídia e tornam difícil ou impossível a defesa da vítima [Acórdão de 19-06-1996, processo n.º 203/96-3.ª, SASTJ n.º 2, pág. 51].
No acórdão de 13-12-2000 [processo n.º 2753/00-3.ª, CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 241], o Supremo Tribunal de Justiça salienta: “É que, por vezes, a insídia não se situa no tipo de arma que é utilizada na acção, mas no conjunto de circunstâncias que envolvem tal utilização, residindo aí sim, a especial censurabilidade ou perversidade do agente”.
Por outro lado, no acórdão de 25-09-1997 [processo n.º 611/97-3.ª, SASTJ 1997, n.º 13, pág. 141 e BMJ n.º 469, pág. 359], num caso de uxoricídio --- após salientar que a jurisprudência e a doutrina têm considerado que o meio insidioso tem uma grande amplitude, compreendendo os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais, mas que tem-se defendido que tal amplitude não abarca desde logo as formas comuns de agressão, só devendo considerar-se como meio insidioso o instrumento incomum de agressão que deixa à vítima uma margem de defesa reduzida --- afirma: “Tratando-se de um meio incomum de agressão que deixa à vítima uma margem de defesas reduzida, o uso de um martelo de orelhas, em ferro, como arma deve considerar-se meio insidioso, qualificando o crime de homicídio (art. 132.º, n.º 2, alínea f) do Código Penal).
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado abrangidos nesta alínea os casos particulares de disparos à traição ou quase à queima roupa, onde a surpresa, somada à posição tomada pelo arguido tornam praticamente impossível qualquer defesa da vítima.
No acórdão de 07-12-1999[processo n.º 1034/99-3.ª, CJSTJ 1999, tomo 3, pág. 234, e BMJ, n.º 492, pág. 168], reafirma que são meios insidiosos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos, ou em que haja a ideia de estratagema, de disfarce ou artimanha daquele que o usa.
No acórdão de 19.12.1989 [processo n.º 40392, BMJ n.º 392, pág. 243], insiste: quando fala em meio insidioso, a lei quer aludir não só às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, mas também aos que são particularmente perigosos, e que não pondo em risco o agente, do mesmo passo torna difícil ou impossível a defesa da vítima. O conceito abrange os meios aleivosos, traiçoeiros ou desleais, abarcando, atentas a sua latitude e elasticidade, os crimes cometidos com emboscada, traição, aleivosia ou estratagema.
No acórdão de 4-07-1996[processo n.º 48774, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222, seguindo aqui os acórdãos de 11-06-1987 e de 19-12-1989, publicados no BMJ, n.º s 368 e 392, a págs. 312 e 243], considera que “a surpresa e a deslealdade do ataque deram origem à completa desprotecção da ofendida, aumentando seriamente as probabilidades de lesão do bem jurídico vida”.
No acórdão de 9-10-1997, num caso de ofensa à integridade física corporal qualificada, considera que “Uma pedra, mesmo utilizada na mão, porque meio objectivamente apto a provocar ferimentos ou lesões graves, é de considerar insidioso” [processo n.º 1319/96, BMJ n.º 470, pág. 217].
No acórdão de 29-10-1997 [processo n.º 647/97-3.ª, SASTJ n.º 14, pág. 162], diz que meio insidioso é o que utiliza a insídia; esta é aleivosia, traição, o mesmo é dizer, ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada, antes de perceber o gesto criminoso.
No acórdão de 28-10-1999 [processo n.º 843/99-5.ª, SASTJ 1999, n.º 34, pág. 84], analisa um caso em que o arguido dispara uma caçadeira, alta noite, contra uma pessoa que assoma a uma janela, a cerca de 10 metros de distância.
No acórdão de 27-09-2000 [processo n.º 292/00-3.ª, SASTJ, Edição Anual 2000, pág. 126], considera que meio insidioso é aquele que, tal como o veneno, a que a lei actual o equipara, tem, em si mesmo ou na forma por que é utilizado, um carácter enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para a vítima, constituindo para esta uma surpresa ou colocando-a em situação de especial vulnerabilidade ou desprotecção que torna para ela especialmente difícil a sua defesa.
No acórdão de 28-02-2002 [processo n.º 226/02-5.ª], diz que meio insidioso é aquele “cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno – do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto”.
No acórdão de 15-05-2002 [processo n.º 1214/02 – 3.ª], é meio insidioso aquele que tem em si mesmo ou na forma por que é utilizado um carácter enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para a vítima, constituindo para esta uma surpresa ou colocando-a em situação de especial vulnerabilidade ou desprotecção que lhe dificulta a defesa.
No acórdão de 20-05-2004 [processo n.º 1127/04-5.ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 195], o meio é insidioso quando corresponde a um processo enganador, dissimulado, elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida. Age de forma desleal e traiçoeira, apanhando a vítima desprevenida, quem, utilizando uma arma de fogo que apenas exibiu junto desta última, logo efectuando o correspondente disparo, não permitiu à mesma qualquer tipo de reacção.
No acórdão de 17-03-2005 [processo n.º 546/05 – 5.ª, SASTJ, n.º 89, pág. 106], diz que no conceito de meio insidioso cabem todos aqueles meios que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos. A traição constitui um meio insidioso e pode ser definida como um ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso. Em termos doutrinais, dentro da elasticidade do conceito, Nelson Hungria [in Comentário ao Código Penal Brasileiro, volume V, págs. 167 a 169], refere que meio insidioso é uma expressão com grande amplitude, que pode ser um “meio dissimulado na sua influência maléfica”, podendo também ser um “meio fraudulento ou subreptício por si mesmo”, que inclui traição (“ataque súbito e sorrateiro, atingida a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso”), emboscada (“dissimulada espera da vítima em lugar onde terá de passar”), ou simulação (“ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa e para lhe diminuir e retirar toda a possibilidade de defesa”).
Para Fernanda Palma [Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, pág. 65], a possibilidade de qualificação deriva da circunstância de os meios utilizados, dado o seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto, tornarem especialmente difícil a defesa da vítima ou arrastarem consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos.
Defende a delimitação do outro meio insidioso por referência à utilização do veneno, afirmando: “O insidioso tem a função de exprimir aqueles meios que actuam com a mesma intensidade, facilidade e dificuldade de serem descobertos que o veneno, não tendo pois a função de exprimir uma atitude do agente, mas a eficácia objectiva de um meio”.
Para o Professor Figueiredo Dias [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, § 27, págs. 38-39], meio insidioso será “todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno - do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto”.
Teresa Serra [in Homicídios em Série, conferência integrada em Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 1995), CEJ, 1998, volume II, págs. 153-154, e Jornadas sobre a revisão do Código Penal, em edição da AAFDL, 1998, págs. 131 a 133]--- a propósito da questão de saber em que medida o desamparo da vítima pode ou não apresentar uma estrutura valorativa próxima da imagem do exemplo padrão então contido na alínea f), ao contrário de Fernanda Palma para quem o insidioso tem a função de apenas exprimir a eficácia objectiva de um meio, --- propende a efectuar uma interpretação com sentido amplo, de modo a incluir a função de exprimir uma atitude do agente, que explora e aproveita a vulnerabilidade física e ingenuidade da vítima, revelando uma personalidade especialmente perversa. Refere que “… reconhece-se geralmente que a noção de meio insidioso abrange não apenas meios materiais especialmente perigosos de execução do facto, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de modo mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade e de desprotecção da vítima em relação ao agressor: é o caso da facada traiçoeira pelas costas ou do disparo de arma de fogo em emboscada, meios que retiram à vítima qualquer capacidade de protecção. Aliás, o fundamento da qualificação contida nesta alínea reconduz-se precisamente à utilização de meios pelo agente, por forma a aproveitar-se dessa desprotecção da vítima”.
Maria Margarida Silva Pereira [in Textos, Direito Penal II. Os Homicídios, volume II, AAFDL, 1998, pág. 42], ao referir-se ao homicídio por traição ou por insídia, para usar a expressão do Código, diz que “Trair é aproveitar distracção, enganar a vítima, criar uma situação que a coloque em posição de não poder resistir com a mesma facilidade”.
Fernando Silva diz a propósito: “Está em causa o modo de execução do crime, nomeadamente através de uma actuação insidiosa. Ou seja, o agente utiliza um meio traiçoeiro, enganador, que expõe a vítima para que se reduzam as suas possibilidades de defesa. A vítima desconhece que o agente está a empreender um processo casual com vista à produção da sua morte, por isso torna-se numa “presa” fácil e desprotegida, sem hipótese de defesa. (…) A pedra de toque que nesta circunstância faz pressupor a maior censurabilidade é a traição, por esse motivo o envenenamento da vítima surge apenas para demonstrar o espírito que a norma pretende alcançar, abrindo a hipótese de utilização de outros meios insidiosos. A análise do meio insidioso passa por abordar a forma como a vítima se encontrava, e o modo como o agente empreendeu a sua conduta. Assim, por exemplo, uma faca pode ser utilizada de forma insidiosa, se, no meio de uma multidão, alguém atingir outro pelas costas, ou se a vítima se encontrar a dormir”[ Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, 2.ª edição, Quid Juris, 2008, pág. 79].
Neste caso, o arguido actuou de forma súbita, pela retaguarda, usando uma espingarda caçadeira, sem que nada o fizesse prever, quando as vítimas estavam dentro dos carros, desprevenidos, constituiu um meio de tal modo traiçoeiro que os expôs a tal ponto que lhes retirou todas as possibilidades de defesa (ou até de fuga), tornando, assim, cada um deles (CC, DD e EE), numa “presa” fácil e desprotegida, sem hipótese de defesa.
A pedra de toque que nesta circunstância faz pressupor não só a maior perversidade, como maior censurabilidade é a traição, a surpresa e o modo como foi efectuado cada um dos disparos. Por isso, se conclui pelo preenchimento da circunstância prevista na alínea i), do nº 2, do artigo 132º.
Cremos não merecer censura a qualificação efetuada pelo Tribunal a quo quando integrou a conduta do arguido nesta qualificativa.
Na verdade, como se salienta no acórdão do STJ de 30.11.2011 [ processo nº 238/10.2JACBR.S1] “I - As circunstâncias contempladas no n.º 2 do art. 132.º do CP não são taxativas, nem implicam só por si a qualificação do crime; tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa, não sendo o seu funcionamento automático.
II - A noção de meio insidioso não é unívoca, girando sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da acção. Por outras palavras, poderá dizer-se que a subsunção não pode ficar-se por uma interpretação que se quede pela consideração apenas do meio utilizado, da forma como é executado o facto, atendendo à natureza do instrumento, mas antes tendo em consideração uma visão mais abrangente, completa, em que entra a imagem global do facto, o que é dizer no caso, apreciar os factos na sua globalidade, analisar a conduta no seu conjunto, avaliar a atitude do agente, o que será avaliado em função das específicas nuances do evento e do pleno das circunstâncias enformadoras do concreto sucesso submetido a juízo.
III - Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a “natureza do meio/instrumento/arma, que é utilizado”, e por outro, averiguar as “circunstâncias acompanhantes”, isto é, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto concreto de circunstâncias em que aquela concreta arma/meio/instrumento de agressão, no caso de bens eminentemente pessoais, foi utilizada: a distância a que o agressor se encontrava da vítima (a curta distância, com disparo à queima roupa, ou não), a situação em que esta se encontrava (prevenida ou desprevenida, desprotegida, descuidada, indefesa, com possibilidade de resistência ao agressor ou não), a zona do corpo atingida, o momento e o local escolhido para a agressão, com actuação em espaço fechado, ou aberto, com ou sem espera, com ou sem emboscada, com ou sem estratagema, com ou sem traição, com ou sem perfídia, disfarce, surpresa, dissimulação, engano, abuso de confiança, ou distracção da vítima, ou não, de forma subreptícia, ou não, de forma imprevista ou não, com ataque súbito, inesperado, sorrateiro, ou não, com ou sem possibilidade de a vítima oferecer resistência, enfim, todo o conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes/determinantes do evento letal, ou quase letal, no traço de um desenho panorâmico, de uma imagem multifacetada, de supervisão, de síntese, a final, de um retrato vivencial, de uma fotografia, guardadora de eventos ocorridos, condensada, definida, a juzante, com todos os contornos e pormenores, independentemente dos retoques, e que mais do que a natureza da arma ou instrumento utilizado, indiciam o meio utilizado naquele analisado concreto agir, como particularmente perigoso ou insidioso.”
Ora, na situação presente apurou-se que o arguido, por volta das 18h20m, surgiu à porta do refeitório onde se encontravam DD, EE, BB e CC, altura em que esta o apresentou aos presentes com exceção de EE que era já seu conhecido, tendo o arguido proferido poucas palavras e abandonado as instalações da empresa pouco depois.
Mais se provou que chegando novamente junto das referidas instalações veio munido de uma caçadeira que havia ido buscar a casa o que fez com o intuito de tirar a vida a CC e DD.
E, veja-se que já depois de o EE (seu conhecido) ter iniciado a marcha do veículo que conduzia, o arguido saí repentinamente da sua viatura empunhando a dita arma e ato seguido e efetua dois disparos na direção do tronco deste estilhaçando os vidros laterais do veículo.
Temos, pois, que o arguido agiu de uma forma verdadeira imprevista e imprevisível para o EE, disparando sobre este quando o mesmo e encontrava dentro do veículo Smart que conduzia e, portanto, sem capacidade e/ou possibilidade de oferecer qualquer resistência.
O mesmo acontecendo quando, logo de seguida, disparou atingindo pela traseira o veículo onde DD se encontrava sentado ao volante tendo tal projétil, estilhaçado o vidro traseiro atingido o encosto e cabeça do banco do condutor onde o referido DD estava sentado e atingindo a face e a região ocular do lado direito do mesmo que se havia virado para trás alertado pelo barulho dos primeiros disparos, tendo este disparo perfurado o portão e atingido ainda o veículo de CC que estava no interior do recinto da empresa.
E veja-se que de imediato o arguido avança para este recinto empunhando a arma e dispara-a duas vezes em direção à referida CC, que estava também sentada ao volante do automóvel, sendo atingida por um dos tiros na zona retro auricular esquerda, tendo o projétil perfurado o lado direito do para-brisas fiando alojado no encosto de cabeça do banco do condutor.
E é só então que CC consegue sair do carro e tenta fugir pela parta traseira do mesmo sendo aí ainda atingida com a espingarda que o arguido levantou no ar por duas vezes com fortes pancadas na cabeça que a fizeram cair inanimada.
Ora toda esta atuação foi súbita, e inclusive no que diz respeito à vítima DD pela retaguarda deste, tendo o arguido surgido já com a arma municiada, disparado contra cada uma das vítimas, respetivamente visando a zona do tronco e da cabeça, estando todas elas sentadas nos respetivos veículos no local do condutor e atuando sempre de forma contínua, não tendo permitido a qualquer uma delas - pela forma imprevista e inesperada do ataque e as zonas do corpo de cada uma a que dirigiu os disparos - qualquer defesa, tendo-se de seguida posto em fuga.
Deste modo cremos que tal como decidiu o tribunal a quo apesar do instrumento utilizado não ser um meio insidioso, as concretas circunstâncias da sua atuação levam-nos a concluir por um agir através de um meio particularmente insidioso e por uma especial perversidade e censurabilidade, traduzida numa atitude profundamente rejeitável pela sociedade.
Entende-se, pois, que não merece censura a integração da sua atuação também na al. i) do nº 2 do art. 132º do Código penal.
IV.2 - Da errada condenação pela prática do crime de detenção e arma proibida
A posição expressa pelo arguido quanto ao preenchimento deste tipo de crime partia da alteração da matéria de facto provada, que como vimos, não foi procedente.
No acórdão recorrido escreveu-se: “O artigo 86º da lei nº 5/2006, de 23.02, prevê:
Nº 1- Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
c)- Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;
e)- Silenciador, moderador de som não homologado ou com redução de som acima dos 50 dB, freio de boca ou muzzle brake, componentes essenciais da arma de fogo, carregador apto a ser acoplado a armas de fogo semiautomáticas ou armas de fogo de repetição, de percussão central, cuja capacidade seja superior a 20 munições no caso das armas curtas ou superior a 10 munições, no caso de armas de fogo longas, bem como munições de armas de fogo não constantes na alínea anterior, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
O artigo 2º, no âmbito das definições legais, estabelece que, para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação, entende-se por:
- nº 3)- Munições das armas de fogo e seus componentes:
-alínea p)- «Munição de arma de fogo» o cartucho ou invólucro ou outro dispositivo contendo o conjunto de componentes que permitem o disparo do projéctil ou de múltiplos projécteis, quando introduzidos numa arma de fogo;
- alínea ad) «Zagalotes» os projécteis, com diâmetro superior a 4,5 mm, que fazem parte de um conjunto de múltiplos projécteis para serem disparados em armas de fogo com cano de alma lisa;
Por seu lado, o artigo 3º define:
Nº 1 - As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.
Nº 2- são armas, munições e acessórios da classe A:
- alínea v)- os cartuchos carregados com zagalotes, excepto se integrados na actividade de coleccionador ou de armeiro, exclusivamente para exportação e transferência;
Artigo 4.º (armas da classe A):
1 - São proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A.
5 - Aos atiradores de tiro desportivo pode ser autorizada a aquisição, a detenção, o uso e porte de armas e acessórios previstos nas alíneas ad), af), ag), ah) e ai) do n.º 2 do artigo 3.º
Está imputada a prática de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, por referência aos artigos 2º, n.º 3, alínea ad) 3.º n.º 1 e 2 alínea v) e artigo 4.º do mesmo diploma por o arguido deter e guardar na sua habitação uma caixa contendo cinco cartuchos zagalote de 9 bagos, de classe A não possuindo qualquer licença para a sua detenção.
Os factos provados demonstram, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, o cometimento deste crime.”
Na verdade, os factos que resultaram provados nos pontos 55, 56, 60, e 61, permitem a conclusão de que o arguido tinha guardadas sem qualquer licença que lho permitisse fazer as munições que se encontravam na sua posse.
Mais se provou que agiu com a intenção conseguida de deter os referidos cartuchos zagalote que lhe foram apreendidos, conhecendo a natureza e características dos mesmos, sabendo que não os estava autorizado a deter e que não dispunha de qualquer licença para o efeito, o que fez de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime
Deste modo, nada há a censurar à integração da conduta do arguido no crime de detenção de arma proibida nos termos efetuados pelo tribunal a quo.
Argumenta o recorrente no que concerne ao crime de detenção de arma proibida, face à ausência de antecedentes criminais, deveria ter sido condenado em pena de multa e próxima do mínimo e não em pena de prisão de 5 meses, que entende ser excessiva.
Mais considera exageradas as penas aplicadas por cada um dos crimes de homicídio qualificado tentado.
Entende ainda que, em face de tudo o que resultou do julgamento, impunha-se uma atenuação especial da pena nos termos do disposto no art. 72º, nº 1 al. c) do Código Penal.
Entende ainda que a pena única do concurso, fixada em 13 anos de prisão é excessiva, e não deverá ser descartada a possibilidade de aplicação de uma pena única de 5 anos suspensa na sua execução sob a condição do arguido efetuar o pagamento das indemnizações devidas às vítimas.
Vejamos:
Quanto à natureza da pena:
O critério de escolha da pena encontra-se previsto no art. 70º do Código Penal.
Resulta desta disposição legal que " se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição", as quais consistem na proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, n.º 1 do Código Penal).
Por conseguinte, a escolha deverá ser feita à luz de um critério de conveniência e mediante um juízo de prognose favorável à opção pela pena não privativa de liberdade, isto é, pela conclusão de que esta é suscetível de cumprir as finalidades da prevenção.
O ilícito em apreço, tendo por referência a gravidade da reação penal, não é passível de ser enquadrado na grande criminalidade, situando-se uns patamares abaixo daquela, inserido na pequena/média criminalidade.
Não obstante a preferência manifestada pelo legislador relativamente à pena de multa, entende-se que, no caso concreto, a aplicação de uma pena daquela espécie ao arguido não se revela nem adequada, nem suficiente, para acautelar as necessidades de prevenção geradas pelo ilícito.
Na verdade, pela frequência da prática criminosa em apreço, a pena de prisão é a que se apresenta com maior potencial dissuasor respondendo, assim de modo mais efetivo à proteção do bem jurídico violado.
É certo que o arguido não tem antecedentes criminais, mas veio a cometer os restantes crimes que se apreciam com recurso a uma arma de fogo (esta licenciada), o que acarreta algumas exigências de prevenção especial.
Entendemos, pois, tal como o fez o Tribunal a quo, que o sentido convergente para que apontam as necessidades de prevenção geral e especial levam a que se conclua que a pena não detentiva não se revela suficiente para promover a recuperação social do arguido e satisfazer as exigências de reprovação e prevenção do crime, pelo que se considera correta a opção pela aplicação da pena de prisão.
Nos termos do art. 72º do Código Penal:
“1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.
Como se refere no Acórdão do STJ de 06.10.2021 [processo 401/20.8PAVNF.S1, disponível in www.dgsi.pt] “I - A atenuação especial da pena está reservada para os «casos extraordinários ou excecionais». Para a generalidade dos casos a pena determina-se dentro da moldura penal do tipo de ilícito cometido pelo agente.
II - A substituição da moldura penal do tipo de ilícito cometido pelo agente por uma moldura especialmente atenuada, só pode dar-se quando no caso concreto existam circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores que ainda não tenham operado e “que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena” – art. 72.º, n.º 1, do CP.
III - Critério decisivo é que as circunstâncias concorrentes, pela sua especial intensidade, configurem um caso de gravidade, tão acentuadamente diminuída, seja ao nível da ilicitude ou da culpa, seja ao nível da necessidade da pena, que escapa à previsão do que o legislador definiu e que, por isso, seria injusto punir dentro da respetiva moldura penal, já prevenidamente muito ampla.
(…)”
Ora, nos autos invocou o arguido o disposto no art. 72º, nº 1 e 2 al. c) do Código Penal e, concretamente, ter agido quando se encontrava embriagado, ter demonstrado arrependimento e ter efetuado o pagamento de €14.140,03€ à Unidade de saúde Local de Coimbra E.P.E, €4.217,18 a DD e €1.1.85,02 a EE.
No tocante à circunstância de ter agido como se refere no ponto 62 com a vontade diminuída em razão do seu estado de embriaguez, cremos ser de afastar a atenuação especial da pena, tanto mais que este resultou da ingestão voluntária de bebidas alcoólicas num convívio a que atendeu e que, em face do que já deixamos acima expresso no ponto IV.1 se entende que não constituirá fator, na situação presente, de atenuação especial
Neste sentido veja-se ainda o acórdão do TRL nº 0024835 [disponível in www.dgsi.pt]: “No Código actual, ao contrário do que sucedia no domínio do Código de 1986, a comissão de crimes sob a influência do álcool constitui, em regra, um factor agravativo da punição.
II - A influência do álcool, presentemente, só tem valor atenuativo da responsabilidade criminal quando a embriaguez seja acidental, isto é, não querida nem procurada, e imprevista.
Nos autos provou-se que o arguido manifesta arrependimento e que pagou aos demandados os valores peticionados a título de danos patrimoniais, nos valores acima referidos.
Como se refere no acórdão do STJ de 24.03.2022 [processo nº 134/21.8JELSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt]: “I - Quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para um certo tipo de crime, prevê as diversas modalidades e graus de realização do facto, desde os da menor até aos da maior gravidade pensáveis, de modo que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção.
Quando, em hipóteses especiais, existem circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição, relativamente ao complexo “normal” dos factos visados pela moldura penal, o legislador procedeu à substituição dessa moldura penal por outra menos severa. Para além de outros casos, expressamente previstos na lei de atenuação especial da pena, o legislador, consagrou, na parte geral do Código Penal, uma cláusula geral de atenuação especial da pena, nos seus arts. 72.º e 73.º.
II - A jurisprudência tem sido exigente na aplicação do art. 72.º do CP, limitando a atenuação especial da pena a casos extraordinários ou excecionais de acentuada diminuição da ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
III - Uma vez que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, pois para a generalidade dos casos, para os «casos normais», lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios, e no presente caso não se vislumbram acentuadas circunstâncias atenuantes da responsabilidade do arguido ao nível da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena que levem ao abaixamento da pena abstrata prevista no crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência à Tabela I-B anexa ao citado diploma, o STJ entende que bem andou o tribunal recorrido ao não fazer uso da atenuação especial da pena a que aludem os arts. 72.º e 73.º do CP.
IV - O STJ vem afirmando, repetidamente, que os “correios de droga” são uma peça fundamental no tráfico de estupefacientes concorrendo, de modo direto, para a sua disseminação, pelo que não merecem um tratamento penal de favor.
V- Dos padrões sancionatórios da jurisprudência suprarreferida, em que se tem em consideração a quantidade de cocaína apreendidas aos “correios de droga”, constata-se que são aplicadas, geralmente, penas de prisão que variam entre os 5 anos e os 5 anos e 6 meses de prisão por transporte de quantidades bem inferiores às que estão aqui em causa, pelo que não se pode concluir, como pretende o recorrente, que a sua condenação, numa pena de 6 anos de prisão, pelo tráfico de cerca de 6 kg de cocaína, com uma pureza entre 28,4% e 33,4%, configura “uma gritante injustiça”.
Paulo Pinto de Albuquerque afirma [Comentário do Código Penal 5ª Edição Atualizada, pág. 409] “A diminuição acentuada da necessidade da pena pode determinar uma atenuação especial da pena apesar da ilicitude e culpa não serem diminutas”. Acrescentando “ a disposição é, neste sentido, excecional, pois depende da prova efetiva de uma atenuação acentuada(essencial) da culpa ou das necessidades de prevenção ( já assim , JOSÉ OSÓRIO, com a concordância de EDUARDO CORREIA, in ACTAS/EDUARDO CORREIA, 1965:129 e 133 e posteriormente FIGUEIREDO DIAS, 1993:307LEAL HENRIQUES E SIMAS SANTOS, 2002, 257 e MIGUEZ GARCIA E CASTELA RIO, 2014: 376, anotação 6º ao art.72º).
Salientam estes últimos [Código Penal Parte Geral e Especial, 2015, 2ª edição pág. 395] “ a diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao crime, FIGUEIREDO DIAS 1993, p. 306. Só em casos excecionais pode, pois, ter lugar, para os casos normais ficam as molduras normais”.
Aqui chegados:
Não desatendemos o facto de o arguido ter demonstrado arrependimento e de ter pago os montantes relativos aos danos patrimoniais peticionados nos autos.
Porém, a atenuação especial, impõe uma acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena.
Ora, não obstante essa manifestação de arrependimento e o pagamento dessa parcela indemnizatória, entendemos que não se mostra acentuadamente diminuída a ilicitude dos factos em apreço que, pelo contrário, é elevada, nem se verifica – dada a factualidade provada - qualquer diminuição acentuada da culpa do arguido, ou mesmo da necessidade da pena.
Nesta última vertente estão em causa sobretudo de necessidades de prevenção geral positiva ou de integração [cf. Miguez Garcia e Castela Rio, in Ob cit., pág. 394], isto é “o reforço da consciência jurídica e do seu sentimento de insegurança face à violação da norma ocorrida: em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma” [ Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências jurídicas do Crime, pág. 73]
Na verdade, dada a natureza dos crimes em apreço e a relevância dos bens jurídicos tutelados, o sentir geral da comunidade não reflete uma menor exigência quanto a esta criminalidade, mesmo perante este arrependimento manifestado e parcial pagamento dos montantes peticionados.
Como se salienta no Acórdão do TRE de 20.10.2020 [disponível in www.dgsi.pt]:“1 - A atenuação especial da pena tem que ver com circunstâncias excepcionais, que funcionam como “válvula de segurança” perante a multiplicidade e a diversidade de situações que a vida real revela e a que o legislador, apesar da preocupação de abarcá-las quanto possível, não consegue dar resposta suficientemente justa mediante a previsão abstracta das medidas das penas.
2 - O seu carácter eminentemente excepcional não pode ser esquecido, sob pena das finalidades da punição se verem postergadas, pelo que não é suficiente um quadro em que as atenuantes sejam importantes, mas sim que estas sejam de molde a concluir-se que, só através da “correcção” à medida da pena, se obtém uma solução justa, sempre, contudo, sujeita à acentuada diminuição da ilicitude do facto e da culpa e das necessidades punitivas.”
É também nossa convicção de que - sendo esta atenuação especial da pena de carácter excecional - a sua não aplicação na situação em apreço em face da dimensão e gravidade dos crimes cometidos e da relevância dos bens jurídicos protegidos, não se impunha, sem prejuízo da relevância dos factores mencionados na tarefa da determinação da medida da pena.
No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, no referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.04.2017 [processo nº 47/15.2IDLRA.C1, disponível in www.dgsi.pt], onde se escreve: “Fixada a pena é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação. Relativamente à determinação do quantum exacto de pena será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada”.
A censura que o tribunal de recurso pode fazer sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses fatores na decisão final.
É função do recurso - antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.
Os poderes deste Tribunal abrangem nesta matéria, entre outras, a avaliação dos fatores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada.
Assim, é forçoso concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
Na análise desta matéria, importa, pois, ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Decorre do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial, determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.
Anabela Miranda Rodrigues [A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570 e 571] escreve: “Entendida a prevenção geral com o sentido que lhe vimos dando – isto é, a protecção de bens jurídicos alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada, postula ela, já o dissemos, a proporcionalidade entre a medida da pena e a gravidade do facto praticado.” Acrescentando “É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica” .
Adindo, relativamente à prevenção especial, que: “o desvalor do facto é agora valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” E prosseguindo refere “resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...” [Ob cit., pág. 574 e 575].
Assim sendo, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente [Cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime” pág. 227 e ss.].
Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial que o caso concreto impõe e não exceder a medida da culpa do agente.
Nos autos estavam em causa três crimes de homicídio qualificado tentado agravados pelo art. 86º, nº 3 e 4 da lei nº 5/2006 de 23.02.
No entanto o Tribunal a quo considerou as circuntâncias em que a arma foi utilizada como agravante nos termos do disposto no art. 132º, nº 2 al. i) do Código Penal, entendendo que o seu uso nas circunstãncias em causa constituiu meio insidioso.
O art.º 86.º, n.º 3, da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 4 de setembro, n.º 17/2009, de 6 de maio, n.º 26/2010, de 30 de agosto, e n.º 12/2011, de 27 de abril) dispõe que “as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”.
Ora, a situação em apreço cai precisamente neste ultimo segmento do preceito, porquanto a utilização pelo arguido de forma inesperada e tornando particularmente dificil a defesa das vítimas foi já considerada como circunstância agravante do homicídio que constitui agravação mais elevada do que a decorrente do art. 86º, nº 3 do Lei nº 5/2006.
Assim, tendo o uso da arma sido utilizado para qualificar o homicídio não poderá efetivamente operar a agravante do art. 86º nº 3 e 4 da lei 5/2006 de 23.02.
No acórdão recorrido, a propósito da medida da pena após explanação teórica com a qual concordamos em absoluto, escreveu-se:
“A determinação concreta da pena deve valorizar as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, militem a favor do arguido ou contra ele; assim, impõe-se ponderar:
- o grau de ilicitude do facto é elevado tendo em conta a intensidade de cada acção do arguido e o contexto da sua actuação sobre os ofendidos;
- modo de execução dos crimes: num local calmo e depois de ter estado com as vítimas num espaço que o arguido bem conhecia, deixando-as à sua mercê; em relação à esposa (sendo o homicídio qualificado pela alínea b) do nº 2, do artigo 132º) ainda se verifica, em sede de determinação da pena concreta, o agravamento decorrente da utilização da espingarda caçadeira naquelas circunstâncias de surpresa e emboscada bem como a utilização da espingarda para lhe dar duas pancadas na cabeça depois de já não conseguir disparar;
- gravidade das consequências: as lesões e sequelas bem como os períodos de incapacidade dos ofendidos; a não consumação do crime de homicídio devido ao aparecimento de outras pessoas e ao rápido socorro;
- grau de violação dos deveres impostos ao agente: normalmente seria elevado tendo em conta o modo de actuação revelador de um intenso desrespeito pela vida da esposa, de EE e de DD; todavia, deve ser tido em conta que o estado de intoxicação alcoólica do arguido foi facilitador da prática dos actos, condicionando o exercício da sua capacidade de autodeterminação, o que implicará, nesta sede, uma diminuição das penas concretas;
- intensidade do dolo: grau mais elevado – dolo directo – artigo 14º, nº 1, representação do facto e actuação com intenção de o realizar; porém, a sua vontade, encontrava-se diminuída em razão do seu estado de embriaguez;
- sentimentos manifestados no cometimento do crime: desprezo pela vida alheia, relativamente a pessoas com as quais se encontrara minutos antes;
- fins ou motivos que o determinaram: não se apurou em concreto a motivação do arguido;
- condições pessoais do arguido, situação económica e conduta anterior aos factos: à data dos factos, o arguido vivia com a esposa (que alvejou), trabalhava na empresa com a mesma, moravam em casa própria, tinha a família (aparentemente) estruturada; tinha o seu grupo de amigos e ocupações de lazer, sendo considerado entre os amigos; a situação económica não foi suficientemente definida, mas não parece preocupante; não regista antecedentes criminais;
- conduta posterior aos factos: encontra-se preso preventivamente, à ordem do presente processo; apresenta arrependimento, pagou os danos patrimoniais peticionados, no estabelecimento prisional tem bom comportamento e ocupação.
No que respeita ao crime de arma proibida, estão em causa os cinco cartuchos zagalote de 9 bagos, o que representa uma gravidade abaixo da média tendo em conta o local em que foram encontrados bem como a quantidade de armas que o arguido tinha, todas em situação legal.
Definindo, a partir deste quadro, a importância da justa retribuição do ilícito e da culpa, bem como as necessidades da prevenção especial e, depois, da prevenção geral (confirmação da ordem jurídica), chamando a ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena com a graduação da importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa), o tribunal colectivo entende que o arguido deve ser condenado nas seguintes penas:
- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, na pessoa de CC (moldura penal entre dois anos, quatro meses e 24 dias e os 16 anos e 8 meses de prisão): considerando a factualidade integradora da agravante prevista na alínea i) do nº 2, do artigo 132º (que não foi valorada para efeitos de definição da moldura penal), nomeadamente a utilização da arma, o ataque naqueles termos e circunstâncias e as “coronhadas” aplicadas bem como os sofrimentos, lesões, dias de doença e demais consequências, deve ser fixada a pena de sete anos e seis meses de prisão;
- um crime de homicídio simples, na forma tentada, na pessoa de DD (moldura penal entre dois anos, quatro meses e 24 dias e os 16 anos e 8 meses de prisão): considerando os sofrimentos, lesões, dias de doença, sequelas (especialmente quanto ao olho) e demais consequências, deve ser fixada a pena de seis anos e seis meses de prisão;
- um crime de homicídio simples, na forma tentada, na pessoa de EE (moldura penal entre dois anos, quatro meses e 24 dias e os 16 anos e 8 meses de prisão): considerando os sofrimentos, lesões, dias de doença, sequelas e demais consequências (menos graves que o anterior), deve ser fixada a pena de cinco anos e seis meses de prisão;
- um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada (moldura penal de um mês a dois anos de prisão): deve ser fixada a pena de cinco meses de prisão.
Deste modo, verificamos que no caso em análise foram ponderadas as circunstâncias agravantes e atenuantes em presença, incluindo os fatores realçados pelo recorrente na peça recursiva apresentada.
E assim, entendemos que as penas de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses e 6 (seis) anos e 6 (seis) meses aplicadas ao arguido pela prática dos crimes de homicídio qualificado tentado que tiveram por vítimas EE e DD se mostram corretamente fixadas, sendo justas adequadas e proporcionais às exigências de prevenção (geral e especial em presença) e suportadas pelos limites da culpa verificada.
Já no que concerne à pena relativa ao crime de homicídio qualificado (nos termos da al. b) do nº 2 do art. 132º do Código Penal) que teve por vítima CC, sendo certo que opera na graduação da pena como circunstância agravante o modo insidioso como a arma foi utilizada, certo é também que as lesões por esta sofridas são (felizmente) menos graves que as das outras vítimas.
Assim, pese embora sob a perspetiva do modo de execução do crime nos distanciemos do milite mínimo da moldura penal, num exercício comparativo, sob a perspetiva das sequelas e todas as demais circunstâncias a ponderar cremos que a pena deverá merecer um ajuste a assim situar-se nos 7 (sete) anos.
No que concerne à medida da pena encontrada para o crime de detenção de arma proibida numa moldura penal que se situa entre 1 (um) mês e 2 (dois) anos de prisão foi aplicada ao arguido a pena de 5 (cinco) meses de prisão, que se mostra perfeitamente justificada, na fundamentação apresentada, sendo que corresponde a menos de 1/5 da diferença entre o limite mínimo e máximo da moldura penal e perfeitamente ajustada às prementes necessidades de prevenção geral vem como às necessidades de prevenção especial verificadas e suportada pelos limites da culpa do arguido..
Vejamos agora a pena única encontrada em face das regras da punição do concurso previstas no artigo 77º do Código Penal.
Na medida da pena haverão de ser considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, assim se respeitando o essencial da pena unitária.
“Na verdade, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, caráter unitário” [Manuel de Oliveira Leal Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, 3ª edição, 1º Volume, Parte Geral, pág. 912.]. É que “não tendo o legislador nacional optado pelo sistema da acumulação material, é forçoso concluir que com a fixação da pena unitária pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda que se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.” [Cf. Acórdão do STJ de 24.02.2010, processo nº 563/03.9PRPRT.S1, disponível in www.dgsi.pt].
“A medida da pena única é fixada, pois, mediante a avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente, procurando-se aferir designadamente se os factos e crimes em concurso são expressivos de uma inclinação criminosa ou apenas delitos ocasionais, apurando-se ainda a ilicitude dos factos no seu conjunto e a sua eventual conexão, motivações subjacentes, danosidade social dos factos, e assim, ponderar o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente”. [Cfr. Figueiredo Dias, In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 290 a 292].
Importará, assim, analisar a existência de uma eventual conexão entre os factos em concurso, o seu contexto e frequência, bem como a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos violados, o número, a natureza e a gravidade dos crimes cometidos e das penas aplicadas, tudo ponderado em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, para assim permitir a perspetiva unitária e global que assegure as finalidades da pena (única).
Estamos agora perante uma moldura penal que se situa entre os 7 ( sete) anos e os 19 (dezanove) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
Na decisão recorrida a este propósito escreveu-se o seguinte:
“Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) há que fazer uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso 53 .
Devem ser consideradas as circunstâncias temporais e espaciais, os bens jurídicos protegidos por estes crimes e o respectivo enquadramento e gravidade dos comportamentos.
Na avaliação da personalidade, tendo sido praticados nas mesmas circunstâncias, não se pode concluir que o conjunto global dos factos indicie uma tendência criminosa, mas apenas uma mera pluralidade de situações; também aqui deve plasmar-se a circunstância de a vontade do arguido se encontrar diminuída em razão do seu estado de embriaguez.
A pena mais grave deve sofrer médio “efeito expansivo”, com a consequente aplicação da pena única de treze anos de prisão”.
Defende o arguido que a pena que lhe foi aplicada se mostra excessiva e desproporcional.
A moldura penal, como acima referido, situa-se entre 7 (sete) anos e os 19 (dezanove) anos e 4 (quatro) meses de prisão, havendo uma diferença de 12 (doze) anos e 4 (quatro) meses entre o mínimo e o máximo da moldura penal.
Como se refere no Acórdão do STJ de 30.11.2016 [Disponível in www.dgsi.pt.] “a medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria.
Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes.
Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese, correspondente a um novo ilícito e a uma nova culpa (agora culpa pelos factos em relação), uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal”.
A proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo.
“A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes”.
Assim, “se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta”.
“É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”.
Também no Acórdão do STJ de 08.07.2020 [Igualmente disponível in www.dgsi.pt.] se escreve: “Constatando assinalável diversidade na determinação da pena conjunta, justificativa de incerteza jurídica, desigualdade nas consequências jurídicas do concurso de crimes, e fonte de onde brota, a jusante, considerável litigância recursória perante o STJ, desenhou-se neste Tribunal uma corrente jurisprudencial que tendencialmente faz intervir, dentro da nova moldura penal, operações aritméticas que devem guiar o tribunal na fixação do quantum da pena conjunta. Resumidamente, na sua veste mais recente, sustenta que na determinação da medida da pena única, se deve adotar um critério consistente em adicionar à pena parcelar mais grave, que fixa o limiar inferior da moldura do cúmulo, uma fração das restantes penas, sendo a partir deste valor, consideradas as especificidades do caso concreto. Atendendo à regra ínsita no art. 77º nº 1 do Código Penal, para determinar a fração, toma-se em consideração principalmente o tipo de criminalidade e a dimensão das penas parcelares cumuladas e, complementarmente, a personalidade do arguido expressada nos factos ou que os factos revelam.
A. G. Lourenço Martins, estudando a jurisprudência deste Supremo sobre a medida da pena, defende a adição de uma proporção do remanescente das penas parcelares que oscila, conforme as circunstâncias de facto e a personalidade do agente e por via de regra, entre 1/3 e 1/5 e acrescenta que se bem que a corrente, que se poderia designar do «factor percentual de compressão», possa relutar a um julgador cioso do poder discricionário (aqui, aliás, mais vinculado que discricionário), desde que o seu uso não se faça como ponto de partida mas como aferidor ou mecanismo de controlo, não nos parece que deva, sem mais, ser rejeitada. Representa um esforço de racionalização num caminho eriçado de espinhos, desde que afastada uma qualquer «arbitrariedade matemática» ou uma menor exigência de reflexão sobre os dados. O direito, como ciência prática e não especulativa nunca atingirá a certeza das matemáticas ou das ciências da natureza, mas a jurisprudência deve abrir-se ao permanente aperfeiçoamento, que há-de ser encontrado na pena conjunta.
Sustenta-se no Ac. de 27/01/2016 deste Supremo Tribunal que “não repugna que a convocação dos critérios de determinação da pena conjunta tenha como coadjuvante, e não mais do que isso, a definição dum espaço dentro do qual as mesmas funcionam.
Na verdade, como se referiu, a certeza e segurança jurídica podem estar em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Recorrendo ao princípio da proporcionalidade não se pode aplicar uma pena maior do que aquela que merece a gravidade da conduta nem a que é exigida para tutela do bem jurídico.
Para evitar aquela vacuidade admite-se o apelo a que, na formulação da pena conjunta e na ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade, se considere que, conforme uma personalidade mais, ou menos, gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determine a pena única somando à pena concreta mais grave entre metade e um quinto de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso (Confrontar Juiz Conselheiro Carmona da Mota em intervenção no STJ no dia 3 de Junho de 2009 no colóquio subordinado ao tema "Direito Penal e Processo Penal", igualmente Paulo Pinto de Albuquerque Comentários ao Código Penal anotação ao artigo 77).
A utilização de tal critério de determinação da pena conjunta está relacionada com uma destrinça fundamental que importa estabelecer ao nível das consequências jurídicas em função da fenomenologia criminal. Na operação de cálculo do fator de compressão importa considerar a necessidade de um tratamento diferente para a criminalidade bagatelar, média e grave – diferença de tratamento que o legislador penal e processual penal expressou vivamente -, de tal modo que, como referia Carmona da Mota, a “representação” das parcelares que acrescem à pena mais grave se possa saldar por uma fração cada vez mais alta, conforme a gravidade do tipo de criminalidade em julgamento. Na verdade, não é raro ver um tratamento uniforme, destituído de qualquer opção valorativa do bem jurídico, e este pode assumir uma diferença substantiva abissal que perpassa na destrinça entre a ofensa de bens patrimoniais ou bens jurídicos pessoais fundamentais como a própria vida.”
Estão em causa três crimes de homicídio qualificado na forma tentada praticados nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e um crime de detenção de arma proibida também cometido na mesma circunstância de tempo.
As exigências de prevenção geral decorrentes da globalidade dos factos que se apreciam são elevadas, tendo em conta os concretos bens jurídicos violados e a danosidade social inerente, sendo premente o sentimento da comunidade em face dos crimes em apreço.
Retira-se dos factos provados que o arguido não tem antecedentes criminais e teve um percurso de vida pautado por uma integração social e atuou num quadro de vontade diminuída por força da embriaguez..
Está atualmente em reclusão, por força da medida de coação de prisão preventiva aplicada.
Tendo em conta os bens jurídicos protegidos, com particular realce para aquele que constitui o bem jurídico máximo que é a vida, e ponderando a avaliação do ilícito global perpetrado, e a sua relação com a personalidade do arguido, reconhece-se que o conjunto dos factos evidencia aqui um ilícito global já algo desvalioso, e a culpa do arguido é elevada.
Estamos, porém, na mera pluralidade de situações.
Importa que a pena única demonstre adequação, justeza, e proporcionalidade, entre a avaliação conjunta daqueles dois fatores - a gravidade do ilícito que resulta da prática dos quatro crimes cujas penas estão em concurso e o percurso de vida do arguido - tendo em conta os princípios da necessidade da pena e da proibição de excesso.
E, assim, fazendo apelo aos critérios de compressão acima referidos cremos que a pena única que se mostra proporcional e adequada é a de 11 (onze) anos - que se situa um pouco abaixo da soma de um terço das remanescentes penas parcelares ao limite mínimo da moldura penal - pena esta ainda capaz de dar satisfação às exigências de prevenção, quer geral, quer especial que a situação presente impõe.
Sendo esta pena superior a 5 (cinco) anos de prisão, limite máximo estabelecido pelo legislador, no art. 50º do Código Penal, mostra-se legalmente impossível operar a suspensão da sua execução.
Deste modo, improcede, também nesta parte, o recurso interposto pelo arguido.
Entende o recorrente AA que os montantes fixados a título de indemnização aos demandantes DD e EE são excessivos.
Para o efeito alega que DD à data tinha 69 e não 63 anos e que estava reformado e que tendo frequentado consultas de psicologia as abandonou por entender não dever manter esse acompanhamento.
Quanto ao arguido EE esse sim com 63 anos viu atingido o seu braço esquerdo e como tal estará menos funcionalmente limitado do que alegou.
Os demandantes AAA e DD vieram, por seu turno, interpor recurso subordinado, pretendendo:
- O demandante DD:
a) que o valor da indemnização civil pelo dano biológico seja fixado em 150.000€ em vez da quantia de 60.000€ fixada pelo tribunal a quo;
b) que o valor da indemnização civil pelos danos não patrimoniais sofridos seja fixada em 100.000€ em vez da quantia de 30.000€ fixada pelo tribunal a quo.
c) que o valor da indemnização civil fixada pelo quantum dolóris e défice funcional seja fixada em 50.000€ em vez dos 25.000€ fixados pelo tribunal a quo.
- O demandante EE:
a) que o valor da indemnização civil pelo dano biológico seja fixado em 100.000€ em vez da quantia de 30.000€ fixada pelo tribunal a quo;
b) que o valor da indemnização civil pelos danos não patrimoniais sofridos seja fixada em 100.000€ em vez dos 20.000€ fixados.
c) que o valor da indemnização civil fixado pelo dano estético seja fixada em 50.000€ em vez dos 10.000€ fixados pelo tribunal a quo.
d) que o valor da indemnização civil pelo quantum dolóris e défice funcional seja fixada em 50.000€ em vez dos 15.000€ fixados pelo tribunal a quo.
No acórdão recorrido neste âmbito escreveu-se:
“II)- EE pretende a condenação do demandado no pagamento:
a) de uma indemnização pelos seguintes danos: - dano biológico, em valor nunca inferior a € 50.000,00; danos não patrimoniais, em valor nunca inferior a € 100.000,00; - dano estético, em valor nunca inferior a € 50.000,00; - pelo quantum doloris e défice funcional, em valor nunca inferior a € 50.000,00;
b) das quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença respeitantes ao pagamento de despesas médicas futuras;
c) dos danos patrimoniais e não patrimoniais futuros que se vierem a liquidar em execução de sentença, na sequência do pedido anterior.
III)- DD pretende que o demandado seja condenado ao pagamento:
a) de uma indemnização pelos seguintes danos: - dano biológico, em valor nunca inferior a € 150.000; - danos não patrimoniais, em valor nunca inferior a € 100.000,00; - dano estético, em valor nunca inferior a € 50.000,00; - pelo quantum doloris e défice funcional, em valor nunca inferior a € 50.000,00;
b) das quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença respeitantes ao pagamento de despesas médicas futuras;
c) dos danos patrimoniais e não patrimoniais futuros que se vierem a liquidar em execução de sentença, na sequência do pedido anterior.
Assim, é às disposições do Código Civil --artigos 483º, e ss. e 562º e ss. -- que se têm de ir buscar não só os pressupostos da responsabilidade civil como também as regras de determinação dos danos a indemnizar [cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.10.1989, AJ, nº 2, pág. 4].
Segundo o artigo 483º, do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
O artigo 495º, nº 2, do Código Civil estabelece que têm direito a indemnização “aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares (…) que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima”.
Nos termos do artigo 342º, nº 1, do CC: “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos são: a)- facto voluntário do lesante; b) ilicitude; c) imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) nexo de causalidade entre o facto e o dano [Senhor Professor Antunes Varela, “Das obrigações em geral”, Volume I, 1991, pág. 516].
Estão demonstrados todos os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos.
Os danos/sofrimentos pelos demandantes que constituem os respectivos danos invocados ressaltam dos factos provados.
A doutrina e a jurisprudência vêm salientado que o dano não patrimonial não se reconduz a uma única figura, tendo vários componentes e assumindo variados modos de expressão, abrangendo:
(i) o chamado quantum (pretium) doloris, que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos, a analisar através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico;
(ii) o “dano estético” (pretium pulchritudinis), que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima;
(iii) o “prejuízo de distracção ou passatempo”, caracterizado pela privação das satisfações e prazeres da vida, vg., com renúncia a actividades extra-profissionais, desportivas ou artísticas;
(iv) o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica), integrando este prejuízo a quebra na “alegria de viver”;
(v) o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem-estar, e que valoriza as lesões muito graves, com funestas incidências na duração normal da vida;
(vi) os danos irreversíveis na saúde e bem-estar da vítima e o corte na expectativa de vida;
(vii) o prejuízo juvenil “pretium juventutis”, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida, privando a criança das alegrias próprias da sua idade;
(viii) o “prejuízo sexual”, consistente nas mutilações, impotência, resultantes de traumatismo nos órgãos sexuais;
(ix) o “prejuízo da auto-suficiência”, caracterizado pela necessidade de assistência duma terceira pessoa para os actos correntes da vida diária, decorrente da impossibilidade, de se vestir, de se alimentar. [Por exemplo: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.2009 (397/03.0GEBNV.S1) e do Tribunal da Relação do Porto de 07.02.2023 (processo 193/21.3T8PVZ-A.P1), nos quais se encontram indicados critérios de fixação dos valores indemnizatórios a fixar].
Como salienta o Supremo Tribunal de Justiça [Por exemplo: acórdãos de 22.06.2017 (processo 307/04.8TBVPA.G1.S2) e de 10.04.2024 (987/21.0T8GRD.C1.S1)], « No critério a adoptar na fixação dos danos não patrimoniais, posto que esta não tem por escopo a reparação económica, mas antes a compensação do lesado e reprovação da conduta lesiva, não devem perder-se de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, com vista a uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, sendo relevantes para esse efeito: a natureza, multiplicidade e diversidade de lesões sofridas, as intervenções cirúrgicas e tratamentos médicos e medicamentosos a que o lesado se teve de submeter, os dias de internamento e o período de doença, a natureza e a extensão das sequelas consolidadas, o quantum doloris e o dano estético, se o houver (arts. 496.º, e 494.º do CC).»
Dano biológico
Como salienta o Supremo Tribunal de Justiça [Por exemplo, acórdão de 21.04.2022 (processo 96/18.9T8PVZ.P1.S1)], “o dano biológico vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais; é um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado.
II. Tal dano tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral. Depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.
III. Não sendo possível determinar o valor exacto deste dano, tal avaliação terá de ser efectuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC. Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo deste dano, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou até... como um tertium genus.
IV. Na determinação do seu quantum indemnizatório, deve ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, face ao que dispõe o art. 8°, n° 3, do CC, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, sem se perder de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto – não podendo, assim, o dano biológico ser indemnizado por obediência a tabelas rígidas, de forma que a uma mesma pontuação em pessoas de idade aproximada tenha de corresponder necessariamente a fixação do mesmo valor a ressarcir.
V. Particularmente relevante é a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).”
DD
O demandante DD, por força da conduta ilícita do demandado, perdeu o globo ocular direito, com consequente perda de visão da vista direita, tendo ficado com parte significativa da face direita completamente desfigurada.
A perda da visão direita, por perda globo ocular direito com ligeira ptose da pálpebra inferior e, da qual resulta para o demandante DD grave afectação do sentido da visão, configuram lesões com sequelas permanentes para o demandante.
Acresce que tal dano apresenta repercussões directas nas actividades diárias do demandante DD, que exigem agora um maior esforço despendido na realização das mesmas.
Isto porque, por conta do dano corporal sofrido, o demandante DD perdeu parte significativa do seu campo visual.
Incapacidade que se traduz na dificuldade para definir profundidade (estereopsia) e na redução do campo periférico, tornando mais penosas tarefas que anteriormente eram simples, ficando desta forma limitadas/condicionadas todas as actividades do seu quotidiano, em particular aquelas que exigem visão periférica.
Por força do referido dano o demandante DD viu-se ainda obrigado a ser submetido a intervenções cirúrgicas, bem como a frequentar diversos tratamentos e a ser acompanhado regularmente nas especialidades médicas de Oftalmologia e Maxilo-facial.
O referido dano biológico repercute-se, naturalmente, na sua vida diária.
Desde logo, o demandante DD viu-se obrigou a alterar a sua rotina, que é agora dedicada ao tratamento, dentro do possível, da sua situação clínica.
Vive numa constante adaptação à sua nova condição, o que o transtorna profundamente.
O demandante DD sentiu e sente grande dificuldade na adaptação à sua visão monocular.
Com a agravante de ter passado a depender, sobretudo numa fase inicial, da ajuda de terceiros, designadamente, da sua filha, para realizar grande parte das suas tarefas pessoais e domésticas, as quais sempre realizou sozinho com plena autonomia.
Deixou ainda de poder conduzir, carecendo mais uma vez da ajuda de terceiros para realizar as mais diversas deslocações, nomeadamente para consultas médicas.
Atendendo aos critérios jurisprudenciais, o dano biológico sofrido pelo demandante DD, pela sua gravidade e repercussões, deve ser compensado com uma indemnização no montante de 60.000,00 euros.
O demandante EE, como consequência directa e necessária da conduta do arguido, ficou com o braço esquerdo imobilizado durante várias semanas, estando com mobilidade reduzida do mesmo.
A perda da funcionalidade do braço esquerdo representa um dano corporal/biológico, com repercussões directas nas actividades quotidianas do demandante, que exigem agora um maior esforço e adaptação na sua realização.
Com a lesão sofrida no braço, o demandante passou de carecer de ajuda para realizar o seu cuidado pessoal, nomeadamente, para se vestir, dada a dificuldade que sente por falta de mobilidade no braço e mão esquerda.
Tem um mal-estar permanente e dores constantes, resultante da perda de sensibilidade parcial da mão esquerda.
Durante várias semanas deixou de poder conduzir, carecendo da ajuda de terceiros para realizar as mais diversas deslocações que antes fazia com plena autonomia, nomeadamente para se deslocar a serviços e a consultas médicas.
Assim, em consequência do comportamento do demandado, o demandante sofreu um dano biológico/corporal e ficou com uma incapacidade permanente, e que esse dano se repercute no seu quotidiano, obrigando a um maior esforço despendido em todas as suas tarefas e actividades.
Atendendo aos critérios jurisprudenciais, o dano biológico sofrido pelo demandante EE, pela sua gravidade e repercussões, deve ser compensado com uma indemnização no montante de 30.000,00 euros.
O dano estético integra um subtipo de dano não patrimonial, a ser autonomizado [Seguiremos o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08.04.2019 (processo 344/12.9TAFAF.G1)].
Na expressão de Sofia Maia Frazão [“Avaliação Médico-Legal do “Dano Futuro”. Que Critérios?”, Porto, 2008], o dano estético, “constitui um dano não patrimonial que corresponde à repercussão das sequelas, numa perspectiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da imagem em relação a si próprio e perante os outros, que resulta de deterioração da sua imagem (…).
Mas, também é verdade que poderá pontualmente ser considerado um dano patrimonial, nos casos em que a vítima exerça profissão que exija um bom estatuto estético (…).
Pode ser um dano estático (ex.: cicatriz) ou dinâmico (ex.: claudicação da marcha), devendo ser tido em conta o seu grau de notoriedade ou visibilidade, o desgosto revelado pela vítima (considerada a sua idade, sexo, estado civil e estatuto socioprofissional) e a possibilidade de recuperação, designadamente cirúrgica (…)»
O dano estético, na definição da também jurista brasileira, Maria Helena Diniz [ “Curso de Direito Civil Brasileiro-Responsabilidade Civil”, 22ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008, p.80, v.7, citada naquele acórdão do Tribunal da Relação do Porto] é “Toda alteração morfológica do indivíduo que, além do aleijão, abrange as deformidades ou deformações, marcas e defeitos, ainda que mínimos, e que impliquem sob qualquer aspecto um afeiamento da vítima, consistindo numa simples lesão desgostante ou num permanente motivo de exposição ao ridículo ou de complexo de inferioridade, exercendo ou não influência sobre sua capacidade laborativa”.
DD
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, o demandante DD perdeu o globo ocular direito, com ptose da pálpebra inferior, lesão que lhe desfigurou a face e que determina, em si só, um dano estético permanente.
Essa desfiguração, com a qual o demandante DD tem de se confrontar diariamente, obriga à utilização de óculos escuros na presença de outras pessoas. O que o deixa envergonhado, afectando a sua auto-estima e confiança.
Além disso, está a ser seguido nas especialidades de oftalmologia oculoplástica e de maxilo-facial, com objectivo de colocar uma prótese ocular, que ainda aguarda.
Tal desfiguração consubstancia um grave e permanente dano estético, cuja compensação deve ser fixada no montante peticionado de 50.000,00 euros.
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, que ao disparar contra o demandante, o atingiu duas vezes, este ficou com uma cicatriz no peito e com ferimentos graves no braço esquerdo, que ficou bastante desfigurado, com perda de massa muscular e uma cicatriz de 50 cm de comprimento; perdeu a mobilidade do braço esquerdo e ainda da mão.
Tais sequelas, representam por si só, um dano estético permanente, que deve ser ressarcido com a indemnização no montante de 10.000,00 euros.
O ‘quantum doloris’ sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária, com tratamentos, intervenções cirúrgicas, internamentos, a analisar através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico.
DD
A perda do olho direito provocou e ainda provoca no demandante DD grande sofrimento, mas sobretudo pela dor que o demandante DD sentiu ao ser “perfurado” no olho por um disparo.
E ainda pelas dores e sofrimento que vivenciou ao ser submetido a duas intervenções cirúrgicas de remoção do globo ocular (evisceração), bem como as vivenciadas no tempo em que ficou internado (01.05.2023- 10.05.2023), as quais se mantiveram nas semanas seguintes.
Pelos danos sofridos pelo demandante DD a este nível deve ser fixada a indemnização no montante de 25.000,00 euros.
Os dois tiros que atingiram o demandante EE provocaram-lhe dores fortes, grande sofrimento, deixando-o a sangrar.
A gravidades dos ferimentos provocados pelo demandado motivaram o referido episódio de urgência e o seu internamento durante 12 dias, bem como a administração, nesse período, e ainda em período posterior de diversa medicação.
Durante todo esse período sofreu dores, que persistiram mesmo após alta do serviço de urgência.
Para além das dores físicas, o demandante EE sentiu ainda grande frustração ao sentir-se limitado na realização das suas tarefas diárias, pois sentia fortes dores e tinha a mobilidade reduzida.
Devido à imobilização do seu braço esquerdo, carecia de ajuda da sua mulher para a realização de algumas tarefas, nomeadamente para se vestir, e ainda assim com dores.
O demandante EE não conseguia levantar objectos mais volumosos, devido à imobilização do braço esquerdo, dificuldade que ainda hoje se mantém, obrigando-o a realizar um esforço acrescido com o seu braço direito.
Situação que o deixa bastante angustiado e frustrado, pois sempre foi pessoa autónoma e independente.
Pelos danos sofridos pelo demandante EE a este nível deve ser fixada a indemnização no montante de 15.000,00 euros.
O demandante DD pelo facto de ter perdido um olho, sofreu a perda de visão e inerentes limitações.
O demandante DD sente-se apreensivo com a sua situação de incapacidade e com as suas consequências.
Situação que consubstancia também um grande sofrimento e lhe provoca stress e ansiedade.
O demandante DD, com 63 anos, embora já reformado, era uma pessoa dinâmica e activa.
Realizava ainda alguns trabalhos na área da engenharia informática, ainda que não com carácter retributivo ou natureza patrimonial, sendo que actualmente não consegue passar o mesmo tempo em frente ao computador, pois fica facilmente cansado da vista.
O demandante DD tinha uma vida activa e praticava actividades desportivas, nomeadamente caminhadas, frequentemente.
O demandante DD era uma pessoa social, envolvido na Direcção Social da Associação ..., através da qual organizava e participava em diversas actividades e eventos onde exercia funções, actividades que abrangia uma parte significativa das suas actividades de lazer.
O demandante DD prestava ainda apoio familiar à sua filha e aos seus netos, os quais ficavam a seu cargo quando a filha lhe solicitava, indo buscá-los à escola e levando-os depois à casa de mãe, na sua viatura, ou simplesmente indo visitá-los sempre lhe aprouvesse.
O demandante DD fazia a sua gestão doméstica, deslocando-se a serviços, supermercados, enfim, a todos os lugares, pelos seus próprios meios, não dependo de terceiros para esse efeito.
O demandante DD realizava a suas tarefas domésticas, profissionais, pessoais e sociais com total independência e autonomia.
Actualmente, tais tarefas encontram-se dificultadas e/ou condicionadas em virtude do dano sofrido.
Tarefas anteriormente simples passaram a exigir atenção redobrada, esforço acrescido e um maior dispêndio de tempo.
O demandante DD não sente a mesma segurança a conduzir, o que continua a fazê-lo sentir-se limitado na sua autonomia e, consequentemente, frustrado.
Pelos danos sofridos pelo demandante DD a este nível deve ser fixada a indemnização no montante de 30.000,00 euros.
Nas semanas seguintes à prática dos actos do demandado, o demandante EE, além das fortes dores que sentia, ficou muito assustado e não conseguiu retomar a sua rotina normal.
O demandante EE sentia-se constantemente sobressaltado, com receio de sair de casa; assustava-se facilmente e qualquer som fazia recordar, involuntariamente, o trauma que viveu.
De igual forma, sempre que na rua passava por algum veículo parecido ao do demandado, assustava-se.
Teve frequentes episódios de pânico, com ataques de ansiedade.
Acresce que o demandante EE vive nas imediações da empresa “A..., Lda.”, local onde tudo aconteceu.
Pelo que o demandante EE e a sua família, mercê desta circunstância, são confrontados diariamente com tal episódio, sentindo um desconforto e mal-estar sempre que passam no exterior da mesma.
À data dos acontecimentos o demandante EE tinha 63 anos e encontrava-se reformado há 1 ano.
No tempo livre que dispunha, realizava várias actividades, sendo pessoa activa e dinâmica no seu seio familiar e social.
Desde logo, estava envolvido nos órgãos societários da Associação ..., onde organizava e participava em vários eventos e realizava caminhadas com frequência.
Também se dedicava, nos seus tempos livres, à sua horta, semeando, plantando e recolhendo os inerentes frutos, ocupação cuja prática passou a ser condicionada/dificultada, atenta à incapacidade do braço esquerdo.
Tem um mal-estar permanente e vive preocupado com a evolução do seu tratamento, sendo certo que sofre lesões que são irreversíveis, as quais continuam a exigir uma constante adaptação na realização de determinadas tarefas no seu quotidiano.
Pelos danos sofridos pelo demandante EE a este nível deve ser fixada a indemnização no montante de 20.000,00 euros.
A indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido [Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª edição, pág. 560].
Segundo o artigo 496º nº 1 do Código Civil, na fixação da indemnização devem atender-se os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpa do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso - artigos 496º nº 3 e 494º do C.C. - e também aos padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência sempre com o objetivo, não de se reconstituir a situação que existiria caso não tivesse ocorrido a lesão – como se impõe fazer ao nível dos danos patrimoniais –, mas antes de se proporcionar uma satisfação adequada ao lesado.
A compensação em causa “tem por fim facultar ao lesado meios económicos que, de alguma sorte, o compensem da lesão sofrida, por tal via reparando, indirectamente, os preditos danos, por serem hábeis a proporcionar-lhe alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar o havido sofrimento moral” [Acórdão do STJ de 24.04.2013, processo 198/06TBPMS.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt].
Devemos realçar que, nos parâmetros gerais a ter em conta, devemos também ponderar a progressiva melhoria da situação económica individual e global, a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente à União Europeia, o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida.
A indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la, segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”, não se compadecendo com a atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.12.2015 [Disponível in www.dgsi.pt.]: “I - A equidade, enquanto fonte legal de realização da justiça moral a lesado em bens de natureza não patrimonial – cfr. arts. 4.º, al. a), e 496.º, ns. 1 e 4, 1.ª parte, do C. Civil –, a partir, portanto, de voláteis e subjectivas ponderações de metafísicos valores de bom senso, razoabilidade, justiça natural, justa medida das coisas, igualdade, oportunidade e conveniência…, haverá natural/necessariamente de ser incorporada de afectos e pessoal sensibilidade do julgador, para além, ou com independência, pois, dos limites do sistema jurídico-positivo.
II – Por conseguinte, a decisão judicial definitória do correspectivo valor indemnizatório, que nela se suporte, porque inevitavelmente afectada por subjectiva discricionariedade, apenas poderá merecer juízo de censura por tribunal superior – em sede de recurso –, e consequente alterabilidade, se se empiricamente evidenciar que significativamente destoe da contemporânea linha jurisprudencial respeitante a similares condições contextuais, e, assim, potencialmente comprometa a ideal segurança da aplicação do direito e o princípio constitucional da igualdade relativa, (cfr. arts. 8.º, n.º 3, do C. Civil, e 13.º, n.º 1, da Constituição).
III – Ainda assim, a respeitante resolução recursória, porque também intrinsecamente associada a abstractos critérios de equidade, sempre, no fundo, se haverá outrossim de nortear por idêntica matriz extra-sistémica, inevitavelmente matizada pela cultura e humanidade pessoal dos respectivos Juízes.”
Por força da impugnação da matéria de facto foram alterados os pontos 165 e 226 dos factos provados passando do primeiro a constar que o demandante II tinha à data 69 anos de idade.
E relativamente a EE que perdeu parte da mobilidade do braço esquerdo e da respetiva mão.
Apesar destas alterações, não cremos que as mesmas imponham uma alteração aos montantes indemnizatórios fixados.
Não sofre qualquer dúvida que, em virtude do acidente em causa nos autos, os demandantes sofreram danos de natureza não patrimonial de gravidade suficiente para justificar o seu ressarcimento.
Na verdade, no que diz respeito ao lesado DD, apesar de não serem 63 mas antes 69 anos, contínua a resultar provado que era uma pessoa dinâmica e ativa, realizava ainda alguns trabalhos na área da engenharia informática, ainda que sem carácter retributivo ou natureza patrimonial, sendo que atualmente não consegue passar o mesmo tempo em frente ao computador, pois fica facilmente cansado da vista.
Mais resultou provado que DD tinha uma vida ativa e praticava atividades desportivas, nomeadamente caminhadas, frequentemente. Era uma pessoa social, envolvido na Direção Social da Associação ..., através da qual organizava e participava em diversas atividades e eventos onde exercia funções, atividades que abrangia uma parte significativa das suas atividades de lazer. Prestava ainda apoio familiar à sua filha e aos seus netos, os quais ficavam a seu cargo quando a filha lhe solicitava, indo buscá-los à escola e levando-os depois à casa de mãe, na sua viatura, ou simplesmente indo visitá-los sempre lhe aprouvesse.
O demandante DD fazia a sua gestão doméstica, deslocando-se a serviços, supermercados, enfim, a todos os lugares, pelos seus próprios meios, não dependo de terceiros para esse efeito. Realizava as suas tarefas domésticas, profissionais, pessoais e sociais com total independência e autonomia.
E bem assim que atualmente, tais tarefas encontram-se dificultadas e/ou condicionadas em virtude do dano sofrido e que tarefas anteriormente simples passaram a exigir atenção redobrada, esforço acrescido e um maior dispêndio de tempo.
Em suma, no contexto das indemnização fixada, que teve por base a concreta pessoa do demandante e o seu modo de vida e autonomia, não se crê que esta alteração da matéria de facto (dos 63 anos para os 69 anos), neste concreto aspeto, tendo em conta as extensas lesões e sequelas, os tratamentos, intervenções cirúrgicas e consultas a que se sujeitou, o longo período de recuperação (que ainda se mantém) as dores que sofreu, a repercussão permanente nas suas atividades do dia a dia e de lazer, as dores e padecimentos sofridos, bem como as sequelas em termos estéticos, funcionais e psicológicos, entendemos que os montantes fixados são corretos e adequados e devem pois manter-se.
No que concerne à mobilidade parcial do braço e da mão, do demandante EE. apesar do teor da redação inicial do ponto 165 esta mobilidade parcial já resultava dos pontos 144, 145 e 149 dos factos provados e na fundamentação que acima transcrevemos.
Deste modo, sopesando igualmente as lesões sofridas, os tratamentos, intervenções cirúrgicas e consultas a que se sujeitou, o longo período de recuperação por que passou e passa), as dores que sofreu, a repercussão permanente nas suas atividades do dia a dia e de lazer, as dores e padecimentos sofridos, bem como as sequelas em termos estéticos, funcionais e psicológicos, entendemos que os montantes fixados são corretos e adequados e devem pois manter-se.
Improcede, assim, nesta parte o recurso interposto pelo arguido como o recurso subordinado interposto pelos demandantes cíveis.
Recorre o arguido da condenação em 10 UC que lhe foi aplicada no acórdão, alegando que o arguido não deveria ter sido condenado em mais de 3 UC, tendo sido violado, desde logo, o limite da tabela III anexa ao RCP que prevê um máximo de 6 UC.
A condenação do arguido em taxa de justiça decorre do disposto nos arts. 513º e 514º do Código de Processo Penal.
Nos termos do disposto no art. 513º do Código de Processo Penal:
“1 - Só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
2 - O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo.
3 - A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respectivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais”.
E nos termos do disposto no art. 514º, nº 1 do Código de Processo Penal, salvo quando haja apoio judiciário, o arguido condenado é responsável pelo pagamento, a final, dos encargos a que a sua atividade houver dado lugar.
Por seu turno o art. 8ºdo Regulamento das Custas Processuais estabelece que sob a epígrafe Taxa de Justiça em processo penal e contraordenacional o seguinte:
“1 - A taxa de justiça devida pela constituição como assistente é autoliquidada no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, para um valor entre 1 UC e 10 UC, tendo em consideração o desfecho do processo e a concreta actividade processual do assistente.
2 - A taxa de justiça devida pela abertura de instrução requerida pelo assistente é autoliquidada no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz para um valor entre 1 UC e 10 UC, tendo em consideração a utilidade prática da instrução na tramitação global do processo.
3 - O documento comprovativo do pagamento referido nos números anteriores deve ser junto ao processo com a apresentação do requerimento na secretaria ou no prazo de 10 dias a contar da sua formulação no processo, devendo o interessado ser notificado no acto para o efeito.
4 - Na falta de apresentação do documento comprovativo nos termos do número anterior, a secretaria notifica o interessado para proceder à sua apresentação no prazo de 10 dias, com acréscimo de taxa de justiça de igual montante.
5 - O não pagamento das quantias referidas no número anterior determina que o requerimento para constituição de assistente ou abertura de instrução seja considerado sem efeito.
6 - Para o denunciante que deva pagar custas, nos termos do disposto no artigo 520.º do Código de Processo Penal, é fixado pelo juiz um valor entre 1 UC e 5 UC.
7 - É devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas, no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada, no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela iii, que faz parte integrante do presente Regulamento, tendo em consideração a gravidade do ilícito.
8 - A taxa de justiça referida no número anterior é autoliquidada nos 10 dias subsequentes à notificação ao arguido da data de marcação da audiência de julgamento ou do despacho que a considere desnecessária, devendo ser expressamente indicado ao arguido o prazo e os modos de pagamento da mesma.
9 - Nos restantes casos a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii. (realce nosso)
10 - Se o juiz não fixar a taxa de justiça nos termos do número anterior, considera-se a mesma fixada no dobro do seu limite mínimo.
Nos termos da tabela III anexa tratando-se de processo comum prevê a referida tabela fixação de taxa de justiça entre 2 a 6 UC.
Deste modo, cremos assistir razão ao recorrente quando entende não poder manter-se a condenação em 10 UC.
Assim, considerando os limites estabelecidos na referida tabela II anexa e a complexidade da causa, que resulta além do mais das diversas questões suscitadas e sessões de audiência de julgamento que tiveram lugar, entende-se ser de fixar a taxa de justiça em 5 UC.
VIII - Da perda a favor do Estado das armas e munições elencadas nos autos de exame de fls. 103 a 108 e 109 a 113.
Recorre o Mº Público requerendo que seja revogado o acórdão recorrido substituindo-o por outro onde se declarem perdidas a favor do Estado as armas, munições e objetos descritos no auto de exame de fls. 103 a 108 nos termos do disposto no art. 109º, nº 1 do Código Penal.
Estabelece o art. 109º do Código Penal que:
“1. São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.
3. Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.”
Sobre a matéria escreve Figueiredo Dias [As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 628]: “a perda dos instrumentos e (ou) do produto do crime conforma em todo o caso – em qualquer das hipóteses previstas nos arts 107º e 108º –, uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança”.
Esta perda de objetos prevista no art. 109º do Código Penal não se confunde com uma pena acessória, pois não depende da condenação numa pena principal e não tem relação com a culpa do agente. Tem, antes, como pressuposto a avaliação da perigosidade da própria coisa, muito embora se admita que a conexão entre essa perigosidade e as concretas «circunstâncias do caso» possam acabar por implicar uma referência ao próprio agente [Cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 622].
Tem uma finalidade preventiva, o que resulta da parte final do nº 1 do art. 109º do Código Penal.
Porém, exigindo o art. 109º da perigosidade dos objetos esta surge como um requisito cumulativo, isto é, a perigosidade é relativa ao objeto que “tiver servido ou se destinasse a servir para a prática” do crime -, ou a um objeto que pelo crime “tiver sido produzido”.
Como refere Paulo Pinto Albuquerque [Comentário do Código Penal, 5ª Edição atualizada, pág. 506]: “Os instrumentos do crime são objetos (coisas corpóreas) que serviram ou estavam destinadas a servir para a prática do crime. Não é, pois, necessário que os objetos tenham sido efetivamente sido utilizados no cometimento do crime, bastando que o agente tivesse em mente utilizá-los (precisamente neste sentido, a nota interpretativa A/55/383/Add.1, parágrafo 22, à Convenção das Nações Unidas contra criminalidade organizada transnacional que considera que a expressão convencional used in or destined for use in visa incluir os crimes tentados”.
No mesmo sentido Figueiredo Dias [Ob. Cit., pág. 618] que entente ser necessária a existência de um facto antijurídico, sendo, porém, suficiente que surja sob a forma de tentativa.
Já Germano Marques da Silva [Direito Penal Português – Parte Geral, III, 2.ª edição, pág. 199] escreve “A lei é clara. Não é necessário que os instrumentos tenham sido utilizados na prática de um crime, bastando que estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico e por isso que a perda tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto (n.º 2 do art. 109.º). Isto acontece ou porque não foi cometido qualquer facto ilícito típico - não se iniciou sequer a execução do crime - ou porque falta um elemento essencial do crime - a culpabilidade”, e, portanto, admite que a perda possa ocorrer mesmo num momento anterior ao início da execução.
De todo o modo, a relação dos objetos com um “facto ilícito típico”, é sempre necessária.
No acórdão recorrido entendeu-se que as armas munições objetos e documentos melhor descritos no auto de apreensão de fls.103 a 108 não tiveram qualquer relação com os crimes cometidos, mostram-se em situação legal, e, por isso, devem ser restituídas ao arguido.
Seguindo a posição mais restrita - defendida por Figueiredo Dias e Paulo Pinto Albuquerque - temos que efetivamente as armas e munições apreendidas no referido auto não foram utilizadas na prática dos crimes, nem resultam provados factos que permitam, relativamente a estes objetos, configurar uma relação com um facto antijurídico, designadamente sob a forma de tentativa.
Seguindo a posição mais ampla cremos que a conclusão será também a mesma, pois os factos apurados nos autos não permitem concluir que o arguido tivesse em mente utilizar esses objetos para a prática de um facto ilícito típico, não bastando, a nosso ver, a mera afirmação de que tendo todas as armas e munições ao seu dispor poderia ter escolhido qualquer uma delas.
A arma efetivamente utilizada na prática dos crimes de homicídio na forma tentada foi declarada perdida a favor do Estado e da matéria de facto (ao contrário da jurisprudência invocada pelo Digno Recorrente em abono da sua pretensão) não decorre que o arguido tivesse em mente destinar estas outras armas e munições apreendidas à prática de facto ilícito típico. Dos factos provados resulta, sem dúvida, uma atuação por parte do arguido de extrema gravidade e violência, mas também um ato ocasional na vida deste.
Na verdade, analisando o recurso interposto pelo Mº Público vemos que este, salvo o devido respeito, embora invocando o regime da perda de bens previsto no art.- 109º do Código Penal, centra a sua argumentação na questão de o arguido não reunir «as condições necessárias para o uso e porte de arma de qualquer categoria, na medida em que beneficiando do “escudo legal “ das licenças que lhe foram atribuídas, o que lhe permitiu estar na posse de tal “coleção” de armas e munições usou-as para atentar contra a vida de terceiros”.
Porém, não está em causa na perda de objetos ao abrigo do disposto no art. 109º do Código Penal, aferir da (in)idoneidade do arguido para a licença de uso e porte de arma de que é detentor.
De facto, como refere Figueiredo Dias [Ob cit, pág. 627] a perda de objetos referida no art. 109º do Código Penal não se trata de uma pena acessória, “porque a perda não possui qualquer ligação com a culpa do agente pelo ilícito-típico perpetrado: podendo o instituto intervir mesmo relativamente a inimputáveis, por um lado, e podendo ele intervir, por outro lado, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser perseguida ou condenada, torna-se patente que a – eventual – culpa do agente não constitui sequer limite da intervenção da providência”, acrescentando que a perda é decretada é função da perigosidade do objeto e das exigências, individuais e coletivas, de segurança, não da culpa do agente [cf. ainda neste sentido o Acórdão do TRL de 28.09.2010 , processo nº 24/09.2P5LSB-A.L1-5, disponível in www.dgsi.pt].
Ora, no caso não foi requerida a aplicação da pena acessória de interdição de detenção uso e porte de arma, prevista no art. 90º da Lei nº 5/2006 de 23.02, pena acessória essa que seria a sanção adequada para lograr a proibição da detenção e uso de porte de armas a quem tenha praticado a título doloso ou negligente crime em cuja execução tenha sido relevante a utilização ou disponibilização de arma.
Na verdade, tal interdição que implicaria, nos termos do nº 3 do referido artigo 90º a proibição de detenção, uso e porte de armas, designadamente para efeitos pessoais, funcionais ou laborais, desportivos, venatórios ou outros, bem como de concessão ou renovação de licença, cartão europeu de arma de fogo ou de autorização de aquisição de arma de fogo durante o período de interdição, devendo o condenado fazer entrega da ou das armas, licenças e demais documentação no posto ou unidade policial da área da sua residência no prazo de 15 dias contados do trânsito em julgado.
Aliás, a perda a favor do Estado das aludidas armas não impediria, em tese, o arguido de adquirir outras armas, enquanto detentor da referida licença.
Deste modo, porque se entende que não estão preenchidos os pressupostos cumulativos da perda a favor do Estado, prevista no art. 109º, nº 1 do Código Penal, e assim, improcede o recurso interposto pelo Mº Público.
Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em:
1. Julgar improcedente o recurso intercalar interposto pelo arguido AA.
2. Determinar nos termos do disposto no art. 380º, nº 2 do Código de Processo Penal, a correção o acórdão recorrido:
- passando a ler-se no ponto 82 dos factos provados “16 de Junho de 2023”, onde até agora se lia “16 de Julho de 2023”.
- passando a ler-se a fls. 73 do acórdão recorrido no primeiro parágrafo “ - um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, na pessoa de DD( …)” e no segundo parágrafo “um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, na pessoa de EE (…)” “DD.
2. Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA do acórdão proferido nestes autos e consequentemente:
- Proceder à alteração da matéria de facto provada e não provada nos termos exarados no ponto III.3 deste acórdão.
- Reduzir a pena aplicada ao arguido pela prática em autoria material do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos arts. 22º, 23º, nº 1 e 2, 131º, 132º, nº 2, als. b) e i) do Código Penal, cometido sobre CC para 7 (sete) anos de prisão, mantendo-se as restantes penas parcelares fixadas.
- Operando novo cúmulo jurídico das penas parcelares fixar a pena única em 11 (onze) anos de prisão efetiva.
- Reduzir a taxa de justiça fixada nos termos do disposto nos arts. 513º, nº 1, 2 e 3 e 514º nº 1 do Código de Processo Penal e art. 8º, nº 9 e tabela III anexa para 5 UC, julgando no restante improcedente o recurso interposto.
3. Negar provimento ao recurso interposto pelo Mº Público e consequentemente manter o acórdão recorrido na parte não declarou perdidas a favor do Estado as armas munições e demais objetos melhor identificados a fls. 103 a 108.
4. Negar provimento ao recurso subordinado interposto pelos demandantes cíveis DD e EE.
Custas do recurso intercalar pelo arguido fixando-se a taxa de justiça em 3UC (art. 513º, nº 1 do Código de Processo Penal e art. 8º, nº 9 do RCP).
Sem custas quanto ao recurso principal interposto pelo arguido.
Sem custas, por não serem devidas, quanto ao recurso interposto pelo Mº Público.
Custas do recurso subordinado pelos recorrentes cíveis artigo 523º do Código de Processo Penal e artigos 527.º, n.º 1 e 529.º, n. º1, ambos do CPC e artigo 1.º, n.º 2 e 6.º, n.ºs 1 e 2 e 7.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique
Coimbra, 28 de maio de 2025
Sandra Ferreira
(Juíza Desembargadora Relatora)
Alexandra Guiné
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Maria da Conceição Miranda
(Juíza Desembargadora Adjunta)