DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COLECTIVA
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - No instituto da desconsideração da pessoa colectiva é pressuposto que a pessoa colectiva seja abusivamente utilizada pelos seus membros. Tem como finalidade a responsabilização do património daquele que, instrumentalizando a sociedade, retirou proveitos próprios actuando em desconformidade com as finalidades para as quais a sociedade foi criada.
II - Esta figura jurídica só será admissível a título excepcional e ponderada e apreciada para cada caso concreto.
III - O ónus probatório dos requisitos cabe ao credor que pretende fazer uso do instituto jurídico.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 3991/17.9T8PRT.P1


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Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Central Cível do Porto - ...

RELAÇÃO N.º 231

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Lina Castro Baptista

João Proença


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


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I - RELATÓRIO.

AS PARTES

A.: A... Lda..

RR.: B... e

C... Lda. e D... Lda.


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A[2] O objecto da acção consiste em apurar se, como pretende a A., deverá ser decretada a desconsideração e/ou levantamento da personalidade jurídica das RR, e, consequentemente, decretado que o património e demais activos das rés sejam considerados como um só, respondendo, por conseguinte e em conjunto, pelo pagamento dos valores resultantes de processo de injunção que a autora intentou contra a primeira ré e subsequente processo de execução, tudo como melhor consta da sua petição inicial, que as rés contestaram, pugnando pela improcedência da acção em consequência de não se confundirem as duas empresas rés, tudo também como melhor consta dos seus articulados de contestação, sendo o seguinte o pedido formulado pela autora:

“Nestes termos e nos demais de Direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada, e, em consequência:

- Ser decretada a desconsideração e/ou levantamento da personalidade jurídica, ou, como alguns preferem designar, decretada a superação, limitação e/ou penetração da/na personalidade jurídica das RR. e, consequentemente, que o património e demais activos das RR., nomeadamente os da 2ª Ré – onde se incluirá o produto do arresto – sejam considerados como um só, em conjunto com os da 1ª Ré, respondendo, por conseguinte, pelo pagamento dos valores que esta foi condenada a pagar à Autora, através da conversão em penhora dos montantes arrestados (e outros que se mostrem necessários para o valor então apurado) na execução já em curso (Proc. ..., Porto - Inst. Central - 1ª Secção de Execução - J3) ou directamente pelos presentes autos, e cujo montante, à data, ascende a 130,666.16€ (cento e trinta mil, seiscentos e sessenta e seis euros e dezasseis cêntimos), a que acrescerão juros de mora e compulsórios vincendos.”


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Foi proferido despacho saneador do processo, fixando-se ainda o objecto do litígio com indicação dos temas de prova e prosseguindo o processo para julgamento, que foi realizado observando-se as pertinentes normas legais.


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DA DECISÃO RECORRIDA

Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA, nos seguintes termos:

Assim, tudo ponderado, ao abrigo das disposições legais acima referidas, julgo a acção improcedente, por não provada e, em consequência e nos termos das disposições legais acima referidas, decido absolver as rés, B... e D... Lda., dos pedidos contra si formulados pela autora, A... Lda.“.


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DAS ALEGAÇÕES

A A., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Nestes termos e nos melhores de Direito que V.Exas., doutamente suprirão, deve revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que dê como procedente a desconsideração da personalidade jurídica da Ré D..., pois só assim se realiza Justiça e se faz cumprir a Lei.“.


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A apelante, A., apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

A - Ficou plenamente demonstrado que a constituição da 2.ª Ré se deveu a um mais do que evidente conluio dos seus principais sócios – AA e BB – com a clara intenção de esvaziar a 1.ª Ré da sua atividade relevante e rentável e de todos os seus ativos que pudessem responder pelas suas dívidas.

B - Está provada a existência do crédito da Autora sobre a 1.ª Ré relativo ao IVA que se discute nos presentes autos, pois, não obstante as inúmeras manobras dilatórias das Rés para evitar que tal sucedesse, a verdade é que a execução da injunção contra aquela não foi objeto de qualquer oposição, uma vez que os embargos de executados por ela deduzidos não foram admitidos por sentença transitada em julgado, pelo que não tendo sido deduzida oposição à injunção nem admitida a oposição à execução, o referido crédito consolidou-se, tendo-se tornado devido, certo, liquido e exigível.

C - Ficou, ainda, demonstrado que a 1.ª Ré foi interpelada pela Autora para pagamento do crédito no dia 16.12.2009, e recebida, quando muito, a 28.12.2009, ou seja, no final do ano imediatamente anterior ao da constituição da 2.ª Ré e à passagem da atividade e dos ativos da primeira para a segunda; depoimentos das testemunhas da Autora, CC, DD e EE; e declarações de parte de AA.

D - Provado ficou, também, o relevante facto de a 1.ª Ré ter sido interpelada a tempo de poder ainda deduzir o IVA em causa, não o tendo feito porque não quis, sendo que, caso o tivesse feito, não estaríamos aqui.

E - Dúvidas não restam que os principais ativos da 1.ª Ré, designadamente um imóvel, bens móveis e o mais relevante deles (Festival ...) foram transferidos todos para a 2.ª Ré após a interpelação para pagamento do crédito da Autora; salienta-se o ativo Festival ... que, dito pelo AA, é um evento bastante rentável. Ora, assim, sendo, alguém acredita que o mesmo passaria da 1.ª Ré para a 2.ª Ré sem qualquer custo? Evidente que não.

F - Alegam as Rés que não encerraram a 1.ª Ré porque ainda tinham algumas dívidas e que estas foram assumidas pessoalmente pelos seus sócios-gerentes, “esquecendo-se”, no entanto, de referir que por tais dívidas (estado e avais à banca) eram os mesmos pessoalmente responsáveis, pelo que “cai por terra” este frágil argumento das Rés.

G - A verdade irrefutável é que a 1.ª Ré ficou sem património e com dívidas e a 2.ª Ré com todo o património daquela sem quaisquer custos e sem dívidas. Estamos perante o caso clássico português das empresas que, para fugir às dívidas, abrem novas sociedades com os mesmos nomes: B... / D....

H - Por outro lado, não podemos de deixar de levar em linha de conta a decisão do procedimento cautelar de arresto, a qual foi confirmada pelo Tribunal da Relação, as quais e bem, não tiveram dúvidas em considerar procedente a tese da Autora de tão flagrante que é. Está efetivamente na altura de seremresponsabilizados os infratores que usam e abusam destes expedientes em que, na maior parte das vezes, saem, infelizmente, impunes.

I - Assim, em face de tudo quanto ficou dito, dúvidas não restam de que em causa está apenas uma única entidade e que a atuação revelada pelos sócios da mesma teve como principal objetivo desresponsabilizar os mesmos quanto a dívidas por si contraídas, motivo pelo qual, “deverá ser decretada a desconsideração e/ou levantamento da personalidade jurídica das rés B... e D... LDA., e, consequentemente, decretado que o património e demais ativos das rés sejam considerados como um só, respondendo, por conseguinte e em conjunto, pelo pagamento dos valores resultantes de processo de injunção que a autora intentou contra a primeira ré e subsequente processo de execução”.

J – Não pode o Tribunal “a quo” dar como não provado que “Que a primeira e segunda rés se confundam, tendo a constituição da segunda ré sido delineada por forma a que a primeira ré se pudesse furtar ao pagamento das suas dívidas, nomeadamente à autora; quando esta prosseguiu a actividade da primeira na sua totalidade, continuou a apresentar-se na comunicação social e aos artistas como a primeira e o interlocutor foi sempre o mesmo.

L) Decorre das declarações das testemunhas, que nem deram pela mudança societária, uma vez que foi sempre o BB que se apresentou, negociou e prosseguiu com a actividade como se da primeira Ré B... se tratasse.

M) Ninguém teve a menor duvida que continuava a ser a mesma entidade, valendo-lhe assim a confiança de artistas, casas de espectáculos e autarquias que continuaram a entregar a promoção dos espectáculos, nomeadamente do festival “...”, prosseguindo a actividade sem descontinuação.

N) Não restam dúvidas do comportamento doloso da constituição da 2ª Ré para fugir aos compromissos assumidos pela 1ª Ré.“, realçado nosso.


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A A. apresentou CONTRA-ALEGAÇÕES, pugnando pela não admissão do recurso quanto à matéria de facto e, a final, pela improcedência do recurso.


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II-FUNDAMENTAÇÃO.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:

A) Modificação da decisão da matéria de facto quanto aos factos não provados, todos os quatro factos não provados (CLS J) com sustento na prova testemunhal CC, nas declarações de parte de FF, na testemunha EE, nas declarações de AA.

B) As consequências a retirar da alteração à decisão de facto.


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OS FACTOS

A sentença, ora em crise, deu como provada e não provada a seguinte factualidade.

Realizado o julgamento, no essencial e com interesse para o objecto do processo, considero provados os seguintes factos, por acordo das partes, documento bastante, ou resultante da audiência de julgamento:

1- A autora, A... Lda., é uma sociedade comercial que, entre outros, tem como objecto a promoção e realização de eventos (doc. junto aos autos), encontrando-se, actualmente, inactiva e desde cerca do ano de 2009;

2- GG, é apenas formalmente gerente da autora, nada sabendo sobre a sua actividade, pensando que quem gere de facto a autora é o Sr. CC;

3- A primeira ré, B..., é uma sociedade de quotas, com o capital de 25.000€, que se tem por objecto a “Organização de espectáculos, representação de artistas, publicidade de artistas, publicidade e outras actividades afins, actividades hoteleiras, entretenimento e lazer” (doc. junto aos autos), tendo como sede a Rua ..., ..., Matosinhos;

4- A B... Lda., encontra-se, actualmente, inactiva;

5- A segunda ré, D... Lda., é igualmente uma sociedade por quotas, com o capital de 10.000€, que tem por objecto a “Organização de espectáculos, representação de artistas, publicidade de artistas, publicidade e outras actividades afins, actividades hoteleiras, entretenimento e lazer” (doc. junto aos autos);

6- Esta ré, começou por ter a sua sede na Rua ...., ..., Porto, sendo que, actualmente, tem sede na Av. ..., ..., ..., Porto (doc. junto aos autos);

7- Sócios-gerentes da D... Lda., são os Srs. BB e AA, sendo que, actualmente, o primeiro é detentor de uma quota de 6.250€ e o segundo é detentor de uma quota de 3.750€, que totalizam o capital social da ré, sendo que a ré se obriga com a assinatura dos dois sócios-gerentes, acima referidos, BB e AA (doc. junto aos autos);

8- A primeira ré, B... Lda., em 31.12.2009, o seguinte quadro societário:

i. Sócios-gerentes:

a. FF, detentor de uma quota de 6.666,66€;

b. BB, detentor de uma quota de 6.666,67€;

c. AA, detentor de uma quota de 6.666,67€.

ii. Sócio não gerente: HH, detentor de uma quota de 5.000€ (doc. junto aos autos);

9- Esta ré, obriga-se com a assinatura de dois dos três sócios sócios- gerentes, FF, BB e AA, sendo obrigatória a intervenção deste último (doc. junto aos autos);

10- A B... desde, pelo menos, o ano de 2008, organizou o evento designado por “...”, por contrato com o Município ... (doc. junto aos autos);

11- A partir de 2011, inclusive, o Festival ... passaria a ser produzido pela segunda ré, D... Lda;

12- A autora e a primeira ré foram co-promotoras da edição de 2005, do Festival ... (doc. junto aos autos);

13- No âmbito desse protocolo/parceria, a autora emitiu à primeira ré uma factura relativa a despesas do certame musical (doc. junto aos autos);

14- Tal factura acabaria por ser emitida sem IVA, por ter havido o entendimento, após reunião com ROCs, de que estaria isenta de tal imposto;

15- Porém, em 2009 a autora foi sujeita a uma inspecção tributária queviria a determinar haver lugar a IVA sobre essa factura emitida à primeira ré;

16- Por conseguinte, a autora teria de liquidar à AT o valor de IVA que não havia cobrado à primeira ré;

17- A autora remeteu então ao real sujeito passivo do imposto - a primeira ré - uma nota de débito/factura, com o valor do IVA em questão, ou seja, 70.981,48€, datada de 16/12/2009, e recebida pela ré (doc. junto aos autos);

18- Porque a primeira ré não liquidou a mencionada factura, a autora intentou injunção contra a primeira ré, visando a cobrança judicial daquele montante, acrescido dos juros entretanto vencidos, bem como juros vincendos, tudo num total, à data, de 79.303,50€ (doc. junto aos autos);

19- Injunção que foi entregue no BNI a 05/05/2011, e recebida pela primeira ré a 26.05.2011 (doc. junto aos autos;)

20- Não foi deduzida oposição à injunção, tendo-lhe sido aposta a fórmula executória (doc. junto aos autos);

21- Na ausência de pagamento voluntário, a autora promoveu a correspondente acção executiva contra a primeira ré, que correu os seus termos pelo processo n.º ..., Porto - Secção de Execução - J3;

22- Não foi possível identificar quaisquer bens penhoráveis, móveis ou imóveis (docs. juntos autos);

23- A primeira ré, até à data de 20/04/2010, era proprietária de um escritório, sito na Av. ..., ..., Porto, a que corresponde a fracção “E” do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ...28º e descrito sob o n.º ...68, da freguesia ..., Porto (doc. junto aos autos);

24- No dia 20/04/2010, foi registada na C.R.P. da Moita, a venda do imóvel acima identificado ao Banco 1..., através da Ap. ...81 (doc. junto aos autos);

25- Por contrato promessa, datado de 4 de Fevereiro de 2010, a primeira ré prometeu vender à segunda ré, que prometeu comprar, o imóvel supra identificado (doc. junto aos autos);

26- No entanto, por escritura pública de 09/07/2010, a primeira ré vendeu o imóvel ao Banco 1..., que, na mesma data, o deu de locação financeira à segunda ré (docs. juntos aos autos);

27- A primeira ré, foi ainda proprietária de bens móveis (computadores, mobiliário…), até ao dia 31/12/2010, altura em que transmitiu a sua propriedade para a segunda ré (docs. juntos aos autos);

28- Como acima referido, desde pelo menos o ano de 2010 e por decisão dos seus sócios, a primeira ré não tem exercido qualquer actividade, acordando entre eles que que cada um poderia desenvolver uma actividade própria;

29- Assim, BB e AA, decidiram então constituir a sociedade segunda ré;

30- E o também sócio-gerente da primeira ré, FF, constituiu uma sociedade denominadas “E... Ldª”, com sede na Rua... Matosinhos (doc. junto com a oposição ao procedimento cautelar);

31- O sócio da primeira e segunda rés, AA, desde anteriormente à constituição destas, havia exercido diversas actividades relacionadas com a organização de eventos musicais, actividade que permitiu que adquirisse experiência profissional e contactos no mundo da música nacional e internacional, sendo a sua experiência e conhecimentos o incentivo para a constituição da primeira ré;

32- Em 2009/2010 surgiram divergências pessoais entre os sócios da primeira ré, que tiveram como base as orientações pretendidas para a sua actividade, deliberando entre todos que cada um deles poderia prosseguir com actividades próprias;

33- Nessa sequência AA e BB, decidiram então, conjuntamente com outro que nunca manteve qualquer relação societária com a primeira ré, constituir a segunda ré, com intuito de desenvolverem a actividade que, no âmbito da organização de eventos consideravam mais vantajosa;

34- Enquanto o sócio FF, como acima referido, tomou a iniciativa de constituir uma outra sociedade, a “E...”.


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Também apenas no essencial e no que ao objecto dos presentes autos importa, considero apenas como merecedores da menção de não provados os seguintes factos:

- Que a segunda ré seja, na prática, a primeira ré, “apenas com outra roupagem”;

- Que a segunda ré tenha sido constituída por plano arquitectado pelos sócios da primeira ré, com a intenção de esvaziar o património da primeira ré, por forma a inviabilizar o sucesso da acção executiva e não pagar a quantia reclamada pela autora;

- Que a primeira e segunda rés se confundam, tendo a constituição da segunda ré sido delineada por forma a que a primeira ré se pudesse furtar ao pagamento das suas dívidas, nomeadamente à autora;

- Que a venda do imóvel pela primeira ré ao Banco 1... e posterior contrato de locação financeira entre este Banco e a segunda ré, tenha sido uma forma ardilosa engendrada entre as rés com o intuito de “furtar” tal bem ao pagamento de dívidas da primeira ré..“, realçado os factos objecto de impugnação recursiva.


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DE DIREITO.

A)

Modificação da decisão da matéria de facto quanto aos factos não provados, todos os quatro factos não provados (CLS J) com sustento na prova testemunhal CC, nas declarações de parte de FF, na testemunha EE, nas declarações de AA.

São as conclusões do requerimento de recurso quem fixa o objecto do recurso.

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.

A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.

Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.

a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;

b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;

c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;

d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).

Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).


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Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, a apelante, quanto aos pontos de facto indicados, preenche os apontados requisitos. A recorrente indica claramente o sentido que pugna por ver alterado por este Tribunal da Relação do Porto. De igual modo, indica, qual ou quais os meios de prova que sustentam a alteração peticionada dos factos – prova documental, testemunhal e por confissão.

Pelo exposto a apelante, preenche os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento, improcedendo assim a pretensão da apelada D... Ldª.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.

Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instân-cia. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade“, in Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.

Deverá ocorrer alteração da decisão da matéria de facto da primeira instância, quando a prova produzida impuser uma diversa decisão. Haverá que proceder a um novo juízo critico da prova de modo a se poder concluir por aquele feito na primeira instância não se poder manter. Ou de outro modo. Haverá que fazer uma apreciação do julgamento da matéria de facto da primeira instância de tal modo que as provas produzidas imponham de modo decisivo e forçado uma outra decisão da matéria de facto. Haverá de encontrar este Tribunal de recurso uma tal incongruência lógica, quer seja por ofensa a princípios e leis cientificas, quer contra princípios gerais da experiencia comum, quer da apreciação e valoração das provas produzidas, de modo a concluir por um diverso sentido.

Não basta, pois, que as provas permitam, dentro da liberdade de apreciação das mesmas, uma conclusão diferente, a decisão diversa (artigo 640.º do Código de Processo Civil) terá que ser única ou, no mínimo, com elevada probabilidade e não apenas uma das possíveis dentro da liberdade de julgamento.

Terá o Tribunal de recurso de concluir pela existência de erro na apreciação, quanto a concretos e precisos pontos de factos, por os meios de prova indicados pelo recorrente imporem uma conclusão factual distinta.

Vejamos.

A apelante assenta a sua discordância quanto à fixação da factualidade dada como não provada, cfr. CLS A), E), H) e J).

Argumenta a apelante que tal decorre da prova testemunhal, CC, EE, DD, e declarações de parte da R., D..., na pessoa de AA, para se concluir “no sentido de os sócios comuns e, para o efeito, determinantes no exercício da respetiva atividade, terem de facto agido em conluio um com o outro com vista a evitar que, ao abrigo da titularidade, igualmente provada, do crédito, pela Autora, se promovesse a execução do património da 1.ª Ré.

Na sentença, ora objecto de recurso, foi dado como não provada a seguinte factualidade, que está aqui em discussão:

- Que a segunda ré seja, na prática, a primeira ré, “apenas com outra roupagem”;

- Que a segunda ré tenha sido constituída por plano arquitectado pelos sócios da primeira ré, com a intenção de esvaziar o património da primeira ré, por forma a inviabilizar o sucesso da acção executiva e não pagar a quantia reclamada pela autora;

- Que a primeira e segunda rés se confundam, tendo a constituição da segunda ré sido delineada por forma a que a primeira ré se pudesse furtar ao pagamento das suas dívidas, nomeadamente à autora;

- Que a venda do imóvel pela primeira ré ao Banco 1... e posterior contrato de locação financeira entre este Banco e a segunda ré, tenha sido uma forma ardilosa engendrada entre as rés com o intuito de “furtar” tal bem ao pagamento de dívidas da primeira ré.

Fundamentou-se tal realidade fáctica do seguinte modo:

DD, inspector tributário. Confirmou que, no âmbito das suas funções profissionais, realizou procedimento inspectivo à autora em 2009 (procedimento inspectivo concluído em Dezembro desse ano). Nesse procedimento inspectivo tomou conhecimento da existência da B..., face à existência de uma factura em que não tinha sido adicionado IVA (teria de ser pago IVA, mas as partes teria achado que sobre tal factura não recairia esse imposto, estaria isenta de IVA);

CC que, apesar de formalmente não ser sócio nem gerente da autora, é o beneficiário da sua actividade. A autora não exerce actualmente actividade (a autora está “aberta só à espera de receber este crédito”). A autora participou com as rés na realização de diversos eventos musicais, Como ... e ..., por intermédio de contactos com o BB (que, segundo ele, é quem “manda” nas rés). Como representante da autora, tê-lo-ão convencido, após reunião com a presença de ROC, que a factura acima referida estaria isenta de IVA, o que não se veio a verificar (inspecção acima referida), levando à subsequente actividade acima referida (não pagamento, injunção e execução). A autora pagou o IVA em falta, aproveitando “uma daquelas leis” que permitiu fazer o pagamento sem juros ou acréscimos;

FF, legal representante da B..., seu sócio e gerente, desde 2003 até hoje. Com as divergências acima referidas acabaram por se separar todos, prosseguindo cada um deles outras actividades ou constituindo outras empresas, apesar de, formalmente, se manterem sócios da B.... Esta, porém, deixou de exercer qualquer actividade. Confirma ainda as divergências quanto ao IVA, sendo que não pagaram quando tal lhes foi solicitado pela autora, por terem continuado a entender que a factura em causa estaria isenta de IVA;

EE, empresário de espectáculos. Relacionou-se com as partes na organização de eventos, pelo menos desde 2004 (..., ...…). O CC era, na altura, o melhor em contratação de artistas. Teve conhecimento da questão da isenção ou não de IVA. O FF e o BB eram os mais activos da primeira ré, cada um deles no seu ramo de actuação. No início da sua formação, também chegou a pensar que B... e D... eram a mesma coisa, confundindo-se. Porém, ficando depois a saber que os sócios não eram os mesmos (O BB saiu da B... e o FF não passou para a D...), percebeu então que eram empresas distintas entre si;

HH, sócio da B... desde a sua fundação, empresa que está inactiva. O BB e o FF eram os mais activos dentro da sociedade. Com as desavenças entre sócios, não quis continuar (“isto vai dar para o torto … não quero mais”, tendo a testemunha entrado na constituição de uma outra sociedade, a E...);

AA, sócio e legal representante da D... (e ainda da B..., apesar de inactiva). Nem todos os sócios da B... passaram para a D..., foram ele e o BB, sendo que o FF constituiu uma outra empresa (como acima referido). A B... não foi ainda dissolvida por desacordo entre os sócios quanto à forma de a dissolver e, ainda, por questões fiscais).

Os demais factos considerados não provados, assim o foram quer porque nenhuma prova foi efectuada quanto aos mesmos, quer porque a prova produzida não foi suficiente para este tribunal formar uma convicção segura quanto à sua ocorrência, nomeadamente, porque essencial, no que se refere à “confusão” entre rés, não logrando este tribunal adquirir por uma forma segura o bastante de que, na verdade, sejam as rés a mesma empresa “apenas com outra roupagem”, até por não serem exactamente as mesmas pessoas que integram as respectivas estruturas societárias.” Optou-se pela transcrição da fundamentação, pois que a mesma “reproduz” ou faz a súmula dos vários depoimentos, testemunhal e declarações de parte e depoimento de parte.

Com vista a este Tribunal ficar habilitado a conhecer dos factos em discussão, e deste modo formar a sua convicção autónoma, própria e fundamentada, teve de analisar todos os meios de prova produzidos em 1.ª instância.

Deste modo, este Tribunal ponderou a prova documental junta aos autos e citada na sentença em crise e que aqui se dá por reproduzido.

De seguida, procedeu-se à audição integral e completa das gravações das várias sessões de audiência de julgamento, depoimento de parte, declarações de parte e depoimentos das testemunhas.

Quanto à ponderação dos meios probatórios produzidos em audiência final, mormente a prova por confissão ou a prova testemunhal, a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as partes ou as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.

Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.

Terá o Tribunal de recurso de concluir pela existência de erro na apreciação, quanto a concretos e precisos pontos de factos, por os meios de prova indicados pelo recorrente imporem uma conclusão factual distinta.

Ora, de todo o acervo probatório, desde já podemos afirmar que terá que soçobrar a pretensão da apelante.

Com efeito, quanto à factualidade em causa e supratranscrita, ponderados os meios de prova, no confronto entre os meios de prova, testemunhal, e declarações de parte, a mesma terá que ser dada como não demonstrada, ou não provada.

A apelante, recorrendo a partes dos depoimentos, pretende assim ver afastada tudo o demais que resulta das testemunhas ouvida. Ora, tal não é possível.

A apelante sustenta-se no essencial no depoimento da testemunha CC. Como resulta do depoimento desta testemunha, o mesmo se revelou comprometido com o desfecho da demanda. Ao longo do seu depoimento a testemunha apresenta discrepâncias e incoerências de tal modo, que afecta a sua credibilidade, designadamente para que a factualidade seja dada como provada, tal como pretende a apelante. Esta testemunha apresenta uma versão factual que permite dizer que tem conhecimento circunstanciado de tudo o que se passou entre as RR., sua vida societária e responsabilidades. Mas, por outra via, revela ou relata desconhecimentos inesperados quanto à vida societária da A.. Como decorre dos depoimentos das testemunhas e do depoimento de parte da A., GG, das declarações de parte da R., AA, a testemunha CC era alguém nuclear e essencial na A.. Significativo, é que após insistentes instâncias durante a sua inquirição, a testemunha relata que foi ela quem fez o relato dos factos aos advogados para a presente demanda, pois que o seu legal representante, GG, nada sabe, limitando-se a assinar papéis.

De igual modo, o relato apresentado pelo CC foi totalmente infirmado pelo depoimento apresentado pelas testemunhas, II contabilista da B..., quando relata que a sociedade cessou a sua actividade por desentendimentos entre os sócios. Esta realidade foi reafirmada pelas declarações de parte da R. B..., FF, e da R. D..., AA, e das testemunhas EE e HH. Assim, a versão factual apresentada ao Tribunal não fica demonstrada como correspondendo ao que efectivamente se passou.

Tanto basta, para poder afirmar o acerto do decidido pelo M.mo Juiz, improcedendo, assim, a pretensão da apelante.


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B)

As consequências a retirar da alteração à decisão de facto.

Como se verifica da análise das conclusões formuladas pelos apelantes, o objecto deste recurso consistia essencialmente na alteração da decisão proferida sobre a matéria controvertida. Dessa alteração, antes de qualquer outro fundamento, dependia a pretendida alteração da solução decretada na sentença em crise, pois sem isso a tese dos apelantes continuaria desprovida de substrato factual apto à sua afirmação.

Ainda assim, poderemos adiantar as seguintes considerações teóricas.

O instituto da desconsideração da pessoa colectiva tem uma origem doutrinal longa, mas jurisprudencial recente.

É pressuposto que a pessoa colectiva seja abusivamente utilizada pelos seus membros.

Esta figura jurídica só será admissível a título excepcional e ponderada e apreciada para cada caso concreto.

O ónus probatório dos requisitos cabe ao credor que pretende fazer uso do instituto jurídico.

O nosso mais alto Tribunal, Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a aceitar a existência deste instituto. Entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 434/1999.L1.S1, de 10.01.2012, relatado pelo Conselheiro SALAZAR CASANOVA, “A jurisprudência tem reconhecido o abuso da personalidade coletiva: assim, no Ac. do S.T.J. de 30-11-2010 (Fonseca Ramos), revista n.º 1148/03.5TVLSB.S1- 6ª secção onde se refere que “ a desconsideração ou levantamento da personalidade coletiva das sociedades comerciais -disregard of legal entity- tem na sua base o abuso do direito da personalidade coletiva […] e que a desconsideração, como instituto assente no abuso do direito - art. 334.º do CC -, tem em si abrangida a violação das regras da boa fé no interagir com terceiros, implica a existência de uma conduta censurável que só foi possível alcançar mediante a separação jurídica do ente societário - através da personalidade jurídica que a lei lhe atribui - e a pessoa dos sócios, para assim almejar um resultado contrário a uma reta atuação; ou ainda, o Ac. do S.T.J. de 21-2-2006 (Paulo Sá), revista n.º 3704/05 onde se menciona que, na vertente do abuso de personalidade, podem perfilar-se algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu.

Menezes Cordeiro diz-nos que “ o levantamento é um instituto de enquadramento, de base aparentemente ‘geográfica’, mas com todas as vantagens científicas e pedagógicas dele decorrentes. Guardadas as devidas distâncias, outro tanto se passa com a própria boa fé. Reunindo institutos de origens muito diversas - culpa in contrahendo, abuso do direito, alteração das circunstâncias, complexidade intraobrigacional e interpretação do contrato - a boa fé permitiu afeiçoá-los a todos, inserindo-os, de modo mais cabal, na complexidade do sistema”.

E prossegue o ilustre autor, justificando porque não se deve reconduzir o levantamento a cada um dos vários institutos jurídicos que a nossa lei civil acolhe: “ apesar da apontada fragmentação dogmática, apenas a ideia global de levantamento permite: alcançar novas e mais apuradas hipóteses de responsabilidade civil; obter perspetivas aprofundadas de interpretação normativa; conquistar vias mais finas de concretização da boa fé. Ainda que como (mero) instituto de enquadramento, o levantamento tem uma efetiva eficácia dogmática: a natureza sistemática do pensamento jurídico a tanto conduz” (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas,2004, pág. 646/648).

Uma dos grupos a que Menezes Cordeiro reconduz a pluralidade de situações justificativas do levantamento da personalidade é aquele em que se divisam “ situações de abuso do direito ou, se se preferir; de exercício inadmissível de posições jurídicas” (loc. cit, pág. 647).

Sobre o abuso da personalidade coletiva, Menezes Cordeiro refere ainda o seguinte: “o atentado a terceiros verifica-se sempre que a personalidade coletiva seja usada, de modo ilícito ou abusivo, para os prejudicar. Como resulta da própria fórmula encontrada, não basta uma ocorrência de prejuízo, causada a terceiros através de pessoa coletiva; para haver levantamento será antes necessário que se assista a uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios. Sub-hipótese particular é a do recurso a ‘testas de ferro’ que autorizariam a procurar o real sujeito das situações criadas[…]. O abuso do instituto da personalidade coletiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificadas a propósito da atuação do visado, através duma pessoa coletiva” (O Levantamento da Personalidade Coletiva no Direito Civil e Comercial, 2000, pág. 122/123).” (…)

Sustentando que o abuso da personalidade jurídica coletiva constitui categoria dogmática autónoma em relação ao abuso do direito, Ana Morais Antunes, considera que essa perspetiva “ abre portas à consideração de uma fonte de ilicitude ínsita à proibição do abuso da personalidade jurídica coletiva, para além e com independência das duas modalidades de ilicitude admitidas no direito comum” (“ O Abuso da Personalidade Jurídica Coletiva no Direito das Sociedades Comerciais” in Novas Tendências da Responsabilidade Civil, 2007, pág. 63). Veja-se ainda “Desdramatizando o Afastamento da Personalidade Jurídica (e da Autonomia Patrimonial” por Catarina Serra e “Desconsideração da Personalidade Jurídica - Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial” por Armando Manuel Triunfante e Luís de Lemos Triunfante in Julgar, 9, respetivamente, pág. 111/130 e pág. 131/146).

Pedro Cordeiro, A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, 2005, 2ª edição, Universidade Lusíada Editora define “ homem oculto” como “ aquele (ou aqueles) - pessoa(s) singular(es) ou coletiva (s) - que pode (m) formar "deper si" a vontade social, desfuncionalizando a sociedade”. E salienta que o “ homem oculto só se apura […] em face de cada situação concreta”

Em igual sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 446/11.9TYLSB.L1.S1, de 19.06.2018, relatado pela Cons GRAÇA AMARAL, “para aplicação do instituto da desconsideração da personalidade colectiva não basta a existência de uma situação de confusão de esferas patrimoniais entre o sócio e a sociedade, como seja a de transferência de montantes da conta desta para a conta pessoal daquele. Mostra-se indispensável para tal efeito a demonstração do prejuízo e, concomitantemente, do nexo de causalidade entre este e a conduta desrespeitosa da autonomia patrimonial, no caso, a prova de que as transferências levadas a cabo por um dos sócios tenham causado falta de liquidez da sociedade e, como tal, a impossibilidade de entrega dos lucros distribuídos à sócia lesada”, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 919/15.4T8PNF.P1.S1, de 07.11.2017, relatado pelo Cons ALEXANDRE REIS, sumariado “Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam.” e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 22024/16.6.T8PRT.P1.S1, de 13.10.2020, relatado pelo Cons ACÁCIO NEVES,

De igual as nossas Relações têm vindo a aceitar tal instituto, entre outros, Acórdão Tribunal da Relação do Porto 0524260, de 25.10.2005, relatado pelo Des HENRIQUE ARAÚJO, “Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica colectiva – cfr. Menezes Cordeiro, “O Levantamento da Personalidade Colectiva”, Almedina, 2000, pág. 122 e segs; Pedro Cordeiro, “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais”, pág. 77.

Em tese geral, pode dizer-se que a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva, imposta pelos ditames da boa fé, se traduz no desrespeito pela separação pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros.

Nos casos de desconsideração o que se passa é que a própria sociedade (pessoa colectiva) se desvia da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou, optando por um comportamento abusivo e fraudulento que não pode ser tolerado na utilização funcional da sociedade ou de que aquela conduta não é substancialmente da sociedade mas do ou dos seus sócios (ou ao invés).

A sociedade é, assim, utilizada para mascarar uma situação; ela serve de véu para encobrir uma realidade – cfr. Pedro Cordeiro, ob. cit., pág. 73, nota 75.

A desconsideração da personalidade jurídica engloba o abuso da personalidade e o abuso da responsabilidade limitada.

Tradicionalmente a desconsideração da pessoa colectiva é construída como técnica que permite subtrair o património (pessoal ou social) dos sócios ao benefício da responsabilidade limitada – v. Ricardo Costa, “Boletim da Ordem dos Advogados”, n.º 30, pág. 10 e ss. É neste domínio do abuso da responsabilidade limitada que o instituto da desconsideração da personalidade adquire toda a sua dimensão.

Hoje, estão mais ou menos sistematizadas as condutas societárias reprováveis que, nessa vertente, podem conduzir à aplicação do referido instituto.

De entre elas, avultam: a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios; a subcapitalização, originária ou superveniente, da sociedade por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; as relações de domínio grupal – v. Ricardo Costa, loc. cit., págs. 13/14.

Mas, também na vertente do abuso da personalidade se podem perfilar algumas situações em que a sociedade comercial é utilizada pelo(s) sócio(s) para contornar uma obrigação legal ou contratual que ele, individualmente assumiu, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando como interposta pessoa. Nessas hipóteses, desde que seja patente um comportamento abusivo e fraudulento por parte de determinado sócio, em prejuízo de terceiros, supera-se a capa da sociedade e passa a ver-se esse sócio, que responderá individualmente perante o lesado, após ser chamado a juízo.

A desconsideração da personalidade jurídica só deverá, porém, ser invocado quando inexistir outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar. Por isso se diz que a aplicação desse instituto tem carácter subsidiário – v. Amílcar Brito de Pinho Fernandes, loc. cit., pág. 65.

Não estranha, por isso, que a maioria das situações de abuso da personalidade jurídica da sociedade comercial, correspondam a violações de normas contratuais ou legais que se dirimem com base nas mesmas.“.

Também Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 1669/14.4TBSTS.P1, de 23.10.2018, relatado pela Des MARIA CECÍLIA AGANTE, sumariado “II - A desconsideração da personalidade jurídica coletiva é edificada a partir dos princípios gerais positivamente consagrados, como sejam o abuso do direito, a má fé e o intuito de prejudicar terceiros. III - O recurso a esse instituto é de carácter subsidiário e, como tal, só tem cabimento caso não exista outro fundamento legal que invalide a conduta ilícita do sócio. IV - A aplicação da desconsideração da personalidade coletiva não se basta com a verificação do prejuízo do credor, sendo indispensável a prova do nexo de causalidade entre este e a conduta desrespeitosa da autonomia patrimonial, designadamente a falta de liquidez da sociedade e a impossibilidade de solver os credores sociais.”, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 3680/23.5T8VFR.P1, de 05.02.2024, relatado pelo Des MIGUEL BALDAIA DE MORAIS, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto 2135/20.4T8STS.P1, de 21.10.2021, relatado pela Des JUDITE PIRES, sumariado “O recurso ao instituto da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva visa corrigir comportamentos ilícitos de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, actuando em abuso do direito, em fraude à lei ou com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros e, apesar disso, não exista outro fundamento legal que a invalide.

Face à factualidade dada como provada, é certo ter a sociedade B..., 1.ª R., ter exercido a sua actividade até ao ano de 2010, tendo cessado a sua actividade, por os seus sócios terem decidido caminhos distintos, sendo que alguns deles constituíram nova sociedade D..., 2.ª R., de modo a prosseguir a actividade cessada pela 1.ª R..

No entanto, a credora, aqui A., não logra provar a utilização fraudulenta da 2.ª R., ónus que sobre si recaía, e com o intuito de prejudicar a A.. Concluindo, a apelante alegou muito, mas provou pouco, muito pouco. Logo, sem necessidade demais considerações, nos termos do artigo 342.º, do Código Civil o seu recurso terá de improceder totalmente.


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III DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 27 de Maio de 2025.

Alberto Taveira

Lina Castro Baptista

João Proença

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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.