CRIME DE INJÚRIAS
ELEMENTO INTELECTUAL E VOLITIVO DO DOLO
Sumário

I - Entre a factualidade vertida na acusação particular, consta “Os factos foram praticados pelo arguido de forma livre e conscientemente, sabendo que eram proibidos e punidos por lei e que lesavam a honra e consideração da assistente, o que conseguiu” (cf. art.º 6.º da acusação particular)
II - Ora, acompanhando o parecer emitido pelo Sr. Procurador Geral-Adjunto, entendemos que tal é o mesmo que dizer que o arguido, ao dirigir as palavras em causa à assistente, estava ciente, não só da idoneidade das mesmas para lesarem a honra e consideração da assistente, mas também de que efetivamente as lesavam, resultado que lograra atingir com a atuação, que sabia igualmente ser ilícita.
III - A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo.
O elemento intelectual que consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável, mostra-se presente.
Por sua vez, o elemento volitivo, que consiste na “especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito”, a nosso ver, mostra-se também presente, ainda que formulado em moldes diversos do habitual.
Com efeito, a verdade é que se refere na acusação que o arguido agiu livre e conscientemente, ou seja, quis praticar os atos que sabia serem ilícitos, e que ofendiam a assistente na sua honra e a consideração, pelo que entendemos que a intenção de ofender que se reconduz ao crime de injúrias, se mostra ainda assim presente na acusação particular.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Inq n.º 294/23.3T9LOU.P1
Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal de Penafiel – J2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
No âmbito do processo de instrução n.º 294/23.3T9LOU a correr termos no Juízo de Instrução Criminal de Penafiel -J2- foi proferida decisão instrutória relativamente ao arguido AA, decidindo nos seguintes termos:
“Nestes termos, tudo visto e ponderado, atento o preceituado no artigo 308.º, do Código de Processo Penal, decido não pronunciar o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal, determinando-se o oportuno arquivamento dos autos”.

Desta decisão veio a assistente, BB, interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 127/146 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
1- A assistente interpôs o presente recurso por não se conformar com o douto despacho de não pronúncia proferido nos autos, circunscrevendo-o apenas a matéria de direito.
2- Foi proferido despacho de não pronúncia no qual foi entendido pelo Mmo Juiz de Instrução Criminal que a acusação oferecida pela assistente BB, ora recorrente, não satisfez integralmente as exigências formuladas no n.º 2 do art.º 287.º, do Código de Processo Penal.
3- Entendeu o Mmº Juiz de Instrução Criminal que o elemento subjetivo não está totalmente sustentado nos factos alegados pela assistente, todavia não questiona na sua decisão que os factos descritos estejam alinhados de forma a integrar o elemento objetivo do tipo.
4- Sustenta o Mmº Juiz que não se afirma na acusação que o arguido soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei, e por isso, ou melhor, só por isso, considerou ser legalmente nula a acusação particular, não pronunciando o arguido pela prática do crime de injúria.
5- Ora, estatui o art.º 14.º do Código de Processo Penal que (n.º 1) “qge com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar”; (n.º 2) “age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta”; (n.º 3) “quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização”.
6- Resulta que, em face da lei, não existe uma fórmula certa para se descrever o dolo.
7- Essencial é que a acusação descreva (pela narração dos factos) os elementos que compõe o dolo.
9- O Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015 vem aflorar isso mesmo, dizendo que não existe obrigação da utilização sedimentada de expressões padronizadas para caracterizar o elemento subjetivo do tipo.
É recorrentemente dado como exemplo pela Jurisprudência: “O arguido procedeu livre e consciente, com intenção vincada de ofender a honra e consideração da assistente, não obstante sabendo que era contrária à lei”
Ainda que de forma fora do usual está alegada a “vontade”.
10- Em suma, existindo o mínimo de imputação fáctica que dê respostas às exigências da descrição do elemento subjetivo, não existe qualquer fundamento para que a acusação seja rejeitada, como o foi nos presentes autos.
11- Ora, entende a assistente ter deixado descritos na sua acusação particular os elementos essenciais que compõem o dolo, mormente quando é referido na referida peça processual “…tendo perseguido a mesma até ao fim do primeiro piso insultando e ameaçando-a de modo intimidatório e agressivo demonstrando ter um ódio imenso contra a assistente, dizendo-lhe em voz alta “Estás a olhar para onde”, “és uma badalhoca”, “deverias ir para o meio do monte”. E os factos descritos foram praticados pelo arguido de forma livre e consciente, sabendo que eram proibidos por lei e que lesavam a honra e consideração da assistente”, aqui também, mesmo que de forma não padronizada, a vontade do arguido está referenciada.
Pelo exposto, o comportamento do arguido consubstancia entre outros um crime de injúria previsto e punido pelo artigo 181.º, do Código Penal.
12- Pelo que, em face do descrito na acusação particular a acusação não é nula.
13- Para além disso, entende a assistente que somente na audiência de discussão e julgamento poderia o douto Tribunal tomar posição acerva da falta de elemento emocional do dolo.
14- Assim o refere o douto Acórdão Uniformizados de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 1/2015, de 20 de novembro de 2014, nos termos do qual: “Quando ao dolo emocional essa descrição nem sempre carece de constar na acusação/pronúncia, indicando os casos dos crimes de homicídio, ofensas corporais, furto, injúrias e remetendo para o exemplo constante no Acórdão do STJ de 07.10, considerando que o arguido não podia deixar de desconhecer o desvalor da sua conduta, onde se reconhece que o conhecimento da ilicitude provém da realização do próprio facto, sendo desnecessária a prova do conhecimento da proibição para se saber que o acto é ilícito atendendo às práticas sociais.
Qualquer cidadão médio sabe que imputar factos ou palavras que ofendem a honra e consideração de outrem é algo profundamente censurável, eticamente reprovável e ofensivo das regras que presidem à vida em sociedade e como tal não permitido por lei”.
15- A decisão sob recurso é violadora dos disposto nos artigos 14.º do Código Penal e artigos 283.º e 287.º, n.º, do Código de Processo Penal.
16- Pelo que deverá ser substituída por outra que pronuncie o arguido pela prática do crime de injúrias.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso e, em consequência, seja ordenado que o mesmo seja substituído por outro que pronuncie o arguido pelo crime de injúrias.

Ao recurso interposto, veio arguido responder nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 154/155 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, alegando, em síntese, que:
- O crime aqui previsto é um crime, essencialmente, doloso, “bastando, para uma plena imputação subjetiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do art.º 13.º do Código Penal com o art.º 181.º, n.º 1, do mesmo diploma”.
- Ora, como refere a decisão instrutória “a acusação não contém a descrição concreta dos factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito, que consubstancia o crime pelo qual o arguido vem acusado”.
- E, como tal, estamos perante uma acusação particular nula, que já antes de o arguido requerer a abertura de instrução, não seria acompanhada pelo MP.
- Os argumentos evidenciados pela recorrente são desprovidos de fundamentação idónea e, por esse motivo, o arguido não foi pronunciado.
Termina pedindo seja negado provimento ao recurso e, em consequência, seja mantida a decisão instrutória.
Ao recurso interposto, veio o Ministério Público responder nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 156/160 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo nos seguintes termos:
1. Por decisão instrutória de fls. 128 a 133, datada de 06.12.2024, a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal a quo declarou nula a acusação particular que havia sido deduzida pela assistente/recorrente contra o arguido e, consequentemente,, decidiu não o pronunciar pela alegada prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal, que lhe havia sido imputado pela assistente/recorrente na acusação particular de fls. 88 a 89, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido por economia processual para todos os legais efeitos e determinou o arquivamento dos autos.
2. Analisadas a s conclusões das alegações de recurso formuladas pela assistente/recorrente, que são em número de 16, e se encontram a fls. 144 (verso) a 146, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido por economia processual para todos os legais efeitos, se constata que, s.m.o, e ressalvado o devido respeito por opinião em contrário, que é muito, há apenas uma questão para analisar e decidir, ou seja, se a acusação particular contém, ou não, todos os elementos constitutivos, objetivos e subjetivos, do tipo de crime de injúria que foi imputada pela assistente/recorrente ao arguido ou, como foi decidido pelo Tribunal a quo, se tal não ocorre e foi correta a decisão de declarar nula tal acusação particular, não pronunciar o arguido e ordenar o arquivamento dos autos.
3. O Tribunal a quo considerou que “(…). Compulsados os factos constantes da mesma, imediatamente ressalta que nela não vem concretizado o elemento subjetivo do crime em questão. A acusação não contém a descrição concreta dos factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito que consubstancia o crime pelo qual o arguido vem acusado”.
4. Alega a assistente/recorrente, em síntese que, em seu entender, a acusação particular que deduziu contra o arguido não é nula porque fez da mesma constar todos os necessários factos suscetíveis de preencher os elementos constitutivos, objetivo e subjetivo, do crime de injúria, previsto e punível pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal e, consequentemente, o Tribunal a quo deveria ter pronunciado o arguido pela prática de tal crime.
5. Porém, analisando-se quer o teor da suprarreferida acusação particular, quer da decisão instrutória se constata que, s.m.o., e ressalvado o devido respeito por opinião contrária, que é muito, não lhe assiste razão, dado que:
- como é bem salientado na decisão instrutória recorrida, a acusação particular não contém a descrição concreta dos factos no que concerne ao elemento subjetivodo ilícito, que consubstancia o crime pelo qual o arguido foi acusado;
- acresce que, tal como também foi certeiramente referido na decisão instrutória, não há lugar ao convite para reparar a(s) nulidade(s) detetada(s), atento o princípio do acusatório que informa o nosso sistema penal.
6. Pelo exposto, entendemos que a decisão instrutória recorrida está correta e não merece censura.
7. Não se mostram violados os normativos legais referidos pela assistente/recorrente ou quaisquer outro que cumpra conhecer.
Termina pedindo seja julgado improcedente o recurso e, em consequência, seja mantida a decisão recorrida.

Neste Tribunal de recurso a Digna Procuradora-Geral Adjunta no parecer que emitiu, e que se encontra a fls. 166/167 dos autos, pugna pela procedência do recurso interposto, defendendo que a acusação particular não padece de nulidade.

Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais veio a ser acrescentado com relevo para a decisão em causa.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II- Fundamentação:
Fundamentação de facto
A) Com data de 04.06.2024, foi apresentada pela assistente BB contra AA a seguinte acusação, constante a fls. 87/89 dos autos:
“(…). I. Da acusação Particular:
1.º - A assistente e o arguido são vizinhos desde o dia 01 de junho de 2021, sendo que a assistente vive no 2.º andar esquerdo e o arguido no 1.º andar esquerdo.
2.º- Apesar de serem vizinhos não existe qualquer tipo de amizade entre ambos. Apenas se cruzam nas escadas do prédio quando estão de saída ou entrada.
3.º - Acontece que, no dia 19 de dezembro de 2022, por volta das 02h00 da madrugada de domingo, estava no seu quarto com o seu namorado, a praticar relações sexuais com o mesmo e, o arguido começou a bater com um objeto (de madeira ou metálico) no teto da sua fração, na direção do quarto da assistente, que, estando na sua residência, não estava a perturbar ninguém.
4.º - Nesse mesmo dia, pelas 18h00, o aqui arguido acompanhado da sua filha e da sua mulher, ao subir as escadas em direção à sua habitação, cruzou-se com a assistente, tendo perseguido a mesma até ao fim do primeiro piso insultando-a e ameaçando-a de modo intimidatório e agressivo demonstrando ter um ódio imenso contra a assistente, dizendo-lhe em voz alta, “Estás a olhar para onde?”, “És uma badalhoca”, “deverias ir para o meio do monte” e “sai daqui e não me olhes de frente”.
5.º - Assustada e com medo, a assistente pediu ajuda dos pais e contactou o posto da GNR de Lousada.
6.º - Os factos acima descritos foram praticados pelo arguido de forma livre e consciente, sabendo que eram proibidos e punidos por lei e que lesava a honra e consideração da assistente, o que conseguiu, tendo-lhe, como já se referiu, provocado ansiedade e inquietação.
7.º - A demandante foi sempre uma pessoa séria, honesta e muito considerada no meio social onde reside.
8.º - Pelo exposto, o comportamento do arguido consubstancia, entre outros, um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181.º do Código Penal.
Assim, requer-se a Vossa Excelência se digne receber a deduzida acusação particular, devendo o arguido, a final, ser condenado nos termos da mesma.
Prova:
I- A constante dos autos;
II- Requer-se a prestação de declarações pela assistente, e ainda
III- testemunhal: (…)”.
B) Com data de 28.06.2024, o Ministério Público declarou, a fls. 101 dos autos, não acompanhar a acusação particular deduzida pela assistente em virtude do elemento volitivo do dolo estar ausente (a vontade do arguido em atuar com a intenção alcançada de ofender a assistente na sua honra e consideração pessoais).
C) Com data de 13.09.2024, o arguido AA apresentou requerimento de abertura de instrução, constante a fls. 108/109 dos autos, nos seguintes termos:
“1. Que sejam analisados os autos, conduzindo à verificação do despacho de não pronúncia, nos termos do artigo 307.º do Código de Processo Penal.
2. O arguido vem indiciado pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, do Código Penal.
3. Não é verdade o que consta na acusação particular aqui deduzida contra o Sr. AA.
4. A aqui assistente é vizinha do Sr. AA e da sua esposa, D. CC.
5. Residindo no apartamento por cima dos mesmos.
6. É uma senhora que produz bastante ruído, quer diurno e principalmente, noturno, na sua habitação.
7. Não respeita as regras de sossego e paz em convivência em condomínio.
8. Toda a família se encontra psicologicamente afetada com este tipo de comportamento, principalmente as filhas menores e a esposa, pois não conseguem dormir e a filha mais velha, em pleno dia usa auscultadores com música para poder concentrar-se nos estudos, tendo iniciado medicação para ataques sucessivos de ansiedade.
9. Por esse motivo, quer o Sr. AA quer a sua esposa, D. CC, já apresentaram queixa contra a mesma, dando lugar ao processo n.º ..., que corre termos nesse Digníssimo Tribunal.
10. Inclusive, no dia 31 de janeiro de 2024, quando prestou declarações negando todos os factos referidos pela mesma, desejou procedimento criminal contra a mesma.
11. Não é verdade o que aqui a assistente refere, sendo até vergonhoso o que a mesma refere na douta acusação particular.
12. A assistente não faz mais nada a não ser perturbar o sossego de uma mãe e duas crianças que atualmente residem sem o pai, por este se ter ausentado para o estrangeiro em trabalho.
13. Sendo que, desde que o Sr. AA se ausentou, a situação piorou consideravelmente e não só se ouvem os ruídos produzidos pela mesma nos seus atos sexuais, como deita propositadamente, ao que parece, objetos pesados no chão, a qualquer hora da noite, ao ponto de a filha mais nova do casal, se assustar e não dormir de noite.
14. Num dia que o arguido não consegue concretizar, mas perto do natal de 2023, cruzou-se com a assistente, mas foi ela que provocou com olhares e risos de gozo e caretas a esposa do aqui arguido, o qual entrou com a sua filha dentro de casa e bateu a porta com força, pensando que não valia a pena incomodar-se.
15. Nunca o aqui arguido praticou qualquer crime, conforme se poderá verificar pelo seu registo criminal.
16. É um homem trabalhador e bom pai de família.
17. Encontrando-se muito triste e envergonhado com toda esta situação.
18. Não aceita ser acusado injustamente de tal crime por jamais ser capaz de o praticar.
19. Nos termos do artigo 26.º do Código Penal e art.º 283.º, n.º 1, do CPP, apenas deve ser deduzida acusação “caso haja indícios de que tenha sido o arguido a praticar os factos, caso os mesmos tenham sucedido.
20. Invoca-se aqui o princípio in dubio pro reo que “constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz, acerca da matéria de direito,
IV. Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos de preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
V. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto, isto porque o princípio in dúbio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção da inocência (art.º 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. In acórdão STJ, n.º 07P1769, datado de 11 de setembro de 2009.
Pelo exposto, não estão preenchidos os elementos dos tipos legais de crime de que vem acusado.
Termos em que, e nos demais de direito, requer a V. Ex.ª seja declarada a abertura de instrução e, consequentemente, proferido despacho de não pronúncia do arguido pelo crime de que vem acusado. (…)”
D) Em 22.11.2024 foi realizado debate instrutório, conforme consta da ata de fls. 125 dos autos e com data de 06.12.2024 foi proferida decisão instrutória nos seguintes termos (cf. fls. 128/133 dos autos):
“Declaro encerrada a instrução.

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O tribunal é competente.
O processo é o próprio.
Não existem nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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Veio a assistente BB deduzir acusação particular (de fls. 88 a 90) contra:
AA, pela prática, de um crime de injúria, previsto e punido pelos artigos 181.º, do Código Penal, entre outros.
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular deduzida nos autos, por despacho datado de 28-06-2024, de fls. 101.
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Não se conformando com a acusação, o arguido veio requerer a abertura de instrução.
Alega, para tanto, em síntese, que não praticou os factos, concluindo que não foram recolhidos indícios suficientes da sua prática, devendo ser proferido despacho de não pronúncia.
*
Foi declarada aberta a fase de instrução.
Porque foi requerido, teve lugar interrogatório do/a/s arguido/a/s.
Teve lugar o debate instrutório com obediência a todo o formalismo legal.
Não se nos afigura pertinente a realização de qualquer a qualquer outra diligência instrutória que não retarde inadmissivelmente o decurso da instrução.
Cumpre proferir decisão instrutória.
O artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal vem indicar expressamente, como fim da instrução, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Como facilmente se depreende do citado dispositivo, a instrução configura-se, no Código de Processo Penal, como atividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, a sua imputação ao agente e respetivo enquadramento jurídico-penal.
Desde logo, é necessário atentar no disposto no artigo 308.º, n.º1, do Código de Processo Penal: “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
“Efetivamente, entende o legislador português, acompanhado aliás pelo da generalidade dos países, que só é legitimo ao Estado submeter uma pessoa a julgamento pela prática de um crime havendo comprovados motivos que o justifiquem. O que impõe que a primeira etapa de tramitação do processo penal comporte uma fase, ou um conjunto de fases, que visa investigar cabalmente a existência de um crime de que houve notícia e determinar os seus agentes, descobrindo e recolhendo as provas. Terminada essa primeira fase do processo, apelidada de preparatória, e esgotadas as diligências de investigação possíveis, importa responder à seguinte questão: há, ou não, motivos que justifiquem a submissão de alguém a julgamento? Só uma resposta afirmativa permite a progressão do processo para a fase seguinte – a de julgamento” (Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 157).
A nossa jurisprudência já deixou clara a razão de se exigir a presença de indícios suficientes para se submeter alguém a julgamento (para o Ministério Público acusar ou para o Juiz de Instrução Criminal pronunciar). Desta forma, podemos ler no sumário do acórdão do S.T.J. de 28/06/2006, número convencional JSTJ000, publicado no sítio www.dgsi.pt: I - «A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um ato neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame. II - Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de proteção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.º daquela Declaração e 27.º da CRP)”.
Para que surja uma decisão de pronúncia, a lei, tal como de resto faz na acusação, não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, antes basta-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final; tratando-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase de julgamento.
Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (artigo 283.º n.º 2 do CPP).
São assim, suficientes, os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, traduzidos em vestígios, suspeitas, presunções, sinais e indicações aptos para convencer que existe um crime do qual aquele agente é responsável (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de maio de 2003, processo: 03P1493, relator: Henriques Gaspar, www.dgsi.pt). Por isso, se logo a nível do juízo, formulado na instrução, no plano dos factos, se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não serão suficientes, não havendo prova bastante para a pronúncia.
Assim sendo, para a pronúncia não é necessária uma certeza da infração, mas os factos indiciários devem ser bastantes por forma que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade dos factos que lhe são imputados.
Os indícios são suficientes quando haja uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição, caso contrário deverá elaborar-se despacho de não pronúncia.
Assim, cumpre verificar se existem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de que vêm acusado.
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Do crime de Injúria
O art. 181.º, do Código Penal, prescreve, no seu nº 1, “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.
O bem jurídico protegido por este normativo legal é a honra.
Como refere o Prof. José de Faria Costa, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 602 e segs., a conceção de honra que se coaduna com a legislação portuguesa, mais precisamente com o aludido art.º 181º do Código Penal, consiste numa conceção dual, em que a conceção normativa de honra (cujo ponto de partida é “um momento da personalidade do indivíduo (…), um bem que respeita a todo o homem por força da sua qualidade de pessoa” - cfr. obra supra citada, pág. 605, que cita Musco) é temperada com uma dimensão fáctica (que será uma alteração empiricamente comprovável de certos elementos de factos, de ordem psicológica ou social).
Assim, a honra será vista como “um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior” (cfr. obra supra citada, pág. 607).
Se considerarmos que, como entendem Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, no Código Penal Anotado, 2º vol., 3ª edição, Edit. Rei dos Livros, a pág. 469, “honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui” e que “consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão”, verificamos que no artigo 181º do Código Penal protege-se ambos os valores e que, em conjunto, serão entendidos como honra em sentido amplo, pois a honra “objetivamente, é a opinião dos outros sobre o nosso mérito; subjetivamente… o nosso receio diante dessa opinião” (citação de Shoppenhauer feita por Nelson Hungria, in Comentário ao Código Penal Brasileiro, VI, p. 39/40, e referido por Leal-Henriques e Simas Santos, na obra supra citada, pág. 469).
Ora, para estarmos perante uma conduta punível pelo art.º 181º nº 1 do Código Penal é necessário a verificação de vários pressupostos, quais sejam:
a) Que o agente impute factos a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita; ou dirija palavras a outra pessoa;
b) Que a imputação de tais factos ou as palavras dirigidas ofendam a honra ou consideração da outra pessoa;
c) Que tal conduta seja praticada a título doloso.
Assim, e no que se refere ao elemento objetivo deste ilícito, o agente terá de imputar factos a outra pessoa, ainda que sob a forma de suspeita, que ofendam a honra ou consideração desta.
No entanto, o crime de injúrias pode também ser enquadrado mediante a direcção a outra pessoa, por parte do agente, de palavras; palavras essas que têm, necessariamente, de ser ofensivas da honra e consideração daquela.
Sendo certo que “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o significado” (cfr. José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 630).
Saliente-se que, ao contrário do que sucede no crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180º do Código Penal, para haver lugar à punição do agente pelo crime de injúrias, é ainda necessário que a imputação de factos ou as palavras proferidas sejam feita de forma direta, no sentido da conduta ser endereçada ao próprio ofendido e na presença dele.
Por último, será ainda necessário que os factos imputados, ou as palavras dirigidas ao ofendido, ofendam a sua honra e consideração (na noção supra explicitada), no sentido de constituir uma injúria.
Entendendo-se injúria como “a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje ou vilipêndio contra alguém” (cfr. Nélson Hungria, in Comentário ao Código Penal Brasileiro, VI, 90/91, citado por Leal-Henriques e Simas Santos, no Código Penal Anotado, 2º vol., pág. 494).
Pois neste crime, “não se protege, pois, a suscetibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas” (cf. obra citada, pág. 494).
Assim, não basta a pronúncia de palavras ou expressões que constituam falta de educação, ou indelicadeza para estarmos perante um crime de injúrias; é necessário mais do que isso: que tais palavras ou expressões ofendam a honra e consideração do seu destinatário.
Convém ainda referir que a injúria tem um carácter relativo, no sentido de só poder ser apreciada caso a caso, pois como foi já mencionado, o carácter injurioso de uma palavra, varia consoante as condições de tempo, lugar ou circunstâncias de cada caso concreto.
No que se refere ao seu elemento subjetivo, o crime de injúrias é um crime essencialmente doloso, bastando, para uma plena imputação subjetiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do art.º 13º do Código Penal com o art.º 181º nº 1 do mesmo diploma legal.
Sendo que, dolo eventual verifica-se quando o agente prevê, como consequência possível da sua conduta, o preenchimento de um tipo legal de crime, punível, e se conforma com essa possibilidade, embora não querendo diretamente o resultado dessa ação (cfr. art.º 14º do Código Penal).
Saliente-se ainda que, como vem sendo entendido pela jurisprudência, este crime basta-se, para a sua consumação, com a verificação de dolo genérico (traduzido na consciência de que as expressões utilizadas são suscetíveis de produzir ofensa da honra e consideração do destinatário), não sendo necessário a existência de dolo específico (no sentido de haver uma especial intenção de injuriar).
Neste sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 01/07/1987, in BMJ 369-593; Acórdão da RL de 18/05/1988, in CJ XIII, 3, 180; Acórdão da RP de 30/11/1988, in CJ XIII, 5, 221.
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Importa verificar se, em sede de instrução, foi produzida prova capaz de anular a prova produzida em inquérito de forma a conduzir à conclusão que inexistem indícios suficientes da prática dos crimes de que o arguido vem acusado.
Por uma questão de simplicidade e celeridade processual, importa, desde logo, analisar a acusação particular que foi deduzida.
Compulsados os factos constantes da mesma, imediatamente ressalta que nela não vem concretizado o elemento subjetivo do crime em questão.
A acusação não contém a descrição concreta dos factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito, que consubstancia o crime pelo qual o arguido vem acusado.
O artigo 283.º, n.º3 do Código de Processo Penal, estabelece que “A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respetiva identificação;
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
g) A data e assinatura.”
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Também no Acórdão da Relação de Guimarães de 09-01-2027, no processo 628/11.3TABCL.G1, disponível em www.dgsi.pt:
“I – «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados».
II - Donde, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objeto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não podendo o juiz formular convites ou recomendações, e muito menos ordens, ao Órgão Titular da ação penal, para aperfeiçoamento, retificação, complemento, ou dedução de nova acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais.
III - Por outro lado, os “factos” que constituem o “objeto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea [art. 283º nº 3 b) do CPP].
IV - Perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal do crime imputado numa acusação, se o processo for remetido para a fase de julgamento, deve o juiz rejeitar a acusação, por manifestamente infundada [cf. art. 311º nºs 2, a) e 3, d)], e, se assim não for e o processo chegar a julgamento, o juiz julgador terá de absolver o arguido da acusação.
V - Por isso, também o JIC, perante a insuficiência da acusação deduzida contra um arguido, quanto aos factos integrantes de um dado tipo legal, chegado o momento de sobre ela decidir, não pode devolver os autos ao Ministério Público, ou ao acusador particular, para que a mesma seja completada – em conformidade, aliás, com a jurisprudência já fixada para o caso de insuficiência de factos no requerimento de abertura de instrução (AUJ do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR I de 4-11-2005), cuja ratio, obviamente, se estende à acusação pública, à luz dos princípios que enformam o nosso processo penal.
VI - Com efeito, se o atual regime processual, em caso de alteração substancial, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objeto do processo (arts. 359º, 303º e 309º do CPP), por maior e reforçada razão, está vedada uma tal via para a situação a que os autos se reportam, em que, bem vistas as coisas, até se depararia com bem mais do que uma mera alteração substancial perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal de crime que era imputado.”
Mais recentemente, no Acórdão da Relação de Évora, de 06-02-2024, proferido no processo 277/15.7TELSB.E1, disponível em www.dgsi.pt, sumariou-se em sentido semelhante:
“Em processo penal não fica na disposição do julgador o aditamento de factos, assim como a escolha do tipo de crime; tais funções - descrição dos factos e subsunção dos mesmos ao direito, com a indicação do concreto ou concretos crimes e sua forma - competem e são atribuição do Ministério Público, quando deduzida acusação pública.
Se nos termos do artigo 283º, nº 3 do C.P.P. a acusação padecer de elementos essenciais para a sua validade, restará declarar a nulidade da mesma, não sendo legalmente possível (na esteira de vasta a jurisprudência) o convite ao Ministério Público para reparar as nulidades detetadas, atento o princípio do acusatório que informa o nosso sistema penal.
Assim, e em tese conclusiva, perante uma acusação nula, assim entendida em sede de instrução, não pode o M. Juiz de Instrução remeter os autos ao Ministério Público para aperfeiçoar a sua acusação.”
Em face do exposto, sem necessidade de mais delongas, nos termos do artigo 283.º, n.º 3, al. b) ex vi artigo 285.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal, declara-se nula a acusação particular, e determina-se o oportuno arquivamento dos autos.
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Nestes termos, tudo visto e ponderado, atento o preceituado no artigo 308.º do Código de Processo Penal, decido:
• Não pronunciar o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada, um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181.º, n.º1, do Código Penal, determinando-se o oportuno arquivamento dos autos.
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Nos termos do disposto no art. 214.º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Penal, declaro extinta a medida de coação aplicada ao arguido (TIR a fls. 49), no âmbito dos presentes autos.
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Custas pela assistente, que se fixam em 2 UC em função da utilidade prática da instrução na tramitação global do processo – cf. art. 515º, n.º 1, al. a) e 519º n.º 1, ambos do Código de Processo Penal e art. 8º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais. (…)”.
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Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).

A questão que cumpre apreciar é a de saber se a acusação particular apresentada pela assistente padece do vício da nulidade, concretamente se se encontra nela descrito o elemento subjetivo do tipo legal de crime de injúria (cf. art.º 181.º, do Código Penal).

Vejamos.
Para fundamentar o seu recurso, alega a recorrente que a acusação particular por si deduzida enquanto assistente tem todos os elementos necessários e imprescindíveis para assegurar a sujeição do arguido a julgamento pelos factos constantes da mesma (prática do crime de injúria - art.º 181.º, do Cód. Penal-, não se verificando a omissão de qualquer dos requisitos previstos no n.º 3 do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal.
A decisão recorrida foi no sentido da não pronúncia do arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal, determinando o oportuno arquivamento dos autos, por ter declarado nula a acusação particular apresentada pela assistente por não conter a descrição concreta dos factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito que consubstancia o crime pelo qual o arguido foi acusado.
O artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, estabelece que “A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respetiva identificação;
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
g) A data e assinatura.”
Na acusação particular tem o assistente, forçosamente, de indicar os factos concretos (integradores dos elementos objetivo e subjetivo do(s) tipo(s) de crime que imputa ao arguido) que entende indiciados. A descrição dos factos é, por conseguinte, determinante para a definição do objeto do processo, uma vez que o julgamento só pode recair sobre factos que constem da acusação, ficando o objeto do processo delimitado pela indicação feita naquela peça processual deduzida pelo assistente.
Na fase de instrução, que aqui nos interessa, os poderes do juiz são funcionais em relação à finalidade da instrução (cf. art.º 286.º n.º 1 do Cód. Proc. Penal), pelo que os limites materiais da investigação por si operada são os decorrentes do objeto do processo fixado na acusação (ou no requerimento para abertura da instrução) (cf. art.º 303.º n.º 3 e 309.º n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
Logo, se na acusação particular o assistente não descreve os factos integrantes de realização típica demandada – rectius, do crime – é óbvio que a finalidade da instrução está posta em causa, uma vez que o juiz não pode investigar o que não consta da acusação.
Em resumo, o Juiz de Instrução Criminal está tematicamente vinculado à factualidade descrita na acusação do Ministério Público, do assistente e no requerimento de abertura de instrução (cf. arts. 303.º e 309.º, n.º l do Cód. Proc. Penal).
Assim, só a verificação dos elementos constitutivos objetivos e subjetivos é passível de integrar o preenchimento do tipo legal incriminador. Pelo que é imperioso, porque imprescindível, que constem da acusação, sem os quais não é a mesma fundada, porque insuscetível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (cf. art.º 283.º, n.º 3, al. b), do Cód. Proc. Penal), não sendo os elementos normativos subjetivos passíveis de serem considerados objetivamente resultantes dos elementos normativos objetivos.
No sentido apontado não poderemos deixar de recordar dois importantes Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência:
- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 4 de novembro [publicado no Diário da República n.º 212/2005, Série I-A de 04.11.2005] que fixou jurisprudência no sentido de que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido»;
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 [publicado no DR Série I, de 27.01.2015] que fixou jurisprudência no sentido que: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
No presente caso a assistente imputa ao arguido a prática de um crime de injúria.
O art.º 181.º, do Código Penal, prescreve, no seu n.º 1, “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.
O bem jurídico protegido por este normativo legal é a honra.
A honra é vista como “um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior” (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 607).
Ora, para estarmos perante uma conduta punível pelo art.º 181.º, n,º 1 do Código Penal é necessário a verificação de vários pressupostos, quais sejam:
a) Que o agente impute factos a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita; ou dirija palavras a outra pessoa;
b) Que a imputação de tais factos ou as palavras dirigidas ofendam a honra ou consideração da outra pessoa;
c) Que tal conduta seja praticada a título doloso.
Assim, e no que se refere ao elemento objetivo deste ilícito, o agente terá de imputar factos a outra pessoa, ainda que sob a forma de suspeita, que ofendam a honra ou consideração desta.
No entanto, o crime de injúrias pode também ser enquadrado mediante a direção a outra pessoa, por parte do agente, de palavras; palavras essas que têm, necessariamente, de ser ofensivas da honra e consideração daquela.
Sendo certo que “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o significado” (cfr. José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 630).
Saliente-se que, ao contrário do que sucede no crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180º do Código Penal, para haver lugar à punição do agente pelo crime de injúrias, é ainda necessário que a imputação de factos ou as palavras proferidas sejam feita de forma direta, no sentido da conduta ser endereçada ao próprio ofendido e na presença dele.
Por último, será ainda necessário que os factos imputados, ou as palavras dirigidas ao ofendido, ofendam a sua honra e consideração (na noção supra explicitada), no sentido de constituir uma injúria.
Entendendo-se injúria como “a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje ou vilipêndio contra alguém” (cfr. Nélson Hungria, in Comentário ao Código Penal Brasileiro, VI, 90/91, citado por Leal-Henriques e Simas Santos, no Código Penal Anotado, 2º vol., pág. 494).
Neste crime, “não se protege, pois, a suscetibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas” (cf. obra citada, pág. 494).
Assim, não basta a pronúncia de palavras ou expressões que constituam falta de educação, ou indelicadeza para estarmos perante um crime de injúrias; é necessário mais do que isso: que tais palavras ou expressões ofendam a honra e consideração do seu destinatário.
No que se refere ao seu elemento subjetivo, o crime de injúrias é um crime essencialmente doloso, bastando, para uma plena imputação subjetiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do art.º 13.º do Código Penal com o art.º 181.º, nº 1 do mesmo diploma legal.
Sendo que, dolo eventual verifica-se quando o agente prevê, como consequência possível da sua conduta, o preenchimento de um tipo legal de crime, punível, e se conforma com essa possibilidade, embora não querendo diretamente o resultado dessa ação (cf. art.º 14.º do Código Penal).
Saliente-se ainda que, como vem sendo entendido pela jurisprudência, este crime basta-se, para a sua consumação, com a verificação de dolo genérico (traduzido na consciência de que as expressões utilizadas são suscetíveis de produzir ofensa da honra e consideração do destinatário), não sendo necessário a existência de dolo específico (no sentido de haver uma especial intenção de injuriar).
Neste sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 01/07/1987, in BMJ 369-593; Acórdão da RL de 18/05/1988, in CJ XIII, 3, 180; Acórdão da RP de 30/11/1988, in CJ XIII, 5, 221.
Considerando o que se deixa exposto, analisemos o caso concreto dos autos.
Entre a factualidade vertida na acusação particular, consta “Os factos foram praticados pelo arguido de forma livre e conscientemente, sabendo que eram proibidos e punidos por lei e que lesavam a honra e consideração da assistente, o que conseguiu” (cf. art.º 6.º da acusação particular)
Ora, acompanhando o parecer emitido pelo Sr. Procurador Geral-Adjunto, entendemos que tal é o mesmo que dizer que o arguido, ao dirigir as palavras em causa à assistente, estava ciente, não só da idoneidade das mesmas para lesarem a honra e consideração da assistente, mas também de que efetivamente as lesavam, resultado que lograra atingir com a atuação, que sabia igualmente ser ilícita.
A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo.
O elemento intelectual que consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável, mostra-se presente.
Por sua vez, o elemento volitivo, que consiste na “especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito”, a nosso ver, mostra-se também presente, ainda que formulado em moldes diversos do habitual.
Com efeito, e concordando com o Sr. Procurador-Geral Adjunto, a verdade é que se refere na acusação que o arguido agiu livre e conscientemente, ou seja, quis praticar os atos que sabia serem ilícitos, e que ofendiam a assistente na sua honra e a consideração, pelo que a intenção de ofender que se reconduz ao crime de injúrias, mostr-sea ainda assim presente na acusação particular.
Deste modo, e sem necessidade de outros considerandos, o presente recurso procede, devendo ser revogada a decisão instrutória.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pela assistente e, consequentemente, revogar a decisão instrutória recorrida, que deverá ser substituída por nova decisão instrutória, em que o Tribunal se pronuncie quanto à suficiência indiciária dos factos narrados na acusação particular, e proferindo decisão em conformidade com a verificação, ou não, da mesma.
Sem custas.

Porto, 28 de maio de 2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Paula Natércia Rocha
Pedro Vaz Pato
José Quaresma