CONDÓMINO
NÃO PAGAMENTO DA QUOTA
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I - Diversamente do que acontece com os ónus de impugnação primários, das als. a) a c) do nº 1 do art. 640º do CPC, cuja inobservância implica a imediata rejeição do recurso relativo à matéria de facto, o incumprimento do ónus secundário da al. a) do nº 2 do mesmo preceito [não indicação com exatidão das passagens da gravação em que o recurso se funda], só implicará tal rejeição quando a falta ou inexatidão dificulte gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame da prova pelo tribunal de recurso.
II - Atua em abuso de direito, na modalidade «tu quoque», o condómino que, ao longo de quase quatro anos e meio [desde que adquiriu a fração até a instauração da ação] e sem nunca ter pago as quotas do condomínio [que representam pouco mais de 1/5 do total das quotas relativas às frações do prédio], vem exigir do condomínio a reparação do terraço que serve de cobertura à sua fração [que permite infiltrações de águas pluviais que a atingem] e dos danos nesta causados, bem como o pagamento do que deixou de receber a título de rendas [por causa das limitações na utilização daquela decorrentes das infiltrações e danos causados].

Texto Integral

Proc. 1025/23.3T8MTS.P1 – 2ª Secção (apelação)
Relator: Des. Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Rui Moreira
Des. Lina Castro Baptista

* * *
Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

AA, residente em Londres, Inglaterra ou, quando em Portugal, em ..., Parede, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o Condomínio do Prédio sito na Rua ... e Rua ..., ... Matosinhos e BB, esta na qualidade de administradora do condomínio, com domicílio profissional em Matosinhos, pedindo que:
a) Os réus sejam condenados a realizar as obras de reparação do terraço do primeiro andar que se localiza por cima da fração autónoma pertencente ao autor, em termos adequados e por forma que não voltem a ocorrer mais infiltrações de águas pluviais, dando início às mesmas no prazo de cinco dias e concluindo essas obras de reparação do terraço no prazo de dez dias úteis, após o seu início, e as obras de reparação da fração autónoma do autor no prazo de três dias úteis, também após o seu início, ou a consentirem a contratualização da realização das mesmas por parte do autor, ressarcindo e pagando ao mesmo tudo quanto a tal título venha a ser, por si despendido, com todas as devidas e legais consequências;
b) Os réus sejam solidariamente condenados, caso não sejam realizadas aquelas obras urgentes quer no terraço do primeiro andar do prédio, quer de reparação dos danos que as infiltrações de águas pluviais provocaram na fração autónoma do autor, no pagamento do custo a que a reparação dessas avarias no terraço e dos danos na fração autónoma, venham a ascender, sendo que, no mínimo, o valor que se encontra orçamentado é de 10.070,00€ (9.490,00€ + 580,00€) acrescido de IVA;
c) Os réus sejam ainda, também solidariamente, condenados no pagamento do prejuízo que sofreu com a impossibilidade de usar e arrendar a fração autónoma, o que perfaz o valor de 4.800,00€, acrescido do prejuízo que continuará a sofrer no futuro e enquanto aquelas obras urgentes não forem realizadas e concluídas, em razão de, mês a mês, estar impedido de concretizar o arrendamento da fração autónoma, à razão de 1.600,00€ por mês, no primeiro ano – dezembro de 2022 a dezembro de 2023 – à razão de 1.700,00€, por mês, no segundo ano – dezembro de 2023 a dezembro de 2024 –, à razão de 1.800,00€, por mês, no terceiro ano – dezembro de 2024 a dezembro de 2025 –, e assim sucessivamente, nos meses dos anos subsequentes, decorrentes da impossibilidade de arrendar o imóvel;
d) Sejam, ainda, os réus solidariamente condenados no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, com todas as devidas e legais consequências.
Alegou, em síntese, que desde 28.09.2018 é proprietário da fração autónoma designada pela letra H, estabelecimento de rés do chão para ramo alimentar, hoteleiro ou similar (loja), que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ... e Rua ..., freguesia e concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respetiva matriz sob o art. ... da União de Freguesias ... e ...; que tal fração sofreu, no mês de outubro de 2022, infiltrações de águas pluviais, provenientes do terraço que se encontra situado por cima da fração autónoma do autor, infiltrações que continuam a verificar-se; que destas resultaram diversos danos no teto, paredes e chão da fração, impedindo-o de a arrendar, danos esses que pretende ver ressarcidos por via da presente ação.

A 2ª ré, citada, contestou a ação por exceção e por impugnação.
No primeiro caso, invocou a exceção dilatória da sua ilegitimidade, alegando não ser, nem nunca ter sido, administradora do 1º réu e, além disso, que só o Condomínio devia ter sido demandado.
No segundo caso, impugnou a essencialidade da factologia alegada pelo autor.
Pugnou, por isso, pela procedência da exceção dilatória, com as legais consequências ou, pelo menos, pela improcedência da ação.
Arguiu, ainda, a nulidade de citação do 1º réu.

O autor respondeu, defendendo a improcedência da exceção.

Enquanto decorriam as diligências com vista à citação do 1º réu, o autor, por cautela, face aos termos da contestação da 2ª ré, deduziu incidente de intervenção principal provocada dos proprietários das demais frações autónomas do imóvel em questão - CC e mulher, DD, EE, FF, GG e mulher, HH, II e mulher, JJ, KK e mulher, LL, MM e mulher, NN, OO e marido, PP, BB [demandada na p. i. como ré, enquanto administradora do Condomínio] e QQ.

Observado o contraditório, o incidente de intervenção principal provocada foi admitido e os chamados foram citados para contestarem a ação.

Os chamados [à exceção de GG e mulher, cuja intervenção foi, por despacho, declarada cessada] apresentaram requerimento em que declararam associar-se à Ré BB, fazendo seus os articulados por esta apresentados.

Dispensada a audiência prévia e fixado o valor da ação, foi proferido despacho saneador – que, quanto à exceção dilatória da ilegitimidade arguida pela 2ª ré declarou, designadamente, que, não assumindo nenhum dos condóminos o cargo de administrador do condomínio, «réu, na ação, é apenas o condomínio, representado por todos os condóminos, aqui intervenientes» e que «a questão da ilegitimidade ficou assim ultrapassada, a qual se julga prejudicada», concluindo, em função disso, que «As partes são legítimas» - e foram indicados o objeto do litígio e os temas de prova, sem reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi depois proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Termos em que o Tribunal julga a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:
a) condeno o réu a proceder às obras necessárias de reparação e impermeabilização do terraço situado por cima da fração H.
b) condeno o réu a proceder às obras necessárias de reparação da fração H.
c) para o início das obras, fixo o prazo de 15 dias a contar do trânsito da presente sentença, devendo as obras no terraço serem feitas em 10 dias e as obras na fração nos 10 dias subsequentes (tudo em tempo seco).
d) condeno o réu no pagamento ao autor da quantia de 11.600,00€ (onze mil e seiscentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, a contar desde a citação até integral pagamento.
e) absolvo o réu do demais peticionado contra si.
Custas
Custas pelas partes na proporção do decaimento, fixando-se em 5% para o autor e 95% para o réu condomínio (art. 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Notifique.
Registe.».

Inconformado com o sentenciado, interpôs o réu Condomínio o presente recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
«I O presente recurso visa a impugnação quer da matéria de facto, quer da matéria de direito,
II Há factos dados como provados que não o deveriam ser, bem como factos que não foram tidos em conta, e que têm uma relevância primordial para o desfecho da ação.
III Não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos pontos 17 a 19, 28 a 34, 39 e 40 da douta sentença por a prova ser insuficiente e contraditória em relação aos mesmos.
IV Os factos referidos em c) e d) como não provados na sentença, deveriam ter tido decisão contrária pois que estão demonstrados documentalmente.
V Deveria ter sido incluído como factos provados a realização da assembleia de condóminos de Fevereiro de 2023, as deliberações da mesma e o facto de o Autor a ter impugnado judicialmente, o que está provado documentalmente e tem interesse capital para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
VI Verifica-se um abuso de direito por parte do Autor ao exigir obras e indemnização pela sua não realização, e, ao mesmo tempo, paralisar a ação do condomínio com sucessivas impugnações das deliberações das assembleias de condomínio onde essas matérias eram tratadas e decididas.
VII A falta de pagamento das quotas e encargos de condomínio constitui “exceptio non adimpleti contractus”, dado que a comparticipação devida pelo Autor se funda quer na lei quer na vontade da Assembleia Geral de Condóminos.
VIII A condenação da Ré em iniciar as obras no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado da sentença é ilegal e inexequível pois obrigaria a Ré a não cumprir os formalismos a que está por Lei obrigada, nomeadamente a marcação de assembleia geral de condóminos, aprovação de orçamentos e adjudicação da obra, sendo necessário para tudo isto prazo não inferior a 60 dias.
Normas violadas, artº 334º, 428º, 1424º e seguintes, todos do Código Civil, 410º e seguintes, e 607º do Código de Processo Civil.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, em conformidade com as conclusões que antecedem.
Com o que se fará tão-só JUSTIÇA!».

O autor contra-alegou, pugnando pela rejeição do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus legalmente estabelecidos ou, assim não acontecendo, pela improcedência do recurso na sua totalidade – de facto e de direito – e consequente confirmação da sentença recorrida.
* * *
II. Questões a apreciar e decidir:

Em atenção às conclusões das alegações das partes, que, de acordo com o estabelecido nos arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do CPC, fixam o thema decidendum deste recurso [sem prejuízo do eventual conhecimento de questões de conhecimento oficioso], as questões a apreciar e decidir consistem em saber:
1. Se é de rejeitar o recurso da matéria de facto por inobservância dos ónus de impugnação legalmente estabelecidos;
2. [improcedendo a questão anterior] Se houve erro no julgamento da matéria de facto impugnada pelo recorrente;
3. Se o autor age em abuso de direito e/ou se ocorre a invocada «exceptio non adimpleti contractus».

[Um breve parêntesis para dizer que tendo a exceção dilatória da ilegitimidade passiva sido expressamente decidida no despacho saneador – que declarou que «réu, na ação, é apenas o condomínio, representado por todos os condóminos», intervenientes nos autos – e tendo tal despacho transitado em julgado, já não é possível questionar-se oficiosamente se o condomínio, apesar de não ter administração eleita desde cerca do ano 2000 e de funcionar com uma gestão colegial entre todos os condóminos (factos provados nºs 35 e 38), não deveria, ainda assim, estar representado nestes autos por um administrador, nomeado a título provisório ou ad hoc, por deliberação da assembleia de condóminos, para assegurar a sua representação em juízo ou, na ausência dessa deliberação, nomeado pelo tribunal, mediante requerimento dos interessados, por referência ao que, com as devidas adaptações, consta dos arts. 1435º nºs 1 e 2 e 1435º-A nºs 1 e 2 do CCiv. (como decidimos, embora num enquadramento diferente, no acórdão desta Relação do Porto de 11.03.2025, proc. 4946/24.2T8VNG.P1, relatado pelo aqui relator, disponível in www.dgsi.pt/jtrp)].
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III. Factos provados e não provados:

i) A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos [com a numeração dela constante, não havendo qualquer facto com o número 18]:
1. No dia 28/09/2018, mediante escritura de compra e venda outorgada em Cartório Notarial, o autor adquiriu a fração autónoma identificada pela letra “H”, um estabelecimento/loja de rés-do-chão para ramo alimentar, hoteleiro ou similar, com entrada pela Rua ... e Rua ..., ... e encontra-se inscrito a favor do autor na Repartição de Finanças, conforme documentos 2 e 3 juntos com a petição inicial.
2. Essa fração autónoma faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ... e Rua ..., freguesia e concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na respetiva matriz sob o art. ... da União de Freguesias ... e ... – conforme documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial.
3. Tal fração autónoma foi adquirida pelo autor à massa insolvente da sociedade A..., Lda, conforme documento 3 junto com a petição inicial.
4. Sendo que, até àquela data (28/09/2018), a fração autónoma pertencia à Banco 1... que havia celebrado um contrato de locação financeira Imobiliária com a sociedade A..., Lda, a qual veio a ser declarada insolvente.
5. O autor adquiriu a fração autónoma referida em 1 e 2 com o objetivo de a arrendar, como fonte de rendimento.
6. A fração autónoma referida em 1 e 2 sofreu, no mês de outubro de 2022, infiltrações de águas pluviais, provenientes do terraço que se encontra situado por cima da respetiva fração autónoma.
7. A continuada infiltração de água através do terraço que atinge o teto e daí escorre pelas paredes da fração autónoma para o piso da mesma, agravam-se de dia para dia.
8. Essas infiltrações provocaram fissuras no teto, queda do estuque/reboco do teto e das paredes, inundações do pavimento da fração.
9. E dificultaram o arrendamento da fração a terceiros.
10. Nessa altura (outubro de 2022) o autor tinha um interessado em tomar de arrendamento fração autónoma H, pelo prazo de 20 anos, contra o pagamento de uma renda mensal de 1.600,00€ no 1º ano, 1.700,00€ no 2º ano, 1.800,00€ a partir do 3º ano e a partir do 4º com os aumentos decorrentes da portaria governamental.
11. Interessado esse que, aquando da segunda visita que fez à fração, verificou a infiltração de águas pluviais, concedendo então o prazo de 15 dias a contar de 24/11/2022 para a reparação sob pena de desistir da celebração do contrato.
12. Nessa sequência, o autor interpelou, por diversas vezes, outros condóminos para a resolução e realização de obras de intervenção a fim de fazer cessar aquela infiltração de águas pluviais.
13. Em 28 de novembro de 2022, através de carta registada, recebida a 30 de novembro de 2022, o ilustre mandatário do autor dirigiu ao condomínio do prédio uma carta com o seguinte teor:
“(…)
Exma. Senhora
A fração autónoma, correspondente a uma loja, no rés-do-chão do prédio sito na Rua ... e Rua ..., da cidade de Matosinhos – fracção autónoma "H" - pertencente ao senhor meu constituinte, em epígrafe referenciado, voltou a sofrer grave infiltração de águas pluviais, as quais provêm do terraço que se encontra situado por cima dessa mesma fracção autónoma.
Tanto quanto é dado saber ao senhor meu constituinte, até porque a atual infiltração é uma repetição de outras que já aconteceram no passado, essa repetida entrada de águas pluviais sucede a partir do terraço de cobertura que se localiza por cima da respetiva fracção autónoma.
O senhor meu constituinte não sabe se esse terraço é propriedade do proprietário do apartamento do 1.º andar, senhor FF, ou se o terraço é, como parte comum, pertencente ao condomínio e de uso exclusivo do senhor proprietário do 1.º andar.
Seja como for, a continuada infiltração de água através do terraço que atinge o teto e daí escorrendo para o piso da loja da fracção autónoma, pertencente ao senhor meu constituinte, provoca graves e crescentes danos à mesma que, dia a dia mais se agravam - já enviei ao senhor FF cópia de algumas fotografias que no final da semana passada foram feitas ao teto da loja-.
Torna-se por isso muito urgente proceder à reparação do terraço por forma a estancar a continuada infiltração de águas pluviais.
Sendo certo, como V.Exa. compreenderá, que somente após a reparação do terraço por forma a evitar a continuada infiltração de águas pluviais, é possível estancar a infiltração de águas no teto da loja e consequentemente evitar a queda dessas águas no piso dessa mesma loja.
Solicita, por isso, o senhor meu constituinte a urgente colaboração de V.Exa. no sentido de proceder à imediata reparação do terraço ou então autorizar que o senhor meu constituinte contrate empreiteiro que possa levar a cabo essa mesma obra de reparação do terraço, por forma a evitar a continuada infiltração de águas pluviais.
Solicitei já ao proprietário do apartamento que permite o acesso ao terraço, autorização no sentido de permitir o acesso ao terraço do empreiteiro e trabalhadores que farão a obra.
No sentido de reforçar e melhor evidenciar a urgência da obra que é necessário levar a cabo no terraço pertencente ao condomínio ou pertencente ao condómino, mas de uso exclusivo do mesmo, dou nota e aviso que o senhor meu constituinte, sem saber que o teto da fracção autónoma tinha sido atingido por nova infiltração de águas, celebrou, em meados do corrente mês de Novembro, promessa de arrendamento da sua fracção autónoma e loja, com promitente arrendatário que se obrigou ao pagamento de uma renda mensal de €.1.600 00 no primeiro ano de duração do contrato cujo inicio está fixado para o dia 1 do próximo mês de Dezembro e cuja duração foi acertada ser pelo prazo de 20 anos.
O respetivo promitente arrendatário quando, no final da semana passada, voltou à loja para dar início às obras de remodelação para instalar o seu estabelecimento comercial, descobriu e foi confrontado com a mencionada infiltração, transmitindo ao senhor meu constituinte e proprietário da loja que se a reparação não fosse efetuada no prazo máximo de 10 dias, desistiria da promessa de arrendamento e já não celebraria o previsto contrato de arrendamento comercial.
Ora, se em razão de atraso da realização das necessárias e urgentes obras a levar a cabo no terraço o senhor meu constituinte ficar impossibilitado de celebrar o prometido contrato de arrendamento irá reclamar de quem for proprietário do terraço - o condomínio ou o senhor condómino - e, ou, de quem obstaculizar à urgente realização das obras, as quais, repete-se, ele próprio está disponível para levar a cabo, o integral ressarcimento dos prejuízos que daí resultarem para o seu património.
Solicito, por isso, a gentileza de acusar a receção desta comunicação e de me informar, no prazo de três (3) dias, se:
a) A administração do condomínio concorda em realizar as obras necessárias e urgentes para reparar o terraço e impedir que a partir do mesmo continuem a ocorrer infiltrações de águas pluviais para o teto da fracção autónoma e loja pertencente ao senhor meu constituinte?
b) Se não concorda ou não tem disponibilidade para ser V.Exa. a contratar empreiteiro para realização dessas obras, diligencia forma de obter autorização para o acesso ao terraço, por forma a possibilitar a necessária e urgente realização das obras de reparação do mesmo? (…)”, conforme documento junto com a petição inicial.
14. Dirigiu igualmente comunicação escrita, por carta registada, ao proprietário do 1º andar, o interveniente FF, conforme documento junto com a petição inicial.
15. O indicado proprietário da fração autónoma, apartamento destinado a habitação, situado no 1º andar, respondeu à interpelação que lhe foi enviada pelo mandatário forense do autor nos seguintes termos:
“(…)
Serve a presente para acusar receção de vossa carta, comunicando que de imediato foi efetuada participação ao seguro e ao condomínio para devido seguimento.
(…)”, conforme documento junto pelo autor.
16. O condomínio não respondeu ao autor, pelo que este, em 06 de dezembro de 2022, enviou carta registada com o mesmo pedido, conforme documento junto pelo autor.
17. À qual o réu condomínio igualmente não respondeu.
19. Face à ausência de resposta e de resolução da infiltração com agravamento dos danos e a ameaça do interessado desistir do arrendamento, o autor propôs-se a suportar o custo da realização das obras de reparação do terraço, tal como das obras de reparação da sua fração autónoma, e depois levar o custo das mesmas ao condomínio.
20. O réu não respondeu em tempo útil.
21. O autor obteve orçamentos para a realização das obras e reparação dos estragos sofridos na fração autónoma, como consequência das infiltrações de águas.
22. Recorrendo a registos fotográficos que retratavam o estado em que se encontrava o terraço que se situa por cima da fração autónoma H, foi obtido junto da sociedade empreiteira B..., Lda, uma descrição dos trabalhos necessários para reparar as patologias que afetam o terraço, modo, prazo e custo de tal obra, conforme proposta de orçamento, documento junto pelo autor.
23. Recorrendo a essa empreiteira, o autor obteve uma descrição dos trabalhos necessários para reparar os danos que afetam o teto, paredes e piso da fração autónoma/loja, modo, prazo e custo de tal obra, conforme relatório junto pelo autor.
24. Informando aquela empreiteira que o prazo necessário para realizar as obras no terraço, desde que existam condições climatéricas que permitam o início e o acabamento dos trabalhos, será de 10 (dez) dias úteis, ascendendo o respetivo custo ao valor de 9.490,00€, acrescido de IVA á taxa legal em vigor, conforme relatório junto pelo autor.
25. E os trabalhos para realizar a reparação das avarias e danos na fração autónoma H demorarão 3 (três) dias úteis, ascendendo o respetivo custo ao valor de 580,00€, acrescido de IVA á taxa legal em vigor.
26. A reparação das patologias de que padece o terraço e a reparação dos danos que afetam a fração autónoma H, têm um custo que ascenderá, no mínimo, à quantia global de 10.070,00€ (9.490,00€ + 580,00€) acrescido de IVA.
27. Para conseguir arrendar a fração/loja, o autor solicita a conhecidos e a imobiliárias a promoção da loja, conforme contrato de medição imobiliária, documento junto pelo autor.
28. Durante o mês de novembro de 2022, o autor foi informado que existiam interessados no arrendamento da loja e que entregaram a quantia de 500,00€, a título de reserva do locado e como sinal para a promessa de arrendamento.
29. O interessado/promitente arrendatário referido em 10 desistiu do negócio e exigiu a restituição do valor que, a título de sinal e para reserva da fração autónoma, tinham entregue ao autor.
30. Em dezembro de 2022, o autor, na sequência da não realização das obras e da continuação das infiltrações de águas pluviais através do terraço, procedeu à devolução da quantia de 500,00€ referida em 28, conforme documentos juntos pelo autor (comunicação enviada pela representante daqueles interessados e mediadora do negócio, quer do comprovativo de devolução do sinal).
31. Como consequência da falta de realização das obras de reparação do terraço, o autor ficou impedido de arrendar a loja e receber o respetivo valor das rendas.
32. Caso o contrato de arrendamento referido em 10 se tivesse concretizado e o inquilino tivesse pago o valor das rendas, o autor teria recebido o valor de 4.800,00€.
33. O autor tinha a expetativa de receber, mês a mês e até dezembro do ano de 2023, o valor mensal de 1.600,00€.
34. E tinha a expetativa de aumentar esse valor para 1.700,00€/mês no ano de 2024 e para o valor de 1.800,00€/mês para o ano de 2025 e assim sucessivamente até realização das obras de reparação das patologias de que padece o terraço do 1º andar do prédio.
35. O condomínio réu não tem administração eleita desde cerca do ano 2000.
36. Entre 2001 e 2022 apenas houve uma assembleia de condóminos (2006).
37. Nesse prédio, constituído em propriedade horizontal, apenas existem sete frações habitacionais, sete frações correspondentes a lugares de garagem e uma loja.
38. O prédio funciona com uma gestão “colegial” entre todos os condóminos.
39. Em 2022 teve lugar uma assembleia de condóminos e o autor fez-se representar na assembleia por RR.
40. Desde que é dono da fração autónoma, o autor não procedeu ao pagamento das quotas de condomínio.
41. A fração H esteve encerrada por vários anos, em número não apurado.
42. Com data de 01 de abril de 2023, o autor celebrou contrato de arrendamento com terceiros, referente à fração autónoma em causa, pelo prazo de 10 anos, mediante a contrapartida pecuniária de 1.600,00€ no 1º ano, 1.700,00€ no segundo ano e, a partir de abril de 2025 a atualização da renda será feita pelo coeficiente de atualização anual para os arrendamentos para fins não habitacionais apurado pelo INE, conforme documento junto pelo autor em 21/11/2024.
43. De acordo com tal contrato, as rendas de junho, julho e agosto de 2023 não foram pagas para compensação de estucar e pintar com duas mãos de tinta todas as paredes e tetos e benfeitorias no imóvel.
44. Em janeiro de 2024 foi pago ao autor o valor de 800,00€ de renda.
45. Em fevereiro de 2024 foi pago ao autor o valor de 1.600,00€ de renda.
46. Em março de 2024 foi pago ao autor o valor de 1.200,00€ de renda.
47. Em abril de 2024 foi pago ao autor o valor de 1.200,00€ de renda.
48. Em maio de 2024 foi pago ao autor o valor de 1.200,00€ de renda.
49. Em junho de 2024 foi pago ao autor o valor de 1.200,00€ de renda.
50. Em agosto de 2024 foi pago ao autor o valor de 1.200,00€ de renda.
51. Ainda em agosto de 2024 foi pago ao autor o valor de 1.200,00€ de renda.
52. Em setembro de 2024 foi pago ao autor o valor de 1.200,00€ de renda, tudo conforme extratos juntos pelo autor em 21/11/2024.

Ao abrigo do disposto nos arts. 607º nº 4 e 663º nº 2 do CPC, adita-se, ainda, a este elenco, o seguinte facto provado [resultante da certidão predial e da caderneta matricial relativas à fração autónoma H, juntas pelo autor com a petição inicial e das quais o réu foi notificado]:
53. À fração H corresponde, no prédio constituído em propriedade horizontal, uma permilagem de 211,1 [cfr. ap. 25 de 25.11.1988 – constituição da propriedade horizontal].
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ii) … E não provados os seguintes factos:
a) A interveniente BB tem sido eleita administradora de condomínio do prédio em causa.
b) As infiltrações referidas em 6, aparentemente, resultam de uma repetição de outras que já aconteceram no passado.
c) A dívida da fração H, que vem de 2011, atinge atualmente cerca de 7.000,00 € (sete mil euros), relativamente a quotas e obras realizadas.
d) O estabelecimento não tem as condições estruturais para restauração, nem tem licença de utilização para tal.
* * *
IV. Apreciação das questões indicadas em II:

1. Se é de rejeitar o recurso da matéria de facto por inobservância dos ónus de impugnação legalmente estabelecidos.
O recorrido defende, nas contra-alegações, que o recorrente não observou os ónus de impugnação fixados no art. 640º do CPC e que, por via disso, o recurso deve ser rejeitado na parte relativa à impugnação da matéria de facto.
Vejamos.
Dispõe o art. 640º do CPC que:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 – (…).».
Comparando este normativo com o art. 712º do CPC de 1961 [Código que precedeu o ora vigente], escreve Abrantes Geraldes [in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualizada, 2022, pgs. 194-195] que “A comparação que pode fazer-se entre a primitiva redação do art. 712º do CPC de 1962 e o atual art. 662º [agora, 640º] revela que a possibilidade de alteração da matéria de facto que, além, era indicada a título excecional, é agora assumida como função normal da Relação, verificados que sejam os requisitos que a lei consagra. Nesta operação foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissão de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.”
Continua, ainda, o mesmo ilustre Conselheiro: “(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.” [obr. cit., pgs. 197-198]
E conclui depois: “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b)).
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a)).
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.).
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda.
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
(…)
As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilização das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto, como instrumento de realização da justiça.” [pgs. 200-202]
Com recurso aos princípios gerais da proporcionalidade e razoabilidade que funcionam como espécie de filtro de segurança do sistema, é este o entendimento que uniformemente vem sendo seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça [e, em geral, pelos tribunais da Relação], quando chamado a apreciar recursos sobre a impugnação da matéria de facto e a interpretação do que estabelece o art. 640º do CPC [a título de exemplo e chamando à colação apenas alguns dos mais recentes, vejam-se os acórdãos do STJ de 17.09.2024 (proc. 4667/20.5T8VIS.C1.S1), 19.03.2024 (proc. 150/19.0T8PVZ.P1.S1), 14.03.2024 (proc. 8176/21.7TSLSB.L1.S1), 27.02.2024 (proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1), 31.01.2024 (proc. 7341/19.1T8ALM.L1.S1) e 16.01.2024 (proc. 818/18.8T8STB.E1.S1), todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Alguns destes arestos [caso dos Acórdãos de 14.03.2024 e de 27.02.2024] e, ainda, outros [de que são exemplo, os Acórdãos do STJ de 25.01.2024, proc. 1007/17.4T8VCT.G1.S1, de 21.03.2023, proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1, de 13.10.2022, proc. 1700/20.4T8LRS.L1.S1, de 03.10.2019, proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2 e de 29.10.2015, proc. 233/09.4T8VNC.G1.S1, todos disponíveis naquele sítio da DGSI], no que constitui jurisprudência unânime do STJ, procedem, ainda no âmbito do apelo aos referidos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade [sobre o conteúdo destes princípios, vejam-se os Acórdãos de 14.03.2024 e de 21.03.2023], a uma separação, em termos de exigência de cumprimento e efeitos da sua não observância, entre os ónus das alíneas do nº 1 e os das alíneas do nº 2 do citado preceito, apelidando os primeiros de ónus primários [que visam delimitar o objeto e a fundamentação concludente da impugnação] e os segundos de ónus secundários [que visam facilitar o acesso aos meios de prova objeto do registo áudio, relevantes para a apreciação da impugnação deduzida]. E se quanto aos primeiros concluem que o não cumprimento do exigido nas alíneas do nº 1 leva necessariamente à rejeição imediata do recurso [na parte relativa à impugnação da matéria de facto], já no que toca à inobservância dos segundos, entre os quais se inclui a indicação com exatidão das passagens da gravação em que o recurso se funda, entendem que só implicará a rejeição quando a falta ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame da prova pelo tribunal de recurso.
É, pois, em função deste quadro de exigências que há que aferir se a impugnação da matéria de facto por parte do recorrente observa suficientemente os referidos ónus.
Ora, o recorrente especifica, nas conclusões das alegações, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – os factos provados nºs 17 a 19, 28 a 34, 39 e 40, os factos não provados das als. c) e d) e o aditamento de um novo facto provado, relativo à assembleia de condóminos de fevereiro de 2023.
Indica, igualmente nas conclusões das alegações, a decisão que pretende desta Relação relativamente a tal factualidade – que os aludidos factos provados sejam dados como não provados, que os não provados passem a provados e o dito aditamento.
E, na motivação, embora apenas relativamente a alguns dos factos que impugna [quanto aos outros extrair-se-ão adiante as legais consequências], alude aos concretos meios probatórios em que radica a sua pretensão – designadamente declarações/depoimentos de «FF», «BB» e «RR» [assim os indica o recorrente, referindo-os a todos como «testemunhas»], de que transcreve segmentos que considera relevantes.
O que não se mostra corretamente cumprido é o ónus secundário da al. a) do nº 2 do art. 640º, já que, na motivação [nas conclusões nada diz, mas nestas são dispensáveis], não indica com exatidão as passagens das gravações que contêm as declarações e os depoimentos daqueles, não fazendo qualquer menção, por referência a minutos, aos concretos segmentos que as/os contêm.
No entanto, no caso concreto, esta omissão não dificulta gravemente o exame da prova por parte do tribunal [no que concerne aos factos em que o recorrente a indicou], assim como não dificultou o exercício do contraditório por parte do recorrido que, na motivação da sua resposta [contra-alegações], se pronuncia sobre a matéria de facto impugnada. E isto porque, por um lado, está em questão uma parte muito restrita da matéria de facto – provada e não provada – fixada pelo tribunal a quo e porque, por outro, no que diz respeito à prova gravada, estão apenas em causa os depoimentos/declarações de três pessoas, que não são excessivamente longos e cuja audição, por isso, não se apresenta particularmente difícil.
E sendo assim, tendo em conta, na justa medida, os aludidos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, entendemos que a falta de observância do ónus secundário da al. a) do nº 2 do art. 640º não é, in casu, impeditiva da apreciação da matéria de facto impugnada pelo recorrente.
Isto sem prejuízo de, relativamente a alguns factos, faltar, de todo, a indicação dos concretos meios de prova em que se estriba, de que, como já se disse, extrairemos as devidas e legais consequências.
Antes de avançarmos importa (re)lembrar que o poder de reapreciação da prova pelos tribunais da Relação, quando assenta, no todo ou em parte, em depoimentos/declarações gravados [como acontece no caso em apreço], não tem hoje o alcance restrito, quase residual, que teve no passado, em que se sustentava que a 2ª Instância não podia procurar uma nova convicção e que devia limitar-se, apenas e só, a aferir se a do julgador a quo, vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação, em conjugação com os demais elementos probatórios dos autos, permitiam percecionar. Pelo contrário, atualmente impera uma conceção mais ampla de tal poder que, embora reconheça que a gravação áudio ou vídeo dos depoimentos e declarações [ainda assim, mais no primeiro caso do que no segundo] não consegue traduzir tudo quanto pôde ser percecionado pelo tribunal da 1ª instância, designadamente, o modo como as declarações foram prestadas, as hesitações que as acompanharam, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória e que existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, entende, ainda assim, que os tribunais da Relação têm a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos, fazendo-os passar também pelo crivo das regras da experiência, como efetiva garantia de um segundo grau de jurisdição.
Por isso, quando, ao reapreciar a prova e valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção a que, como os tribunais de 1ª instância, também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, o tribunal da Relação deve proceder à modificação da decisão recorrida, fazendo jus ao reforço dos poderes que lhe estão atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um efetivo segundo grau de jurisdição [neste sentido, i. a., Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., 2022, pgs. 333-334; relativamente ao art. 712º nº 1 do CPC na versão anterior a 2013, mas válidos para o atual art. 662º nº 1 do CPC, ainda, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2008, pgs. 213-218 e Remédio Marques, in A Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., 2011, pgs. 638-646; na jurisprudência, entre muitos outros, Acórdãos do STJ de 27.02.2024 (proc. 7997/20.2T8SNT.L1.S2), de 17.10.2023 (proc. 2154/07.6TBPVZ.P2.S1), de 28.11.2023 (proc. 2898/17.4T8CSC.L1.S1), de 12.10.2023 (proc. 1358/19.3T8PTM.E2.S1) e de 10.03.2022 (proc. 6640/12.3TBMAI.P2.S2), todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
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2. Se houve erro no julgamento da matéria de facto impugnada pelo recorrente.
Indicámos atrás quais os pontos de facto que o recorrente quer ver reapreciados [este também alude ao facto provado nº 18 na conclusão III, mas não existe nenhum facto com esta numeração na sentença recorrida, que salta do facto 17 para o facto 19; e no corpo das alegações faz ainda referência ao facto provado nº 20 mas, não o repetindo nas conclusões, não há que proceder à sua apreciação, já que são estas que delimitam o objeto do recurso, como já atrás se disse].
A reapreciação da matéria de facto impugnada está reservada à que se apresenta relevante para a solução do caso. Isto porque o propósito que subjaz à impugnação da decisão de facto é o de possibilitar à parte vencida a obtenção de decisão diversa da que foi proclamada na decisão recorrida no que concerne ao mérito da causa. Por isso, tal atividade só faz sentido em situações em que a factualidade impugnada possa ter interferência na solução jurídica do caso [decisão de mérito], ou seja, quando o desfecho do recurso a favor do recorrente esteja dependente da modificação daquela factologia.
Quando incida sobre factos que não interferem com a solução da questão de direito, por serem irrelevantes para alteração/modificação da decisão decretada pelo tribunal recorrido, a Relação deve abster-se de proceder à reapreciação da matéria de facto. Caso contrário, estará a levar a cabo uma atividade inútil e sem qualquer efeito prático, com desconsideração do que proclama o art. 130º do CPC, segundo o qual «[n]ão é lícito realizar no processo atos inúteis» [sobre esta problemática e no sentido que fica exposto, vd. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualiz., nota 526, pg. 334, que refere: “[é] claro que a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto apenas se justifica nos casos em que da eventual modificação da decisão possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio no sentido propugnado pelo recorrente, sendo dispensável nos demais casos em que não interfira de modo algum no resultado declarado pela 1ª instância” ou, acrescentamos nós, no resultado a declarar pela Relação quanto à solução da questão de direito suscitada no recurso; idem, Acórdãos do STJ de 14.07.2021, proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1 e de 09.02.2021, proc. 26069/18.3T8PRT.P1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj, constando do sumário do primeiro destes arestos que “Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa atividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação.].
Tendo em conta esta premissa, bem como o que a 1ª instância decidiu na sentença, o que o recorrente pretende no recurso e a solução que terá de ser dada adiante à questão do abuso de direito, temos como evidente que os factos provados nºs 17, 19 e 39 e o facto novo que aquele pretende ver aditado ao elenco dos factos provados, relativo à assembleia de condóminos de fevereiro de 2023, não apresentam relevo algum para a decisão a proferir sobre o mérito da causa.
Como tal, não serão objeto de reapreciação por este tribunal, para não incorrermos na prática de ato inútil e inconsequente.
Mesmo quanto aos demais factos impugnados a sua reapreciação apresenta-se, em grande parte, desnecessária face à solução que terá de ser dada à já referida questão do abuso de direito invocada pelo recorrente. No entanto, como os respetivos factos se reportam a questões situadas a montante do conhecimento do abuso de direito – se os contratos de arrendamento da fração alegados pelo autor foram efetivamente celebrados ou prometidos celebrar e qual o exato montante de quotas do condomínio de que o autor é devedor – e a sua eventual alteração [neste caso, quanto aos contratos de arrendamento] implicará, por si só, também a alteração do que se decidiu na sentença sob a al. d) do respetivo dispositivo, entendemos que, nesta parte, se deve apreciar a impugnação do recorrente.
Vamos, por isso, apreciar a impugnação dos factos provados nºs 28 a 34 e 40 e dos factos não provados das als. c) e d).
Começando pelos factos provados nºs 28 a 34.
Neste ponto, o recorrente limitou-se a discorrer sobre as suas dúvidas acerca da celebração de contratos de arrendamento de longa duração [20 anos] e chamou à colação as declarações da interveniente BB [que aquele trata, erradamente, por testemunha].
Na decisão recorrida, estes factos estão assim fundamentados:
«A matéria dada como provada em 27 a 31 teve por base o depoimento da testemunha SS, mediador imobiliário e que angariou a fração para arrendamentos, revelando conhecimento dos contratos e desistências decorrentes do mau estado da fração, com infiltrações de água pluviais.
A matéria dada como assente em 32 a 34 traduzem as expetativas de ganhos do autor, atestadas pelo contrato promessa de arrendamento junto ao processo e atestado pelas testemunhas RR e SS, coerentes e coincidentes entre si.».
Quanto às dúvidas do recorrente, não passam disso mesmo, não estando minimamente sustentadas. Além de que nem sequer impugnou os factos provados nºs 10 e 11, que se referem às negociações que estiveram na base do contrato também mencionado nos factos 29 e 32, sendo naqueles primeiros que está referido o prazo de 20 anos.
As declarações de BB [que ouvimos integralmente] foram, de todo, irrelevantes para aferição do que está dado como provado, já que nada de concreto disse sobre tal factualidade [limitou-se a aludir a visitas de potenciais interessados no arrendamento da fração do autor e que numa das primeiras visitas o potencial interessado, ou alguém por ele, andou a ver se o prédio possuía tubagem de extração de fumos da fração], nem de modo a confirmá-la, nem a infirmá-la, ou sequer a gerar algum estado de dúvida sobre a mesma.
Já agora e porque depôs sobre esta matéria [como resulta do transcrito excerto da fundamentação da sentença recorrida] e ouvimos o seu depoimento, diga-se que a testemunha RR relatou a factualidade em apreço de modo a sustentar o que está exarado nos assinalados factos provados, tendo feito também referência ao conhecimento direto da testemunha SS [referida no excerto da sentença acima transcrito como mediador imobiliário que angariou a fração para arrendamentos] sobre a mesma materialidade.
Deste modo, há que manter inalterados os aludidos factos provados.
Passando ao facto provado nº 40.
Quanto a este facto o recorrente limitou-se a mencionar o seu número na motivação e nas conclusões das alegações e, naquela, ainda a aludir às declarações de BB.
Mas quer esta, quer o também interveniente FF [cujas declarações também ouvimos integralmente], limitaram-se a dizer que o autor nunca procedeu ao pagamento das quotas do condomínio relativas à sua fração autónoma e que o mesmo já acontecia com a anterior proprietária que também não pagou a quotas durante alguns anos, sem os concretizarem e sem indicarem, fundamentadamente, o montante total em dívida. E foi nas declarações destes condóminos e no depoimento da testemunha RR que o tribunal a quo se estribou para dar como provado o referido facto, como expressamente resulta do seguinte trecho da fundamentação fáctica: «Quanto aos restantes factos provados e que traduzem a versão trazida aos autos pelos intervenientes (factos 35 a 41), o Tribunal convenceu-se deles com base no somatório dos depoimentos/declarações de parte de FF e BB, também coerentes e coincidentes entre si, aliados à ata de assembleia de condóminos junta ao processo. Inclusivamente, relativamente ao não pagamento das quotas de condomínio por parte do autor, para além de resultar da ata de assembleia, foi confirmado pela testemunha RR.».
Como o que aqui interessa considerar é a eventual dívida do autor [quotas do condomínio] e não também de quem o precedeu na titularidade da fração autónoma, facilmente se conclui que há que manter inalterado o facto provado nº 40.
Restam os factos não provados das als. c) e d).
Entende o recorrente que a factualidade destas alíneas devia ter sido dada como provada.
Na primeira destas alíneas está em causa saber se «[a] dívida da fração H, que vem de 2011, atinge atualmente cerca de 7.000,00€, relativamente a quotas e obras realizadas» e na segunda questiona-se se «[o] estabelecimento não tem as condições estruturais para restauração, nem tem licença de utilização para tal».
Segundo a fundamentação da sentença, a «resposta negativa» a estes factos assentou no seguinte:
«No que diz respeito aos factos não provados, o Tribunal considerou-os nessa qualidade em virtude de, sobre os mesmos, não se terem recolhido quaisquer elementos credíveis e/ou suficientes, nem nos autos (documental), nem oralmente em sede de audiência final.
Assim:
(…)
Não se apurou qual o valor da dívida da fração H relativa a quotas de condomínio e obras (facto c).
Por fim, não nos convencemos do facto d) relativo às condições estruturais da fração e da licença de utilização, por falta e/ou insuficiência de prova nesse sentido.».
Cabia ao recorrente indicar os meios de prova que, na sua ótica, imporiam outra resposta, ou seja, que tais factos deveriam ser considerados provados.
Mas ele limitou-se a afirmar o seguinte:
«Se o valor exato da dívida do Autor ao condomínio não foi dado como provado – não estava em causa a liquidação da dívida – foi dado como provado que o Autor, desde que adquiriu a fração, não pagou um cêntimo que fosse de quotas e encargos do condomínio.
Embora tal lhe fosse exigido.
Sendo igualmente de referir, por ser relevante, que a permilagem da fração do Autor é de 21,11% do total do prédio.
Quanto à falta de condições e licença de utilização para restauração, sendo um facto negativo, incumbia ao Autor provar o contrário.
Por outro lado, resulta da caderneta predial que a fração se destina a comércio, o que exclui a restauração.
Pelo que não poderia ter licença de utilização para restauração, como não tem.».
Daqui decorre que não indicou qualquer meio de prova constante dos autos ou da gravação da audiência final – ali, por ex. prova documental; aqui, as declarações dos intervenientes e/ou os depoimentos das testemunhas – para sustentar a impugnação do facto não provado na al. c), não tendo, assim, observado, quanto a ele, o ónus primário da al. b) do nº 1 do já várias vezes citado art. 640º, impeditivo da sua reapreciação. Mas mesmo chamando à colação o que atrás se exarou a propósito do facto provado nº 40, com o qual tem alguma conexão, ainda assim o mesmo teria de permanecer inalterado, na medida em que as declarações e o depoimento testemunhal ali indicados não permitiriam alterar a resposta do tribunal a quo, além de que, como também já dissemos, só relevam aqui as quotas do condomínio a cargo do autor, ou seja, desde que é o proprietário da fração H.
Quanto à al. d), entende que a prova de tal facto competia ao autor e que o mesmo encontra substrato probatório na caderneta matricial da fração do autor, junta com a p. i. (doc. 2).
Neste documento [caderneta matricial] diz-se apenas que a fração em apreço se destina a comércio. Não consta, nem tinha que constar, se tem condições estruturais para restauração, nem, muito menos, se possui ou não licença de utilização para tal, prova que teria de ser feita através de outra documentação que o recorrente não indica.
Contudo, esta questão é absolutamente irrelevante para o que está em causa nos autos, pois em parte alguma dos factos provados consta que o contrato a que se referem os nºs 10, 11, 29 e 32 seria de arrendamento para fins de restauração. E quanto ao contrato a que se reportam os nºs 42 e seguintes dos factos provados, ficou claro, das declarações dos intervenientes atrás mencionados e do depoimento da testemunha RR, que o mesmo não tem por fim o exercício da restauração, mas sim do comércio, já que no locado funciona um estabelecimento em que existem écrans destinados a jogos de diversão [golfe, designadamente] por parte dos clientes que o frequentam.
Como tal e sem necessidade de se afirmar a quem competia a prova do facto – se ao autor pela positiva [existência de condições estruturais e licença de utilização] ou se, pelo contrário, ao réu pela negativa [como consta da al. d)] –, impõe-se a manutenção dos factos das als. c) e d) como não provados.
Improcede, assim, in totum, o recurso no que concerne à matéria de facto.
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3. Se o autor age em abuso de direito e/ou se ocorre a invocada «exceptio non adimpleti contractus».
Nas conclusões VI e VII das alegações, o recorrente invoca duas figuras jurídicas, uma de caráter geral – o abuso de direito – e outra relativa às relações contratuais – a exceção de não cumprimento do contrato.
Trata-se em ambos os casos de questões novas que só agora, em sede recursória, são, pela primeira vez, trazidas ao processo [não foram invocadas na contestação].
É sabido que o tribunal da Relação não deve conhecer de questões novas no recurso, a não ser que estas sejam de conhecimento oficioso, como decorre do disposto nos arts. 608º nº 2, 627º nº 1 e 663º nº 2 do CPC.
Quanto ao abuso de direito não há dúvida de que o seu conhecimento é oficioso, devendo ser apreciado pelo tribunal ainda que não seja invocado pela parte que dele poderia aproveitar-se [assim o decidiram, entre outros, os Acórdãos do STJ de 16.06.2020, proc. 3300/15.1T8ENT-A.E1.S1, disponível in CSM.ECLI e de 04.12.2014, proc. 2606/07.8TJVNF.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj].
Mas o mesmo não acontece com a exceção perentória de não cumprimento do contrato, prevista nos arts. 428º a 431º do CCiv., pois esta “tem natureza disponível e por isso não é de conhecimento oficioso, devendo a respetiva factualidade integradora ser alegada na contestação, sob pena de preclusão” [assim, Acórdão do STJ de 22.11.2018, proc. 85159/13.0YIPRT.C1.S1; idem, Acórdão do STJ de 14.12.2016, proc. 1341/12.0T8VFR.P1.S1, ambos disponíveis no referido sítio da dgsi].
Por isso, conheceremos da primeira [abuso de direito], mas não da segunda [exceptio non adimpleti contractus].
Na conclusão VI das alegações, o recorrente sustenta que a atuação do autor se reconduz à figura do abuso de direito «ao exigir obras e indemnização pela sua não realização e, ao mesmo tempo, paralisar a ação do condomínio com sucessivas impugnações das deliberações das assembleias de condomínio onde essas matérias eram tratadas e decididas» e ainda por o autor, como refere no corpo das alegações, «não pagar qualquer quota ao condomínio».
Vejamos então.
O art. 334º do CCiv. considera que age em abuso de direito ou que é ilegítimo o exercício de um direito «quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Para que o exercício de um direito seja abusivo exige-se que “o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder” ou, dito de outro modo, “que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça”. Basta que o excesso se verifique objetivamente, não se exigindo que o agente tenha consciência dele. Mas só haverá abuso de direito se houver “contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”. E no preenchimento dos conceitos constantes da parte final do normativo em apreço - «boa fé», «bons costumes» e «fim social ou económico» - haverá que atender, quanto aos dois primeiros, “às conceções ético-jurídicas dominantes”, e quanto ao último a “juízos de valor positivamente consagrados na própria lei” [cfr., Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ediç., Almedina, pgs. 564-565; idem, Coutinho de Abreu, in Do Abuso de Direito, 1999, Almedina, pgs. 15 e segs., que entende que há abuso de direito “quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”].
O abuso de direito comporta várias modalidades, das quais destacamos agora, por serem as que aqui importa considerar, o venire contra factum proprium, ou conduta contraditória e o tu quoque.
No venire contra factum proprium distinguem-se o venire negativo, em que o agente “manifesta uma intenção ou, pelo menos, gera uma convicção de que não irá praticar certo ato e, depois, pratica-o mesmo” [ainda que o acto em causa seja permitido por integrar o conteúdo de um direito subjetivo] e o venire positivo, em que “o agente em causa demonstra ir desenvolver certa conduta e, depois, nega-a”, podendo estas atuações dizer respeito quer ao exercício de um determinado direito potestativo, quer ao exercício de um direito subjetivo comum. No fundo, nesta modalidade o abuso de direito ocorre quando alguém exerce um direito em contradição com uma conduta [sua] anterior em que a outra parte tenha legitimamente confiado, vindo esta, com base na confiança gerada e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões na convicção de que aquele direito já não seria exercido [assim, Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2000, Almedina, pgs. 250-255 e Tomo IV, 2005, Almedina, pgs. 275-297; mesmo Autor, in Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Almedina, pgs. 742-745 e Baptista Machado, in Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, RLJ ano 118, pgs. 169, 227 e 228].
Desta descrição decorre que o venire contra factum proprium demanda: i) um comportamento anterior, suficientemente inequívoco/concludente no seu conteúdo, da parte que exerce o direito que seja suscetível de gerar uma situação objetiva de confiança no destinatário [parte contrária]; ii) uma atuação deste destinatário, objetivamente justificada, baseada na boa fé e na confiança gerada por aquele comportamento; iii) e um comportamento posterior [atual] daquele primeiro declarante, objetivamente contraditório com o inicialmente manifestado [além dos Autores citados, cfr. ainda, i. a., os Acórdãos do STJ de 10.01.2023, proc. 412/20.3T8PBL.C1.S1, de 04.07.2019, proc. 34352/15.3T8LSB.L1.S1, de 07.03.2019, proc. 499/14.8T8EVR.E1.S1, de 27.04.2017, proc. 1192/12.1TVLSB.L1.S1 e de 12.11.2013, proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].
Já a fórmula tu quoque “exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso: - ou prevalecer-se da situação daí decorrente; - ou exercer a posição violada pelo próprio; - ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada”. A aplicação desta modalidade do abuso de direito “requer cautela”, pois se “[f]ere a sensibilidade primária, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir a outrem o seu acatamento”, já “[n]ão é líquido, contudo e sempre ‘a priori’, que um sujeito venha eximir-se aos seus deveres jurídicos alegando violações perpetradas por outra pessoa” [assim, Menezes Cordeiro, obr. cit., Tomo IV, pgs. 327 e segs.; idem, Acórdãos do STJ de 21.03.2023, proc. 2164/16.2T8PTM.E1.S1 e de 14.03.2019, proc. 1189/15.0T8PVZ.P1.S1, disponíveis no mesmo sítio da dgsi; neste último diz-se que “O conteúdo do princípio da proibição do ‘tu quoque’ é o de que quem atua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma atuação ilícita da contraparte”].
Tendo em conta este quadro referencial, vejamos, antes de mais, em termos sintéticos, o que está em causa nos autos.
O autor, enquanto proprietário da fração autónoma H, invocando infiltrações de águas pluviais através do terraço que serve de cobertura à mesma, que daí resultaram diversos danos para a fração e que, por via daquelas, também não conseguiu arrendá-la ou, mais recentemente, tendo-a arrendado, não lhe permitem auferir a renda a que teria direito se não fosse aquela situação, veio requerer que o réu condomínio [atenta a configuração do lado passivo determinado no despacho saneador, em que se considerou que «reu, na ação, é apenas o condomínio, representado por todos os condóminos, aqui intervenientes»] fosse condenado a realizar obras de reparação no dito terraço [para eliminação das infiltrações de águas pluviais] e na sua fração [reparação dos danos nesta causados por aquelas infiltrações] e, bem assim, a indemnizá-lo do que deixou de auferir a título de rendas.
Aquelas infiltrações, os danos que estas causaram na fração do autor e o prejuízo que este suportou [vem suportando] por não auferir as rendas que normalmente auferiria se tais infiltrações não acontecessem ou tivessem sido reparadas/eliminadas, resultaram, no essencial, provados e como tal foram considerados na sentença recorrida que, assim, condenou o réu nos termos, no essencial, pretendidos por aquele.
Mas nela [sentença recorrida] também se deu como provado que o autor é proprietário da fração H desde 28.09.2018 [data em que a adquiriu], que nunca pagou, desde então [sendo que esta ação foi instaurada em 20.02.2023], as quotas do condomínio relativas àquela e que a mesma tem uma permilagem de 211,1. E, quanto ao incumprimento deste dever, a cargo de todo e qualquer condómino, o autor não apresentou nenhuma causa justificativa, prova que lhe competia, nos termos do nº 2 do art. 342º do CCiv..
Perante este circunstancialismo fáctico coloca-se então a seguinte questão [que a sentença recorrida não ponderou e devia tê-lo feito, já que, como se disse atrás, o abuso de direito é de conhecimento oficioso]: é lícito ao autor, que, ao longo de quase quatro anos e meio [desde que adquiriu a fração até a interposição da ação, sendo que da prova pessoal (declarações e depoimentos) produzida em julgamento até resultou que tal situação se mantinha aquando da realização da audiência final], nunca pagou as quotas do condomínio, que representam pouco mais de 1/5 do total das quotas relativas às frações do prédio, exigir do condomínio a reparação do dito terraço e dos danos causados na sua fração, bem como o pagamento do que deixou de receber a título de rendas?
Entendemos claramente que não e que ao fazê-lo está a agir em manifesto abuso de direito, na modalidade de tu quoque.
Vejamos porquê [diga-se que não nos pronunciaremos sobre o outro fundamento invocado pelo recorrente como gerador de abuso de direito, decorrente de impugnações judiciais de deliberações da assembleia de condóminos por parte do autor, quer por nada ter ficado provado neste âmbito, quer por se desconhecerem os fundamentos dessas eventuais impugnações, sendo certo que, por princípio, constitui direito dos condóminos o de impugnarem judicialmente aquelas deliberações, desde que por motivos legalmente previstos].
Estão em causa infiltrações através de um terraço que constitui cobertura da fração do autor. Os terraços de cobertura integram as partes comuns dos edifícios constituídos em propriedade horizontal… ainda que destinados ao uso de qualquer fração – art. 1421º nº 1 al. b) do CCiv..
Os condóminos, além de proprietários exclusivos das suas frações, são comproprietários das partes comuns do edifício – art. 1420º nº 1 do CCiv.. Trata-se de direitos incindíveis e que não podem ser alienados separadamente – nº 2 do mesmo preceito.
A conservação das partes comuns – no caso, do referido terraço – é da responsabilidade de todos os condóminos, sendo as despesas para tal necessárias pagas na proporção do valor das frações – art. 1424º nº 1 do CCiv.. Também o art. 4º do DL 268/94, de 25.10 [Regime da Propriedade Horizontal] prescreve que «[é] obrigatória a constituição, em cada condomínio, de um fundo comum de reserva para custear as despesas de conservação do edifício ou conjunto de edifícios» [nº 1] e que «[c]ada condómino contribui para esse fundo com uma quantia correspondente a, pelo menos, 10/prct. da sua quota-parte nas restantes despesas do condomínio» [nº 2].
O autor estava, por conseguinte, obrigado a contribuir, na proporção do valor da sua fração, para as despesas de conservação do dito terraço [obrigação propter rem], tanto mais que não está provado que este sirva exclusivamente algum dos condóminos, não funcionando aqui, por isso, o regime excecional previsto no nº 3 do art. 1424º.
Ao não ter pago as quotas do condomínio a seu cargo, o autor recorrido impediu [também] a realização dos atos de conservação do terraço ou, dito de outro modo, contribuiu para a deficiente conservação do mesmo, até porque as infiltrações ocorreram em outubro de 2022 [facto provado nº 6], quatro anos depois de ter adquirido a fração H, durante os quais nada pagou a título de quotas do condomínio; quotas essas que não eram de valor despiciendo já que, face à permilagem da fração, correspondiam a pouco mais de 1/5 do valor total das quotas de condomínio do edifício [constituído, como consta da certidão predial junta com a p. i., por sete frações destinadas a habitação, outras tantas destinadas a aparcamento automóvel e a fração H destinada a comércio].
Ora, perante este incumprimento do autor, os pedidos que formulou – e que a sentença recorrida sufragou – de condenação do condomínio a proceder a obras no dito terraço, para eliminação das infiltrações, bem como a obras na sua fração, para reparação dos danos sofridos pela infiltração das águas pluviais e, ainda, a pagar-lhe o que deixou de receber de rendas por causa daquelas infiltrações, evidenciam uma insustentável contradição, apresentando-se o exercício destes direitos manifestamente ilegítimo face ao seu comportamento, repetida e prolongadamente, incumpridor do referido dever básico de qualquer condómino, que cerceou a administração do condomínio [exercida, no caso, por todos os condóminos, como está provado] de «receitas» necessárias à conservação das partes comuns, designadamente do aludido terraço.
É, assim, evidente que o autor, ora recorrido, atua em abuso de direito, sob a modalidade de tu quoque.
Como se diz no Acórdão do STJ de 14.03.2019 [já atrás citado], “o Autor, ao atuar ilicitamente, designadamente deixando de pagar as quotas ao condomínio, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma atuação ilícita do condomínio, concretizada na não realização de obras para as quais as quotas, que o Autor deixou de pagar, seriam necessárias. Entre os corolários do abuso do direito, na modalidade de ‘tu quoque’, está a improcedência dos pedidos abusivamente deduzidos de indemnização dos “danos causados no imóvel de que o autor é proprietário”, ou de “realização de obras de reparação de danos causados” [com interesse, vd. tb o Acórdão desta Relação do Porto de 26.01.2021, proc. 483/16.7T8SJM.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp que considerou que “a recorrente não pode aproveitar-se do facto de não ter pago as contribuições devidas ao Condomínio, que permitiriam a reparação dos danos na sua fração (obras aprovadas e executadas por falta de dinheiro), para depois vir pedir a condenação do Condomínio em indemnização por danos resultantes da não realização das ditas obras” e o Acórdão da Relação de Guimarães de 13.06.2019, proc. 572/17.0T8GMR.G1, disponível in www.dgsi.pt/jtrg] que decidiu que “consubstancia abuso de direito, o comportamento da autora que não paga as contribuições devidas ao condomínio, entre elas, também, as destinadas à realização de obras e vem depois pretender que essas obras, designadamente as destinadas à conservação de partes comuns afetas ao seu uso exclusivo, sejam custeadas unicamente pelos demais condóminos”].
Assim, com fundamento no exercício abusivo dos referidos direitos por parte do autor, ora recorrido, impõe-se julgar procedente o recurso e revogar a sentença recorrida, ficando o réu condomínio absolvido de todos os pedidos em que ali foi condenado.
Fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada na conclusão VIII.

As custas deste recurso ficam a cargo do recorrido, face ao total decaimento nesta 2ª instância - arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC..
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Síntese conclusiva:
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V. Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida, ficando o réu absolvido dos pedidos em que ali foi condenado.
2º) Condenar o recorrido nas custas do recurso, pelo decaimento.

Porto, 4/6/2025
Pinto dos Santos
Rui Moreira
Lina Baptista