SENTENÇA
TÍTULO EXECUTIVO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário

I – Os acórdãos de uniformização de jurisprudência não têm força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos. Porém, dada a especial força persuasiva que a lei lhes confere, é necessária uma argumentação nova e ponderosa para que se decida em sentido contrário à jurisprudência uniformizada.
II – O alargamento do prazo prescricional previsto no artigo 311.º, n.º 1 do Código Civil, pressupõe que o título que sobrevem ao direito sujeito a um prazo curto de prescrição reconheça esse mesmo direito.
III – O reconhecimento do direito emergente da relação subjacente à emissão de um título de crédito, nomeadamente de uma livrança, não decorre deste título, dada a literalidade, a abstracção e a autonomia que caracterizam esses títulos.
IV – O título executivo a que alude o artigo 311.º do Código Civil só releva, para efeitos de alargamento do prazo de prescrição, se sobrevier antes de se completar o prazo curto de prescrição.
V – Na falta de outro argumento novo e ponderoso, impõe-se manter a jurisprudência fixada no AUJ n.º 6/2022: «I – No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II – Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas».

Texto Integral

Processo: 945/24.2T8LOU-A.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Por apenso à execução comum que A..., S.A. lhes moveu, vieram os executados AA, BB e CC deduzir os presentes embargos de executado, arguindo a prescrição de todas as prestações vencidas em data anterior a 07.05.2019 [ao abrigo do disposto no artigo 310.º, al. e), do Código Civil (CC), mais invocando o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2022, publicado no DR n.º 184/2022, 1.ª série, de 22.09.22, pp. 5-15], o preenchimento abusivo da livrança dada à execução, o abuso de direito e a má fé da embargada, a falta de comunicação aos embargantes da cessão do crédito exequendo à embargada e, subsidiariamente, a prescrição dos juros vencidos há mais de 5 anos [ao abrigo do disposto no artigo 310.º, al. d), do CC].
Concluíram pedindo de declare extinta a execução.
Liminarmente recebidos os embargos e citada a embargada, esta apresentou contestação, pugnando pela improcedência da invocada prescrição da totalidade da dívida exequenda, por não serem aplicáveis ao caso os prazos curtos de prescrição previstos no artigo 310.º do CC, bem como dos alegados preenchimento abusivo da livrança, má fé e falta de comunicação da cessão do crédito.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido saneador sentença, que considerou verificada a prescrição do crédito exequendo e, consequentemente, julgou procedentes os presentes embargos de executado e determinou a extinção da execução.

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Inconformada, a embargada apelou desta decisão e apresentou a respectiva alegação, terminando com as seguintes conclusões (que transcrevemos sem qualquer alteração ou correcção):
«I. Considerou o Tribunal a quo que “somos forçados a concluir que assiste a razão ao opoente quando invoca a excepção de prescrição que leva à procedência da presente oposição e á extinção da execução (vide art. 732º, nº 4, do C.P.Civil).”.
II. Posição esta que com a qual, com o devido respeito, que é muito, discordamos em absoluto por não se encontrar em consonância com o consagrado no ordenamento jurídico português.
III. Com base na decisão ora em querela, encontra-se em causa a matéria adjacente ao incumprimento do contrato de mútuo celebrado entre o credor primitivo e os Executados.
IV. Acontece que, no caso dos autos, os Executados não cumpriram com os termos daquele negócio, nomeadamente, o pagamento pontual dos valores fracionados no tempo, para efeitos de liquidação do valor mutuado.
V. No entanto, sucede que, o Tribunal a quo entende que “Assim, na falta de outra data, temos que a partir da data do vencimento da última prestação (31/05/2014), começaram a correr cinco anos de prescrição, que ocorre em 31/05/2019. Ora, quando a letra foi preenchida em 28/02/2024, já o crédito da exequente estava prescrito; note-se que não consta dos autos qualquer facto interruptivo da prescrição que não seja a citação dos executados para pagarem (artigo 323.º, n.º 1, do C. C.), ocorrida em 07/05/2024, pelo que assim se conclui pelo preenchimento abusivo da mesma.”.
VI. Porquanto, e por descordarmos veemente da interpretação efetuada, entendemos que, num passo lógico, importa ad initio começar pelo cerne da questão.
VII. Nos termos do artigo 1142.º do Código Civil, doravante CC, o contrato de mútuo define-se na essência de uma das partes emprestar à outra dinheiro, ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir à primeira no mesmo género e qualidade.
VIII. No que lhe concerne, o contrato de mútuo bancário implica que a instituição financeira se obrigue a colocar à disposição do seu cliente determinada quantia em dinheiro, ficando este obrigado a restituir-lha em montante idêntico.
IX. Atento o incumprimento imputável aos Executados, o banco cedente viu-se obrigado a dar o contrato celebrado como definitivamente incumprido a março de 2014.
X. Assim, e em virtude do contexto inalterável de incumprimento, viu-se a aqui Recorrente forçada a promover pelo preenchimento da livrança ora dada à execução.
XI. Todavia, face ao facto de, desde a data de resolução do contrato (2014) e a data de acionamento da livrança (2024), ter ocorrido um hiato superior a cinco anos, entende o Tribunal a quo que a dívida se encontra prescrita nos termos do artigo 310.º, alínea e) do CC.
XII. Fundamenta o Tribunal a quo que deveriam os embargos deduzidos pelos Executados prosseguir com fundamento na aplicação do prazo prescricional de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alíneas, d) e e) do CC.
XIII. Interpretação esta com a qual, reiterando uma vez mais, não poderá a ora Recorrente se conformar, atento que, trata-se de uma clara e evidente interpretação errada do normativo que tem por base a douta sentença.
XIV. Como tal, para o efeito, importa desde já trazermos à colação os termos do artigo 310.º do CC, epigrafado de “Prescrição de cinco anos”:
Prescrevem no prazo de cinco anos:
a) As anuidades de rendas perpétuas ou vitalícias;
b) As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por uma só vez;
c) Os foros;
d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;
e) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;
f) As pensões alimentícias vencidas;
XV. Após analisado aquele preceito legal, incumbe-nos desde já traduzir o significado da alínea e), que refere a aplicabilidade do prazo prescricional de cinco anos “às quotas de amortização do capital pagáveis com os juros”.
XVI. Ora, reportando-nos àquela norma em específico, verificamos que nos casos em que falamos em "quotas", propriamente ditas, encontramo-nos perante obrigações pagas em prestações, nas quais o devedor se obriga a liquidar a dívida de forma fracionada, englobando tanto o capital como os juros, até formar uma prestação única.
XVII. Neste sentido, pode-se afirmar com fortes certezas, que o prazo prescricional de cinco anos aplica-se quando se tratem de prestações em mora, que abrangem tanto o capital como os juros, sendo cada uma delas analisada de forma independente para efeitos verificabilidade da prescrição das mesmas.
XVIII. Assim, cada prestação em mora durante a vigência do contrato estará sujeita a um prazo prescricional de “curta duração”, o qual variará conforme a data de vencimento de cada uma delas.
XIX. Resulta do exposto que, até ao aludido incumprimento definitivo, encontravam-se em causa prestações fracionadas que haviam sido estipuladas para efeitos de cumprimento pontual do contrato.
XX. Como tal, as prestações acordadas tinham por objetivo a amortização do capital mutuado e juros.
XXI. Por sua vez, no caso dos autos, atento o incumprimento imputável aos Executados, operou uma conversão das prestações fracionadas numa prestação de natureza única, colmatando assim a conjuntura aqui em apreço, nomeadamente, o aludido prazo de cinco anos de prescrição.
XXII. Com efeito, o que está em causa é a resolução do contrato por incumprimento, e, por conseguinte, a consequência prevista no artigo 781.º do CC, mormente, o vencimento antecipado da totalidade dos montantes em dívida.
XXIII. Por conseguinte, com o incumprimento definitivo, não são as prestações vincendas da obrigação resolvida que se vencem, mas sim a obrigação de restituir o valor no seu todo.
XXIV. A perda do benefício do prazo aplicável aos mutuários dado o não pagamento das prestações do valor mutuado confere ao credor o direito de exigir de imediato a totalidade do montante cujo reembolso estava outrora convencionado ser fracionado em prestações.
XXV. Pelo que, o plano prestacional a que o contrato fazia referência convolou-se numa obrigação de natureza diversa.
XXVI. Assim, verificando-se um incumprimento definitivo, imputável ao devedor, com a resolução do contrato e a exigibilidade antecipada da totalidade da dívida, é clara e evidente a inaplicabilidade do artigo 310.º do CC.
XXVII. De acordo com o disposto no artigo 785.º do CC, existe uma hierarquia no modo como os montantes liquidados, devendo os mesmos ser atribuídos em primeiro lugar a título de despesas, seguidamente às indemnizações, depois aos juros, e só então ao capital em dívida
XXVIII. Por sua vez, quanto aos juros especificadamente, os mesmos terão uma forma de incidência diferente, deixando de recair sobre o valor de cada prestação em atraso, passando a ser calculados sobre o montante total da dívida, em consequência da exigibilidade antecipada.
XXIX. Resulta então evidente que o valor peticionado em sede de requerimento executivo, trata-se assim de uma prestação instantânea, pelo que lhe será aplicável o prazo ordinário de 20 anos, conforme estipula o artigo 309.º do CC.
XXX. Deste modo, se o cumprimento fracionado, por meio das quotas, não é aplicável no contexto previsto no artigo 781.º do CC, então, por uma questão de congruência, também não nos parece ser viável aplicar aquele prazo prescricional de cinco anos ao caso vertido nos autos.
XXXI. Assim, no que respeita, pelo menos, ao capital vencido antecipadamente devido ao incumprimento e à resolução do contrato, deverá ser sempre aplicável o prazo de prescricional ordinário de vinte anos, conforme dita o artigo 309.º do CC».
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Os embargantes responderam à alegação da recorrente, pugnando pela improcedência da apelação e pela manutenção da decisão recorrida. Terminam formulando as seguintes conclusões (que igualmente transcrevemos sem qualquer alteração ou correcção):
«A) Acórdão uniformizador de 30/06/2022, publicado no DRE nº 184/2022, Iª série de 22-09-22, p. 5-15 (acórdão do supremo tribunal de justiça n.º 6/2022) que decidiu:
I - No caso de quotas de amortização de capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do art. 310.º, al. e), do CC, em relação ao vencimento de cada prestação.
II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do art. 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incindindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.
B) Proferido um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, pese embora não tenha força obrigatória geral, qualquer decisão posterior que seja contrária à jurisprudência uniformemente fixada, terá de ter em conta a mesma e sustentadamente formular um novo entendimento não considerado nas decisões anteriores que alicerçaram o acórdão uniformizador.
C) “Não podem as partes, através dos respectivos mandatários judiciais, agir nos processos como se não houvesse qualquer pronúncia uniformizadora relativamente à questão suscitada”
D) A recorrente nas suas alegações não faz referência ao acórdão de uniformização de jurisprudência supra referido.
E) A recorrente nas suas alegações não argumentando no sentido de contrariar o acórdão uniformizador nº 6/2022, com argumentos novos que ponham em causa as orientações e jurisprudência fixada, leva a que deva desde logo seja declarado improcedente o recurso e confirmar-se a douta sentença recorrida que segue a linhas definidas no aludido acórdão.
F) Para efeitos de prescrição, o vencimento ou exigibilidade imediata das prestações, por força do disposto no artigo 781.º do Código Civil, não altera a natureza das obrigações inicialmente assumidas, isto é, se altera o momento da exigibilidade das quotas, não altera o acordo inicial, o escalonamento inicial, relativo à devolução do capital e juros em quotas de capital e juros.
G) Ao decidiu como decidiu a sentença recorrida fez uma aplicação correta da lei, nomeadamente do artigo 310+ do Código Civil e foi conforme a jurisprudência uniformizada no Acórdão uniformizador de 30/06/2022, publicado no DRE nº 184/2022, Iª série de 22-09-22, p. 5-15 (acórdão do supremo tribunal de justiça n.º 6/2022)».
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II. Fundamentação
A. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, a única questão a decidir traduz-se em saber se o crédito resultante da falta de pagamento atempado de prestações, convencionadas no âmbito de um contrato de mútuo, para amortização do capital mutuado e dos juros e do vencimento antecipado das restantes, ao abrigo do disposto no artigo 781.º do CC, está sujeito ao prazo geral de prescrição de 20 anos, como defende o recorrente, pelo menos no que concerne às últimas, ou se está sujeito ao prazo de prescrição de 5 anos estabelecido no artigo 310.º, al. e), do CC, como decidiu o Tribunal a quo.
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B. Os Factos
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1. Por contrato de cessão de créditos celebrado em 22 de Dezembro de 2018, o Banco 1..., S.A. e Banco 2..., S.A., cederam a favor de B..., S.A.R.L. diversos créditos, bem como todas as garantias e acessórios a ele inerentes nos termos do DOC. 1 junto com o req. executivo e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. Posteriormente, os créditos cedidos àquela entidade foram integralmente cedidos a favor da Exequente, por Contrato de Cessão de Créditos, datado de 31 de Março de 2021, conforme documento junto como DOC. 2 e aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais.
3. A exequente apresentou como título executivo uma livrança no valor de € 28.040,14 (vinte e oito mil e quarenta euros e catorze cêntimos) subscrita por AA e avalizada por BB e CC, vencida em 28 de Fevereiro de 2024, junta como DOC. 3 com o req. executivo e que aqui se dá por integralmente por reproduzida.
4. A Livrança exequenda foi entregue em branco pelos executados abrigo do contrato de mútuo referente a Crédito ao Consumo, celebrado em 30 de Maio de 2013, ao qual foi atribuído o n.º ..., nos termos do qual foi solicitada pelos Executados e efectivamente entregue pelo Cedente, a quantia de € 12.777,51 (doze mil setecentos e setenta e sete euros e cinquenta e um cêntimos), a ser restituída em 84 (quarenta e oito) prestações mensais e sucessivas à Taxa Anual Efectiva Global de 12,700%, eventualmente acrescido da Sobretaxa de 4,000%, em caso de mora, conforme contrato junto como doc. 1 na contestação e que aqui se dá por integralmente por reproduzido para todos os legais efeitos.
5. A livrança exequenda foi preenchida pela exequente em 23.02.2024.
6. Apresentada a pagamento, a livrança não foi paga na data de vencimento, nem posteriormente, tendo sido os Executados interpelados nesse sentido.
7. O Banco 3... SA Recuperação de crédito ACE em 31.05.2014 remeteu carta aos executados comunicando entre outro o seguinte:
Lisboa, 01 de maio de 2014
ASSUNTO: REGULARIZAÇÃO DO CONTRATO N. ...
PROCESSO N. ...
Exmo(a) Senhor(a),
Vimos, por este meio, comunicar que o contrato de Cl - Crédito Individual de que é Avalista, se encontra já em fase de Contencioso.
Não obstante os vários contactos anteriormente efetuados pelos nossos serviços, verificamos que a situação de incumprimento não foi ainda regularizada.
Deste modo, e a menos que seja efetuado o pagamento do valor em incumprimento de 1.359,36 €, calculado à data de 11/05/2014, o contrato em epígrafe considera-se de imediato denunciado ou declarado o seu vencimento antecipado. Assim, a partir dessa data, será exigido o pagamento da totalidade do seu valor em dívida acrescido de juros vencidos, vincendos e das despesas incorridas.
Informamos ainda que, caso não seja pago o montante em dívida no prazo acima indicado, se procederá ao Preenchimento da Livrança e/ou proceder-se-á à execução da hipoteca/garantia (consoante a garantia associada ao contrato), não nos restando outra alternativa que não seja a do recurso à via judicial, para cobrança coerciva do crédito em questão, o que faremos decorrido o prazo acima mencionado.
Esta situação foi já, no âmbito das normas em vigor, comunicada ao Banco de Portugal, implicando o consequente registo e acesso por parte das restantes Instituições Financeiras a esta informação com as consequências que daí possam advir para V. Exa.
Numa última tentativa de resolução consensual deste assunto, antes do seu envio para Tribunal, estamos, igualmente, a instar os restantes intervenientes no contrato (Titulares, Fiadores e Avalistas…
8. A acção executiva foi instaurada em 28.02.2024.
9. Os executados foram citados em 07.05.2024.
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C. O Direito
1. O tempo é um facto jurídico não negocial, susceptível de influir nas mais diversas relações jurídicas e em diferentes domínios do direito civil. Entre os mais relevantes efeitos jurídicos do decurso do tempo destacam-se a prescrição e a caducidade.
No que concerne à prescrição extintiva (assim denominada por oposição à prescrição aquisitiva), desde logo porque, quando invocada (ela não opera ipso jure – cfr. artigo 303.º do CC), pode legitimar a recusa do cumprimento da obrigação, se o correspondente direito não tiver sido exercido durante certo lapso de tempo estabelecido na lei (cfr. artigo 298.º, n.º 1, do CC), deste modo o transformando numa obrigação natural, nos termos do artigo 304.º, n.º 2, do CC.
Embora não lhe sejam totalmente estranhas razões de justiça, a prescrição extintiva é um instituto endereçado, fundamentalmente, à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade, partindo a sua fundamentação legal da ponderação da inércia do titular do direito, que faz presumir a renúncia ao mesmo ou, pelo menos, o torna indigno de tutela jurídica, em harmonia com o velho aforismo dormientibus non succurrit jus (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 446).
Visando a prescrição satisfazer a necessidade social de segurança jurídica, de certeza dos direitos, e assim proteger o interesse do sujeito passivo, tem como efeito dispensar a protecção do sujeito activo, atendendo ao seu desinteresse ou inércia em exercitar o seu direito. Compreende-se que razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas imponham que a inércia prolongada do credor envolva consequências desfavoráveis para o exercício tardio do direito, em defesa da expectativa do devedor de se considerar dispensado de cumprir, tendo inclusivamente em conta a dificuldade que este poderia ter de, passado muito tempo, fazer prova do cumprimento que, porventura, tivesse feito (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, p. 554). O instituto em causa tem, assim, subjacente a inércia do titular do direito, conjugada com o interesse objectivo numa adaptação da situação de direito à situação de facto (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 637). Parece, assim, dever situar-se o fundamento último da prescrição na negligência do credor em não exercer o seu direito durante um período de tempo razoável, em que seria legítimo esperar que ele o exercesse, se nisso estivesse interessado.
Assim, decorrido o prazo da prescrição, o devedor pode, se quiser, opor-se à pretensão do titular do direito e recusar-se a cumprir, sem ter de usar de outro meio de defesa para além da simples invocação do decurso do tempo.
2. O prazo ordinário da prescrição é de 20 anos, conforme preceitua o artigo 309.º do CC. Na falta de estipulação de um prazo distinto, é este o prazo de prescrição dos direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição (cfr. artigo 298.º, n.º 1, do CC).
Porém, a lei consagra prazos mais curtos de prescrição para determinados direitos, com intuitos protectivos da parte considerada tipicamente frágil, como sucede no artigo 310.º do CC, que visa proteger os devedores contra a acumulação da sua dívida e estimular a cobrança pontual dos montantes fraccionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito (cfr. Júlio Gomes, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., UCP Editora, 2013, pp. 920-921, que cita o AUJ de 30.06.2022).
Como vimos, a questão que se coloca neste recurso é, precisamente, saber se o crédito resultante da falta de pagamento atempado de prestações, convencionadas no âmbito de um contrato de mútuo, para amortização do capital mutuado e dos juros e do vencimento antecipado das restantes, ao abrigo do disposto no artigo 781.º do CC, está sujeito ao prazo geral de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309.º do CC, como defende o recorrente, ou se está sujeito ao prazo de prescrição de 5 anos estabelecido no artigo 310.º, al. e), do CC (onde se dispõe que prescrevem no prazo de cinco anos as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros), como defendem os recorridos e decidiu o Tribunal a quo.
Os tribunais superiores já foram chamados por diversas vezes a apreciar esta questão. Perante a persistência das divergências jurisprudenciais, em 30.06.2022 o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o acórdão de uniformização de jurisprudência (AUJ) n.º 6/2022, publicado no DR n.º 184/2022, Série I, de 22.09.2022, pp. 5-15, citado pelos embargantes recorrentes, no qual fixou a seguinte jurisprudência uniformizada:
I – No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.
II – Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.
Como se refere no acórdão do TRE, de 06.04.2017 (proc. n.º 433/10.4TBPSR.E1, rel. Albertina Pedroso), «ao contrário do que acontecia com o regime dos Assentos, que o artigo 2.º do Código Civil de 1966 integrava nas fontes normativas, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não gozam de força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos».
Não obstante, face à regulamentação legal do recuso para uniformização de jurisprudência, é inequívoco que estes acórdãos gozam de uma especial força persuasiva.
Por essa razão, o STJ tem «vindo a salientar que, para alterar a interpretação preconizada em jurisprudência uniformizada, “não basta não se concordar com o entendimento de um acórdão uniformizador. Para decidir em sentido contrário é necessário trazer uma argumentação nova e ponderosa, quer pela via da evolução doutrinal posterior, quer pela via da actualização interpretativa”».
Isto mesmo é pertinentemente assinalado pelos recorrentes.
A acórdão de uniformização de jurisprudência acima citado baseia-se na seguinte argumentação (cuja exacta apreensão justifica que aqui seja longamente extractado):
«I
(…) O prazo curto de prescrição justificou-se nos trabalhos preparatórios do Código Civil (Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, Bol.106/112ss.) com o facto de a acumulação de juros com quotas de amortização poder originar, por sua vez, uma acumulação de contas rapidamente ruinosa para o devedor; o mesmo Autor se pronunciou na Revista Decana, 89.º/328, justificando o prazo curto com o facto de “proteger o devedor contra a acumulação da sua dívida que, de dívida de anuidades, pagas com os seus rendimentos, se transformaria em dívida de capital susceptível de o arruinar, se o pagamento pudesse ser -lhe exigido de um golpe, ao cabo de um número demasiado de anos”.
Visou a lei evitar que o credor deixasse acumular os seus créditos (retardando em demasia a exigência de créditos periodicamente renováveis) a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1983, pg. 452, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 3.ª ed., pg. 278).
A Exequente/Embargada chamou em seu proveito de alegação o disposto no artigo 781.º do Código Civil, segundo o qual “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.
Como é doutrina comum e maioritária, este preceito legal não prevê um vencimento imediato, apelidado por alguns “em sentido forte”, das prestações previstas para liquidação da obrigação (…) — constitui antes um benefício que a lei concede ao credor, que não prescinde da interpelação, na pessoa do devedor, para que cumpra de imediato toda a obrigação, em consequência manifestando o credor a vontade de aproveitar o benefício que a lei lhe atribui — assim Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., 1997, pg.54, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., 2009, pgs. 1017 a 1019, Pessoa Jorge, Lições de Direito das Obrigações, I (75/76), pg. 317, e Menezes Cordeiro, Tratado, Direito das Obrigações, IV (2010), pg. 39.
A obrigação fica assim apenas exigível, ou, como alguns entendem, exigível “em sentido fraco”.
(…).
II
A considerar-se, como em diversas decisões das Relações, que o vencimento imediato das prestações convencionadas origina a sujeição do devedor a uma obrigação única, exigível no prazo de prescrição ordinário de 20 anos (artigo 309.º do Código Civil), não se atende ao escopo legal de evitar a insolvência do devedor pela exigência da dívida, transformada toda ela agora em dívida de capital, de um só golpe, ao cabo de um número demasiado de anos (por todos, e de novo, cf. Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, Bol.107/285, citando Planiol, Ripert e Radouant).
Esta a forma de respeitar o espírito do legislador que os trabalhos preparatórios espelharam.
Para efeitos de prescrição, o vencimento ou exigibilidade imediata das prestações, por força do disposto no artigo 781.º do Código Civil, não altera a natureza das obrigações inicialmente assumidas, isto é, se altera o momento da exigibilidade das quotas, não altera o acordo inicial, o escalonamento inicial, relativo à devolução do capital e juros em quotas de capital e juros.
E pese embora devermos considerar que, “no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao artigo 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento de juros remuneratórios nelas incorporados”, como exarado no Ac. de Uniformização de Jurisprudência do S.T.J., n.º 7/2009, de 5/5/2009, a referida desoneração do pagamento dos juros não descaracteriza, em qualquer caso, a “acumulação de contas rapidamente ruinosa para o devedor” que a doutrina pretendeu evitar, ou, de outro ângulo, o incentivo à rápida cobrança dos montantes em dívida, por parte do credor.
Como se escreveu no Ac. S.T.J. 29/9/2016, n.º 201/13.1TBMIR -A.C1.S1 (Lopes do Rego), por explícita opção legislativa, o artigo 310.º alínea e) do Código Civil considera que a amortização fraccionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição, situação que foi equiparada à das típicas prestações periodicamente renováveis.
“Ou seja, o legislador entendeu que, neste caso, o regime prescricional do débito parcelado ou fraccionado de amortização do capital deveria ser absorvido pelo que inquestionavelmente vigora em sede da típica prestação periodicamente renovável de juros, devendo valer para todas as prestações sucessivas e globais, convencionadas pelas partes, quer para amortização do capital, quer para pagamento dos juros sucessivamente vencidos, o prazo curto de prescrição decorrente do referido artigo 310.º”.
Pode assim afirmar-se que, na doutrina maioritária, não suscita particular controvérsia a aplicabilidade do prazo curto de prescrição de cinco anos às obrigações, de natureza híbrida, que visam simultaneamente operar a amortização e a remuneração do capital mutuado.
A “ratio” das prescrições de curto prazo, se radica na protecção do devedor, protegido contra a acumulação da sua dívida, também visa estimular a cobrança pontual dos montantes fraccionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito (assim, Ana Filipa Morais Antunes, Algumas Questões sobre Prescrição e Caducidade, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, III, 2010, pg. 47).
III
A posição doutrinal que, em II, entendemos a mais adequada, ou seja, a aplicação da prescrição de 5 anos à acumulação das quotas de amortização do capital por perda de benefício do prazo (artigo 781.º CCiv), vem sustentada na quase totalidade da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no Ac. S.T.J. 29/9/2016, revista n.º 201/13.1TBMIR-A.C1.S1 (Lopes do Rego) cit. e também nos Acs. S.T.J. 8/4/2021, revista n.º 5329/19.1T8STB-A.E1.S1 (Nuno Pinto Oliveira), S.T.J. 9/2/2021, revista n.º 15273/18.4T8SNT-A.L1.S1 (Fernando Samões), S.T.J. 14/1/2021, revista n.º 6238/16.1T8VNF-A.G1.S1 (Tibério Nunes da Silva), S.T.J. 12/11/2020, revista n.º 7214/18.5T8STB-A.E1.S1 (Maria do Rosário Morgado), S.T.J. 3/11/2020, revista n.º 8563/15.0T8STB-A.E1.S1 (Fátima Gomes), S.T.J. 23/1/2020, revista n.º 4518/17.8T8LOU-A.P1.S1 (Nuno Pinto Oliveira), S.T.J. 27/3/2014, revista n.º 189/12.6TBHRT-A.L1.S1 (Silva Gonçalves), e em numerosas decisões das Relações.
(…) encontra -se uma recensão exaustiva de outra jurisprudência, também a propósito, no Ac. S.T.J. 10/9/2020, revista n.º 805/18.6T8OVR-A.P1.S1 (Rijo Ferreira).
(…).
Resta porém a matéria da uniformização de jurisprudência, oportunamente suscitada no recurso.
IV
Visto o teor do despacho adrede proferido, nos termos do disposto no artigo 686.º n.º 2 do Código [de Processo] Civil, a matéria da uniformização de jurisprudência suscitava-se na ponderação da aplicação de um prazo curto de prescrição a uma quantia total que não poderia ser considerada “quota de amortização de capital” (artigo 310.º alínea e) do Código Civil) — posto que as quotas tinham prazos de vencimento pré-determinados no contrato.
Importa pois aquilatar, neste momento, se a prescrição incide sobre cada uma das prestações de capital (tendo como termo inicial o vencimento dessas mesmas prestações de acordo com o plano de reembolso inicialmente gizado pelas partes) ou, no reverso, se a prescrição se reporta à integralidade da obrigação em dívida (tendo como termo inicial a data do incumprimento pelo devedor, enquanto data a partir da qual o direito podia ser exercido — artigo 306.º n.º 1 1.ª parte do Código Civil).
Na hipótese dos autos, continuariam a ter um prazo pré -fixado antes da citação para a acção executiva e, seguindo tal critério, não se encontrariam prescritas parte das prestações que integravam a quantia total por via da perda de benefício do prazo — designadamente as quantias integrando prestações vencidas há menos de 5 anos, à data da interrupção da prescrição — artigo 323.º n.º 1 CCiv (…).
Desta forma, a integral procedência da prescrição deveria pressupor que as prestações de amortização, considerado o seu prazo inicial convencionado de vencimento, se encontrassem já igualmente prescritas, considerando o prazo de 5 anos, do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, na data em que a prescrição se mostrar interrompida.
Este último critério apontado tem sido seguido por alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, mas sobre o mais das Relações, cabendo salientar o Ac. S.T.J. 4/5/93 Col. II/82 (Santos Monteiro) o Ac. S.T.J. 15/1/2008, revista n.º 4059/07 (Cardoso Albuquerque), in www.stj.pt e o Ac. S.T.J. 25/5/2017, revista n.º 1244/15.6T8AGH -A.L1.S2 (Olindo Geraldes, in www.direitoemdia.pt).
Outras decisões, porém, afirmam que, tendo cessado o pagamento das prestações convencionadas em determinada data, e tendo decorrido mais de cinco anos, após essa data, sem que o credor suscitasse o direito relativo à perda de benefício do prazo, ocorre a prescrição relativamente a todas as prestações, incluindo as vencidas entre a data do primeiro incumprimento e a data do exercício do direito relativo à perda de benefício do prazo.
É o que decorre dos fundamentos do Ac. S.T.J. 9/2/2021, revista n.º 15273/18.4T8SNT-A.L1.S1 (Fernando Samões), do Ac. S.T.J. 12/11/2020, revista n.º 7214/18.5T8STB-A.E1.S1 (Maria do Rosário Morgado) e do Ac. S.T.J. 27/3/2014, revista n.º 189/12.6TBHRT-A.L1.S1 (Silva Gonçalves).
Pode, todavia, apontar-se unanimidade nas apontadas decisões, em vista de afastar a aplicação do prazo prescricional ordinário, do artigo 309.º do Código Civil, à quantia resultante do vencimento antecipado das prestações, por via do exercício do direito a que se reporta o artigo 781.º do Código Civil.
Nesse sentido, pode também dizer-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem aceite que:
— No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.
— Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º do Código Civil, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo “a quo” na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.
É nesse sentido que deve actuar a presente uniformização de jurisprudência.
V
Uma nota última, apenas para afastar a invocação da norma do artigo 311.º n.º 1 CCiv, por parte da Exequente/Embargada, no respectivo benefício.
Diz a norma que “o direito para cuja prescrição, bem que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença passada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo”.
É pacífico, porém, que os títulos dados à execução são constituídos por escritura pública e documento particular de empréstimo, enquadráveis nas normas do artigo 703.º n.º 1 als. b) e d) do Código de Processo Civil e que o citado artigo 311.º n.º 1 do Código Civil alude ao título executivo que sobrevier ao direito, e não ao título que lhe seja contemporâneo» (fim de citação).
Voltando ao caso dos autos, compulsada a alegação da recorrente facilmente verificamos que, em grande parte, a argumentação aí aduzida no sentido de afastar a aplicação do prazo curto de prescrição previsto no artigo 310.º, al. e), do CC, reproduz os argumentos já analisados no AUJ acabado de citar, mormente o argumento da conversão da obrigação de pagamento das prestações fraccionadas numa obrigação de pagamento de uma única prestação, de diferente natureza, distinta do pagamento de quotizações de capital e juros, por força do incumprimento daquelas prestações e do mecanismo previsto no artigo 781.º do CC, assim como o argumento baseado na distinção entre as prestações vencidas e não pagas que justificaram o recurso a este mecanismo – únicas a que se poderia aplicar o prazo de prescrição previsto no artigo 310.º, al. e), do CC – e o capital vencido antecipadamente – ao qual deveria ser aplicado o prazo prescricional de 20 anos, em conformidade com o artigo 309.º do CC.
Quanto a essa argumentação, remetemos para o que ficou dito no referido AUJ.
Resta apenas verificar se a recorrente aduziu «argumentação nova e ponderosa» que justifique o afastamento daquela jurisprudência uniforme.
3. À semelhança do que sucedeu no caso apreciado no AUJ antes citado, a recorrente invocou o disposto no artigo 311.º, n.º 1, do CC (em cujos termos o direito para cuja prescrição, bem que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença passada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo).
Aquele aresto afastou a aplicação desta norma, afirmando que, no caso aí apreciado, o título que serviu de base à execução não sobreveio ao direito exequendo, sendo antes seu contemporâneo. O mesmo não podemos afirmar no nosso caso, visto que a livrança dada à execução, embora tenha sido subscrita pelos executados e entregue em branco à exequente em 30.05.2013, no momento em que celebraram o contrato de mútuo de que emerge o crédito exequendo (cfr. ponto 4 dos factos provados), apenas foi preenchida em 23.02.2024 (cfr. ponto 5 dos factos provados), só então adquirindo força executiva – cfr. artigo 703.º, n.º 1, al. c), do CPC, artigos 75.º e 76.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças (LULL) e ac. do STJ, de 25.05.2017, proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1. Trata-se, portanto, de um título executivo que sobreveio ao direito em causa.
Ainda assim, o mesmo não se enquadra na previsão do artigo 311.º, n.º 1, do CC.
«Concebida como uma espécie de exceção à exceção (o novo prazo prescricional passará a ser o ordinário), o alargamento do prazo prescricional justifica-se «pela nova certeza e estabilidade do direito derivado da sentença, e porque o seu titular se sente mais à vontade para não o exercer com a prontidão com que o faria valer antes do reconhecimento judicial» (Ac. do STJ de 19 de fevereiro de 2004), sem esquecer que, como destaca o Ac. RP de 9 de março de 2023, este alargamento do novo prazo tanto opera quando o direito de crédito é reconhecido por sentença transitada em julgado, como quando haja outro título executivo» (Júlio Gomes, cit., p. 923).
Essencial é, portanto, que o novo título reconheça o direito sujeito ao prazo de prescrição curto, pois é esse reconhecimento posterior que justifica o alargamento do prazo prescricional. Tal reconhecimento estará, naturalmente, presente na sentença (transitada) que declare aquele direito. Mas se a este sobrevier título distinto da sentença, o mesmo apenas justificará o alargamento do prazo prescricional se for equiparável à sentença em termos de reconhecimento do direito.
Neste sentido se pronunciou o ac. do TRC, de 11.12.2028 (proc. n.º 96/18.9T8CBR-A.C1), onde se pode ler o seguinte: «A razão de ser da norma justifica-se “pela nova certeza e estabilidade do direito”, precisamente devido ao reconhecimento do mesmo. No tocante à sentença, é pressuposto um pronunciamento ou definição do direito, mas o mesmo reconhecimento (como parece resultar da ratio legis, e da própria epígrafe) se impõe quando lhe sobrevir outro título executivo. Ou seja, para efeitos da conversão do prazo de prescrição, o “outro título executivo” exige também que nele haja reconhecimento do direito».
Ora, o reconhecimento do crédito emergente da relação subjacente à emissão de um título de crédito, nomeadamente de uma livrança, não decorre deste título, dada a literalidade, a abstracção e a autonomia que caracterizam esses títulos, características que Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa definem assim:
«A relação cartular, em qualquer das suas modalidades, tem subjacente, em regra, outra relação jurídica que une cada um dos sujeitos: v.g. contrato de compra e venda, mútuo, empreitada, contrato-promessa, etc. Consoante a tipologia de cada título de crédito, a natureza dos negócios cambiários ou a qualidade dos intervenientes, os direitos e obrigações resultantes do saque, do aceite, da subscrição, do endosso ou do aval dispensam a alusão a qualquer relação causal, bastando-se a lei com a demonstração da qualidade de credor emergente do contexto literal do documento. Por seu lado, para se eximir à responsabilidade, fora das relações imediatas (entre si e outro interveniente no negócio jurídico cambiário), o obrigado cambiário está, em regra, impedido de invocar quaisquer factos que não encontrem apoio no texto do documento em que se materializa o título de crédito. Mesmo no âmbito das relações imediatas, a iniciativa da ampliação da discussão para além de outros factos não inscritos no documento deve pertencer ao demandado nos embargos à ação executiva. Nisto se traduz a autonomia e a abstração da relação cambiária, sobrevivendo por si só, ainda que possa estar agregada a uma outra relação coberta pelo véu da relação cartular. Quanto à literalidade, ela acaba por se assemelhar a idêntica característica que se aponta ao título executivo: em princípio, é pelo conteúdo do documento (e apenas por essa via) que se afere o direito de crédito e a respetiva titularidade (sem prejuízo, quanto a esta, do disposto nos arts. 53º, nº 2, e 54°)».
Como explica Rui Pinto (A Ação Executiva, AAFDL, Lisbos, 20202, pp. 133 e seguintes), o título executivo exerce (entre outras) uma função de representação da causa de pedir. «O título executivo é (…) o documento pelo qual o requerente de realização coativa da prestação demonstra a aquisição de um direito ou poder a uma prestação segundo requisitos legalmente prescritos» (p. 136). «Portanto, o título executivo cumpre nesta representação, antes de mais, uma função de certificação da aquisição do direito ou poder à prestação pelo exequente. Dito de outro modo, o título executivo cumpre uma função de representação dos factos principais da causa de pedir. A nossa restrição aos factos principais decorre da leitura do artigo 712.º [querendo certamente referir-se ao artigo 713.º]: os factos complementares de exigibilidade da obrigação devem ser demonstrados no início da execução, mas não têm de estar representados no título executivo» (p. 137). «[N]a execução de títulos de crédito, (…) a causa de pedir é ainda a aquisição na esfera do requerente de um direito a uma prestação mediante o saque ou emissão do título, mas sem que ele tenha de indicar a que relação subjacente corresponde esse direito (…). Por isso, a apresentação do título de crédito, devidamente datado e preenchido, cumpre só por si a exigência de causa de pedir, pois certifica, por si mesma, o facto do saque ou da emissão» (p. 139).
Do que ficou exposto decorre, com toda a clareza, que o título de crédito, enquanto título executivo, atesta apenas a obrigação cartular, nos exactos termos em que está descrita no título, nomeadamente quanto ao seu valor, à data do vencimento e à identidade do titular do crédito e do obrigado. Mas, por força, da sua autonomia e abstração, nada atesta ou revela sobre a relação subjacente à obrigação cartular (cujas vicissitudes nem sequer podem ser invocadas para impedir, extinguir ou modificar a obrigação cambiária, a não ser no âmbito das relações imediatas). Dito de outro modo, o título de crédito corresponde ao reconhecimento da correspondente obrigação cambiária, mas não ao reconhecimento da obrigação subjacente à emissão daquele título. Por conseguinte, não se enquadra na previsão do artigo 311.º, n.º 1, do CC.
De resto, nem sequer faria sentido atribuir-lhe os efeitos que esta norma estatui. Em primeiro lugar, porque a obrigação subjacente passaria a estar sujeita ao prazo de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309.º do CC, quando a própria obrigação cartular está sujeita ao prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70.º da LULL, como a própria recorrente afirma. Em segundo lugar, porque a possibilidade que a lei confere ao obrigado cambiário, no âmbito das relações imediatas, de invocar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação subjacente perderia eficácia quando essa defesa assentasse no decurso do prazo curto de prescrição; a lei estaria a permitir o afastamento da autonomia e da abstração do título de crédito no âmbito das relações imediatas mas, simultaneamente, estaria a impedir que esse afastamento funcionasse.
Por outro lado, como se refere no já citado ac. do TRC de 11.12.2028, «o título executivo reportado no art.311 do CC só releva, para efeitos de substituição do prazo de prescrição, se sobrevier antes de completar o prazo prescricional curto (…). É que quando o prazo de prescrição se complete antes de constituído o título executivo, o executado pode invocar livremente nos embargos a prescrição. Neste sentido, o Ac STJ de 2/6/1999 (proc. nº 98B1069), disponível em www.dgsi.pt, para quem “o sentido do verbo sobrevir que o legislador utilizou no art.311 nº1 do CC é o de a constituição do título executivo só operar a substituição do prazo curto pelo ordinário se ocorrer antes de aquele se completar”».
Já vimos que, no caso dos autos, o prazo de prescrição de 5 anos se completou no dia 31.05.2019 (contados desde a data referida no ponto 7 dos factos provados), ao passo que a livrança apenas foi devidamente preenchida em 23.02.2024 (cfr. ponto 5 dos factos provados), pelo que também por esta razão não teria aqui aplicação o alargamento do prazo prescricional previsto no artigo 311.º, n.º 1, do CC.
Em conclusão, pelas razões expostas, concordamos com a decisão recorrida quando conclui pela procedência da excepção de prescrição oportunamente arguida pelos embargantes e, por conseguinte, determina a extinção da execução.
Na total improcedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pela recorrente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e, consequentemente, mantêm a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Porto, 4 de Junho de 2025
Artur Dionísio Oliveira
João Diogo Rodrigues
Raquel Correia de Lima