I - A condenação em taxa sancionatória reveste natureza excepcional e pressupõe uma decisão fundamentada do juiz.
II - A dedução de pretensões, substantivas ou processuais, incidentes, reclamações ou recursos manifestamente improcedentes, em que se evidencie que o sujeito processual não agiu com a prudência ou diligência devida, devem conduzir à condenação em taxa sancionatória excepcional.
III – Por isso, deve merecer tal sancionamento a conduta do sujeito processual que revelar, de forma clara e inequívoca, frontal desrespeito pelas regras da prudência ou diligência que lhe são exigíveis, contrariando ostensiva e injustificadamente a legalidade da marcha do processo, não se exigindo, contudo, a demonstração de uma conduta dolosa.
IV – Deve ser condenado em taxa sancionatória excepcional o assistente que apresentou reclamação do acórdão do Tribunal da Relação, arguindo a sua nulidade por omissão de pronúncia, invocando, para tal, que não foram levados em conta factos atinentes ao elemento subjectivo do crime que o mesmo alegadamente havia feito constar na acusação particular que deduziu nos autos, o que não correspondia à verdade.
(Sumário da responsabilidade do relator)
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
Nos presentes autos de Processo Comum Singular n.º 10850/22.1T9PRT, do Juízo Local Criminal ..., foi proferida sentença, em 12-06-2024, pela qual se decidiu absolver o arguido AA da prática de um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, e 182.º, agravado nos termos do artigo 184.º, todos do Código Penal, e julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente BB (ref.ª 460777385).
II
Fundamentação.
A lei prevê a condenação do arguido ou de outros sujeitos processuais em taxa sancionatória excepcional, nos termos do artigo 521.º, n.º 1, do CPP, com remissão para o artigo 531.º do CPC, a fixar pelo juiz entre 2 UC e 15 UC, como previsto no artigo 10.º do RCP.
Com efeito, dispõe o referido artigo 531.º do CPC que “Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excepcionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a acção, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida.”
A taxa sancionatória excepcional foi introduzida na legislação processual pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02 (que aprovou o RCP), tendo, então, sido aditado ao Código de Processo Civil o artigo 447.º-B, com a seguinte redacção:
“Por decisão fundamentada do juiz, e em casos excepcionais, pode ser aplicada uma taxa sancionatória aos requerimentos, recursos, reclamações, pedidos de rectificação, reforma ou de esclarecimento quando estes, sendo considerados manifestamente improcedentes:
a) Sejam resultado exclusivo da falta de prudência ou diligência da parte, não visem discutir o mérito da causa e se revelem meramente dilatórios; ou
b) Visando discutir também o mérito da causa, sejam manifestamente improcedentes por força da inexistência de jurisprudência em sentido contrário e resultem exclusivamente da falta de diligência e prudência da parte.”
No preâmbulo desse Decreto-Lei n.º 34/2008 escreveu-se, a respeito a taxa sancionatória excepcional, que se criou “um mecanismo de penalização dos intervenientes processuais que, por motivos dilatórios, «bloqueiam» os tribunais com recursos e requerimentos manifestamente infundados.” (§ 12.º).
Ainda que este primitivo preceito relativo ao instituto em análise seja mais detalhado nos seus contornos, de ambas as normas resulta claro que tal sancionamento reveste natureza excepcional e pressupõe um despacho fundamentado do juiz para a sua aplicação.
O legislador teve a preocupação de consagrar expressamente a necessidade de fundamentação da decisão que aplique taxa sancionatória excepcional, ainda que a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais resultasse já do disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP e dos artigos 97.º, n.º 5, do CPP e 154.º do CPC.
Cabem naquela norma as condutas dos sujeitos processuais - ou partes - que se revelem especialmente censuráveis, porque contrárias à legislação aplicável e/ou à jurisprudência obrigatória e sedimentada, as quais deverão merecer esse sancionamento. Na verdade, a dedução de pretensões - substantivas ou processuais -, incidentes, reclamações ou recursos manifestamente improcedentes, em que se evidencie que o sujeito processual não agiu com a prudência ou diligência devida, devem conduzir à condenação em taxa sancionatória.
A actividade processual a que foi dada causa deve mostrar-se inútil e claramente atentatória dos princípios da prudente diligência, boa-fé e cooperação processual a que todos os intervenientes estão sujeitos no exercício e defesa dos seus direitos (arts. 7.º e 8.º do CPC).
Por isso, deve merecer tal sancionamento a conduta do sujeito processual que revelar, de forma clara e inequívoca, frontal desrespeito pelas regras da prudência ou diligência que lhe são exigíveis, contrariando ostensiva e injustificadamente a legalidade da marcha do processo, como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência.[1]
O mesmo é dizer que não será o mero exercício dos direitos de defesa, incluindo o recurso, por parte do arguido que podem motivar tal condenação, mesmo que os fundamentos invocados não colham. Daí a natureza excepcional da penalização e a necessidade de fundamentação da decisão que a aplica.
No caso sub judice, as explicações trazidas aos autos pela Ilustre Mandatária do assistente BB (ref.ª 410772) poderão levar a excluir uma conduta processual dolosa, mas a que foi adoptada evidencia um frontal desrespeito pelas ditas regras da prudência e diligência que lhe são exigíveis, as quais manifestamente não observou.
Desde logo, perante a clareza do primeiro acórdão desta Relação, proferido em 27-11-2024, quanto à não alegação na acusação particular dos elementos subjectivos do ilícito ali imputado ao arguido, no qual se fez até menção ao ficheiro desse articulado no histórico do processo no Citius, com indicação da respectiva referência, bem como da do despacho de pronúncia que se lhe seguiu, que a deu por reproduzida, deveriam levar o recorrente / reclamante a ater-se a tal concreto ficheiro relativo à acusação particular que consta dos autos e não a qualquer outra versão da acusação de que pudesse dispor.
Na verdade, aí se fez constar o seguinte:
“Ora, dos factos dados como provados, provenientes da acusação particular (pontos 1. a 12.) - e mesmo dos factos dados como não provados (als. a) a f)) - nada consta a respeito do dolo do agente e da consciência da ilicitude penal da sua conduta, sendo que tal factualidade dada por assente não foi posta em causa, designadamente invocando-se omissão de pronúncia relativamente a factos dessa natureza que pudessem ter sido vertidos na acusação. E vista a acusação particular deduzida pelo assistente, ora recorrente, dela nada de concreto se colhe a tal respeito (ref.ª 35972213), o mesmo sucedendo com o respectivo despacho de pronúncia, que se limitou a dá-la por reproduzida (ref.ª 455105041).
A falta de factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo incriminador não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo do artigo 358.º do CPP, tal como se decidiu no Acórdão do STJ n.º 1/2015, in DR I, de 27-01-2015.
A omissão de factos atinentes ao elemento subjectivo não permite imputar tal ilícito ao arguido, com a respectiva condenação, criminal e civil, como pretende o assistente, pois que os factos dados como provados são criminalmente inócuos e a responsabilidade civil tem de assentar em factualidade com relevância criminal, tal como impõe o princípio da adesão (art. 71.º do CPP).
Assim, não pode também atender-se esta questão recursiva, improcedendo o recurso totalmente e mantendo-se o decidido na sentença recorrida (com as correcções de lapsos de escrita depois determinadas), ainda que por diferentes razões das dela constantes.” (pág. 30 desse acórdão).
Perante essa fundamentação, com clara identificação das peças processuais em causa (acusação particular e decisão instrutória), era de esperar que o assistente / recorrente fosse conferir as mesmas antes de decidir apresentar a reclamação desse acórdão, com arguição de nulidade, não sendo, por isso, compreensível e aceitável que se tivesse socorrido de um texto da acusação particular mais completo, que não havia sido apresentado nos autos.
A remessa desse texto aos autos, na sequência do pedido do Exm.º JIC feito no despacho em que declarou aberta a instrução, proferido em 07-11-2023 (ref.ª 453483602), não constitui motivo para, em sede de reclamação, o assistente / recorrente invocar que alegou factos atinentes ao elemento subjectivo, no caso os vertidos nos pontos 44 e 45 da acusação particular, pois que tal não era verdade.
Atente-se que essa outra versão da acusação, mais completa, não foi levada em conta nos autos para qualquer efeito. Efectivamente, a acusação particular foi remetida aos autos em 16-06-2023 (ref.ª 35972213); foi esta acusação que o Ministério Público acompanhou, conforme despacho de 27-06-2023 (ref.ª 449470208); foi esta acusação que foi notificada ao arguido e à sua Ilustre Defensora (ref.ªs 449950569 e 449950840); foi relativamente a esta acusação que o arguido requereu a abertura da instrução em 14-07-2023 (ref.ª 36232136); foi este RAI que foi admitido e declarada aberta a instrução, por despacho de 07-11-2023 (ref.ª 453483602); e foi relativamente a essa acusação que foi proferida decisão instrutória, em 21-12-2023, cujos termos deu “por integralmente reproduzidos” (ref.ª 455105041).
Ademais, nada evidencia sequer que o Exm.º JIC tenha feito uso dessa cópia da acusação em Word, que solicitou, pois que não alude à mesma na decisão instrutória, nem aí elenca os factos que suportaram a pronúncia, por forma a que se pudesse verificar que continham o elemento subjectivo do tipo incriminador, limitando-se a dar por reproduzida a acusação particular que havia sido apresentada nos autos pelo assistente.
Independentemente das razões que terão motivado a existência dessas diferentes versões, a verdade é que nunca o assistente solicitou a correcção da acusação que havia remetido aos autos (e única válida), designadamente com os argumentos que agora vem indicar.
Uma coisa nos parece certa: não deveria ter feito uso de uma “acusação” que não tem qualquer relevo nos autos para apesentar a reclamação ao acórdão deste Tribunal, pelas razões já aduzidas.
E não está em causa, como é evidente, o direito de o recorrente apresentar reclamação do acórdão deste Tribunal a arguir a sua nulidade, mas sim os argumentos que apresentou para a fundamentar, os quais não têm qualquer suporte na acusação particular que apresentou e foi considerada nos autos. Foi esta acusação (única relevante) que se indicou, e forma muito clara, no acórdão que conheceu do recurso interposto da sentença, até, como já se disse, com especificação da referência da mesma constante do histórico do Citius.
Ademais, como também já enunciado, não constavam da própria sentença recorrida, fosse como provados ou não provados, quaisquer factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo incriminador, o que também não levou o recorrente a questionar-se quanto à razão dessa omissão, como seria natural, porventura apontando-a em sede de recurso, se tivesse argumentos válidos para tal. Mas, pelo menos, antes de avançar com a reclamação, com arguição de nulidade, era exigível, pela mais elementar prudência, que fosse verificar o porquê da inexistência de factos atinentes ao elemento subjectivo, como resultava da sentença e foi apontado pelo acórdão deste Tribunal.
Ressalvando-se que não se imputa uma conduta dolosa, é manifesto, por tudo o que vem dito, que o recorrente / reclamante não observou as mais elementares regras de diligência e prudência que devem nortear os sujeitos processuais na invocação dos argumentos para suportar as suas pretensões.
Ao proceder nos termos enunciados, sem atentar no que se escreveu no acórdão deste Tribunal e em todo o processado dos autos, a Ilustre Mandatária do assistente, apresentando a reclamação, a qual que revelou manifestamente improcedente, não agiu claramente com a diligência e prudência que lhe eram exigíveis enquanto profissional do foro, o que justifica o sancionamento deste em taxa sancionatória excepcional, cujo montante, atento o que se apurou, se julga adequado fixar dentro do primeiro quarto da respectiva moldura (2 - 15 UC).
III
Pelo exposto, decide-se condenar o recorrente / reclamante BB em taxa sancionatória excepcional, a qual se fixa em 5 (cinco) UC.
Notifique.
Raul Cordeiro
(Relator)
Maria dos Prazeres Silva
(1.ª Adjunta)
Carla Carecho
(2.ª Adjunta)
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[1] Vejam-se, entre outros, os Acs. do STJ de 22-02-2022 – Proc. n.º 103/06.8TBMNC-E.G1.S1; da RC de 09-11-2021 – Proc. n.º 2466/20.3T8VIS-F.C1, de 19-12-2018 – Proc. n.º 16/16.5GDIDN.C1, e de 04-05-2016 – Proc. n.º 12/14.7TBCLD.C1; da RP de 25-01-2017 – Proc. n.º 4405/15.4T9PRT.P1, todos disponíveis em jurisprudencia.pt – “taxa sancionatória excepcional”.