CONTRAORDENAÇÃO
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DECISÃO
NULIDADE
CONSEQUÊNCIAS
PRINCÍPIO "NE BIS IN IDEM"
Sumário

I - O elemento literal do artigo 64º nº 3 do RGCO não prevê a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa, para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida por manifestamente infundada.
II - Se se entendesse que a consequência seria o reenvio do processo para a autoridade administrativa a fim de compor a decisão que aplicou a coima, sujeitar-se-ia a arguida a novo procedimento, eventualmente com nova impugnação judicial e novo processo judicial ou recurso para este tribunal.
III - Aliás, no limite, e enquanto não ocorresse a prescrição, poderia vir a existir nova causa de nulidade e novamente o processo seria reenviado para a entidade administrativa, e seria inaceitável que tal pudesse suceder vezes sem conta, até à prescrição.
IV – Assim sendo, a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos da contraordenação não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, pois está vedado ao tribunal, tal como o estava à autoridade administrativa, voltar a apreciar estes mesmos factos, sob pena de violação flagrante do princípio “ne bis in idem”.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Processo nº 4381/24.2Y9PRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local de Pequena Criminalidade do Porto - Juiz ...

Acórdão deliberado em CONFERÊNCIA na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I - Em 16-11-2024 pelo Juízo Local de Pequena Criminalidade do Porto (Juiz...) foi proferida a seguinte DECISÃO:

I- Relatório:

Nos presentes autos de impugnação judicial de decisão administrativa, o Ministério Público acusa (nos termos do art.º 62.º, n.º 1 do DL 433/82, de 27.10.):

- “A..., Unipessoal Lda.”, titular do NIPC ...91, com sede na Rua ..., ..., Porto;

da prática de duas contraordenações, previstas e punidas pelo artigo D-1/6.º, em conjugação com o artigo H/24, n.º 1, alínea d), e n.º 6, e com o artigo H/5, n.º 2, todos do Código Regulamentar do Município do Porto.


*

Pela prática de tais ilícitos contraordenacionais foi a recorrente condenada, por decisão de 12.07.2024 (cfr. fls. 160-166) no pagamento de duas coimas no valor de € 1.150,00, e, em cúmulo, na coima única no valor de € 1.750,00.

No recurso judicial por si interposto (a fls. 169 e ss.), veio a recorrente alegar, em síntese, que os factos ora imputados ao arguido já foram objeto de decisão administrativa que posteriormente, em sede de impugnação judicial, foi declarada nula, sendo tal nulidade insanável, pelo que não pode a Câmara Municipal do Porto, reformular o processo e insistir na condenação do arguido, caso em que a nova decisão será nula, e atuará em violação do princípio ne bis in idem.

Mais alegou a inconstitucionalidade do Código Regulamentar do Município do Porto, porquanto estabelece coimas demasiados elevavas e molduras penais demasiado abrangentes, em desrespeito, respetivamente, pelos artigos 18.º, n.º 2, e 29.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa. A recorrente invoca ainda que da primeira para a segunda decisão houve um agravamento injustificado da coima aplicada, considerando adequada a aplicação de admoestação.

Acaba com o pedido de nulidade da decisão administrativa, ou, caso assim não se entenda, a aplicação de uma admoestação.


*

Recebido o recurso, o recorrente [o Ministério Público já se havia pronunciado quanto a tal hipótese] foi notificado nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10.

O Ministério Público e o recorrente não se opuseram a que se decida o presente recurso por despacho judicial.


*

O Tribunal mantém-se o competente.


*

Da invocada violação do princípio “ne bis in idem”:

Decorre do invocado pelo recorrente, conforme já se referiu, em síntese, que a decisão administrativa é uma repetição aprimorada de uma outra decisão administrativa, judicialmente declarada nula, no âmbito do processo n.º ..., pelo que há violação do princípio “ne bis in idem”.

Vejamos.

Compulsados os autos, verifica-se que no processo n.º ..., que correu termos no Juízo Local de Pequena Criminalidade do Porto – ..., o Tribunal por sentença transitada em julgado a 06.05.2024 (cfr. fls. 129-140 e 147), decidiu, entre o mais, o que se transcreve:

«Ora, analisada a descrita factualidade, verifica-se que a mesma não contém uma narração criteriosa, individualizada e concreta dos factos integrativos da imputação do facto praticado em nome e no interesse coletivo (sociedade), que constitui o tipo de ilícito contraordenacional.

O mesmo é afirmar que em lado nenhuma da referida decisão se descreve a pessoa física natural que perpetrou a ação sancionada, em nome e no interesse da pessoa coletiva, e ainda se essa pessoa atuou dolosamente ou a título negligente. (…)

Deparamo-nos, assim, com a imputação objetiva à pessoa coletiva de um resultado, sem se imputar qualquer culpa.

(…) a decisão administrativa proferida, que aplicou a coima à recorrente, é totalmente omissa quanto ao elemento subjetivo da contraordenação imputada à arguida- relevo acrescentado.

Mais se pode ler na mencionada decisão:

«Em face de todo o exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 58º, nº 1, al. b), do RGCO, e 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal ex vi do 41º do RGCO declara-se a nulidade da decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal do Porto, nos autos de contraordenação n.º ...23, mais se determinado a remessa dos autos àquela entidade para os fins tidos por convenientes. (…)

III. Dispositivo:

Nestes termos, julgando-se procedente os presentes autos de recurso de contraordenação, declara-se nula a decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal do Porto no âmbito do processo de contraordenação n.º ...23, que aplicou à recorrente “A..., Unipessoal, Lda” uma coima no montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), acrescida de €51,00 (cinquenta e um euros), a título de custas devidas pela instrução do processo, pela prática da contraordenação prevista e punida no art.º D-1/6º do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.2017 e art.º H/24, n.º 1, al. d) e n.º 6, conjugado com o n.º 2 do art.º H/5 do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.201, por factos ocorridos no dia 16.09.2023, pelas 11h20m, na Rua ..., Porto e pela prática de uma contraordenação prevista e punida no art.º D-1/6º do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.2017 e art.º H/24, n.º 1, al. d) e n.º 6, conjugado com o n.º 2 do art.º H/5 do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.201, tendo sido aplicada à recorrente/arguida a coima de €1.000 (mil euros), por factos ocorridos no dia 16.09.2023, pelas 11h30m, na Rua ..., Porto.»


*

Aqui chegados, diremos primeiramente que inexiste qualquer dúvida sobre o facto de a autoridade administrativa ter reformulado a decisão administrativa julgada nula no mencionado processo n.º ..., nos termos que entendeu por convenientes, originando a decisão que agora é impugnada. Isso mesmo é admitido pela Câmara Municipal do Porto, na primeira página da decisão proferida a 12.07.2024 (conforme consta de fls. 160). Não há dúvida que se trata do mesmo processo contraordenacional (com o n.º ...23), sendo, portanto, comuns os factos imputados à recorrente (com excepção, claro está, dos aditados/corrigidos pela autoridade administrativa depois da decisão judicial supra transcrita).

Assim sendo, a questão a apreciar prende-se em saber quais as consequências da declaração de nulidade da decisão administrativa, por omissão dos factos concretizadores do tipo subjetivo; mais concretamente, se a autoridade administrativa pode, ou não, colmatar tal vício em decisão subsequente e voltar a aplicar uma coima ao recorrente com base nos mesmos factos (mais os posteriormente aditados/corrigidos).


*

Ora, conforme decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 08.06.2004, disponível em www.dgsi.pt,“Não constando da factualidade apurada de uma decisão da autoridade administrativa que a arguida agiu com dolo ou negligência, essa factualidade é insuficiente para integrar a contraordenação imputada à arguida, devendo esta ser absolvida da mesma”.

Decidindo o Ministério Público apresentar os autos ao Juiz, a decisão da autoridade administrativa converte-se em acusação – cfr. artigo 62.º do D.L. n.º 433/82, de 27.10.

O recurso para o Tribunal tem de reportar-se aos factos e ao Direito vertidos na agora “acusação”, ou seja, na decisão da autoridade administrativa, sob pena de se extravasar o objeto processual.

O Tribunal, embora podendo alterar a decisão fica cingido, quanto a factos típicos, aos constantes da “decisão-acusação”. Mais, não pode o Tribunal alterar substancialmente os factos constantes da decisão da autoridade administrativa (cfr. Manuel Ferreira Antunes, “Reflexões Sobre o Direito Contra-Ordenacional”, SPB Editores, pp. 97).

Nem tão-pouco, como é óbvio, decidir sobre matéria fáctica que não corresponda àquela que consta da decisão da autoridade administrativa.

Ou seja, faltando a factualidade suficiente relativa ao elemento subjectivo, falece um pressuposto essencial da punição do recorrente, e essa falta da decisão é de molde a fazer soçobrar desde logo a decisão, ficando prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos alegados pela recorrente.

Sempre se dirá que a decisão da autoridade administrativa não pode limitar-se a ser um arrazoado de factos, juízos conclusivos e considerações de direito, em que a final se conclui por uma coima. Pelo contrário, a decisão administrativa condenatória tem que obedecer, na sua formulação, ao estrito cumprimento do disposto no artigo 58.º, do RGCO, em especial ao imposto pela alínea b), do seu n.º 1, de forma a que o arguido perceba inequivocamente do que é acusado, pois só assim pode exercer plenamente os seus direitos de defesa.

É certo que o processo contraordenacional não é tão exigente quanto o processo penal, mas ainda assim há princípios basilares que têm que ser respeitados, desde logo, a clarificação perante o arguido sobre quais os factos concretos que lhe são imputados e a que título é feita tal imputação – dolo ou negligência.

Verificando-se a inobservância dos requisitos exigidos para a decisão administrativa pelos artigos supra citados, padecerá a decisão administrativa de nulidade por preterição dos requisitos exigidos pelo artigo 58.º, n.º 1, do RGCO.

Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra, de 12.07.2011, que passamos a citar, “não tem havido unanimidade, quer na doutrina, quer na jurisprudência, acerca da qualificação do vício decorrente da inobservância dos requisitos formais exigidos pelo artigo 58.º, n.º 1, do RGCO. Para uns, trata-se de uma nulidade, a arguir pelo interessado ou de conhecimento oficioso (cfr., v.g., Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., págs. 387/390; Acs. do STJ de 21-09-2006 proc. n.º 06P3200; da Relação de Évora de 17-10-2006, proc. n.º 2194/06-1; da Relação de Lisboa de 28-04-2004, proc. n.º 1947/2004-3; da Relação do Porto de 27-02-2002 e 24-02-2010, proc. n.º 0111558 e 10798/08.2TBMAL.P1, respectivamente, todos publicados no “site” www.dgsi.pt). Para outros, de mera irregularidade (a título meramente exemplificativo, António Beça Pereira, em “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, 2007, págs. 115/116; Acs. da Relação do Porto de 15-03-2006, proc. n.º 0443636; da Relação de Évora de 15-06-2004, publicados no sítio acima indicado, e da Relação de Lisboa, in CJ, tomo V, pág. 144).

Efectivamente, o RGCO não contém qualquer disposição onde esteja prevista a consequência processual para a preterição dos requisitos elencados no artigo 58.º, provindo a aludida controvérsia dessa vacuidade.

Entendemos, todavia, como Simas Santos e Jorge de Sousa (ob. cit., pág. 387), não se vislumbrar que a necessária aplicação subsidiária das normas do processo criminal (cfr. art. 41.º do RGCO) possa levar a outra solução senão a de considerar que a decisão administrativa que não contenha os requisitos do artigo 58.º do RGCO está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

E que tipo de nulidade?

Sem dúvida, de conhecimento oficioso pelo Tribunal.

Na realidade, tal decorre inequivocamente da redacção do n.º 2 do art. 379.º do CPP, quando consagra que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso” (o “negrito” pertence-nos) - entre outros, cfr. Acs. do STJ de 31-05-2001, proferido no proc. n.º 260/01; 08-11-01 (proc. n.º 3130/01) e 14-05-03 (proc. n.º 518/03), todos publicados no Boletim Interno do STJ, n.ºs 51, 55 e 71, respectivamente, e Ac., ainda do STJ, de 02-02-2005, C.J, tomo I, pág. 188.” (ac. citado, disponível na base de dados da DGSI, www.DGSI.pt\jtrc)

Em suma, padecendo a decisão administrativa de nulidade por preterição das formalidades elencadas no artigo 58.º, n.º 1, do RGCO, a conclusão a retirar, a nosso ver, é a absolvição do recorrente, não sendo legítima a actuação da autoridade administrativa que reformula a decisão anteriormente considerada nula e volta a condenar o recorrente pelos mesmos factos.

E isto porque parece-nos inquestionável que estamos perante uma situação de caso julgado quanto a tais factos, o que impede que os mesmos voltem a ser apreciados, sob pena de violação do caso julgado e da garantia constitucional do ne bis in idem. Com efeito, dispõe o artigo 29º, nº5, da Constituição da República Portuguesa, que “Ninguém pode ser julgado por mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.”. Aí se estabelece a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos, garantia fundamental que impede a múltipla perseguição penal, simultânea ou sucessiva, por um mesmo facto.

Tal proibição completa-se com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva.

O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material). Neste último caso, o efeito do caso julgado material manifesta-se fora do processo penal, e para o futuro, impedindo a existência de um ulterior julgamento sobre os mesmos factos.

E assim é pois o objeto do processo é constituído por todos os factos praticados pelo arguido até decisão final que diretamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido, razão pela qual, os factos que não tenham sido considerados, devendo tê-lo sido, não podem ser posteriormente apreciados, sob pena de violação da regra ne bis in idem.

Assim, se os factos são os mesmos e culminaram com uma sentença executória, ainda que o nomen juris seja distinto, é procedente a exceção de caso julgado; inclusive se a qualificação no primeiro processo foi uma simples contraordenação ou se tratou de tipificação errónea. O ne bis in idem, como exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos.” (in acórdão da Relação de Lisboa, de 13.04.2011, disponível na base de dados da DGSI, www.dgsi.pt\jtrl) - relevo acrescentado. E é esta a situação que se verifica nestes autos, verificando-se relativamente aos factos que são objeto destes e dos autos n.º ..., e às contraordenações em causa, a que os mesmos são subsumíveis, a exceptio judicati, estando vedado ao Tribunal ou à autoridade administrativa voltar a apreciar esses mesmos factos, sob pena de violação flagrante do principio ne bis in idem. Neste sentido, leia-se o vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.11.2022, no processo n.º 1004/22.8T9AVR.P1, disponível em www.dgsi.pt:

«I - A natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do facto que consubstancia o elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.

II - Independentemente da qualificação jurídico-processual que se atribua à decisão da autoridade administrativa de aplicação de uma coima, quer por referência à acusação (artº 283.º n.º 3 do Código de Processo Penal), quer por referência à sentença penal (artº 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal), o certo é que a consequência atribuída à omissão de factos nessa decisão (nomeadamente, de factos atinentes ao elemento subjetivo) consiste sempre na nulidade dessa decisão.

III - A ausência de descrição na decisão administrativa dos elementos constitutivos da contraordenação, geradora de nulidade dessa decisão, não pode ser colmatada em fase subsequente através da remessa dos autos a essa autoridade, impondo-se, por isso, o arquivamento dos autos por falta de objeto.» - relevo acrescentado.

Neste sentido, entre outros, leia-se também os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 08.11.2023, no processo n.º 767/23.8T9VNG.P1, de 10.05.2023, e no processo n.º 3757/22.4T8VFR.P1, ou o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.11.2020, no processo n.º 351/19.0 T8MBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, que, por sua vez, enumera outros Acórdãos que seguem este mesmo entendimento: «os acórdãos do STJ de 29.01.2007 (proc. n.º 06P3202), do TRG de 19.05.2016 (proc. n.º 4302/15.3T8VCT.G1), do TRL de 31.10.2019 (proc. n.º 344/19.8T9MFR.L1-9).»

Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerações, a autoridade administrativa, após decisão judicial que declarou a nulidade da decisão administrativa anterior por omissão dos factos concretizadores do tipo subjetivo contraordenacional (cfr. decisão proferida no processo n.º ..., acima parcialmente transcrita) não pode voltar a aplicar uma coima com base nos mesmos factos; pelo que, tendo-o feito, a decisão administrativa ora impugnada constitui uma manifesta violação do princípio ne bis in idem.

Incumbe retirar daí a necessária conclusão, e essa determina a revogação da decisão administrativa, com a consequente absolvição do recorrente, tornando-se inútil a apreciação dos demais fundamentos da impugnação deduzida pela mesma.


*


- Decisão:

Pelo exposto, julgo verificada a excepção de caso julgado, por violação do princípio ne bis in idem, e, consequentemente, revogo a decisão proferida a 12.07.2024 pelo Senhor Vereador do Pelouro das Finanças, actividades Económicas e Fiscalização, e Pelouro da Economia, Emprego e Empreendedorismo, que aplicou à recorrente “A..., Unipessoal Lda.” uma coima única de € 1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros), pela prática de duas contra-ordenações, previstas e punidas pelo artigo D-1/6.º, em conjugação com o artigo H/24, n.º 1, alínea d), e n.º 6, e com o artigo H/5, n.º 2, todos do Código Regulamentar do Município do Porto, absolvendo a recorrente, e determinando o arquivamento dos autos.


*

Sem custas, sem prejuízo da taxa de justiça que já se mostre paga pela recorrente (artigos 92.º, n.º 1 e 93.º, n.º 3, ambos do RGCO, e artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, todos a contrario).

*

Cumpra o disposto no artigo 70.º, n.º 4, do RGCO.

Notifique e deposite.


*

*

*

*


É desta decisão que recorre o MINISTÉRIO PÚBLICO

- Fundamentos do recurso.

Conclusões que apresenta o Recorrente/MINISTÉRIO PÚBLICO:

1. Por decisão datada de 16 de novembro de 2024, foi decidido julgar procedente o recurso de contraordenação apresentado pela Recorrente, julgando-se verificada a excepção de caso julgado, por violação do princípio ne bis in idem, e, consequentemente, revogada a decisão proferida a 12.07.2024 pelo Senhor Vereador do Pelouro das Finanças, actividades Económicas e Fiscalização, e Pelouro da Economia, Emprego e Empreendedorismo, que aplicou à recorrente “A..., Unipessoal Lda.” uma coima única de €1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros), pela prática de duas contraordenações, previstas e punidas pelo artigo D-1/6.º, em conjugação com o artigo H/24, n.º 1, alínea d), e n.º 6, e com o artigo H/5, n.º 2, todos do Código Regulamentar do Município do Porto, absolvendo a recorrente, e determinando o arquivamento dos autos.

2. Resulta dos presentes autos que por decisão proferida no dia 12 de julho de 2024 a Câmara Municipal do Porto condenou a arguida/recorrente na coima única de mil setecentos e cinquenta euros, pelas violações do artigo D-1/6 do Código Regulamentar do Município do Porto na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2.ª série, n.º 187 de 27 de setembro de 2017, previsto e punido pelo artigo H/24.º, n.º 1, alínea d) e n.º 6 conjugado com o número 2 do artigo H/5, do Código Regulamentar do Município do Porto na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2.ª série, n.º 187 de 27 de setembro de 2017.

3. A arguida/recorrente não se conformou com a decisão da autoridade administrativa interpondo recurso, invocando, para além do mais, que a decisão proferida pela entidade administrativa ofende o principio do caso julgado, por força do artigo 41.º, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, uma vez que já havia sido proferida decisão por parte do Tribunal a declarar nula a decisão administrativa e que tal facto obstava a que a entidade administrativa pudesse proferir nova decisão pelos mesmos factos.

4. Compulsados os autos verificamos que no âmbito dos autos de recurso de contraordenação que correu termos do ... deste Tribunal, processo número ... foi considerado que a decisão administrativa proferida “não contém uma narração criteriosa, individualizada e concreta dos factos integrativos da imputação do facto praticado em nome e no interesse colectivo (sociedade), que constitui o tipo de ilícito contraordenacional.

O mesmo é afirmar que em lado nenhum na referida decisão se descreve que pessoa física natural perpetrou a ação sancionada, em nome e no interesse da pessoa coletiva, e ainda se essa pessoa atuou dolosamente ou a título negligente. Ora, trata-se de possibilitar a extensão da punibilidade à pessoa coletiva por força de atuação (ou falta dela) de quem a representa. Deparamo-nos, assim, com a imputação objetiva à pessoa coletiva de um resultado, sem se imputar qualquer culpa. Não sendo assim admitido, tratar-se-ia de fazê-la responder objetivamente (isto é, sem culpa) por um facto descrito na lei como constituindo um ilícito contraordenacional.

Desta forma e pela análise da decisão administrativa sub judice, não se vislumbra descrita factualidade de quem, órgão ou representante da recorrente, à data dos factos, agiu ou deixou de agir nos termos ali apontados.

De todo o exposto resulta que a inexistência de imputação de factos não logrará, por menos exigente, sumário e expedito que se apresente o presente processo contraordenacional, preencher as exigências previstas no artigo 58º do RGCO, designadamente da descrição dos factos imputados (nº 1, al. b), sob pena de violação das garantias mínimas relacionadas, desde logo, com o direito de defesa, as mesmas estendidas a este tipo de processos nos termos do artigo 32º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa. O que, conforme supra deixamos exposto, não sucede no presente caso, onde a decisão administrativa proferida, que aplicou a coima à recorrente, é totalmente omissa quanto ao elemento subjetivo da infração, porquanto inexiste narração de factos que concretizem o tipo subjetivo da contra-ordenação imputada à arguida. Tal omissão, à luz da jurisprudência fixada pelo STJ, supra citada, não pode ser integrada na fase judicial. (…) Em face de todo o exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 58º, nº 1, al. b), do RGCO, e 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal, ex vi, do 41º do RGCO, declara-se a nulidade da decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal de Valongo nos autos de contraordenação nº ...23, mais se determinando a remessa dos autos àquela Entidade para os fins tidos por convenientes. Por via do exposto, fica prejudicada a realização da audiência de julgamento a que se teria que proceder por a arguida/recorrente ter deduzido oposição à prolação de decisão mediante despacho. De facto, concluindo-se como se concluiu, a realização de tal diligência configuraria a prática de um ato nulo que deve ser evitado.

III-Decisão Pelo exposto, julgando-se procedente os presentes autos de recurso de contraordenação, declara-se nula a decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal do Porto no âmbito do processo de contraordenação n.º ...23, que aplicou à recorrente “A..., Unipessoal, Lda” uma coima no montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), acrescida de €51,00 (cinquenta e um euros), a título de custas devidas pela instrução do processo, pela prática da contraordenação prevista e punida no art.º D-1/6º do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.2017 e art.º H/24, n.º 1, al. d) e n.º 6, conjugado com o n.º 2 do art.º H/5 do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.201, por factos ocorridos no dia 16.09.2023, pelas 11h20m, na Rua ..., Porto e pela prática de uma contraordenação prevista e punida no art.º D-1/6º do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.2017 e art.º H/24, n.º 1, al. d) e n.º 6, conjugado com o n.º 2 do art.º H/5 do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.201, tendo sido aplicada à recorrente/arguida a coima de €1.000 (mil euros), por factos ocorridos no dia 16.09.2023, pelas 11h30m, na Rua ..., Porto.”

E determinando-se o envio de certidão de todo o processo para a entidade administrativa.

5. A aludida decisão não colocou termo ao processo, transitou em julgado, determinando a remessa da certidão para a entidade administrativa para suprir os vícios, uma vez que a decisão proferida foi declarada nula.

6. Na verdade, o Tribunal, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, pode declarar a nulidade da decisão administrativa impugnada e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para sanação do vício.

7. Tal é também o entendimento do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de março de 2022, Desembargador a Dra. Elisa Sales, no qual se refere que: “O incumprimento dos requisitos descritos no n.º 1 do artigo 58.º do RGCO implica a verificação da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, aplicável ao processo contraordenacional ex vi do artigo 41.º do primeiro dos referidos diplomas, que deve ser suprida pela autoridade administrativa competente.”

8. No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque que: “O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício” – [cf. “Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 263].

9. Ora, inexistindo qualquer pronúncia sobre as contraordenações pelas quais a arguida foi condenada nos presentes autos e inexistindo qualquer decisão que tenha colocado fim ao processo, uma vez que a decisão anterior foi declarada nula, não existe qualquer violação do principio ne bis in idem, nem caso julgado, na medida em que não se pode considerar a existência de duas decisões distintas proferidas pela mesma entidade administrativa, nem que a decisão proferida pela entidade administrativa foi reformulada, uma vez que com a nulidade declarada a mesma deixou de existir, existindo nos autos apenas uma.

10. Assim por todo o exposto, entendemos que o presente recurso deve ser julgado procedente, por não se verificar qualquer violação do principio ne bis in idem, inexistindo caso julgado, atendendo a que a decisão anterior foi declarada nula, deixando de existir, sendo a decisão proferida em 16 de novembro de 2024 substituída por outra que designe data para realização de audiência de discussão e julgamento, a fim de ser apreciada a impugnação apresentada pela arguida/recorrente.

No entanto, farão V. Exas. a habitual e costumada justiça.

Resposta da arguida.

A arguida não apresentou resposta ao arguido.

Parecer do Mº Pº nesta Relação.

A Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso.


*

A arguida notificada do Parecer (nos termos do art. 417º n.º 2 do CPP) não apresentou resposta.

*

*

*


II. Do mérito do recurso.

*

QUESTÕES A DECIDIR:

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Vistas as conclusões apresentadas, o objeto do presente recurso, resume-se a saber se a autoridade administrativa pode, ou não, colmatar a nulidade da decisão administrativa (declarada por sentença) em decisão subsequente e voltar a aplicar uma coima ao recorrente com base nos mesmos factos (mais os posteriormente aditados/corrigidos).


*

O Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (artigo 75º, nº 1 do Dec. Lei nº 433/82 de 27 de outubro, Regime Geral das Contraordenações e Coimas, doravante RGCOC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso previstas no artigo 410º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.

APRECIANDO:

Diz-nos o artº 29º, nº 5 da CRP:

- «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime», (neste caso contraordenação), consagrando esta norma ao mais alto nível legislativo o conhecido princípio oriundo do direito romano do “non bis in idem”[1], que se interliga com a exceção do caso julgado, formal e material.

Com efeito a exceção do caso julgado materializa o disposto no art. 29º, nº 5 da CRP quando estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória finda, sendo um efeito processual da sentença transitada em julgado, que por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material)[2].

A proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva.

“Esta garantia visa limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural”, Cfr. Ac. TRL de 13.04.2011, in www.dgsi.pt.

O conceito romano de jurisdição “quae finem controversiarum pronuntiatione iudicis accipit” visava por fim a eventuais controvérsias com o pronunciamento do Juiz, tornando a sentença ou decisão imutável e irrevogável, (excetuando-se naturalmente os casos expressamente previstos na lei).

Para que tal excepção se verificasse, os factos constantes de um e outro processo, teriam que ter por objeto o mesmo comportamento atribuído anteriormente, (identidade de objeto - eadem res), ou seja uma entidade fáctica, independentemente da qualificação legal (nomen iuris) atribuída.

Não basta haver identidade da pessoa, tem que existir identidade do facto no espaço e no tempo.

Como facilmente se alcança da informação contida nestes autos, na sentença objeto deste recurso, o tribunal “a quo” absolveu a arguida A... UNIPESSOAL. LDA, entendendo que não se podia repetir a instância de julgamento contraordenacional, atenta a decisão anterior.

O princípio non bis in idem, como exigência da liberdade e segurança do indivíduo, impede que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, sendo indiferente que estes possam ser contemplados de distintos ângulos penais, formal e tecnicamente distintos[3].

«A identidade do facto mantém-se ainda quando seja pelos mesmos elementos valorados no primeiro julgamento ou pela superveniência de novos elementos ou de novas provas deva considerar-se em forma diferente em razão do título, do grau ou das circunstâncias. O título refere-se à definição jurídica do facto, ao momen iuris do crime. A mutação do título sem uma correspondente mutação de facto não vale para consentir uma nova ação penal” – cfr. Ac. TRL supra citado.

No caso em apreço, o Ministério Público defende que o trânsito em julgado da decisão não preclude o novo conhecimento como contraordenação (art. 79º, nº 1, do RGCO, a contrario, e 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa) não estando a autoridade administrativa impedida de sanar a nulidade e proferir nova decisão; e que ao conhecimento oficioso das nulidades da decisão administrativa é aplicável a disciplina do art. 379º do Código de Processo Penal (por aplicação subsidiária de preceitos reguladores do processo criminal, prevista no art. 41º, nº 1, do RGCO), prevendo o art. 379º, nº 2 a forma de suprimento das nulidades, devendo a nulidade ser sanada pela entidade administrativa.

Quid iuris?

A jurisprudência não tem sido uniforme relativamente à questão da sanação da nulidade da decisão administrativa.

Uma parte da jurisprudência sustenta que a nulidade resultante da violação da al. b) do nº 1 do artº 58º do RGCO, enquanto não contém uma descrição completa dos factos imputados, deve ser suprida pela autoridade administrativa- cfr., v. g., o Ac. do STJ de 06.11.2008 (proc. n.º 08P2804), os Acs. do TRL de 28.04.2004 (proc. n.º 1947/2004-3), de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5) e os Acs. do TRE de 03.12.2009 (proc. n.º 2768/08.7TBSTR.E1) e de 25.09.2012 (proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque [In "Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 263]: “O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício”.

No sentido de que a referida nulidade determina a absolvição do arguido, pronunciaram-se o Ac. do STJ de 29.01.2007 (proc. nº 06P3202), o Ac. do TRG de 19.05.2016 (proc. nº 4302/15.3T8VCT.G1, o Ac. do TRL de 31.10.2019 (proc. nº 344/19.8T9MFR.L1-9), o Ac. do TRE de 23.04.2024 (proc. nº 1190/23.0T8OLH.E1) e os Acs. deste TRP de 09.11.2022 (proc. nº 1004/22.8T9AVR.P1) e de 10.05.2023 (proc. nº 3757/22.4T8VFR.P1) e Ac. do TRP de 27-11-2024 (proc. n.º2659/24.4Y9PRT.P1[4]) todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Perfilhamos este último entendimento.

Senão vejamos.

O artigo 64º nº 3 do RGCO estatui que o "despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação".

O elemento literal da norma, não prevê a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa, para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida por manifestamente infundada.

Por outro lado, ao nível das consequências da nulidade da decisão, a questão não pode ser encarada como se de um vício da decisão se tratasse, designadamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a determinar o "reenvio" para a entidade que a proferiu.

Trata-se de problemática que se coloca muito antes do vicio da insuficiência, uma vez que tratando-se de uma absoluta ausência produzirá um efeito/consequência muito mais definitivo.

Ademais, admitir-se a sanação da nulidade, através do acrescento de elementos constitutivos do elemento subjetivo que inicialmente não constavam da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental da decisão, equivalendo a transformar uma conduta atípica numa conduta típica[5].

Revertendo para o caso em apreço, no processo n.º ..., que correu termos no Juízo Local de Pequena Criminalidade do Porto – ..., o Tribunal por sentença transitada em julgado a 06.05.2024 (cfr. fls. 129-140 e 147), decidiu-se, entre o mais, o que se transcreve:

«Ora, analisada a descrita factualidade, verifica-se que a mesma não contém uma narração criteriosa, individualizada e concreta dos factos integrativos da imputação do facto praticado em nome e no interesse coletivo (sociedade), que constitui o tipo de ilícito contraordenacional.

O mesmo é afirmar que em lado nenhuma da referida decisão se descreve a pessoa física natural que perpetrou a ação sancionada, em nome e no interesse da pessoa coletiva, e ainda se essa pessoa atuou dolosamente ou a título negligente. (…)

Deparamo-nos, assim, com a imputação objetiva à pessoa coletiva de um resultado, sem se imputar qualquer culpa.

(…) a decisão administrativa proferida, que aplicou a coima à recorrente, é totalmente omissa quanto ao elemento subjetivo da contraordenação imputada à arguida- negrito nosso.

Mais se pode ler na mencionada decisão:

«Em face de todo o exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 58º, nº 1, al. b), do RGCO, e 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal ex vi do 41º do RGCO declara-se a nulidade da decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal do Porto, nos autos de contraordenação n.º ...23, mais se determinado a remessa dos autos àquela entidade para os fins tidos por convenientes. (…)

III. Dispositivo:

Nestes termos, julgando-se procedente os presentes autos de recurso de contraordenação, declara-se nula a decisão administrativa proferida pela Câmara Municipal do Porto no âmbito do processo de contraordenação n.º ...23, que aplicou à recorrente “A..., Unipessoal, Lda” uma coima no montante de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), acrescida de €51,00 (cinquenta e um euros), a título de custas devidas pela instrução do processo, pela prática da contraordenação prevista e punida no art.º D-1/6º do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.2017 e art.º H/24, n.º 1, al. d) e n.º 6, conjugado com o n.º 2 do art.º H/5 do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.201, por factos ocorridos no dia 16.09.2023, pelas 11h20m, na Rua ..., Porto e pela prática de uma contraordenação prevista e punida no art.º D-1/6º do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.2017 e art.º H/24, n.º 1, al. d) e n.º 6, conjugado com o n.º 2 do art.º H/5 do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão dada pelo Edital n.º 738/2007, publicado no DR, 2ª Série, n.º 187, de 27.09.201, tendo sido aplicada à recorrente/arguida a coima de €1.000 (mil euros), por factos ocorridos no dia 16.09.2023, pelas 11h30m, na Rua ..., Porto.»

Relembrando o decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 08.06.2004, disponível em www.dgsi.pt.: “Não constando da factualidade apurada de uma decisão da autoridade administrativa que a arguida agiu com dolo ou negligência, essa factualidade é insuficiente para integrar a contraordenação imputada à arguida, devendo esta ser absolvida da mesma”.

É que se se entendesse que a consequência seria o “reenvio” do processo para a autoridade administrativa a fim de “compor” a decisão que aplicou a coima, sujeitar-se-ia a arguida a novo procedimento, eventualmente com nova impugnação judicial e novo processo judicial/ recurso para este tribunal.

Aliás, no limite (enquanto não ocorresse a prescrição), poderia vir a existir nova causa de nulidade e novamente o processo seria “reenviado” para a entidade administrativa.

Seria inaceitável que isso acontecesse vezes sem conta, até à prescrição.

Julga-se mais adequado, assim, entender-se que os factos considerados provados na decisão administrativa, tal como o foram, são insuscetíveis de preencherem o elemento subjetivo da contraordenação imputada à arguida e, consequentemente, verificada que foi a nulidade da decisão administrativa o que se segue é o arquivamento dos autos.

No fundo, o que ocorreu foi uma violação do princípio da tipicidade, enquanto constituindo umas das vertentes do princípio da legalidade contraordenacional, consagrado nos artºs 1 e 2º do D.L. 433/82 de 27/10.

Como bem refere Tiago Lopes de Azevedo, Lições de Direito das Contra-Ordenações, pág. 138: “… o princípio da taxatividade no Direito contraordenacional impõe que haja um mínimo de determinabilidade que permita com precisão a composição de um nexo entre o comportamento do agente e a valoração jurídico-contraordenacional prevista na norma. Este mínimo de determinabilidade, clareza e segurança encontra acolhimento no princípio do Estado de Direito, previsto no artigo 2º da Constituição”.

Acresce que nos termos do disposto no artigo 62.º do D.L. n.º 433/82, de 27.10: «Recebido o recurso, e no prazo de cinco dias, deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação».

O Tribunal, embora podendo alterar a decisão fica cingido, quanto a factos típicos, aos constantes da “decisão-acusação”. Mais, não pode o Tribunal alterar substancialmente os factos constantes da decisão da autoridade administrativa (cfr. Manuel Ferreira Antunes, “Reflexões Sobre o Direito Contra-Ordenacional”, SPB Editores, pp. 97).»

Entendemos, por isso, que a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime (no presente caso, contraordenação), não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada.

E quando tal sucede, como é o caso, está vedado ao Tribunal (tal como o estava à autoridade administrativa) voltar a apreciar estes mesmos factos, sob pena de violação flagrante do princípio ne bis in idem[6].

Com efeito, a reformulação da mesma decisão administrativa, sobre os mesmos factos, quanto à mesma arguida, e a aplicação de nova coima, não pode deixar de violar o princípio de proibição de duplo julgamento, o princípio ne bis in idem, que se aplica subsidiariamente ao processo contraordenacional, nos termos do artigo 41º do RGCO e 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Por conseguinte, face ao exposto, remetendo para o demais patenteado na sentença recorrida, que não merece censura e, revelando-se despiciendas quaisquer outras considerações, cumpre negar provimento ao recurso.


***

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo integralmente a decisão recorrida.

Sem custas por o recorrente delas estar isento.


***


Tribunal da Relação do Porto, em 4 de Junho de 2025

Desembargadora Paula Pires

(relatora)

Desembargadora Elsa Paixão

(1ª adjunta)

Desembargador Raul Cordeiro

(2º adjunto)



___________________________________
[1] Non bis in idem” que significa literalmente “não duas vezes pela mesma coisa”.
[2] Cfr. Ac. Trib. Rel. Lisboa, de 13.04.2011 e disponível em www.dgsi.pt/trl
[3] Em situações similares se pronunciaram os Acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto, em 25/05/2011; e, em 27/11/2013, ambos disponíveis em www.dgsi.p/trp.
[4] ACÓRDÃO em que figura como Relatora a Sr.ª Desembargadora Elsa Paixão, aqui Primeira Adjunta
[5] Assim se decidiu no Ac. TRP de 27-11-2024, acima citado
[6] No que respeita aos argumentos do Ministério Público na sua motivação de recurso sempre se aduz que  - no que tange à sentença anteriormente proferida - uma coisa é a sua nulidade por falta de descrição dos factos, como provados ou não provados, que foram imputados (art. 379.°, n.° 1, al. a), com referência ao n.° 2 do art. 374.°, do COP); outra diferente é não constarem da acusação os factos, designadamente ao nível dos elementos subjetivos do crime/ contra ordenação, o que conduz à absolvição do arguido, por os factos imputados não serem puníveis (arts. 13.° do CP e 8.°, n.° 1, do RGCO). E no caso das contra ordenações, havendo recurso, a apresentação dos autos pelo MP ao Juiz vale como acusação (n.° 1 do art. 62.° do mesmo RGCO).