ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
USO IRREGULAR
OBRIGAÇÃO SUBJACENTE
VIOLAÇÃO DO DEVER DE RESPEITO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Sumário

I. Dentre as obrigações que da celebração do contrato resultam para o locatário encontra-se a de não fazer do locado uma utilização imprudente (artigo 1038.º, alínea d), do Código Civil).
II. O incumprimento daquela obrigação, quando implique a violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio, constitui o fundamento resolutivo previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1083.º desde que, para utilizar as palavras da lei, “pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.
III. Resulta expressamente do artigo 1071.º do mesmo diploma legal que “Os arrendatários estão sujeitos às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis, tanto nas relações de vizinhança como nas relações entre arrendatários de partes comuns de uma mesma coisa”. Dentre essas limitações encontra-se a decorrente da obrigação de não produzir “fumo, fuligem, vapores, cheiros calor ou ruídos”, bem como trepidações e quaisquer outros factos semelhantes, “sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam”, conforme impõe o artigo 1346.º.
IV. Tendo resultado provado que o ruído produzido na fracção arrendada à Ré prejudicava o sossego e o repouso de terceiros em período que a lei impõe que seja de silêncio (cfr. o artigo 24.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo DL 9/2007, de 17 de Janeiro), estamos perante conduta ilícita e violação contratual que, pela sua reiteração e gravidade, objectivamente considerada – o barulho parecia o de uma discoteca, prolongando-se pela madrugada, conforme resultou provado – torna inexigível a manutenção do contrato por banda da senhoria, aqui autora, sendo de lhe reconhecer o direito potestativo à sua resolução.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 291/23.9T8GDL.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo Local Cível de Grândola


I. Relatório
(…), Unipessoal, Lda., com sede na Av. (…), 35, Alcácer do Sal, instaurou contra (…), residente na Rua (…), 30, rés-do-chão, Dto., também em Alcácer do Sal, a presente acção declarativa constitutiva, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final que fosse declarado resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre autora e ré, com fundamento no incumprimento grave e reiterado do contrato por banda da demandada, a integral os fundamentos resolutivos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 1083.º do CC, e esta condenada a proceder à entrega do locado, livre e devoluto de pessoas e bens que lhe pertençam, entregando contudo aqueles que equipavam o imóvel, conforme relação anexa ao contrato, devendo ainda ser condenada a proceder ao pagamento das rendas que se vencerem na pendência da acção.

Citada a ré, ofereceu a contestação que consta de fls. 18-19 do PF, na qual impugnou os factos alegados pela autora, negando ter actuado de forma a violar os deveres decorrentes da celebração do contrato de arrendamento a que se encontra vinculada, pugnando pela improcedência da acção.
*
Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, prosseguindo os autos com delimitação do objecto do litígio, selecção dos factos provados e enunciação dos temas da prova, peças que se fixaram sem reclamação.
Teve lugar a audiência final, nos termo da qual foi proferida sentença que, na improcedência da acção, decretou a absolvição da ré dos pedidos formulados.

Irresignada, apelou a autora e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
A. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que julgou improcedente a pretensão do A., ora Recorrente, absolvendo a R., ora Recorrida, dos pedidos contra si formulados.
B. Recorre o A./Recorrente, por considerar que a Douta sentença do Tribunal a quo analisou mal a prova documental e testemunhal.
C. Cometeu erros na apreciação da matéria de facto, não tendo sido igualmente feita uma correta interpretação e aplicação do direito atinente, impondo-se, por isso, uma decisão diametralmente oposta.
D. No recurso da matéria de facto, cabe saber se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que todos os meios de prova exibiram.
E. Resultando claro que este Tribunal não construiu a sua convicção perante todas as provas existentes no processo, nem de acordo com as produzidas em audiência.
F. Existiu erro na apreciação da prova, existindo uma desconformidade entre a decisão judicial e a prova existente e/ou a produzida em audiência, tendo decidido o Tribunal a quo contra tudo o que se encontra provado e não provado.
G. A prova documental e testemunhal não foi devidamente articulada e valorada pela 1.ª instância.
H. Ficou provada a existência inequívoca de ruído fora do normal e de o mesmo existir fora das horas em que pode ser produzido.
I. Ficou provado que, ainda que o mesmo fosse mais frequente ao fim-de-semana, também ocorria aos dias de semana.
J. Desvalorizar-se a existência de barulho, fundamentando-se que o mesmo se sentia, maioritariamente, ao fim-de-semana, é errado.
K. E o Tribunal a quo, dando como provado tudo o que o A. alegou na sua PI, tinha forçosamente de ordenar o despejo da Ré.
L. A situação estrutural da casa não pode condicionar a decisão desta causa, pois houve obras há 10 anos, que estão provadas por documento.
M. Foram juntos aos autos dois alvarás de utilização passados pela Câmara Municipal de Alcácer do Sal que não foram contestados.
N. E as testemunhas (…) e (…) explicaram sem sombra de dúvidas que os barulhos que os incomodavam não eram estruturais, provindos das portas ou das casas de banho.
O. Não eram barulhos domésticos, mas sim música muito alta, vozes de pessoas a falar e a discutir.
P. Estes testemunhos referiram a existência recorrente de música alta, discussões, gritaria, e conversas em tom alto.
Q. Todas as testemunhas do A./Recorrente são unânimes em referir que os barulhos se produziam até tarde; ou seja, após a meia-noite.
R. Referiram que uns dias era até às 2h e noutros, até às 3h ou 4h da madrugada.
S. Sendo o seu sossego e de familiares muitas vezes prejudicado.
T. Pois, como foi referido diversas vezes, o barulho era demais e até acordavam assustados, como disse (…) e (…).
U. A GNR foi chamada algumas vezes.
V. Sempre após a R./Recorrida não acatar os pedidos do vizinho (…).
W. A testemunha (…), outrora inquilino do A./Recorrente, teve de procurar outra casa para viver.
X. Por causa do barulho da R./Recorrida.
Y. Terminando o seu contrato de arrendamento antes do termo do mesmo.
Z. Tudo provado, não só testemunhal, como documentalmente.
AA. Era esta a situação nos autos e a causa de pedir: um contrato de arrendamento que estava a ser incumprido pela R./Recorrida, por não cumprimento de regras de higiene, sossego e vizinhança.
BB. Utilização da casa contrária à lei, bons costumes e ordem pública.
CC. Há justa causa de resolução contratual e despejo por parte do A./Recorrente, devido ao barulho até altas horas da noite aos dias de semana e fins-de-semana, de tal forma sentido que não era possível manter-se este vínculo contratual.
DD. Foi grave, reiterado e violador de todas as regras de sossego e descanso entre a vizinhança.
EE. O que resultou provado, como a sentença afirma inequivocamente.
FF. Motivo pelo qual não se percebe nem se aceita que a Ré/Recorrida não tenha sido condenada no pedido de desocupar e entregar o imóvel ao A./Recorrente.
GG. Caso o ruído resultasse do facto de a casa ter uma estrutura menos robusta, esta seria sempre mais uma razão para a R./Recorrida realizar a sua vida de forma mais pacata e com mais cuidado para não prejudicar os vizinhos.
HH. Ficou a constar como facto não provado que R./Recorrida reside no locado.
II. Sendo este ocupado neste momento pelo seu filho (…) e o agregado familiar.
JJ. Este facto resultou de uma circunstância superveniente que se apurou no decurso deste julgamento, não se entendendo a razão deste contrato ainda se considerar válido.
KK. Quem celebrou este contrato foi a R./Recorrida e o mesmo tem como objeto a sua habitação própria permanente.
LL. O seu filho e o agregado não outorgaram contrato com o Autor / Recorrente, logo não têm título válido para terem a posse do imóvel.
MM. Razão porque o imóvel tem de ser entregue ao Autor / Recorrente.
NN. Assim, em razão da análise de todos os factos dados como provados e não provados na Douta sentença, temos de discordar da mesma, na aplicação que fez do Direito, pois, provados que estão os factos articulados pelo A./Recorrente, forçosamente terá de se ordenar o despejo da R./Recorrida, nos termos do artigo 1083.º, n.º 2, do CC que estatuiu justa causa para a resolução contratual pelo senhorio.
OO. Ficou provado que a atuação da Ré/Recorrida foi tão grave que é impossível ao A. permitir a manutenção desta relação contratual.
PP. Quando (…) cessou o contrato de arrendamento antes do seu termo, frustrou as expectativas do A./Recorrente de obter aquele vencimento mensal.
QQ. A causa para o ter cessado foi o barulho excessivo causado pela R./Recorrida e demais ocupantes do imóvel.
RR. A resolução que o A./Recorrente pretende assenta na violação de deveres de conduta sociais que não são admissíveis numa relação de vizinhança e, no caso sub judice, numa relação de senhorio/inquilino.
SS. O ruído era bastante, incomodativo e limitador do descanso.
TT. Não se percebe que preocupação é esta com o direito ao arrendamento da R./Recorrida, quando esta já nem mora no imóvel!
UU. Resultou provado em sede de julgamento que a R./Recorrida já não vive no locado.
VV Quanto ao número de decibéis que existiam no local, será difícil para um homem médio indicá-los, mas também para este homem médio será fácil afirmar que são acima do razoável.
WW. Uma vez que a GNR se deslocou ao local algumas vezes.
XX. A lei do ruído estabelece que à noite, o máximo permitido são 45 decibéis em zonas sensíveis.
YY. Se foi considerado pela douta Sentença que o imóvel tinha uma insonorização fraca, teremos de o colocar a este nível.
ZZ. Uma conversa normal ronda os 40 decibéis.
AAA. Assim, temos de considerar que as discussões, a televisão alta e os convívios com mais de 10 adultos a conversar e a rir, ouvindo música alta, serão muito acima dos 45 decibéis permitidos.
BBB. E a lei não especifica que a contagem dos decibéis opera e varia conforme o dia de semana em causa.
CCC. Mas tão somente quais são as horas de descanso nocturno: das 23h às 7h.
DDD. Os vizinhos não podiam usufruir da sua habitação sendo prejudicados pela R./Recorrida!
FFF. Esta situação ficou provada.
GGG. A sentença é imperceptível e incompreensível, não tendo forma de se aceitar por ser mal fundamentada e incoerente com a prova que resultou das sessões de julgamento e que foi considerada provada e não provada, em sentença.
HHH. O A./Recorrente entende que prejudicar terceiros pela má utilização do imóvel, que muitas vezes era utilizado como discoteca fosse, é contrário aos bons costumes.
JJJ. O conceito de ordem pública integra o conjunto de regras de comportamento social que devem ser assumidas na vida em comunidade e que se afiguram integradas ou compatíveis com a Constituição, nomeadamente o seu artigo 25.º, que correspondem à visão dominante da sociedade sobre os padrões de comportamento social e que se assumem essenciais para uma coexistência pacífica entre cidadãos. As diversas dimensões do conceito de ordem pública encontram-se, hoje, quase todas, integradas ou consumidas por conceitos acolhidos na Constituição.
KKK. Os bons costumes inserem-se nesta ordem social, já que comportam valores sociais que visam evitar o prejuízo de terceiros.
LLL. O STJ assim o considerou na dissertação e estudos intitulados “O direito ao descanso e ao sossego na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça”.
MMM. Pelo exposto, consideram-se que direitos de personalidade humana se encontram constitucionalmente consagrados como direitos fundamentais artigos 16.º, 25.º e 66.º da C.R.P., sendo objecto de protecção ordinária nos termos do artigo 70.º do C.C. e artigos 2.º e 11.º da Lei n.º 11/87, de 07-04 (Lei de Bases do Ambiente) e DL n.º 292/2000, de 14-11 (Regulamento Geral do Ruído), actualmente substituído pelo DL n.º 9/2007, de 17-01.
NNN. Devendo alterar-se a Douta sentença de que se recorre por outra que dê provimento à pretensão do A./Recorrente.
OOO. Decretando-se o despejo da R./Recorrida.
PPP. O que se Requer a V. Exas. (…)”.

A Ré contra alegou, defendendo naturalmente a manutenção do julgado.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões que a apelante pretende ver reapreciadas e corrigidas por este Tribunal:
i. do erro no julgamento dos factos;
ii. do erro na aplicação do direito aos factos.
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i. da impugnação da matéria de facto
A autora e agora recorrente começa por afirmar que o recurso tem como objecto “toda a matéria de facto e de direito da sentença”, por ter o tribunal a quo “cometido erros na apreciação da matéria de facto”, não tendo valorado e articulado de forma adequada a prova documental e testemunhal.
No que respeita à impugnação da matéria de facto, resulta do disposto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC que o recorrente / impugnante está vinculado ao cumprimento de três requisitos formais, cuja inobservância conduz à rejeição do recurso nesta parte, a saber: i. terá necessariamente de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a); ii. terá ainda de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo da gravação, que imponham uma decisão diversa sobre os pontos de facto objecto da impugnação, ónus cujo cumprimento demanda, nas palavras inspiradas do STJ (acórdão de 21 de Junho de 2022, no processo 644/20.4T8RA.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt), “(…) a obrigatoriedade de cerzir cada facto censurado com os elementos probatórios correspondentes” e, estando em causa prova gravada, a exacta indicação das passagens em que o recorrente funda a sua discordância (podendo ainda, se assim o entender, proceder à respectiva transcrição) (alínea b); iii. terá finalmente de enunciar a decisão alternativa (alínea c).
No entanto, e na atenuação de um rigor formal que, levado à letra, poderia suscitar questões de constitucionalidade, o STJ vem defendendo de forma consistente que “Os ónus impostos pelo artigo 640.º do CPC devem ser apreciados com cautela, evitando leituras excessivamente formalistas, devendo ser dada prevalência ao primado da substância sobre a forma, devendo os aspetos de ordem formal ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (presentes na ideia do processo equitativo nos termos previstos no artigo 20.º, n.º 4, da CRP), tendo em conta as circunstâncias concretas do caso e desde que o conteúdo da impugnação seja percecionável para a parte contrária, permitindo-lhe o exercício do contraditório, e para o tribunal de recurso, não impondo a sua apreciação um esforço inexigível” (do acórdão do STJ de 26 de Novembro de 2024, proferido no processo n.º 417/21.7T8AGH.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt)[2].
Importa ainda ter presente que, conforme foi lembrado pelo mesmo STJ no AUJ 12/2023 in DR n.º 220/2023, Série I, de 2023-11-14, os ónus consagrados no n.º 1 do artigo 640.º vêm sendo “apontados como ónus primários, pois têm como função delimitar o objeto do recurso, fundando os termos da impugnação, daí a sua falta traduzir-se na imediata rejeição do recurso, em contraposição aos ónus secundários, previstos no n.º 2 do artigo 640.º relativos à alínea b) do n.º 1, enquanto instrumentais do disposto no artigo 662.º, que regula a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto pelos Tribunais da Relação, permitindo assim, um efetivo segundo grau de jurisdição no conhecimento das questões de facto, na procura da sua melhor realização, em termos relevantes, isto é, na busca da verdade material com a decorrente justa composição dos litígios”. E tendo incidido sobre a alínea c), veio a uniformizar jurisprudência no sentido de que nos termos desta alínea “o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
Finalmente, e como se adverte no citado acórdão de 26/11/2024, os ónus impostos pela referida disposição legal não se confundem com a consistência da impugnação da decisão da matéria de facto pelo apelante, ou seja, uma coisa é verificar se o impugnante cumpriu aqueles ónus, outra, diferente, saber se os meios de prova indicados e a análise que deles faz é apta a impor uma decisão diferente sobre a matéria de facto impugnada, maneira que, conforme se decidiu no acórdão do mesmo STJ de 12 Dezembro de 2024 (processo n.º 417/21.7T8AGH.L1.S1, em www.dgsi.pt), com recenseamento de diversa jurisprudência, a insuficiência da fundamentação probatória do recorrente da matéria de facto não releva como requisito formal do ónus de impugnação (cfr., no mesmo sentido e entre outros, ac. STJ 17/11/2020, processos n.º 846/19.6T8PNF.P1.S1, de 27/4/2023 e n.º 1342/19.7T8AVR.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt).
Revertendo agora ao caso dos autos, verifica-se ter a apelante indicado no corpo das alegações, resultando também das conclusões, que pretende seja dada como assente diversa factualidade, a qual teria resultado das declarações de parte prestadas pelo legal representante da autora e testemunhos prestados por (…) e (…), corroborados que foram pela prova documental junta aos autos, estando em causa os seguintes factos:
- desde o início do contrato provinham do rés do chão arrendado à Ré música alta, discussões, gritaria e conversas em voz alta, barulho que se produzia para além da meia noite e, por vezes, até às 2-3 horas da madrugada;
- tal ocorria mais frequentemente aos fins de semana mas, por vezes, também durante a semana, prejudicando o sossego e repouso dos vizinhos;
- o que deu origem a frequentes queixas ao legal representante da autora senhoria e a chamadas telefónicas para a GNR, que se deslocou ao local 2 ou 3 vezes;
- sem que a Ré acatasse os pedidos dos vizinhos, mantendo-se a situação;
- obrigando a testemunha (…), que residia no 1.º andar, a deixar o locado antes do termo do contrato celebrado com a autora.
Elencados os factos que a apelante pretende ver aditada à matéria dada como provada, verifica-se serem instrumentais uns, concretizadores outros, dos alegados na petição inicial, articulado que, não obstante as suas evidentes deficiências expositivas, que transitaram para a sentença apelada, não foi objecto, como se impunha, de despacho de aperfeiçoamento. No entanto, não deixou a autora de ali alegar, a par de outros, mas aqui de forma eminentemente conclusiva, que o barulho proveniente do rés do chão arrendado à ré incomodava reiteradamente os vizinhos, a altas horas da noite (cfr. o artigo 24º). Tal facto transitou para a sentença, ainda que com uma equivoca redacção, constado do ponto 12 textualmente o seguinte: “Que o barulho realizado pela Ré reiteradamente incomode os vizinhos, a altas horas da noite”, a suscitar fundadamente a dúvida sobre se a sra. Juíza não pretenderia antes a sua inclusão nos factos não provados.
Seja como for, ou seja, ainda a considerar-se que a inclusão nos factos assentes do alegado no referido artigo 24º da petição inicial se tenha ficado a dever a lapso da sra. Juíza, sempre o tribunal pode livremente aproveitar e fazer relevar os factos instrumentais que possam ter resultado da prova produzida em audiência e, bem assim, aqueles que resultem de documentos juntos aos autos que não tenham sido impugnados, em ordem a atingir tal conclusão. Já não assim, adianta-se, em relação a factos complementares ou concretizadores do alegado, cujo aproveitamento dependeria de ter sido concedida às partes, mais especificamente à parte contrária, a possibilidade de sobre eles se pronunciarem (cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPCiv.), limitação que se terá em linha de conta na apreciação da impugnação deduzida.
Feita tal prévia precisão, faz-se notar que tendo o contrato aqui ajuizado sido celebrado em 31 de Maio de 2022, irrelevantes são os factos que tenham tido lugar em data anterior, caso dos alegados em 13º e 14º da petição, que transitaram quo tale para a sentença, quando a ré ocupava o imóvel no âmbito de um contrato de comodato. Aliás, sendo tais factos conhecidos do legal representante da autora, conforme este reconheceu, de pronto esclareceu que só celebrou o contrato de arrendamento porque a ré prometeu que não mais se repetiriam, promessa que, todavia, não foi cumprida.
Quanto aos factos que a impugnante pretende ver considerados, ouvidas as declarações prestadas pelo legal representante da autora e testemunhas por esta indicadas, não subsistiu a menor dúvida quanto ao facto de o barulho produzido no rés-do-chão ocupado pela ré em muito extravasar os limites do que é socialmente aceitável no âmbito das relações de vizinhança. Vejamos:
O legal representante da autora, cujas declarações foram credíveis e consistentes, tendo para além do mais resultado corroboradas pelo testemunho prestado por (…), anterior arrendatário do 1.º andar, declarou ter sido por este diversas vezes contactado “a altas horas da noite”, informando do barulho que se fazia sentir. Mais referiu que na sequência destes contactos telefónicos, de todas as vezes sugeriu àquele seu inquilino que chamasse a polícia, o que o referido (…) fez, tendo-se elementos da PSP deslocado ao local “duas ou três vezes”, segundo referiu. O declarante, que reside na zona de Sintra, deslocou-se por uma vez a Alcácer do Sal, na sequência do recebimento de uma destas chamadas, cerca das 1:40 horas, apesar de o barulho já ter cessado quando ali chegou.
Declarou ainda ter solicitado por diversas vezes à Ré que tivesse cuidado com o barulho que provinha da fracção arrendada, dadas as queixas provenientes dos outros inquilinos, ao que esta sempre respondia que não se iria repetir, explicando que a chegada do seu filho mais velho do Brasil tinha agravado a situação, mas a verdade é que as queixas nunca cessaram.
A respeito do assim declarado, apesar do declarante nunca ter chegado a ouvir barulho proveniente do locado, desde logo pela razão essencial de que não residia nem reside nas proximidades, não deixa de ser significativo que tenha recebido diversas chamadas telefónicas de madrugada, efectuadas pelo inquilino do 1.º andar, queixando-se precisamente do barulho que provinha do rés-do-chão arrendado à ré e que não permitia que aquele descansasse. E tal incómodo assumiu uma intensidade, desde logo pela reiteração, que levou a que aquele inquilino abandonasse o locado antes do termo do contrato, incorrendo no pagamento do pré-aviso, conforme o próprio confirmou em audiência e vem aliás mencionado como fundamento da cessação antecipada do contrato na missiva que pela sua advogada foi enviada à aqui autora, com a qual foi confrontado em audiência.
Inquirida a dita testemunha (…), que residiu no 1.º andar do imóvel pertença da autora durante cerca de 1 ano, entre Outubro de 2022 e Outubro de 2023, resultou evidente que durante este período era frequente e recorrente ouvir barulho proveniente do rés-do-chão ocupado pela ré – “som alto, música, coluna, barulho deles discutindo dentro do casa” – que se prolongava pela madrugada, obrigando-o a ligar ao senhorio, queixando-se – a última vez, precisou, eram 3:00 horas – e, seguindo a sugestão deste, a chamar a autoridade policial. Perguntado sobre se o barulho o incomodava respondeu que incomodava todos em sua casa, o próprio, a esposa, o filho e a nora, tendo chegado a acordar assustado com o barulho de discussão às 2:00h e 3:00h da manhã. Tendo-lhe sido pedido que precisasse as vezes em que tal ocorreu, respondeu “coloca umas dez vezes”, tendo ainda confirmado, sem margem para dúvida, que a razão pela qual deixou a casa onde morava foi o barulho proveniente do rés-do-chão ocupado pela ré.
Também a testemunha (…), ainda que relutantemente – era visível o seu desconforto, tendo mesmo afirmado que não queria de todo estar no tribunal a depor, porque não quer “chatices” com os vizinhos, na esteira aliás do que o legal representante da autora já referira a seu respeito, que se tratava de “um rapaz simpático”, desejoso de evitar aborrecimentos- declarou que por vezes pede aos vizinhos, designadamente ao (…), filho da ré, que façam menos barulho e, como persistem, ameaça depois chamar a polícia.
A testemunha, numa tentativa de minimizar os incómodos sofridos, declarou que nem sempre pernoita em casa, por causa do trabalho, incluindo aos fins de semana, mas acabou por confirmar que ouvia barulhos, barulhos provocados por pessoas, especificou -conversa, música alta, não podendo dizer se eram ou não discussões porque, segundo referiu, quando os vizinhos falam depressa não consegue perceber nada do que dizem- que se prolongavam até à hora de descansar, ocasiões em que batia à porta e procurava ou a D. (…) ou o filho (…) e pedia para fazerem menos barulho. Precisou que a ré e/ou os filhos promoviam churrascos no locado, que começavam cedo mas se prolongavam, e “chegava a um ponto em que eu já não conseguia [descansar] e pedia para falarem mais baixo” (sic). Solicitado a precisar o número de vezes em que tal ocorreu, respondeu “muitas mais de 15 vezes”, mas nunca chegou a chamar a polícia porque, disse, “quando viam que estava chateado” o barulho diminuía.
Face ao assim declarado, tendo as testemunhas inquiridas e, bem assim, o legal representante da autora merecido inteira credibilidade, resultou evidente que o barulho proveniente da fracção ocupada pela ré, pela sua intensidade, horas a que se fazia sentir e frequência – note-se que a testemunha (…), mesmo pernoitando por vezes fora de casa, incluindo aos fins de semana, em pelo menos 15 ocasiões viu-se forçado a pedir à ré e/ou ao seu filho que fizessem menos barulho para que lhe fosse permitido descansar – representava um incómodo considerável para os vizinhos, tendo inclusivamente determinado um deles a cessar antecipadamente o contrato celebrado com a autora, ainda que pagando – injustamente, diga-se – a renda correspondente aos meses de pré-aviso. Tal factualidade surge ainda corroborada pelas missivas juntas aos autos, quer as pela autora endereçadas à Ré, quer a pela autora recebida da Il. advogada mandatada pela testemunha (…).
Deste modo, e na parcial procedência da impugnação, adita-se a seguinte factualidade:
- Desde o início do contrato provinham do rés-do-chão arrendado à Ré música alta, discussões, gritaria e conversas em voz alta, barulho que se produzia para além da meia noite e, por vezes, até às 2-3 horas da madrugada, situação que se manteve até pelo menos Outubro / Novembro de 2023.
- Tal verifica-se mais frequentemente aos fins de semana mas, por vezes, também durante a semana, prejudicando o sossego e repouso dos vizinhos;
- Tal situação deu origem a queixas, designadamente por parte do inquilino do 1.º andar, ao legal representante da autora, tendo sido chamada a PSP por 3-4 vezes, tendo-se elementos desta força deslocado ao local em Março e no dia 7 de Abril de 2023, desta feita a pedido daquele último.
Para evitar contradições, determina-se a eliminação do segmento final do facto não provado d) e também o facto não provado e) que, não obstante a sua escassa relevância, resultou efectivamente demonstrado por via das já mencionadas credíveis declarações prestadas pelo legal representante da autora, que disse ter-se deslocado diversas vezes ao locado na sequência das queixas recebidas, ainda que não durante a noite, evidenciando as missivas que tal ocorreu, ali se referindo uma deslocação no decurso da qual foi vistoriado o quintal, mencionando-se uma outra, a efectuar futuramente e que sabemos ter acontecido, uma vez que declarou em audiência ter verificado nesta posterior deslocação que o quintal tinha sido limpo.
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II. Fundamentação
De Facto
Estabilizada, é a seguinte a factualidade a atender:
1. A Autora celebrou contrato de comodato, assumindo a posição de comodatária, em relação ao imóvel sito na Rua (…), 30, afeto a habitação, inscrito sob o artigo matricial (…) da união das freguesias de … (… e …) e …, Distrito de Setúbal, Concelho de Alcácer do Sal, descrita na Conservatória do Registo Predial de Alcácer do Sal sob o n.º (…) [Artigo 1.º da Petição Inicial].
2. Sendo que os comodantes e usufrutuários vitalícios do mesmo são (…) e (…) [Artigo 12º da Petição Inicial].
3. Em 31 de Maio de 2022, a Autora e a Ré celebraram contrato de arrendamento habitacional com prazo certo, por 6 meses, iniciando-se em 1 de Junho de 2022 e terminando em 30 de Novembro de 2022, sendo renovável por igual período [Artigo 3.º da Petição Inicial].
4. Desde o início do contrato provinham do rés do chão arrendado à Ré música alta, discussões, gritaria e conversas em voz alta, barulho que se produzia para além da meia noite e, por vezes, até às 2-3 horas da madrugada, situação que se manteve até pelo menos Outubro / Novembro de 2023 [art.º 24.º da petição inicial].
5. Tal verifica-se mais frequentemente aos fins de semana mas, por vezes, também durante a semana, prejudicando o sossego e repouso dos vizinhos [art.º 24.º da petição inicial];
6. Desde o início do contrato que a Autora, na pessoa do seu gerente, tem sido abordado diversas vezes pelos vizinhos da Ré por via dos barulhos existentes no local arrendado [Artigo 5.º da Petição Inicial].
7. Pela descrição dos barulhos, há dias que parece uma discoteca, pelos ruídos e pelo número de pessoas que estão no locado [Artigos 6.º e 7.º da Petição Inicial].
8. A descrita situação deu origem a queixas, designadamente por parte do inquilino do 1.º andar ao legal representante da autora, tendo sido chamada a PSP por 3-4 vezes, tendo-se elementos desta força deslocado ao local em Março e no dia 7 de Abril de 2023, desta feita a pedido daquele último, que ligou à 01:40h da manhã [Artigos 9.º da Petição Inicial].
9. A autora enviou à Ré, que as recebeu, três cartas registadas com A/R à Ré, a reclamar o imóvel, constando da missiva datada de 13 de Abril de 2023 que:
“(…) Após sucessivas queixas dos restantes proprietários e condóminos do prédio, de comportamentos ruidosos e das várias solicitações para que V.ª Ex.ª e seus familiares, alterassem os hábitos e comportamentos ruidosos, mostrando desta forma uma total falta de consideração pelos vizinhos, perturbando o seu descanso e dos seus familiares frequentemente, quer durante o dia, quer pela noite fora.
(…)”, conforme consta do documento junto sob o n.º 7 com a petição inicial, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o seu teor [Artigo 11.º da Petição Inicial].
10. O gerente da Autora deslocou-se ao locado algumas vezes, na sequência de queixas recebidas de outros inquilinos [Artigo 21.º da Petição Inicial].
11. O andar por cima da Ré – o 1º andar –, antes de ser arrendado ao ano, ao sr. (…), funcionava como Alojamento Local [Artigo 12.º da Petição Inicial].
12. Em abril de 2022 esteve arrendado durante uma semana a uma família estrangeira (Sra. …) que fez o seguinte comentário escrito na plataforma "Booking", quando saiu em 24 de abril 2022: "Spacious accomodation, free parking nearby, close to the old center. There is no air conditioning, it was hot during the day, good at night. There is another room equiped as an office, it woild be better if they made another bedroom. Brazilians live on the lower floor, noisy at night, music, dancing, roast meat, may be we got on the weekend" [Artigo 13.º da Petição Inicial].
13. Os “Brazilians” eram a Ré, os filhos e talvez alguns amigos [Artigo 14.º da Petição Inicial].
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Não se provou que:
a) o locado é para habitação da Ré e dos seus dois filhos, maiores de idade [Artigo 4.º da Petição Inicial];
b) o gerente da Autora tenha saído da sua casa, sita em Sintra, noite dentro, para se deslocar ao local a pedidos dos vizinhos da Ré por diversas vezes [Artigo 8.º da Petição Inicial];
c) se ouçam muitas vezes zaragatas entre os presentes [Artigo 10.º da Petição Inicial];
d) as deslocações do gerente da autora sejam frequentes [Artigo 16.º da Petição Inicial].
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De Direito
Da resolução do contrato de arrendamento
Não se mostra controvertido nos autos que entre a autora e a ré (…) foi celebrado contrato de arrendamento urbano, mediante o qual o primeiro se obrigou a proporcionar à segunda, para habitação permanente desta e mediante uma retribuição, o gozo temporário do imóvel identificado em 1 (cfr. artigos 1022.º, 1023.º, 1064.º e 1067.º, todos do Código Civil, diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).
Dentre as obrigações que da celebração do contrato resultam para o locatário encontra-se a de não fazer do locado uma utilização imprudente (artigo 1038.º, alínea d). O incumprimento desta obrigação contratual, quando implique a violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio, constitui o fundamento resolutivo previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 1083.º desde que, para utilizar as palavras da lei, “pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”.
Resulta expressamente do artigo 1071.º que “Os arrendatários estão sujeitos às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis, tanto nas relações de vizinhança como nas relações entre arrendatários de partes comuns de uma mesma coisa”. Dentre essas limitações encontra-se a decorrente da obrigação de não produzir “fumo, fuligem, vapores, cheiros calor ou ruídos”, bem como trepidações e quaisquer outros factos semelhantes, “sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam”, conforme impõe o artigo 1346.º. O incumprimento da descrita obrigação legal, constituindo incumprimento do contrato de arrendamento pode, como vimos, constituir fundamento de resolução do mesmo por banda do senhorio. E nem sequer se exige, ao contrário do que se previa antes da Lei n.º 6/2006, que tal violação tenha de ser reiterada, bastando uma violação pontual. Ponto é que assuma uma gravidade tal que torne inexigível a manutenção do contrato e isto porque, conforme vem sendo, ao que cremos maioritariamente, entendido, a verificação, na sua objectividade, de qualquer um dos fundamentos resolutivos previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 1083.º não será, por si só, suficiente para fazer cessar o contrato[3].
Na interpretação que ora se defende, o artigo 1083.º – que sucedeu, embora sem total coincidência, aos artigos 63.º e 64.º do RAU – adoptou uma diferente metodologia, vindo consagrar uma sorte de cláusula geral, a cujo crivo terá de ser submetido o ilícito verificado, em ordem a aferir da sua gravidade e consequente susceptibilidade, ou não, de comprometer a subsistência do vínculo contratual, tendo o legislador optado por uma enumeração de fundamentos resolutivos que é claramente exemplificativa, conforme decorre da utilização do advérbio nomeadamente.
Sendo a violação das regras de higiene, sossego e boa vizinhança, como vimos, um dos fundamentos expressamente previstos na lei idóneos a conferirem ao senhorio o direito a resolver o contrato, a conduta do inquilino que, por força do ruído que produza no locado, perturbe o sossego dos vizinhos, constitui sem dúvida ilícito contratual potencialmente apto a conduzir à resolução do contrato desde que preencha a aludida cláusula geral, revestindo um nível de gravidade ou produzindo consequências tais que não seja exigível ao senhorio, de um ponto de vista objectivo, a manutenção do contrato[4].
Tal entendimento não é, contudo, unívoco.
A interpretação do n.º 2 do artigo 1083.º e sua relação com o n.º 1 do preceito tem suscitado dúvidas interpretativas, não faltando quem defenda, de modo não inteiramente coincidente com o entendimento expendido, que, verificada uma das situações típicas de incumprimento especialmente previstas nas diversas alíneas do n.º 2, com potencial aptidão para, de per si, fundamentar a resolução do contrato, é de presumir que a violação assume a gravidade pressuposta pela norma para tornar inexigível ao senhorio a manutenção do contrato, cabendo ao inquilino fazer prova da escassa relevância do ilícito no programa contratual[5], a par de outros que consideram que estamos perante fundamentos resolutivos bastantes, pelo que da sua objectiva verificação já decorreria a gravidade exigida pela previsão legal[6]. A enunciação pelo legislador daquelas específicas violações contratuais, e não de outras, fazendo valer a presunção consagrada no artigo 9.º de que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, teria como finalidade destacar que se trata de ilícitos que ferem o contrato na sua essência, tendo “um conteúdo valorativo crescentemente tão negativo, que a sua gravidade se torna apriorística”[7], maneira que da sua verificação decorreria a gravidade que torna inexigível para o senhorio que mantenha o contrato.
Voltando ao caso dos autos dir-se-á que, seja qual for a posição que se adopte, a conclusão a que se chega é a mesma: a ré violou culposa e gravemente o dever de fazer do locado uma utilização prudente, violando de forma reiterada as regras de sossego e boa vizinhança, com prejuízo relevante para os demais moradores, tornando inexigível que a autora senhoria mantivesse o contrato.
Vista a factualidade apurada, resultou inequivocamente demonstrado que desde a data da celebração do contrato a ré e demais residentes na fracção locada vem produzindo, de forma voluntária, ruído, consistente em música alta, discussões, gritaria e conversas em voz alta, barulhos que eram ouvidos para além da meia noite e, por vezes, até às 2-3 horas da madrugada, mais frequentemente aos fins-de-semana, mas ocorrendo também durante a semana, prejudicando o descanso dos vizinhos e obrigando até à intervenção da força policial para fazer cessar o ruído.
O direito ao repouso, como vem entendendo o STJ, é um “bem indispensável à tranquilidade da vida familiar e à saúde, e, portanto, à integridade física e moral e à vida, que se integra no âmbito dos direitos de personalidade”, resultando violado “com a produção de ruídos que, pela sua frequência e intensidade, afetem o sono e a tranquilidade emocional dos visados, como fatores decisivos do desequilíbrio psicossomático”. Daí que, independentemente de se terem apurado ou não os decibéis, tendo resultado inequivocamente provado que o ruído produzido na fracção arrendada prejudicava o sossego e o repouso de terceiros em período que a lei impõe que seja de silêncio (cfr. o artigo 24.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo DL 9/2007, de 17 de Janeiro), estamos perante conduta ilícita e violação contratual que, pela sua reiteração e gravidade, objectivamente considerada – o barulho parecia o de uma discoteca, prolongando-se pela madrugada, conforme assente em 4 e 7 – torna inexigível a manutenção do contrato por banda da senhoria, aqui autora, sendo de lhe reconhecer o direito potestativo à resolução do mesmo.
Decorre do que se deixou dito não poder sancionar-se o juízo feito pela 1.ª instância que, apelando a critérios de proporcionalidade e configurando o litígio como um conflito entre os direitos ao sono e ao sossego e o direito à habitação, entendeu dever fazer prevalecer este último, e isto desde logo porque o direito ao uso e fruição do locado não inclui nem tutela o uso imprudente e contrário às regras que impõem respeito pelos direitos de personalidade dos vizinhos.
Verificada a existência de fundamento resolutivo, impõe-se a procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida.
Uma nota final apenas para esclarecer que, ao invés do que a apelante parece entender, ainda a ter resultado da audiência de julgamento que a ré já não habita o locado – e não, a circunstância de se ter dado como não provado que “o locado é para habitação da ré e dos seus dois filhos maiores”, não significa, a contrario, que tenha resultado provado que a ré já ali não resida – tal novo facto, integrando uma nova causa de pedir, para poder ser considerado teria que ser introduzido no processo através de articulado superveniente, seguindo a tramitação prescrita nos artigos 588.º e 589.º do CPCiv., a fim de a ré poder exercer o necessário contraditório. Não tendo a autora feito uso de tal expediente legal, não poderia obviamente um novo fundamento resolutivo ser atendido na sentença.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso e, em consequência, declaram resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré identificado no ponto 1 da matéria de facto julgada provada, condenando a ré a proceder à sua entrega livre e devoluto de pessoas e bens, com excepção daqueles que equipavam a fracção e constam da lista anexa ao mesmo contrato, sendo devidas as rendas vencidas na pendência da acção e até à efectiva entrega do locado.
Custas nesta e na 1.ª instância a cargo da ré apelada, que decaiu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.).
Évora, 22 de Maio de 2025
Maria Domingas Simões
Eduarda Branquinho
Vítor Sequinho dos Santos

Sumário: (…)
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[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.ª Adjunta: Exm.ª Sra. Desembargadora Eduarda Branquinho;
2.º Adjunto: Exm.º Sr. Juiz Desembargador Vítor Sequinho dos Santos.
[2] Tal interpretação mitigada do preceito ditou ainda o AUJ 12/2023, in DR n.º 220/2023, Série I, de 2023-11-14, que, incidindo sobre a alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º, veio uniformizar a jurisprudência no sentido de que nos termos desta alínea “o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
[3] Neste preciso sentido, o acórdão do TRC de 12/3/2019, processo 1047/15.8T8LMG.C1, acessível em www.dgsi.pt, destacando-se este ponto do sumário: “II. A previsão das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 1083.º do CC não pode ser dissociada do requisito geral que consta do corpo desse número (inexigibilidade, ao senhorio, de manutenção do contrato por força da gravidade ou das consequências do incumprimento do arrendatário), porque é este requisito que permite distinguir as situações de incumprimento cuja gravide justifica a resolução do contrato das situações de incumprimento que, pelo seu carácter isolado ou pela sua irrelevância e insignificância, não poderão ter idoneidade, em face dos princípios gerais de Direito e das regras de boa-fé, para determinar a cessação da relação contratual”.
[4] Neste sentido, Maria Olinda Garcia, in “A nova disciplina do arrendamento urbano”, 2006, pág. 23, e ainda acórdão do TRP de 14/10/2010, processo n.º 1451/09.0 TJPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt, que enuncia deste modo os pressupostos de resolução do contrato de arrendamento “1) incumprimento pela outra parte, que se presume culposo (artigo 799.º do Código Civil); 2) é necessário que o incumprimento seja (objectivamente) grave; 3) e que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento. Seja qual for o tipo de incumprimento contratual do locatário (…), a sua relevância para efeitos de resolução do contrato tem que ser ponderada casuisticamente, em face das circunstâncias concretas de cada contrato e de cada infracção, só podendo constituir fundamento de resolução as infracções que, pela sua gravidade e consequências, tornam inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento”. Neste mesmo sentido, e versando sobre a violação da obrigação contratual em causa nos presentes autos, o mais recente acórdão do TRG de 23/2/2017, processo n.º 3113/15.0T8GMR.G1, acessível no mesmo sítio.
[5] Cfr. o acórdão do TRP de 8 de Maio de 2010, processo n.º 451/09.4 TJPRT.P1, disponível no mesmo sítio; acórdão do TRL de 8/1/2012, processo n.º 18056/09.9 T2SNT.L1-6, e Ac. TRC de 4/6/2014, processo n.º 2603/10.6TBCBR.C1.
[6] Neste preciso sentido aresto do TRP de 14 de Abril de 2015, processo 306/13.9T2ETR.P1, acessível também em www.dgsi.pt, de que se destaca o seguinte ponto do sumário “O não uso do locado por mais de um ano constituiu, só por si, um incumprimento do contrato de arrendamento que torna inexigível a sua manutenção para o senhorio, não se tornando necessária qualquer prova acrescida de tal inexigibilidade”.
[7] Leis do Arrendamento Urbano Anotadas 2014, coordenação do Prof. Menezes Cordeiro, pág. 234.