PROCESSO CONTRAORDENACIONAL
TEMPESTIVIDADE DA IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Sumário

I - Em processo contraordenacional, não pode considerar-se intempestiva a apresentação de impugnação judicial que, embora ocorrida para além do prazo calculado nos termos previstos no artigo 59.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, observou contudo o prazo de 20 dias úteis subsequentes ao momento em que se verificou o evento que a autoridade administrativa, tal como havia informado os arguidos no processo, expressamente considerou como decisivo para o início da efetiva contagem de tal prazo.
II - Outro entendimento poria em causa o princípio da proteção da confiança na atuação das autoridades administrativas, bem como o direito fundamental de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva, mediante um processo equitativo.

Texto Integral

Processo n.º: 730/24.1T8ILH.P1
Origem: Juízo de Competência Genérica de Ílhavo (Juiz 1)
Recorrente: «A..., S. A.»
AA
Referência do documento: 19415890

I
1. Os aqui recorrentes (arguidos no processo) impugnam, com o presente recurso, decisão proferida no Juízo de Competência Genérica de Ílhavo (Juiz 1) do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, que rejeitou, por extemporânea, a impugnação que intentaram contra a decisão proferida, nestes autos, a fls. 105 e segs., pela Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos.
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida:
«Prescreve o artigo 59.º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO), que «o recurso é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões».
Acrescenta, por sua vez, o artigo 60.º, n.º 1 do RGCO, que «o prazo para a impugnação da decisão da autoridade administrativa suspende-se aos sábados, domingos e feriados».
Ainda de acordo com o n.º 2 do mesmo normativo «o termo do prazo que caia em dia durante o qual não for possível, durante o período normal, a apresentação do recurso, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte».
Ora, compulsados os autos, constata-se que a Recorrente A..., S.A. foi notificada da decisão administrativa em 9 de Abril de 2024 (cf. fls. 125 a 127) e o Recorrente AA foi notificado em 23 de Julho de 2024 (cf. fls. 172 e 172 verso); tendo ambos apresentado a respetiva impugnação judicial em 23 de Outubro de 2024 (cf. fls. 213), ou seja, após o decurso do prazo legal para o efeito.
Nestes termos, e em face do exposto, ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1 Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, rejeita-se o recurso interposto por A..., S.A. e AA, com fundamento em extemporaneidade.
Mais se condena os Recorrentes A..., S.A. e AA no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) Unidade de Conta por cada um dos Recorrentes – cf. artigo 94.º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
Notifique.»


3. O recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as injustificadamente verbosas «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«I – O presente recurso tem por objecto a decisão do tribunal a quo proferida em 02/12/2024 que, alegadamente «ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1 Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro», rejeitou o recurso interposto pelos recorrentes da decisão proferida em 11/09/2023, no processo de contra-ordenação n.º ..., pelo Sr. Subdirector-Geral da Direcção-Geral DGRM, «com fundamento em extemporaneidade».
II – A decisão recorrida foi proferida com fundamento em, tendo o recorrente AA sido notificado da decisão administrativa proferida no processo de contra-ordenação em 23/07/2024, em data posterior à da notificação feita à recorrente sociedade, o recurso de impugnação judicial de ambos ter sido apresentado em 23/10/2024, «ou seja, após o decurso do prazo legal para o efeito».
III – Quando ao recorrente AA foi dado conhecimento da decisão administrativa condenatória objecto de impugnação, ele encontrava-se em alto mar, ao comando do navio de Pesca denominado “...”, que exercia actividade de pesca nos pesqueiros da Organização das Pescarias do Noroeste do Atlântico, a cerca de 1800 milhas náuticas de Portugal continental.
IV – O funcionário da DGRM que procedeu a essa notificação em alto mar disse ao recorrente AA que o prazo de 20 dias úteis para impugnar a decisão notificanda só começaria a contar quando o navio chegasse ao porto de armamento.
V – Porém, de forma conflituante com essa informação verbal, na documentação que foi entregue ao recorrente, constavam menções a que a notificação se presumia efectuada no 3.º dia útil posterior à data do envio, e que a decisão se tornaria definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada no prazo de 20 dias úteis após a recepção daquela notificação.
VI – Tendo em consideração a divergência entre o que lhe havia sido referido pelo Inspector da DGRM que procedeu à notificação, e o teor dos documentos que integravam a mesma, em 26/07/2024, por correio electrónico, o recorrente AA comunicou à autoridade administrativa, designadamente, que nas condições em que se encontrava, estando a exercer funções de capitão num navio de pesca, com o dever de garantir a segurança dos tripulantes e do navio, e de assegurar a pesca, não podendo mobilizar o navio para arribar a porto, lhe era impossível defender-se, pois não tinha advogado, e não podia procurar e contactar um para preparar a sua defesa, para além de não ter documentos a bordo acerca do assunto.
VII – Em 26/07/2024, a Direção Serviços Jurídicos da autoridade recorrida remeteu ao recorrente mensagem na qual se referia, designadamente, que «a contagem do prazo se inicia no dia seguinte ao da sua realização» e que «querendo impugnar judicialmente a decisão não carece de defensor podendo ser apresentada pelo próprio».
VIII – Todavia, tal não poderia significar que fosse postergado ao recorrente o direito «à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade», para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, que constitucionalmente lhe é assegurado pelo art.º 20º-1-2 da CRP, nem que, enquanto arguido em processo de contra-ordenação, lhe pudesse ser coarctado o «direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo», garantido nos termos do art.º 32º-1-3-10 da CRP.
IX – Reagindo à referida mensagem da Direção Serviços Jurídicos da DGRM, em 29/07/2024 o recorrente para os Srs. Director-Geral e Subdirector-Geral daquela autoridade nova comunicação por correio electrónico, na qual referiu, designadamente, que, encontrando- se ele em plena faina da pesca em águas internacionais, a bordo de uma embarcação de bandeira portuguesa, o que para efeitos de realização de notificações não podia equivaler a que estivesse em Portugal continental; que a bordo não tinha meios para escolher um advogado da sua confiança, nem elementos que lhe permitissem permitam fazer essa defesa; se a DGRM persistisse em «considerar válida a notificação», contactaria a Procuradoria-Geral da República e a Provedoria de Justiça, no sentido de lhes dar conta dessa situação e de lhes pedir ajuda para lidar com ela.
X – Em resposta a essa comunicação, a Direção Serviços Jurídicos da DGRM, através de correio electrónico remetido aos recorrentes em 02/08/2024, informou aqueles de que «a contagem do prazo para eventual impugnação da decisão dos processos de contraordenação /…/ se deverá iniciar a partir da chegada a terra do arguido AA».
XI – Tendo em consideração o teor das comunicações dirigidas à DGRM pelo recorrente AA, as mesmas consubstanciavam arguição de invalidade da notificação que em 23/07/2024 lhe havia sido feita.
XII – Se tal notificação, feita em alto mar, viesse a ser considerada válida, e alguma vez pudesse admitir-se que o prazo previsto no art.º 59º-3 do RGCO podia correr na imediata sequência da notificação, não obstante o arguido/recorrente se encontrar embarcado, e, por conseguinte, (i) sem que o recorrente pudesse contactar com um advogado que aceitasse o caso, que com ele conferenciasse, o aconselhasse, e, se tal fosse o caso, redigisse a impugnação da decisão de aplicação de coima, e (ii) sem que o recorrente pudesse consultar a documentação referente à campanha de pesca do navio “...” em cujo âmbito a DGRM considerou ter sido cometida a infracção dos autos, a qual se encontrava em Portugal continental, e que era essencial para a decisão de deduzir ou não a impugnação, bem como para a fundamentação da mesma,
XIII – Seriam violados os mais elementares direitos de defesa que a lei ordinária (cfr. art.º 59º do RGCO, na vertente de direito ao recurso) e a Constituição (vd. art.ºs 20º-1-2 e 32º- 1-3-10 da CRP) asseguram a quem seja arguido em processo de contra-ordenação.
XIV – Assim, quando recebeu a mensagem de fls. 169, que esclareceu que o prazo para impugnação da decisão proferida no processo de contra-ordenação n.º ... se iniciaria com a sua «chegada a terra», o recorrente, de boa fé, levou em consideração o que aí lhe havia sido referido pela autoridade administrativa que proferia a decisão condenatória (e o mesmo o fez a recorrente sociedade, que também havia sido notificada daquela mesma comunicação).
XV – Veja-se que a autoridade administrativa recorrida, nos trâmites posteriores, também levou em consideração essa sua posição, o que se evidencia nos factos de em 26/09/2024, quando o recorrente AA chegou a terra (como capitão do navio “...”), disso ter sido dado conhecimento ao Sr. Chefe de Divisão da Divisão de Contra- ordenações / Direcção de Serviços Jurídicos, que nesse mesmo dia 26/09/2024, deu indicações que essa informação de chegada fosse encaminhada «Ao Núcleo de Processos, para imprimir e juntar ao processo de contraordenação n.º ..., para efeitos do início da contagem do prazo de impugnação dos arguidos - AA (capitão) - e - A..., SA. (armador)».
XVI – Assim, a DGRM só iniciou a contagem do prazo para impugnação judicial da decisão de aplicação de coima com a «chegada a terra do arguido AA», o que se evidencia em, no despacho em que após o recebimento por aquele do recurso, foi decidida a remessa dos autos ao MºPº, nos termos previstos no art.º 62º do RGCO, nunca tendo sequer sido colocada a questão da extemporaneidade do mesmo.
XVII – Sendo aplicável a norma do art.º 47º-4 do RGCO, a recorrente sociedade podia praticar o acto no mesmo prazo de que para o efeito dispunha o recorrente AA, pelo que, tendo início no dia 26/09/2024, em que o recorrente chegou ao porto de ..., a contagem do prazo de 20 dias úteis estatuído no art.º 59º-3 do RGCO, esse prazo terminava em 23/10/2024, que foi o da apresentação do recurso pelos recorrentes.
XVIII – Do exposto decorre ter sido tempestiva a apresentação do recurso, ao contrário do que foi decidido pelo tribunal a quo.
XIX – Os recorrentes não poderiam em caso algum ser prejudicados por eventual erro ou lapso que tivesse sido praticado pela autoridade recorrida, designadamente na indicação que por esta lhes foi dada quanto à contagem do prazo de recurso apenas com a chegada do recorrente AA a terra, ex vi do disposto no art.º 157º-6 do CPC, aplicável por remissão das disposições combinadas do art.º 41º do RGCO e do art.º 4º do CPP – uma vez que se trata de um caso omisso no CPP e que o disposto naquela norma do CPC, tutelando o princípio da confiança dos intervenientes processuais nas indicações que os tribunais (e entidades administrativas) lhes transmitem se harmoniza com o processo penal, deve este normativo aqui também aplicar-se, nos termos do art.º 4º do CPP.
XX – Esse complexo normativo consubstancia normas ordenadoras ou que têm subjacente a concretização de valores inerentes ao Estado de Direito material, designadamente os direitos de audiência e defesa que, como sucede no caso do processo criminal, são assegurados aos arguidos «[n]os processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios», por força do disposto no art.º 32º-10 da CRP, e que, de outra forma, poderiam vir a ser denegados.
POR CONSEGUINTE,
XXI – Para além de ser inadmissível, à luz das normas e dos princípios que regem processos sancionatórios como o de mera ordenação social, que o prazo de impugnação da decisão administrativa tivesse decorrido num período em que o recorrente AA se encontrava embarcado em navio de pesca (e na sua totalidade, pois o 20º dia útil posterior ao dia 23/07/2024 correspondia a 21/08/2028, quando o recorrente só desembarcou mais de um mês após esta data) e, consequentemente, em absoluto impedido de organizar a sua defesa e preparar a impugnação da decisão de que lhe havia sido dado conhecimento;
XXII – Também os recorrentes nunca poderiam ser prejudicados por terem levado em consideração o que expressamente lhes havia sido comunicado pela autoridade recorrida, no sentido que «a contagem do prazo para eventual impugnação da decisão dos processos de contraordenação /…/ se deverá iniciar a partir da chegada a terra do arguido AA»», e a que a própria DSGRM deu subsequente cumprimento.
XXIII – Não tendo aplicado a lei no sentido expendido nas conclusões supra, o tribunal a quo fez uma má aplicação do direito, devendo consequentemente, na procedência deste recurso, ser determinada a revogação da decisão recorrida, e a sua substituição por decisão que declare a tempestividade do recurso de impugnação apresentado pelos recorrentes em 23/10/2024.
Nestes termos, nos melhores de direito, e com o douto suprimento de Ex.as, deve ser admitido e julgado procedente o presente recurso, devendo em consequência ser revogada a decisão recorrida proferida em 02/12/2024, com os efeitos legais [...]».


4. Em resposta, concluiu o Ministério Público junto da 1.ª instância:
«O Ministério Público entende que efectivamente assiste razão aos Recorrentes, por imperativos de justiça material, aderindo ao entendimento por estes gizado e ancorado na jurisprudência e doutrina citadas, pelo que deverá o recurso ser considerado totalmente procedente e, em consequência, ser proferido novo despacho em que admita o recurso de impugnação apresentado, por tempestivo.»


5. O Ministério Público junto deste Tribunal aderiu às alegações do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando, também, pela procedência do presente recurso.
6. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.
II
7. O presente recurso merece provimento.
8. 1. A impugnação judicial apresentada nos autos pelos recorrentes respeitou o prazo que lhes foi fixado, para o efeito, pela autoridade administrativa, não podendo ser, nessa medida, considerada extemporânea.
9. Conforme decorre dos autos, a autoridade administrativa recorrida – se correta ou incorretamente é questão sobre a qual aqui não importa agora discorrer –, face à situação em que se encontrava o recorrente AA (embarcado e em alto mar), considerou expressamente «que a contagem do prazo para eventual impugnação da decisão dos processos de contraordenação supra identificados, [só] se dever[ia] iniciar a partir da chegada a terra do arguido», entendimento que comunicou aos diferentes sujeitos processuais por meio de mensagem de correio eletrónico remetida no dia 02/08/2024 e por estes recebida (cf. fls. 169), sendo que o aportamento da embarcação onde se encontrava o referido arguido, como também consta dos autos, ocorreu apenas no dia 26/09/2024 (cf. págs. 173 e v.º).
10. Daqui resulta que a autoridade administrativa recorrida nos autos adotou um comportamento que inequivocamente gerou nos recorrentes – a quem ela foi oportuna e regularmente comunicada – a expectativa de que a sua impugnação seria recebida desde que apresentada dentro do prazo legalmente previsto contado a partir do regresso do recorrente AA a terra, expectativa essa que se mostra perfeitamente legítima e justificada face às circunstâncias do caso, e que, nessa medida, merece ser tutelada, até por inexistirem quaisquer razões de interesse público que imponham solução contrária.
11. Outro entendimento normativo – que considerasse irrelevante o comportamento da autoridade aqui recorrida para efeitos da contagem do prazo para apresentação da impugnação judicial contra a decisão por ela proferida nos autos – poria em causa o princípio da proteção da confiança na atuação das autoridades administrativas, que se pode deduzir, como vem assinalando o nosso Tribunal Constitucional «do princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, e [que] constitui um dos princípios jurídicos fundamentais da atividade administrativa consagrados no n.º 2 do artigo 266.º (entendido, como refere a recorrente, como uma dimensão do princípio da boa fé)» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 500/2019), e porventura, o direito fundamental de acesso à justiça e a tutela jurisdicional efetiva mediante um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da Constituição (sobre o qual se pronuncia igualmente o mesmo Tribunal, no aresto citado).
12. Considerando a referida data de 26/09/2024 como dies a quo do prazo para a impugnação da decisão proferida, nestes autos, pela autoridade administrativa recorrida, é manifesto que a impugnação judicial intentada pelos recorrentes se mostra tempestiva.
13. Por consequência, o despacho recorrido não poderá deixar de ser revogado, para ser substituído por outro que – nada mais obstando – receba a impugnação judicial apresentada e determine o que mais se mostre necessário à ulterior tramitação dos autos.
14. 2. Face à decisão que irá ser proferida, não são devidas custas (artigo 93.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, a contrario).
III
15. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, julgando procedente o presente recurso, revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, nada mais obstando, admita a impugnação judicial apresentada nos autos e determine a ulterior tramitação processual que se mostre cabida no caso.
16. Sem custas (artigo 93.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, a contrario).

Porto, 28 de maio de 2025.
(acórdão assinado eletronicamente).
Pedro M. Menezes
Pedro Afonso Lucas
Pedro Vaz Pato