I - Os autos de declarações ou depoimentos prestados noutros processos, incluindo em processo disciplinar, cuja certidão conste de processo crime, não são considerados prova documental para efeitos de valoração como prova, ficando sujeitos às regras aplicáveis às declarações e depoimentos prestados em fases anteriores do próprio processo crime, que também não são livremente apreciados, estando sujeitos às regras estabelecidas nos arts. 356º e 357.º do CPPenal.
II - Essa prova, não sendo proibida por natureza, uma vez que nas condições adequadas podia ser avaliada, torna-se imprestável para fundamentar a decisão final do processo caso não sejam cumpridos os requisitos que permitiam essa ponderação, tornando-se por essa via (não substantiva, mas processual) prova proibida, não valendo em julgamento conforme se determina no n.º 1 do art. 355.º do CPPenal.
III - Numa situação em que tais elementos de prova foram ponderados no acórdão, incorrectamente, como prova documental, atentando contra o princípio da imediação e impossibilitando um eficaz contraditório dentro dos limites que o art. 356.º do CPPenal estabelece, é de reconhecer e declarar a nulidade do mesmo.
IV - A nulidade do acórdão decorrente da ponderação de prova que era proibida nos termos em que o foi [ponderada] determina – na impossibilidade da sua reparação pelo Tribunal de recurso – a baixa dos autos à 1.ª Instância para que o Tribunal a quo proceda a nova avaliação de toda a prova, dela excluindo a que foi declarada inválida para o efeito, e refaça a decisão, sendo caso disso, em termos de facto e de direito.
V - Esta nulidade faz retroagir o processo à fase da deliberação, confrontando-se o Colectivo de Juízes com um diferente acervo de prova, com que não contou no momento da deliberação inicial, sendo, por isso, de salvaguardar a possibilidade de ser necessário reabrir a audiência para produção de prova.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 2
Sumário:
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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Colectivo (por Crimes Militares) n.º 42/22.5NJPRT, a correr termos no Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 2, por acórdão de 19-12-2024 foi decidido:
«Nos termos e fundamentos exposto, as Juízas que compõem o Tribunal Coletivo julgam a acusação improcedente, por não provada e, em consequência:
- absolvem o arguido AA da prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efetivo, de dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas p. e p. pelo art. 95º al. c) do Código de Justiça Militar;
- absolvem o arguido BB da prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efetivo, de dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas p. e p. pelo art. 95º al. c) do Código de Justiça Militar.»
«I) Por douto acórdão proferido em 19/12/2024 foram absolvidos os arguidos AA e BB da prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efetivo, de dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas, p. e p. pelo art. 95º, al. c), do Código de Justiça Militar;
II) Não se conformando com a referida absolvição, o Ministério Público impugna o acórdão proferido, sobre matéria de facto e de direito, por considerar que o mesmo padece dos seguintes vícios:
- Nulidade do acórdão por falta de fundamentação;
- Vício de erro notório na apreciação da prova;
- Factos incorretamente julgados;
- Errada qualificação jurídico-penal dos factos.
III) Em relação à nulidade do acórdão por falta de fundamentação dispõe o artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, sobre os requisitos da sentença, que: “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
IV) Ora, da análise do douto acórdão objeto de recurso, constata-se que o Tribunal a quo, não obstante ter enunciado os meios de prova que foram por si valorados, consignando, uma súmula, o que foi dito pelas testemunhas e elencado as provas documentais por si valoradas, não expôs as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção e, por outro lado, de forma a permitir ao Tribunal de Recurso sindicar a decisão da primeira instância.
V) Na verdade, considera-se, com o devido respeito, que no acórdão recorrido, não obstante terem sido indicadas quais as provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, não foi efetuado o exame crítico de tais provas, carecendo, portanto, de fundamentação.
VI) Desta feita, o tribunal a quo não fundamentou o facto de não ter feito constar da factualidade dada como provada a descrição feita dos factos pelos ofendidos, tendo, inexplicavelmente, relevado, no geral, a versão dos factos trazida ao processo pelos arguidos.
VII) No que concerne aos factos não provados apenas fez constar da fundamentação que a formação da convicção do tribunal resultou da circunstância de nenhuma prova se ter produzido em audiência que tivesse a virtualidade de os afirmar, bem como o que foi referido pelos próprios ofendidos, sem justificar a razão pela qual não deu credibilidade à versão por estes apresentada.
VIII) Concluímos, desta forma, que padece o acórdão de falta de vício de falta de fundamentação, em obediência ao requisito do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo penal, o que, por si só, configura a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal.
IX) Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
X) Nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, este erro tem de decorrer da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.
XI) Pelo que, o Tribunal a quo, ao não dar como provado o teor dos artigos 1) a 6) e 10) a 15) da pronúncia errou, de forma notória, na apreciação da prova, quando deu como não provadas as alíneas a), g), h), i), l), parte da aliena s) e alíneas t) e u) dos factos não provados.
XII) Assim, deu o Tribunal a quo como provado que:
“1) Os arguidos AA e BB assumiam, à data dos factos, 8 de agosto de 2022, o posto de Cabo Adjunto da Polícia Aérea e exerciam funções no ... da Força Aérea, em ..., Ovar.
2) Na data dos factos, os militares com mais antiguidade no posto de Cabo Adjunto eram, por ordem decrescente, o arguido AA e o arguido BB.
3) Por sua vez, CC e DD assumiam, à data dos factos, o posto de Segundo Cabo, exercendo também funções no ..., desde o início do mês de agosto de 2022, e encontravam-se a fazer a adaptação ao serviço de controlo na Porta de Armas.
4) CC e DD, enquanto militares em adaptação, eram acompanhados pelo Furriel EE, no período das 09h00 às 17h00, e, no período entre as 17h00 e as 19h00, acompanhavam o condutor de serviço.
5) Este período de adaptação implicava a passagem por diversos serviços executados na Esquadra Proteção e Segurança do ..., pelo que interagiam com os militares das diferentes secções.
6) A partir das 19h00 o período de adaptação terminava e os ofendidos CC e DD estavam dispensados pela Esquadra Proteção e Segurança de qualquer atividade. (…)
10) Entretanto, o arguido BB, questionou os ofendidos CC e DD nos seguintes termos: “se estivesse alguém ferido em cima do telhado do bar de praças, o que é que fariam para resolver a situação?”, o que fez com que os mesmos tentassem aceder ao telhado, escalando-o.
11) Como os ofendidos CC e DD não conseguiram aceder ao telhado, o arguido AA subiu ao telhado, utilizando uma caleira presa à parede, existente na parte lateral do bar.
12) Já no telhado, o arguido AA disse aos ofendidos, “se eu consegui subir, vocês também conseguem”.
13) De seguida, os ofendidos CC e DD, decidiram subir ao telhado, imitando o arguido AA, o qual fica a uma altura do chão, de cerca de 2,60 a 4 metros (consoante o local do telhado).
14) Após, saltaram daquele telhado para o chão, na sequência de terem visto o arguido AA a fazê-lo.
15) Momentos depois, o arguido BB enfiou um saco plástico preto na cabeça do ofendido CC e o arguido AA enfiou um saco plástico preto na cabeça do ofendido DD.
(…)
XIII) Ora, esta factualidade dá como provadas, em suma, as posições militares dos arguidos e dos ofendidos, que os primeiros estavam numa posição hierárquica superior em relação aos segundos, seus subordinados e que, fora do horário de adaptação, os arguidos terão incitado, com palavras, os ofendidos, que lhes deviam obediência, a que subissem a um telhado e que, ainda, lhes colocaram um saco de plástico na cabeça, teria de conduzir, inevitavelmente, segundo as regras da experiência, à prova das alíneas a), g), h), i), l), parte da aliena s) e alíneas t) e u) dos factos não provados, das quais consta que:
a) Os arguidos AA e BB, sabendo que os ofendidos eram militares em adaptação e querendo aproveitar-se da superioridade que lhes era conferida pelos seus postos, decidiram em conjugação de esforços e na execução de um plano tacitamente acordado, constranger os ofendidos a praticar atos aos quais sabiam aqueles não estarem obrigados, intimidando-os para o efeito.
g) O arguido BB continuou a aproveitar-se da superioridade conferida pelo seu posto quando questionou os ofendidos nos termos referidos em 10), pretendendo que os mesmos, por temerem represálias, tentassem aceder ao telhado, escalando-o.
h) Aquando da sua subida ao telhado referida em 11), o arguido AA, também continuou a aproveitar-se da superioridade conferida pelo seu posto e questionou os ofendidos no sentido de saber porque não estavam já no telhado, se ele já lá estava.
i) No momento referido em 13) os ofendidos CC e DD subiram ao telhado, apesar de não o quererem fazer, porque se sentiram intimidados a fazê-lo do mesmo modo que tinha feito o arguido AA, ficando, assim, a uma altura do chão de cerca de três a quatro metros, atenta a autoridade inerente à antiguidade dos arguidos AA e BB.
l) Os sacos que foram enviados na cabeça dos ofendidos dificultaram-lhes a respiração.
s) Os arguidos AA e BB agiram de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e em execução de um plano tacitamente acordado, sabendo que as expressões proferidas e os comportamentos que adotaram eram adequados a constranger os ofendidos DD e CC, seus subordinados, (…) a saltarem do telhado do bar de praças, a colocarem um saco plástico na cabeça, tudo conforme acima descrito, e que os ofendidos não queriam fazer, nem a tal eram obrigados pelos deveres de serviço e da disciplina.
t) Os arguidos AA e BB atuaram com o intuito de provocar, como provocaram, medo e receio nos ofendidos, que apenas praticaram os atos que lhes foram ordenados pelos arguidos por temerem o comportamento destes e por estes serem mais antigos e terem um posto hierárquico superior.
u) Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
XIV) Como acima se deixou dito, salvo o devido respeito por opinião diversa, a mera leitura da decisão evidencia uma incongruência, nesta parte, entre a matéria que resultou provada, no que concerne aos elementos objetivos e a que se deu como não provada, referente ao elemento subjetivo que, em obediência às regras da experiência e da normalidade dos factos, terá de se dar como preenchido.
XV) Ora, tendo-se dado como assente a factualidade supra, e toda a prova valorada em sede de fundamentação, o tribunal a quo estava dotado de elementos suficientes para ter concluído e, por conseguinte, ter dado como provado, que os arguidos quiseram aproveitar-se da superioridade que lhes era conferida pelos seus postos na carreira militar, para constrangerem os ofendidos a praticar atos para os quais sabiam que não estavam obrigados, designadamente, quando os incentivaram a aceder ao telhado.
XVI) Esse constrangimento foi também querido e provocado, quando os arguidos colocaram um saco de plástico na cabeça de cada um dos ofendidos.
XVII) Os arguidos naturalmente sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não tendo sido, sequer, invocado qualquer desconhecimento das normas que regulamentam as condutas militares, desconhecimento esse que também não os beneficiaria.
XVIII) O princípio fundamental, quanto à prova, é o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Cód. Proc. Penal, nos termos do qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
XIX) Tendo em conta o referido princípio, não concordamos, com o devido respeito, com a apreciação e valoração que o Tribunal a quo fez da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, considerando que houve erro de julgamento no elenco da factualidade dada como provada e como não provada.
XX) Na verdade, as declarações prestadas pelos arguidos se revelaram comprometidas e divergentes da demais prova produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como das regras da experiência.
XXI) Referiram os arguidos que tudo se tratou de um convívio entre colegas e que os ofendidos apenas foram buscar cervejas e as beberam porque quiseram, bem como que voluntariamente fizeram exercícios físicos e subiram ao telhado.
XXII) No entanto, se apenas se tratou de um convívio entre colegas, qual a razão lógica que levou a que os ofendidos tivessem participado os factos de que foram vítimas e porque sentiram receio e constrangimento em obedecer às determinações dos arguidos, fora do horário do serviço e se sentiram coagidos a praticarem atos contrários ao regulamento militar, como beber bebidas alcoólicas, fazer exercícios físicos abusivos, subirem ao telhado e andarem vendados na bagageira de um carro.
XXIII) Os ofendidos ficaram visivelmente transtornados com o que aconteceu, sendo que, mesmo passados alguns dias, o referido transtorno era notório quando chamados à esquadra para esclarecimento do sucedido, altura em que terão lacrimejado e, após chorado.
XXIV) Os ofendidos não sabiam, sequer, onde as referidas cervejas, cuja posse não era permitida no local, se encontravam escondidas, pelo que não se compreende como é que os mesmos, sem determinação dos arguidos, pudessem ter ido buscá-las a uma camarata, o que faz realçar, desde logo, a falta de credibilidade dos seus depoimentos, bem como a notória tentativa que os mesmos fizeram em que não lhes fossem imputadas ordens ilícitas.
XXV) Por outro lado, o arguido FF não admitiu, ao contrário do relatado pelos ofendidos, terem dado ordem para os mesmos fazerem “pulos de galo”, abdominais ou prancha. De forma contrário, declarou o arguido BB, quando referiu que fizeram também flexões e abdominais.
XXVI) A falta de coerência e de razoabilidade do depoimento prestado pelo arguido BB resulta, ainda, do teor das declarações que prestou, algumas das quais irrazoáveis, como quando disse que o ofendido DD lhe terá dito que adorava beber e que o ofendido CC terá dito que também poderia beber, o que por si só denota que alguém lhe terá dito para o fazer.
XXVII) Os seus depoimentos divergem, ainda, dos declarações dos ofendidos, quando referiram que apenas fizerem o destroçar pelo facto de os ofendidos terem dito que estavam tristes por nunca o terem feito, quando os ofendidos afirmaram, de forma credível, que já o tinham feito por diversas vezes e negaram que lhes tivessem pedido para o fazer.
XXVIII) Mais disse o arguido BB, ao contrário de toda a prova produzida, não saber quem tinha colocado os sacos na cabeças dos ofendidos, quando se provou que um dos sacos tinha sido colocado por ele e referiu, ainda, que os ofendidos estavam motivados para cumprirem tudo o que foi determinado.
XXIX) Por sua vez, as declarações prestadas pelos ofendidos mostraram-se convergentes e consentâneas com as regras da experiência e demais prova produzida em julgamento.
XXX) Também da análise de processo disciplinar junto aos autos como Apenso 1 e que foi valorado pela Tribunal a quo, constata-se que deveria ter sido dada como provada a factualidade constante dos factos não provados, por ter sido referida, não só no processo disciplinar, mas também em audiência de discussão e julgamento.
XXXI) As declarações prestadas pelas testemunhas Capitão GG, HH e II foram isentas, objetivas e imparciais, tendo relatado, de forma coincidente, que os ofendidos, quando foram chamados, estavam traumatizados, abalados e assustados e com a voz a tremer.
XXXII) As testemunhas JJ e KK, ambos ex-arguidos nos autos e a testemunha LL, nada de relevante trouxeram para o processo, tendo referido desconhecer a maioria das situações ocorridas, em depoimentos que se revelaram comprometidos, parciais e interessados.
XXXIII) As testemunhas MM, NN e OO referiram que os ofendidos queriam terminar com o processo. No entanto, mesmo a ser verdade, tal seria demonstrativo do receio e medo que sentiram, na altura, de virem a sofrer represálias, o que na realidade acabou por acontecer.
XXXIV) Considerou o Tribunal Coletivo que “os próprios ofendidos autocolocaram-se a pressão e a obrigação de fazer o que lhes fosse ditos pelos camaradas mais velhos, fossem estes arguidos ou outros camaradas”.
XXXV) Ora, se por um lado, consideramos ter existido pressão sobre os ofendidos, no sentido de os mesmos se sentirem obrigados a fazer aquilo que lhes foi determinado pelos arguidos, tal não foi da responsabilidade dos ofendidos, mas decorreu do facto de os arguidos se encontrarem numa posição hierárquica superior e estarem responsáveis pela sua adaptação, pelo que os ofendidos lhes deviam obediência.
XXXVI) Pelo que o Tribunal a quo errou quando apreciou a prova produzida em audiência, nos termos em que o fez, mostrando-se incorretamente julgados os seguintes FACTOS DADOS COMO PROVADOS:
XXXVII) - “19) Chegados ao “Portão Sul”, cerca da 01h00 do dia 9 de agosto de 2022, os ofendidos saíram da viatura e tiraram os sacos da cabeça”.
- Devendo antes ser dado como provado que: Chegados ao “Portão Sul”, cerca da 01h00 do dia 9 de agosto de 2022, os ofendidos saíram da viatura e os arguidos tiraram-lhes os sacos da cabeça”.
- Na verdade, e em relação a quem retirou os sacos de plástico das cabeças dos ofendidos, quando saíram da bagageira do veículo onde foram transportados pelos arguidos, todos os inquiridos, arguidos e ofendidos, foram unânimes e convergentes em referir que foram os arguidos que retiraram os sacos de plástico que em momento anterior tinham colocado nas cabeças dos ofendidos (Declarações prestadas pelo arguido AA - Sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, minuto 27:20 e sg.; Declarações prestadas pelo arguido BB -Sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, minuto 16:46 e sg.; Declarações prestadas pelo assistente DD - Sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, Minuto 32:30 e sg., Declarações prestadas pela testemunha CC - Sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, Minuto 11:47e sg.).
XXXVIII) - 21) Os ofendidos CC e DD saíram daquele local, em corrida até ao seu alojamento, pelas 02h40 do dia 9 de agosto de 2022.
Devendo dar-se como provado que: Os ofendidos CC e DD saíram daquele local, em corrida até ao seu alojamento, entre as 03h00m e as 04h00 do dia 9 de agosto de 2022. (Nesse sentido: Declarações prestadas pelo assistente DD - Sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, Minuto 32:30 e sg. e Declarações prestadas pela testemunha CC, Minuto 38:25 e sg.)
XXXIX) - Da contestação dos arguidos:
- 22)Nos momentos referidos em 8) e 9), ocorridos depois do jantar do dia 08.08.2022, estiveram a conviver no bar da sala de praças do ..., os ofendidos CC, DD, os arguidos AA e BB, e ainda os militares KK, JJ e LL.
23)Aí, todos os que quiseram beberam umas cervejas (…)
24)Quem quis ingerir as cervejas fê-lo de livre vontade.
- Em consonância deviam ter sido dadas como provadas as alienas c) e d) dos factos dados como não provados:
c) E, por ordem dos arguidos AA e BB, sempre que um dos ofendidos terminava de beber uma cerveja, o outro tinha de terminar de imediato a cerveja que estava a beber, sendo certo que era do conhecimento dos arguidos que o ofendido CC não gostava de beber bebidas alcoólicas, por este lhes ter dito.
d) Os ofendidos acataram estas ordens atenta a superioridade que era conferida pelo posto dos arguidos.
Tais factos encontram-se incorretamente julgados, uma vez que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não resulta provado que os ofendidos e os arguidos estiveram “a conviver” no bar da sala de praças, mas apenas que “estiveram no bar da sala de praças do ..., os ofendidos CC, DD, os arguidos AA e BB, e ainda os militares KK, JJ e LL”, pelo que deverá ser eliminado o termo “conviver”.
Deverá dar-se como não provado que:
“23) Aí, todos os que quiseram beberam umas cervejas (…) 24) Quem quis ingerir as cervejas fê-lo de livre vontade”.
Isto porque resulta das declarações prestadas pelos ofendidos, que se mostraram credíveis, que apenas se deslocaram ao bar de praças por imposição dos arguidos e que apenas beberam cervejas pelo facto de os arguidos os terem coagido a fazê-lo (Declarações prestadas pelo assistente DD - Sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, Minutos 04:12 e sg. e 11:11 e sg.; Declarações prestadas pela testemunha CC - Sessão de gravação do dia 18 de novembro de 2024, Minutos 20:17, 03:38, 05:45 e sg.,31:16 e sg.
Pelo que não mereceram, nesta matéria e de forma divergente da atendida pelo Tribunal a quo, qualquer credibilidade as declarações prestadas pelos arguidos, tendo o arguido BB referido, de forma que vai contra a normalidade dos factos e as regras da experiência, na sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, Minuto 01:10 e sg, em resposta à Mma. Juíza, que: “questionei-lhes se estavam a beber e se gostavam de beber álcool, em que o Sr. DD responde que eu adoro beber álcool e o Sr. CC diz se o meu irmão de curso bebe eu também não me importo de beber”.
A falta de razoabilidade do teor das declarações proferidas por este arguido, só fazem realçar a sua falta de credibilidade, pelo que não deverão ser atendidas pelo Tribunal. Além do que, quando uma pessoa diz que não se importa de beber é porque alguém lhe está a dizer que beba.
XL)- 27)Sendo que a sua colocação na cabeça dos ofendidos teve apenas como finalidade não permitir aos ofendidos ver o caminho que estavam a percorrer, no âmbito de um jogo/brincadeira de orientação espacial dentro das instalações do ... da Força Aérea, em ..., Ovar, que os arguidos pretenderam fazer com aqueles, sendo que o intuito era perceber/constar se os ofendidos sabiam localizar-se junto com os demais do local para onde foram levados - portão sul e se saberiam regressar para ao alojamento de praças.
- Deverá ser eliminada da factualidade constante do artigo 27) a palavra “apenas” e em vez de “ no âmbito de um jogo / brincadeira de orientação espacial” – deverá se dar como provado “no âmbito de uma praxe” e no lugar de “que os arguidos pretenderam fazer com aqueles” terá de se dar como provado “que os arguidos impuseram aos ofendidos”, devendo também ser eliminado / dado como não provado, ainda: “sendo que o intuito era perceber/constar se os ofendidos sabiam localizar-se junto com os demais do local para onde foram levados - portão sul e se saberiam regressar para ao alojamento de praças”, uma vez que da prova produzida resulta que o objetivo, conseguido, terá sido intimidar os ofendidos, fazer com os mesmos sentissem medo, demonstrando a sua superioridade hierárquica e supremacia em relação aos recém-chegados em período de adaptação.
- 28) Depois de terem estado no Portão Sul, os arguidos AA e BB, os ofendidos DD e CC e ainda LL regressaram ao alojamento de praças a correr e a pé, a cantar o hino da especialidade, e foram descansar.
Toda a prova produzida, nomeadamente as declarações dos ofendidos, foi no sentido de terem ido a correr, não tendo qualquer um dos inquiridos referido que tenham ido a pé, pelo que deverá ser eliminada a expressão “e a pé” (Nesse sentido: Declarações prestadas pelo assistente DD - Sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, Minuto 34:5 e sg.)
XLI) - 30) Neste dia 09, os ofendidos e os arguidos passaram o dia todo juntos sem que tivesse havido qualquer conversa ou comentário de desagrado, de desconforto, de desalento, de intimidação sobre o que havia ocorrido na madrugada e dia anterior, tendo decorrido tudo com normalidade, não tendo sido percetível aos arguidos que os ofendidos tivessem ficado perturbados com o convívio e brincadeiras da noite e madrugada anteriores.
31)No dia 12/08/2022, data em que os arguidos foram notificados da instauração do processo disciplinar, estes almoçaram juntos na mesma mesa com os ofendidos e com os militares MM e LL, sendo que, o ambiente era de boa disposição entre todos.
Considera-se que a parte final e sublinhada dos artigos 30.º e 31.º deverá ser dada como não provada, atento o estado transtornado e aterrorizado em que ambos os ofendidos ficaram após os factos ocorridos na noite e madrugada do dia 8 e que resulta de forma clara das suas declarações (Declarações prestadas pelo assistente DD - Minuto 36:46 e sg. e Declarações prestadas pela testemunha CC, Minuto 21.00 e sg.)
XLII) - 32) E dias mais tarde os ofendidos admitiram em conversa que os factos ocorridos não justificariam a queixa e/ ou denúncia existente.
33) E pretenderam mesmo retratar-se e fizeram-no junto do Capitão GG, mas tal foi desvalorizado por este.
Considera-se que a factualidade constante dos artigos 32.º e 33.º foi erradamente dada como provada, atendendo ao teor das declarações prestadas em audiência (Declarações prestadas pela testemunha CC, Minuto 45: e sg,; pela testemunha GG, militar da Força Aérea que recebeu a participação - Minuto 5:33 e sg., pela testemunha HH-Minuto 04:18 e sg. e pela testemunha II, Minuto 07:13 e sg..
XLIII) -B – FACTO PROVADO QUE DEVERÁ SER REFORMULADO
15) Momentos depois, o arguido BB enfiou um saco plástico preto na cabeça do ofendido CC e o arguido AA enfiou um saco plástico preto na cabeça do ofendido DD.
Tal facto deverá ser reformulado, passando a ter a seguinte redação:
15) Momentos depois, quando os ofendidos se encontravam de costas, com a cabeça encostada à parede e de mãos atadas, o arguido BB enfiou um saco plástico preto na cabeça do ofendido CC e o arguido AA enfiou um saco plástico preto na cabeça do ofendido DD.
Nos termos da defendida redação temos as declarações prestadas pelo assistente DD, Minuto 25:00 e sg. e as Declarações prestadas pela testemunha CC - Militar da Força Área - Sessão de gravação do dia 18 de novembro de 2024, Minutos 10:57e sg. e 01:04:03 e sg.)
XLIV) C - FACTOS DADOS COMO NÃO PROVADOS
- Da matéria que deverá passar a constar do quadro factual dado como provado no douto acórdão.
b) Os arguidos AA e BB, sabendo que os ofendidos eram militares em adaptação e querendo aproveitar-se da superioridade que lhes era conferida pelos seus postos, decidiram em conjugação de esforços e na execução de um plano tacitamente acordado, constranger os ofendidos a praticar atos aos quais sabiam aqueles não estarem obrigados, intimidando-os para o efeito.
b) Os ofendidos CC e DD realizaram os exercícios físicos referidos em 9) porque os arguidos AA e BB lhes ordenaram que os fizessem.
c) E acataram tais ordens por aqueles serem mais antigos e terem um posto hierárquico superior e temerem a sua reação caso não acatassem as ordens.
Considera-se que também esta factualidade devia ter sido dada como provada, por decorrência dos artigos 1.º a 6.º da factualidade dada como provada, que devem ser analisados de acordo com as regras da experiência e da normalidade como as coisas acontecem.
A confirmar a factualidade referida temos, igualmente, as declarações prestadas em audiência (Declarações prestadas pelo assistente DD -Sessão de gravação do dia 11 de novembro de 2024, Minutos 14:22 e sg., 16:31 e sg., 17:28 e sg. e 21:45 e sg., Minuto 25:00 e sg. e Declarações prestadas pela testemunha CC - Minuto 01:06:04 e sg.).
XLV) g) O arguido BB continuou a aproveitar-se da superioridade conferida pelo seu posto quando questionou os ofendidos nos termos referidos em 10), pretendendo que os mesmos, por temerem represálias, tentassem aceder ao telhado, escalando-o.
h) Aquando da sua subida ao telhado referida em 11), o arguido AA, também continuou a aproveitar-se da superioridade conferida pelo seu posto e questionou os ofendidos no sentido de saber porque não estavam já no telhado, se ele já lá estava.
i) No momento referido em 13) os ofendidos CC e DD subiram ao telhado, apesar de não o quererem fazer, porque se sentiram intimidados a fazê-lo do mesmo modo que tinha feito o arguido AA, ficando, assim, a uma altura do chão de cerca de três a quatro metros, atenta a autoridade inerente à antiguidade dos arguidos AA e BB.
j) Os ofendidos saltaram para o chão no momento referido em 14), apesar de não o quererem fazer e temerem magoarem-se no salto, porque foram instados para tanto pelo arguido AA e se sentiram obrigados a saltar do telhado para o chão, o que fizeram por temerem represálias.
k) De seguida, os arguidos AA e BB continuaram a ordenar aos ofendidos CC e DD que realizassem os exercícios físicos acima referidos – flexões, pulos de galo, abdominais e prancha –, o que estes continuaram a acatar fazer por temerem represálias.
Considera-se que a factualidade constante das alíneas g) a k) deveria ser, também, dada como provada, não apenas como decorrência de toda a factualidade dada como assente, mas porque foi reiterada de forma convergente e consistente, pelos ofendidos -Declarações prestadas pela testemunha CC - Minutos 07:30 e sg., 09:13 e sg., 17:02 e sg. e 35:14 e sg. e Declarações prestadas pelo assistente DD - Minuto 17:25 e sg.).
XLVI) Os sacos que foram enfiados na cabeça dos ofendidos dificultaram-lhes a respiração.
l) Durante este percurso, o ofendido DD rasgou o saco plástico que tinha na cabeça por estar a sentir-se sufocado.
m)Os ofendidos saíram da viatura porque os arguidos os mandaram fazê-lo e foram aqueles que lhes tiraram os sacos da cabeça.
n) Nesse local, os arguidos AA e BB continuaram a ordenar aos ofendidos que bebessem bebidas alcoólicas e realizassem os exercícios físicos acima referidos, o que estes continuaram a fazer por temerem represálias.
A factualidade constante das alíneas l) a o) também foi, erradamente, dada como não provada, uma vez que resulta das regras da experiência que qualquer pessoa com um saco de plástico enfiado na cabeça até ao pescoço não respira com a mesma facilidade como o fizesse sem o mesmo.
O facto de os ofendidos não terem tirado os sacos da cabeça, em frente aos arguidos, só se justifica pelo facto de os mesmos se sentirem intimidados, na presença dos arguidos, cuja superioridade hierárquica reconheciam.
Nesse sentido: Declarações prestadas pela testemunha CC -Minuto 10:57e sg., Minuto 36:26 e sg. Minuto 01:04:03e sg., Minuto 11:47e sg., Minuto 37:53 e sg. e Declarações prestadas pelo assistente DD - Minuto 25:00 e sg., Minuto 31:22 e sg.) e Declarações prestadas pelo arguido BB - Minuto 15:23 e sg.)
XLVII) Momentos mais tarde, o arguido AA, continuando a aproveitar-se da superioridade que lhe era conferida pelo posto, dirigiu-se junto do ofendido CC e, sem que nada o fizesse prever, desferiu-lhe uma cabeçada.
Tal facto devia ter sido dado como provado, atendendo às declarações prestadas pela testemunha CC, Minuto 14:07e sg.
XLVIII) De seguida, o arguido AA encostou a sua cabeça à cabeça do ofendido DD, intimidando-o.
O referido facto devia ter sido dado como provado, atentas as declarações prestadas pelo assistente DD - Minuto 41:09 e sg.
XLIX) Os ofendidos saíram do local, no momento referido em 21), após terem sido autorizados pelos arguidos AA e BB a abandonar o local em corrida até ao bar de praças, tendo de seguida sido dispensados.
o) Os arguidos AA e BB agiram de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e em execução de um plano tacitamente acordado, sabendo que as expressões proferidas e os comportamentos que adotaram eram adequados a constranger os ofendidos DD e CC, seus subordinados, a consumirem bebidas alcoólicas, a praticarem exercício físico, a saltarem do telhado do bar de praças, a colocarem um saco plástico na cabeça, tudo conforme acima descrito, e que os ofendidos não queriam fazer, nem a tal eram obrigados pelos deveres de serviço e da disciplina.
p) Os arguidos AA e BB atuaram com o intuito de provocar, como provocaram, medo e receio nos ofendidos, que apenas praticaram os atos que lhes foram ordenados pelos arguidos por temerem o comportamento destes e por estes serem mais antigos e terem um posto hierárquico superior.
q) Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
- Considera-se também que foram incorretamente julgados os factos constantes das alienas r) a u), como decorrência de toda a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo e aquela que acima se mencionou que terá também de vir a ser considerada provada com uma análise adequada da prova produzida, em respeito à regras de experiencia e de normalidade dos factos.
- Como foi dado como provado, nos artigos 1.º e sg, os arguidos bem sabiam que se encontravam numa posição hierárquica superior em relação aos ofendidos, que se encontravam a fazer a adaptação ao serviço de controlo na Porta de Armas, entre o período das 09h00 e as 19h00, pelo que qualquer ordem que os mesmos lhes dessem iria ser encarada de forma intimidatória e de obediência devida pelos ofendidos, mesmo que não fosse conforme o regulamento militar, como a de consumo de bebidas alcoólicas, de praticarem exercício físico excessivo, nas horas de descanso, de saltarem do telhado do bar de praças e de não retirarem o saco de plástico que lhes tinha sido colocado na cabeça.
-Decorre também das regras de experiência e da envolvência em que os ofendidos se encontravam, que os mesmos se sentiriam constrangidos e obedecer às ordens que lhe fossem dadas, pelo que os arguidos, ao atuar da forma como o fizeram, fizeram-no com essa consciência e com dolo de provocar nos ofendidos esse sentimento de intimidação. - Os arguidos, como militares que eram, bem sabiam que não poderiam agir dessa forma e que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
L) Em relação à QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS considerou o tribunal a quo que nenhuma ação dos arguidos se provou no sentido de que estes impuseram aos ofendidos a adoção dos comportamentos que efetivamente levaram a cabo (e que não estavam obrigados a fazer) através de ameaça e/ou violência – antes aparentando a descrição factual que os militares ofendidos aceitaram o convívio de praxe com a ingestão de bebidas alcoólicas e realização de jogos e exercícios.
LI) Concluiu pela falta de prova do preenchimento dos elementos objetivos típicos dos crimes de abuso de autoridade por outras ofensas, pelo que absolveu os arguidos da prática dos que crimes por que se encontravam acusados e pronunciados.
LII) No entanto, discordamos, em absoluto, de tal conclusão, uma vez que defendemos que os factos praticados pelos arguidos e que o Tribunal a quo deu como provados seriam, por si só, suscetíveis de integrar a prática do crime pelo qual foram os mesmos pronunciados.
LIII) Ora, no âmbito do presente processo os arguidos AA e BB foram acusados e pronunciados pela prática de dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas.
LIV) Comete o crime de abuso de autoridade por outras ofensas, p. e p. pelo art. 95.º, al. c), do Código de Justiça Militar (Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro) "o militar que por meio de ameaças ou violência constranger algum subordinado a praticar quaisquer atos a que não for obrigado pelos deveres de serviço ou da disciplina".
LV) Ora, os sujeitos ativos do crime de abuso de autoridade por outras ofensas. têm de ser militares, por força do disposto no art. 4.º do referido diploma.
LVI) Como elementos objetivos, o dito crime exige o constrangimento do sujeito passivo, um subordinado do sujeito ativo, a adotar um determinado comportamento, que pode ser todo e qualquer um, desde que o subordinado não seja a ele obrigado pelos deveres de serviço ou da disciplina.
LVII) O meio de constrangimento consiste na violência ou na ameaça, dependente da vontade do sujeito ativo e que, tendo em conta as circunstâncias concretas do sujeito passivo, seja visto pelo homem comum como suscetível de o constranger.
LVIII) Esta “violência” tem de ser, desde logo, analisada e enquadrada no conceito de violência que também é usado pelo nosso legislador, no Código Penal e, em especial, no Código de Justiça Militar.
LIX) A título de exemplo pode ver-se o conceito de violência usado no crime de coação, previsto no art. 154.º do Código Penal e a anotação a este artigo redigida por Américo Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, em que este autor refere que a violência pode ser usada através de intervenção de força física, mas também através de condutas omissivas /psíquicas, sendo apenas exigível que afete sensivelmente a liberdade de ação da pessoa visada, de forma a constranger esta a adotar um comportamento visado pelo agente.
LX)Trata-se de um crime de resultado pelo que a consumação exige que a pessoa objeto da ação de constrangimento tenha, efetivamente, sido constrangida a praticar uma ação, de acordo com a vontade do sujeito ativo, sendo a mesma contrária aos deveres de serviço ou de disciplina.
LXI) Sob o ponto de vista subjetivo, o dito ilícito exige o dolo, isto é, o conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo) por parte do agente de adotar a referida conduta, demonstrando, com a sua execução, uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídicopenal.
LXII) O crime de abuso de autoridade por outras ofensas, assim como a maioria de todos os crimes estritamente militares, visa proteger princípios estruturantes da instituição militar, assim como os bens jurídicos de respeito, urbanidade e correção entre camaradas de armas.
LXIII) Na verdade, a coesão militar só se alcança com a observância de regras de disciplina militar e de obediência hierárquica, cuja implementação exige o exercício de autoridade, mas também a correção, o respeito e a urbanidade, que são condição do êxito da missão a cumprir.
LXIV) Exige-se, pelo exposto, que o ilícito se mantenha no âmbito estritamente castrense, o que significa que só se pode submeter à jurisdição militar aquelas infrações que afetem inequivocamente interesses de carácter militar e que, por isso mesmo, hão-de ter com a instituição militar uma qualquer conexão relevante, quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional.
LXV) Tem sido entendido que integram os “atos a que não for obrigado pelos deveres de serviço ou da disciplina”, a exigência de exercícios físicos de destreza e/ou resistência, mesmo que constantes no programa de Instrução Militar (Ex: Ginástica de Aplicação Militar), quando exigíveis fora daquele contexto, desde logo por não constantes de qualquer Programa de Instrução, Diretiva ou Determinação de serviço, ou à margem de qualquer causa justificativa, de que são exemplo as situações de "praxes".
LXVI) Isto porque nas alegadas “praxes” ocorrem, não raras vezes, situações de (manifestos) abusos por parte de alguns militares sobre inferiores hierárquicos, normalmente concretizados em exercícios físicos ou em ação psicológica, uns e outros de exigência desproporcionada (e injustificada).
LXVII) Desta forma, comete o crime de abuso de autoridade, por atentar contra o adequado relacionamento hierárquico, bem como contra os princípios éticos da confiança e respeito indispensáveis à manutenção daquele. “Um 1. Cabo que, nas funções de Cabo de Dia decidiu, enquanto superior hierárquico e invocando distúrbios na caserna após o Toque de silêncio, que se não vieram a comprovar - exigir aos militares recrutas diversas sessões de exercícios físicos (reiteradas ordens para formar, realização de extensões de braços, rastejar), sem justificação e fora das horas normais de serviço ou de qualquer instrução programada para o efeito,).” - In Código de Justiça Militar Anotado (Projeto) – Anotações e Comentários coligidos pelo Coronel José Júlio Barros Henriques (Assessor Militar do Ministério Público).
LXVIII) Por outro lado, o crime de abuso de autoridade por outras ofensas, p. e p. pelo artigo 95.º, tem de ser analisado, não só em obediência aos princípios subjacentes aos crimes especificamente militares – que visam promover e defender a disciplina, coesão, segurança e respeito pela dignidade humana e regras, de um abuso, mas também de forma sistemática, e em comparação com os demais artigos deste Código, em especial, o artigo 93.º, de epígrafe, “Abuso de autoridade por ofensa à integridade física”, que pune com pena de prisão de 2 a 8 anos, “1 - O militar que ofender o corpo ou a saúde de algum subordinado no exercício das suas funções e por causa delas”.
LXIX) Posto isto, só faz sentido a previsão do artigo 95º, que pune com pena bastante mais leve do que a prevista no artigo 93.º (pena de prisão de 1 mês a 2 anos), não obstante prever um elemento objetivo extra – “constranger algum subordinado a praticar quaisquer atos a que não for obrigado pelos deveres de serviço ou da disciplina" - para integrar atuações praticadas por militares que envolvam outro tipo de violência que não a física, que integraria a previsão do artigo 93.º do mesmo Código.
LXX) Assim sendo, considera-se que a “ratio legis” do crime de abuso de autoridade por outras ofensas não poderá ser outra que não a de punir criminalmente situações de violência psicológica, como são as que decorrem do aproveitamento de uma posição hierárquica superior em relação a um subordinado.
LXXI) Ora, os arguidos AA e BB eram, à data dos factos, militares da Força Aérea e exerciam funções como militares com o posto de Cabo Adjunto da Polícia Aérea, no ... da Força Aérea, em ..., Ovar.
LXXII) Ficou demonstrado que no dia 08.08.2022, depois das 19 horas, quando já estava findo o horário de adaptação dos ofendidos, e estes estavam dispensados de qualquer serviço, os arguidos AA e BB, cabos adjuntos da Polícia Aérea, com maior antiguidade, determinaram que os aqui ofendidos DD e CC tivessem de se deslocar ao Bar dos Praças, onde lhes foi dada ordem de que tinham de ir buscar as cervejas ao quarto de um camarada, e, depois, as beberem, mesmo sem o quererem fazer, tendo o ofendido CC referido que não gostava de beber álcool.
LXXIII) Tiveram, ainda, de subir ao telhado, apesar de alcoolizados, e dali descerem, imitando o cabo AA.
LXXIV) Colocaram-lhes sacos de plástico pretos de lixo na cabeça, sem a sua vontade e consentimento.
LXXV) Sem qualquer explicação lhes ter sido dada, foram conduzidos na carrinha da Polícia Aérea até ao Portão Sul, onde lhes foi ordenado que fizessem mais exercícios físicos e que, por fim, fossem a correr até ao alojamento.
LXXVI) Não obstante não se ter demonstrado, nem aliás constava da acusação, que os arguidos tenham usado da força física para constrangerem os ofendidos a praticar exercícios físicos excessivos, beberem cervejas contra a sua vontade, subirem ao telhado alcoolizados e levados, encapuzados, para um sítio desconhecido, onde tiveram de fazer mais exercícios físicos, alguns não permitidos na Força Aérea, até de madrugada, quando teriam de estar acordados e ao serviço pouco tempo depois, fizeram os arguidos uso de violência psicológica, ao constrangerem os ofendidos, seus subordinados, perante superiores hierárquicos que estavam responsáveis pelo seu acolhimento e a quem deviam respeito e obediência.
LXXVII) Por outro lado, ao terem levado os ofendidos à ingestão de bebidas alcoólicas até ao estado de embriaguez, colocaram em risco a sua integridade física, nomeadamente na subida e posterior salto do telhado da sala de praças, com altura de 3 a 4 metros.
LXXVIII) De forma especial e mais gravosa tem de ser analisado o comportamento dos arguidos, ao enfiarem os sacos na cabeça dos ofendidos, quando os mesmos se encontravam de costas e de mãos atadas, o que, em termos abstratos, poderia até configurar um crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, uma vez que violaram, com o seu comportamento, a integridade física dos ofendidos, dificultando, naturalmente, a sua respiração e impedindo a sua visibilidade.
LXXIX) Assim, sendo o comportamento dos arguidos violador da dignidade e integridade física de qualquer pessoa, mais o será no âmbito dos crimes estritamente militares, em que estes agentes têm de pautar a sua conduta pelo respeito pelos interesses comuns e individuais dos camaradas, sob pena de se tornar o regime militar num regime discricionário e autoritário, em que os superiores hierárquicos poderiam exercer um poder tirano e arbitrário sobre os subordinados, escudados em “brincadeiras” e “jogos” de mau gosto.
LXXX) Mais se considera que os comportamentos de que foram alvo os ofendidos privaram-nos, em certa parte, da sua liberdade, especialmente quando foram encapuzados, colocados na bagageira da viatura de serviço, transportados até à zona do portão sul da Unidade, que se trata de uma zona remota, isolada e sem iluminação.
LXXXI) Tais comportamentos, manifestamente contra os valores e tradições militares, não promoveram a coesão e a segurança, colocaram em risco a integridade física dos militares e foram contra uma conduta respeitadora da dignidade humana, afetando psicologicamente os ofendidos, deixando-os transtornados e amedrontados, não apenas na data em que os factos ocorreram, mas também nos dias seguintes.
LXXXII) Por outro lado, estando em causa um crime estritamente militar, o mesmo tem de ser avaliado em consonância com as diretrizes estabelecidas em outros regulamentos, como no Memorando n.º 13/03 do CEMFA, de 26 de março de 2003 (que especifica as linhas gerais de orientação sobre a praxe) e no Despacho n.º 15/2020 do CEMFA, de 28 de fevereiro de 2020 (onde está definido o código de boa conduta para a prevenção e o combate ao assédio na Força Aérea).
LXXXIII) No n.º 2 do referido despacho está explicito que: "Constitui assédio o comportamento indesejado, praticado com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidatório, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador".
LXXXIV) No n.º 4 refere-se, ainda, que: "Considera-se que é indesejado o comportamento que visa conduzir uma pessoa à diminuição da sua capacidade de resistência, levando-a a ceder, relativamente a algo que não deseja".
LXXXV) Pelo que não se pode olhar para a realidade castrense da mesma forma que se olha a realidade civil, porque se tratam de situações não comparáveis e que por força da sua diferença ínsita dão lugar a distintas respostas do sistema de justiça.
LXXXVI) A estrutura profundamente hierarquizada da cadeia militar determina que as exigências impostas aos seus elementos no que se refere às relações entre os subordinados e os seus superiores hierárquicos estejam sujeitas a parâmetros de respeito e de obediência com níveis de exigência muito superiores aos da sociedade civil. LXXXVII) Ora, no caso em concreto, os arguidos criaram um clima intimidatório para a ingestão de bebidas alcoólicas, levando a uma diminuição da capacidade de resistência dos ofendidos e, através de um discurso incitador, levaram a que os mesmos subissem ao telhado.
LXXXVIII) Criaram ainda, um clima hostil e humilhante devido ao facto de terem encapuzado, de má-fé, os ofendidos, que se encontravam de costas, por os terem transportado na bagageira da viatura e pelo facto de os terem submetido a perguntas onde como consequência ordenavam a realização de treino físico a cada resposta errada.
LXXXIX) Considerou-se, ainda, que com as suas condutas os arguidos não cumpriram o Dever Especial de Autoridade, uma vez que abusaram da autoridade inerente à sua graduação, posto e função para coagirem os militares CC e DD a realizar treino físico em consequência de respostas erradas, em vários momentos, a entrar na bagageira da viatura de serviço, encapuzados, a serem transportados cerca de 1:500m até a zona do portão sul, zona remota e isolada da Unidade, sem qualquer iluminação.
XC) Estas práticas não promoveram a coesão e a segurança, colocaram em risco a integridade física dos militares, indo contra uma conduta respeitadora da dignidade humana.
XCI) Por outro lado, os militares CC e DD, devido às atividades noturnas proporcionadas por todos Arguidos, apenas chegaram ao alojamento entre as 03H00 e as 04H00, sendo que estavam de adaptação ao serviço no dia seguinte pelas 09H00. Dessa forma, foram privados de horas importantes para o seu descanso apropriado.
XCII) Pelo que os arguidos, ao não apresentarem um tratamento respeitoso e digno para com os militares CC e DD, colocaram em causa a integridade, liberdade e dignidade dos ofendidos, pelo que se considera que os mesmos usaram de violência para os coagir a subir e a saltar do telhado, para que os mesmos ingerissem bebidas alcoólicas e fizessem exercícios abusivos no seu horário de descanso, além de terem usado de violência para lhes colocar os sacos na cabeça, enquanto os mesmos estavam de costas e de mãos atadas.
XCIII) Por último, os arguidos AA e BB agiram com dolo, porquanto os mesmos conhecem e intencionalmente praticaram os atos acima referenciados, por terem agido de forma espontânea, com liberdade e de ânimo consciente, nas diversas atividades e formas de tratamento para com os novos militares da Unidade, CC e DD.
XCIV) Por tudo o exposto, e tendo em conta a prova que foi produzida em audiência de discussão e julgamento, considera-se que a factualidade apurada e a que se deverá dar, ainda, como provada, integra, sem margem para dúvidas, os elementos objetivos e subjetivos dos dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas, p. e p. pelo art. pelo 95.º, al. c) do CJM, pelos quais os arguidos AA e BB deverão ser condenados.
XCV) Pelo que se considera que o Tribunal a quo, ao não fundamentar a sua convicção, ao fixar a matéria de facto nos termos em que o fez, e ao considerar não preenchidos os elementos objetivos do crime de abuso de autoridade por outras ofensas, pelo qual vinham os arguidos pronunciados, violou os arts. 374.º, .º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e 127.º do Código de Processo Penal, bem como o art. artigo 95º, al. c), do Código de Justiça Militar, uma vez que, como se viu, as regras de razoabilidade e da experiência impunham que se retirasse da prova produzida factos subsumíveis aos crimes por que vinham pronunciados os arguidos.
XCVI) Nestes termos, a decisão de absolver os arguidos AA e BB deverá ser substituída por outra que condene os arguidos pela prática de dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas p. e p. pelo art. 95º al. c) do Código de Justiça Militar, por se encontrarem preenchidos todos os elementos do tipo legal.»
«1. Tendo em conta o pedido de indemnização civil formulado e a consequente condenação por parte dos Arguidos no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros), claramente que estamos perante um caso de uma decisão que afeta o aqui Recorrente, tendo, indubitavelmente, legitimidade para recorrer, devendo, consequentemente, ser admitido o presente recurso, nos termos do art.º 629.º n.º 1 do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP.
2. Ora, tendo o aqui Assistente/Recorrente formulado o pedido de apoio judiciário para nomeação de patrono, o prazo em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento que comprove tal apresentação, considerando-se, assim, todo o tempo decorrido até então sem efeito.
3. Deve-se considerar como provado que tanto os arguidos como os ofendidos já se encontravam num estado alcoolizado, tendo em conta que todas as suas ações poderiam colocá-los em perigo, em termos de integridade física.
4. Ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, em relação à factualidade que vem descrita na acusação e confirmada na decisão instrutória, só nos é possível afirmar que toda a prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, as declarações das testemunhas, CC, II, HH e GG, nos parecem com a realidade vivenciada.
5. Pelo que não consegue compreender o aqui Assistente que, determinados factos tidos como não provados tem por base a mesma identidade probatória que deu origem aos factos provados.
6. Tal facto, resulta do depoimento do Assistente e Ofendido, uma vez que ambas as declarações corroboram que ao longo da sua formação lhe havia sido transmitido que deviam acatar tudo o que lhe fosse proposto, caso assim não fosse eram considerados pessoas/militares menores e colocados à margem dos demais.
7. Acontece que, num período de adaptação torna-se mais frágil e vulnerável que precisa de adaptar e passar pertencer à comunidade sujeita-se a uma coação e praxe, sendo deturpada a sua visão e discernimento sobre as condutas que lhe são impostas, pois naquela posição só pretendem agradar e mostrar destreza a quem sobre si exerce sobre intendência e poder hierárquico.
8. Também disseram os arguidos que foi a pedido dos ofendidos que fizeram o Destroçar, que nunca tinham feito, que eles também acabaram por negar aqui em julgamento, disse que não sabia quem lhes tinha colocado os sacos na cabeça, mas disse, ao contrário do arguidos que fizeram flexões, abdominais, só não fizeram pulos de galo porque são proibidos pela Força Aérea, ou seja, deste depoimento se pode retirar que o mesmo estava ensaiado e estudado de forma a que cada palavra o eximisse de qualquer culpa ou ilícito.
9. Tanto assim é que pelo depoimento das demais testemunhas militares, naquela fase de instrução/carreira militar já todo militar da força aérea havia aprendido e executado o destroçar, logo a teoria/tese trazida pelos Arguidos a estes autos de que os exercícios que os Arguidos obrigaram o Assistente/Recorrente e o Ofendido CC a pagar naquela noite não eram única e exclusivamente inerente ao destroçar da força aérea.
10. Alegaram os Arguidos/Recorridos de que o Assistente e Ofendido lhes pediram para ensinar tal hino/coreografia da força aérea o que se também comprovou e resultou claro e cristalino que estes já o conheciam.
11. Parece-nos a nós que tendo em conta a estes diversos depoimentos, dos ofendidos e dos arguidos, tem que se dar mais do que verdade aos ofendidos, é que foram credíveis, que os mesmos vieram para aqui falar apenas com a verdade sendo que um dos ofendidos continua na Força Militar.
12. Parece-nos a nós que tendo em conta a estes diversos depoimentos, dos ofendidos e dos arguidos, tem que se dar mais do que verdade aos ofendidos, é que foram credíveis, que os mesmos vieram para aqui falar apenas com a verdade sendo que um dos ofendidos continua na Força Militar.
13. Do anterior mencionado só poderia resultar como provado factualidade “Os ofendidos CC e DD realizaram os exercícios físicos referidos em 9) porque os arguidos AA e BB lhes ordenaram que os fizessem. E acataram tais ordens por aqueles serem mais antigos e terem um posto hierárquico superior e temerem a sua reação caso não acatassem às ordens.”
14. Ainda da prova transcrita torna-se evidente que os factos vertidos nos pontos 10, 11 e 12 da factualidade considerada como não provada, não poderia ter tal valoração, isto porque, resultou provado que os Arguidos manietaram as mãos, quando lhes encostaram à parede, quando os mesmos se encontravam de costas puseram-lhes sacos de plástico na cabeça que dificultaram a sua respiração e quando foram levados, sem a sua autorização e sem lhes ter sido explicado para onde é que iriam e porquê que estavam a ser colocados sacos de plástico, foram deslocados para o Portão Sul, tal conduta só poderia ter como intuito de provocar medo e receio nos ofendidos, tendo estes agido de forma livre, deliberada e consciente na execução de um plano de esforços tacitamente acordado entre eles, sabendo que com tal comportamento iriam constranger os ofendidos, DD e CC, sabendo ainda que tais condutas eram proibidas por lei, o que ficou patente e demonstrado com o arrependimento demostrado por tudo o que fizeram no final da Audiência de Julgamento, nestes autos do processo, tendo feito quase como uma pedido de clemência à meritíssima juiz.
15. Assim, dá-se como provada a factualidade vertida nos parágrafos 11, 12, 13, 16 e 17, só poderia resultar na convicção do tribunal em efetiva condenação dos arguidos pela prática dos dois crimes de Abuso de autoridade por outras ofensas da qual vinham acusados.
Existiu um verdadeiro constrangimento de militar pelo seu superior a uma conduta que não está obrigado pelos deveres de serviço e de disciplina. Visto ter resultado provado que tais factos ocorreram após as 19h00 quando já estava findo o horário de adaptação dos ofendidos e estes estavam dispensados de quaisquer serviços.
16. Conjugada a prova supra descrita com a prova documental carreadas para os auto de processo deverão Vª Exas. considerar os Arguidos atuaram no sentido de incentivar a ingestão de álcool, provocaram nos ofendidos uma humilhação e pânico por terem sido encapuzados e transportados na bagageira de uma viatura de serviço para um local remoto e colocaram em risco a sua integridade física obrigando-os a subir ao telhado de uma altura significativa, alcoolizada e depois tiveram ainda que sair do telhado por salto.
17. Também foram sujeitos a um treino físico abusivo, fora das horas normais de descanso.
18. Considera-se assim, por tudo que foi dito que os arguidos acabaram por atuar sujeitando os ofendidos a pressão psicológica, a intimidação física e por estes factos, a verdade é que até já houve um despacho de pronúncia, um despacho judicial, considerando esses factos como fortemente indiciados, acabou por integrá-los na prática de um crime de abuso de autoridade por outras ofensas.
19. Já que diz respeito às Testemunhas JJ e KK, que por sinal também foram arguidos, numa fase inicial do processo, foram até alvo de acusação por parte do Ministério Público, obtiveram um depoimento que deixou a desejar em determinados fatores. A retórica de ambos foi bastante parcial, comprometedora, colocando em causa a realidade vivida pelos Ofendidos, pelo que nada pode corroborar a versão trazida pelo Arguidos/Recorridos aos autos de que se tratou de um mero convívio, e não uma verdadeira e vil praxe aos recém-membros daquela unidade.
20. Em relação às testemunhas MM, NN e OO, os mesmos vieram aqui dizer que os ofendidos queriam terminar com o processo, o que os próprios ofendidos acabaram por permitir, mas penso que isso apenas será demonstrativo do receio e do medo que os mesmos sentiram de represálias posteriores.
21. Os arguidos atuaram sempre com o intuito de provocar medo, intimidar e constranger e coagir o Ofendido/Assistente, obrigando-os à prática de atos contra a sua vontade, atentatórios da sua integridade física e vida, fazendo-os sentir diminuídos e desrespeitados.
22. Acresce às situações descritas, que o Ofendido/Assistente, durante o seu período de adaptação, por várias vezes foi chamado de "bicho", "conas" e "uma merda", o que proliferou, uma vez mais, sentimentos de pura inferioridade, fraqueza, pequenez.
23. O aqui lesado, foi vítima de uma verdadeira humilhação e vexame por parte dos Arguidos, perante os seus demais colegas militares
24. O Ofendido/Assistente, ao longo desse mesmo período de adaptação, também se sentiu abandonado, colocado de parte e tratado como uma ovelha negra, tendo, inclusivamente, estado ausente do serviço por cerca de um mês.
25. Todos estes acontecimentos e circunstâncias espoletaram uma situação de fragilidade, ansiedade e medo tais, que o Ofendido/Assistente viu-se na necessidade urgente de procurar ajuda psicológica e psiquiátrica.
26. Em relação ao tipo legal de crime, penso que, para podermos ver os factos que se mostraram em julgamento integram ou não a prática deste crime, temos que analisá-lo no âmbito do código de justiça militar em que se insere, mas também temos que ver qual é que foi a Racio Legis deste artigo.
27. Em relação a este artigo previsto no artigo 95º, alínea, C), visa punir o militar que através, para o caso que aqui nos interessa, de violência constrange algum subordinado a praticar quaisquer atos que não esteja obrigado por ordens de serviço. Este artigo, ao contrário do artigo 93º que pune o crime de abuso de ofensa à integridade física visa punir outros tipos de violência que não a prevista no artigo 93º.
28. Na verdade, só assim se compreenderia, até pela própria moldura penal, com pena de 1 mês a 2 anos, quando o artigo de abuso de autoridade por ofensa tem uma pena de 2 a 8 anos, sem exigir um constrangimento ou um exercício de atividades legais.
29. Por outro lado, tendo em conta a Racio Legis deste artigo, a verdade é que pôs as próprias anotações ao código de projeto de justiça militar, consegue-se visualizar que este artigo visou, efetivamente, punir situações como estas, situações de praxes abusivas, em que os militares atuam com manifesto abuso em relação aos seus poderes sobre inferiores hierárquicos e em que os obriga nomeadamente a situações como estas, a exercícios físicos desproporcionais, sem justificação, fora das horas normais de serviço.
30. Mais deverá configurar-se in casu a violência no sentido que lhe é dado pelo Código Penal, em que se refere em vários em comentários nomeadamente ao Conimbricense de Carvalho, ao artigo do crime de coação, que esta violência não é necessariamente física, pode ser uma violência psíquica, o que interessa é que essa violência ou esse exercício de atividade que afete a liberdade de ação pro parte da pessoa visada de forma a constrangê-la adotando um comportamento que de outra forma não iria adotar.
31. A natureza de crime “estritamente militar” (art. 1.º/2 do Código de Justiça Militar - CJM - Lei 100/2003-15novembro e art.s 211.º/3, 213.º e 219.º/3 da Constituição da Republica Portuguesa - CRP) não determina que o bem jurídico protegido se restrinja ao imediato, exclusivo e supra-individual interesse militar da defesa nacional e daqueles que a CRP comete às Forças Armadas e como tal qualificados pela lei.
32. Assim sendo, tendo em conta a analise deste artigo, bem como os valores militares que estão subadjacentes ao Código de Justiça Militar, Disciplina, coesão, segurança, respeito pela dignidade humana e regras sem abusos, consideramos, então, que os arguidos, com a sua atuação abusiva, acabaram por atentar contra o adequado relacionamento hierárquico que havia lá dentro do serviço, acabaram por desrespeitar o princípio de éticas de confiança, cometendo dessa forma um crime abuso de autoridade por outras ofensas que Vossa Excelência fará certamente justiça.
A prática dos suprarreferidos factos ilícitos por parte dos Arguidos confere ao Ofendido/Assistente o direito a ser indemnizado, nos temos do artigo 483.º do Código Civil.
33. Dispõe o n.º 1 do mencionado artigo que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”
34. Ou seja, para que nasça a obrigação de indemnizar, exige-se que se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos do facto voluntário e ilícito do agente; imputabilidade do facto ao agente; dano; nexo de causalidade entre o facto e o dano produzido.
35. Pressupostos estes que se encontram plenamente verificados no caso em apreço.
36. Razão pela qual devem os Arguidos ser condenados a pagar os danos patrimoniais e não patrimoniais que o Ofendido/Assistente suportou, em virtude da aplicação do mecanismo de ressarcimento dos mesmos legalmente estabelecido no nosso ordenamento jurídico, nos artigos 483º e seguintes do Código Civil, a responsabilidade civil extracontratual que se encontra cabalmente demonstrada a sua verificação.
37. Resulta do já exposto que a título de dano patrimonial que se fixam no valor total de 76,11€ (setenta e seis euros e onze cêntimos).
38. A título de danos não patrimoniais que merecem a tutela do direito, somente com pagamento por parte de cada Arguido de uma quantia não inferior a 2.500,00€ (dois mil quinhentos euros), poderá equacionar-se a reparação dos danos sofridos pelo ora Autor.
39. Posto isto deverão os Arguidos ser condenados através da aplicação do instituto da responsabilidade civil extracontratual ao pagamento solidário de uma indemnização, que deverá computar numa quantia, nunca inferior a (dez mil euros) ao aqui Ofendido/Autor de forma a reconstituir e ressarcir os danos causados.
40. Requer-se, também, que sejam os Arguidos condenados a um pedido de desculpas público junto da comunidade militar da força aérea.
41. PELO O EXPOSTO O TRIBUNAL AD QUEM DEVERÁ SUBSTITUIR O ACORDÃO ORA COLOCADO EM SINDINCÂNCIA POR OUTRO QUE JULGUE PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL PROCEDENTE POR PROVADO E, EM CONFORMIDADE, CONDENAR-SE OS ARGUIDOS/RECORRIDOS A PAGAR AO OFENDIDO/ASSISTENTE/RECORRENTE UMA INDEMNIZAÇÃO POR TODOS OS DANOS CAUSADOS, NA QUANTIA DE 5.000,00€ (CINCP MIL EUROS), BEM COMO EM JUROS DE MORA, À TAXA LEGAL APLICÁVEL.
42.
43. Resulta do exposto e tendo em conta a analise deste artigo, bem como os valores militares que estão subadjacentes ao Código de Justiça Militar, Disciplina, coesão, segurança, respeito pela dignidade humana e regras sem abusos, consideramos, então, que os arguidos, com a sua atuação abusiva, acabaram por atentar contra o adequado relacionamento hierárquico que havia lá dentro do serviço, acabaram por desrespeitar o princípio de éticas de confiança, condenando-os dessa forma por um crime abuso de autoridade por outras ofensas que Vossa Excelência fará certamente justiça.»
Quanto ao recurso do Ministério Público, pugnam pela respectiva improcedência, aduzindo em abono da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):
«1º
Entendem os arguidos, que a decisão proferida no Acórdão de 19/12/2024 é absolutamente irrepreensível, não merece qualquer reparo ou censura, fazendo uma rigorosa e correcta análise, apreciação e determinação da matéria de facto dada como provada e dada como não provada, atento toda a prova constante dos autos, quer a documental, as declarações dos arguidos e do assistente e os depoimentos das testemunhas.
2º
Versa o recurso sobre matéria de facto e de direito, e impugna a decisão proferida, nos seguintes termos:
A - Nulidade do acórdão por falta de fundamentação,
B - Vício de erro notório na apreciação da prova;
C - Factos incorrectamente julgados
D - Errada qualificação jurídico-penal dos factos
3º
Quanto à nulidade do acórdão por falta de fundamentação, discordam os arguidos que a mesma se verifique.
4º
A falta ou deficiência de fundamentação só dará lugar à nulidade da decisão:
“quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou dos raciocínios subjacentes à qualificação jurídica dos factos ou à determinação das medidas das penas…” – www.dgsi.pt Ac. do Tribunal da Relação Coimbra de 20/11/2024 proferido no processo n.º 504/23.7PCLRA.C1.
5º
A convicção do tribunal formou-se na prova dos autos mormente e muito relevante para aferir da credibilidade das declarações prestadas em audiência pelos ofendidos, as diversas passagens constantes do processo disciplinar que se encontra integralmente junto aos autos e dele fazendo parte – Apenso I onde no Acórdão é destacado, designadamente, o auto de declarações dos ofendidos CC e DD.
6º
Dos autos de declarações (processo disciplinar) que estão transcritos no Acórdão, nas partes que relevam para a decisão, demonstram inequivocamente que as declarações prestadas em sede de julgamento pelos ofendidos, são inquinadas de transparência e genuinidade.
7º
Muito bem atendeu o “Tribunal a quo” relevar esta incongruência de declarações sobre certas passagens factuais constantes, por um lado nos autos de declarações do processo disciplinar que foram tomadas nos dias seguintes aos acontecimentos e portanto com memória fresca e bem presente, comparativamente com as declarações prestadas em sede de julgamento, onde o lapso de tempo ocorrido sobre os acontecimentos não poderia, à luz da razoabilidade e experiência comum, levar a que os ofendidos tivessem depoimentos mais minuciosos e criteriosos no que à potencial gravidade penal dos factos diz respeito.
8º
E é aqui que está a grande e relevante diferença que leva a que o Ministério Público não se conforme com a decisão proferida.
9º
Salvo o muito e devido respeito, o Ministério Público não cuidou de apreciar e valorar a restante prova dos autos para lá das declarações dos ofendidos em sede de audiência de julgamento que entendeu serem insusceptíveis de serem postas em causa quanto à sua credibilidade, o que se reprova veementemente.
10º
Atento os factos dados como provados e não provados transcritos na decisão, conjugado com a convicção do tribunal formada em toda a prova dos autos, destacando-se, declarações dos ofendidos em sede de processo disciplinar (Apenso I) comparando com as declarações dos mesmos em audiência de julgamento, fácil é perceber a decisão do “Tribunal a quo” quanto aos factos decididos como provados e os decididos como não provados.
11º
O Ministério Público alcançou perfeitamente quais os meios de prova valorados e manifestamente relevantes para formar a convicção do “ Tribunal a quo”, que, no contexto de espaço e de tempo ocorridos, permitam a construção do percurso lógico da decisão, segundo a razoabilidade e da experiência comum.
12º
Para que se verificasse a falta de fundamentação da decisão, impunha-se constatar contradição insanável entre os meios de prova considerados e valorados que constitui a fundamentação probatória e a decisão da matéria de facto proferida; e/ou incompatibilidade inultrapassável entre a decisão e os factos dados como provados e não provados.
13º
Lendo o Acórdão, todos os sujeitos processuais alcançaram como o “ Tribunal a quo” apreciou as provas, quais as que relevou, e que a apreciação crítica das mesmas foi efectuada de modo objectivo, de acordo com as regras da ciência, da lógica e da experiência.
14º
Pelo que, quanto à falta de fundamentação da decisão alegada em recurso pelo Ministério Público, os arguidos defendem não se verificar, e concomitantemente nenhuma censura merece o Acórdão recorrido nesse particular.
15º
Quanto ao vício de erro notório na apreciação da prova, não se concorda de 36
todo, que dos factos dados como provados n.ºs 1) a 6) e 10) a 15), resulte automaticamente a prova dos factos dados como não provados a), g), h), i), parte da aliena s) e alíneas t) e u).
16º
Verificarem-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de que vêm acusados/pronunciados os arguidos, é pressuposto imperativo para que estes sejam, a final condenados.
17º
Sendo pressupostos (objectivos e subjectivos) totalmente autónomos entre si, podem verificar-se os elementos objectivos do tipo legal de crime e não se verificarem os elementos subjectivos do mesmo o que, desde logo, impõe uma decisão absolutória.
18º
Ora, defende o MP que: se os elementos objectivos estão provados, então deverão dar-se como provados os elementos subjectivos do tipo legal de crime de que são acusados os arguidos!!!! – Discordamos em absoluto.
19º
Não foi feita prova alguma da verificação desses elementos subjectivos.
20º
È à luz da prova produzida que se vai aferir se ambos os elementos do tipo legal de crime estão preenchidos: os elementos objectivos e os elementos subjectivos e estando aqueles preenchidos podem não estar estes.
21º
Da factualidade provada indicada pelo MP, factos n.ºs 1) a 6) e 10) a 15), nada mais resulta que não seja: a descrição dos postos militares que todos integravam à data dos factos, arguido e ofendidos, que estes estavam em período de adaptação, que curiosamente ao invés do entendimento do Ministério Público, fora do horários de adaptação que foi no período temporal em que ocorreram os factos alvo de julgamento, não se impõe posições hierárquicas e de obediência, e dos factos supra indicados e dados como provados não se retira que os arguidos “ terão incitado com palavras que os ofendidos subissem a um telhado e ainda que os sacos colocados na cabeça dos ofendidos lhes tenha dificultado a respiração.”
22º
“O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.”
23º
Não se verifica de todo, erro notório na apreciação da prova, devendo sucumbir também nesta parte o recurso do MP.
24º
Quanto aos factos incorrectamente julgados, mostra-se muito relevante a circunstância, do MP entender muito credíveis as declarações dos ofendidos em detrimentos dos depoimentos dos arguidos, facto com o qual se discorda em absoluto.
25º
Pois, se os arguidos não estiveram bem na sua plenitude de declarações, o que se aceita até pelo lapso de tempo decorrido e pelo que nas suas consciências rebatia um comportamento de brincadeira entre todos, que nunca sequer imaginaram pudessem culminar na criminalização das suas condutas,
26º
Já quanto ás declarações dos ofendidos, as incongruências e divergências acentuadas, mormente com as declarações prestadas em sede de processo disciplinar – Apenso I parece não terem tido qualquer relevância para o Ministério Público.
27º
Ao invés do alegado pelo Ministério Público na sua motivação a folhas 24, último parágrafo do seu recurso:
“…se apenas se se tratou de um convívio entre colegas, porque razão lógica os ofendidos terão participado os factos de que terão sido vítimas e porque sentiram receio e constrangimento em obedecer às determinações dos arguidos, fora do horário do serviço e se sentiram coagidos a praticarem atos contrários ao regulamento militar…” sublinhado nosso.
28º
Não houve nenhuma participação dos factos pelos arguidos a superior hierárquico dentro do posto militar.
29º
O ofendido CC, é que em conversa com um conhecido seu do exército, PP, comentou os acontecimentos de 08/08/2022 e este comunicou a ocorrência ao Capitão GG, que por sua vez, após ouvir os ofendidos reportou ao Comandante participação para ser instaurado processo disciplinar.
30º
Declarações do ofendido CC transcritas na motivação, a partir do minuto 41.55.
Declarações da testemunha Capitão GG transcritas na motivação a partir do minuto 1.28
Declarações da testemunha PP transcritas na motivação a partir do minuto 2.43.
31º
O receio e constrangimento que o Ministério Público refere ter sido sentido pelos ofendidos “levando a obedecer às determinações dos arguidos, fora do horário do serviço e se sentiram coagidos a praticarem actos contrários ao regulamento militar”…reportou-se, não a medo de quaisquer tipo de ofensas, violência ou ameaças, MAS SIM, de serem considerados e chamados de “ bichos”, ovelhas negras, que sendo uma terminologia do meio militar quererá definir aqueles que não entram ou embarcam em brincadeiras.
32º
Declarações do ofendido DD transcritas na motivação a partir do minuto 9.32
Declarações do ofendido CC transcritas na motivação a partir do minuto 5.05 a 5.07, retomando ao minuto 46.28 a 48.17
33º
Outro equivoco em que enferma o Ministério Público, conforme resulta a fls 25 parágrafo 3º da motivação, foi entender falta de coerência das declarações dos arguidos que negaram ter ordenado aos ofendidos que fossem buscar cervejas, e ao invés, dando credibilidade, erradamente, ás declarações dos ofendidos neste particular;
34º
Confrontando prova, ficou provado que ninguém, concretamente os arguidos, obrigou os ofendidos a ir buscar as cervejas, de entre os presentes que foram ouvidos, só os ofendidos o declararam, que surpreendentemente alegam este novo facto pela 1ª vez.
35º
Nas declarações prestadas no processo disciplinar a 16/08/2022, nem o ofendido CC nem o ofendido DD o referem – fls 13 e 19 respectivamente do Apenso I
36º
Ouvidos pela 2ª vez no processo disciplinar a 18/08/2022, voltaram os ofendidos a nada referir sobre este particular – Fls 29 e 34 respectivamente do Apenso I.
37º
Já em sede de inquérito destes autos, nas declarações prestadas, os ofendidos nunca haviam dito que lhes tinham mandado ir buscar as cervejas, o que está patente na acusação:
“ No dia 8 de agosto de 2022, depois do jantar os ofendidos CC e DD, e o 1º Cabo LL foram buscar uma grade de cervejas que, de seguida, levaram para o bar de praças do ... para se juntarem, pelo menos ao arguido AA, que ali se encontrava, tendo, logo depois, chegado o arguido BB”.
38º
Portanto nesta questão de os arguidos terem mandado os ofendidos ir buscar cervejas, colhe muito mais e sem esforço a verdade das declarações dos arguidos.
39º
Quanto aos factos incorrectamente julgados, não se opõe à alteração indicada pelo MP quanto ao facto n.º 19 nos termos que requer.
40º
Não aceita a alteração ao facto n.º 21, porque a divergência de horas referida pelos ofendidos e pelo arguido BB é muito manifesta, e a que foi dada como provado pelas 02h40 foi a hora referida pelo ofendido em sede de inquérito.
41º
Discorda-se com a alteração dos factos das alíneas c) e d) de não provados para provados, porquanto são sustentadas apenas nas declarações dos ofendidos, que não nos merece credibilidade neste particular, porque mais uma vez, só em audiência de julgamento é que estes alegaram que os mandaram ir à sala de praças, circunstância nunca antes referida por eles, seja em sede de processo disciplinar, onde prestaram declarações a 16 e 18 de agosto de 2022 Apenso I, seja nas declarações em sede de inquérito também nada referiram.
42º
Não souberam concretizar quem os mandou ir para a sala de praças, responderam ambos não se recordar!!!
43º
E, bem assim nunca antes tinham dito que “sempre que um dos ofendidos terminava de beber uma cerveja, o outro tinha de terminar de imediato a cerveja que estava a beber,”
44º
Esta factualidade nunca antes referida pelos ofendidos, e por isso mesmo omissa da acusação/pronúncia.
45º
No mais, não se aceita nem concorda na alteração pretendida pelo Ministério Público, porque como se disse supra, a diferença reside no facto do tribunal ter valorado toda a prova, enquanto o MP valorou fundamentalmente as declarações dos ofendidos, como se tais fossem sagradas e absolutamente credíveis, quando já aqui foram reportadas diversas passagens em que é manifesto serem essas declarações dúbias e nem sempre credíveis, desde logo, pelas diferenças entre depoimentos anteriormente prestados em sede de processo disciplinar.
46º
Os factos da contestação dados como provados n.ºs 27 e 28, não merecem reparo, porque estão em consonância com a prova produzida e nem o recorrente alicerça essa alteração requerida em prova concreta, a passagem que indica das declarações do ofendido é inócua!
47º
Quanto à alteração da factualidade da contestação n.ºs 30 e 31, defende-se nada haver a alterar, ao invés do entendimento do MP, sendo que as passagens de declarações transcritas não põem em causa a factualidade dada como provada.
48º
O que é transcrito, declarado pelos ofendidos é o que estes alegadamente dizem ter sentido???? Mas que não foi efectivamente evidenciado, nem falado, nem abordado ….o que se estranha!
49º
Quanto aos factos da contestação dados como provados n.ºs 32 e 33 que o Ministério Público entende não estarem provados, não merece qualquer reparo, atento 42
as declarações das testemunhas OO, Capitão GG e declarações do ofendido CC.
50º
Declarações da testemunha OO, transcritas na motivação a partir do minuto 2.48
Declarações da testemunha Capitão GG, transcritas na motivação a partir do minuto 11.01
Declarações do ofendido CC transcritas na motivação a partir do minuto 43.58:
51º
Discorda-se da reformulação defendida pelo MP quanto ao Facto Provado n.º 15, porque só sustentada nas declarações dos ofendidos prestados em julgamento que são incoerentes e divergentes com as declarações dos mesmos em sede de processo disciplinar – Apenso I, onde nada disso é referido, e nem mesmo em sede de inquérito, pelo que, omisso da acusação/pronuncia.
52º
Numa apreciação global e crítica da prova, mostra-se provado o facto n.º 15 nos termos constantes da decisão, não merecendo qualquer reparo!
53º
Dos factos não provados que entende o Ministério Púbico ver agora em sede de recurso provados: a), b), c), g), h), i), j) l), m), n), o), não há qualquer prova realizada que sustente a verificarão dos elementos subjectivos do crime de que vem acusados os arguidos, motivo pelo que, não haver na motivação do recurso, passagens de declarações ou indicação de meios de prova que demonstre o inverso.
54º
Assim, devem manter-se tais factos não provados, como não provados.
55º
Defende ainda o MP a alteração de não provados para factos provados, os constantes nas alíneas p) e q) com o que discordamos totalmente, atento as declarações do ofendido CC transcrito na motivação a partir do minuto 14.16 a 14.33 retomando a 1.01.01 a 1.03.02, e as declarações do ofendido DD transcritas na motivação no minuto 41.09 e seguintes, respectivamente.
56º
Encostar cabeças não é cabeçada, e muito menos o será se não provoca dor.
57º
Finalmente ainda defende o MP que também os factos não provados constantes das alíneas r), s), t) e u) devem ser alterados para factos provados, com o que se discorda totalmente, dado que até na motivação nada é concretizado, qualquer prova ou passagem de depoimento que sustente tal alteração
58º
Assim, mantendo-se igual os factos dados como provados e os não provados, não poderia a decisão ser outra que não a da absolvição dos arguidos dos crimes de que vêm acusados.
59º
Fez o “Tribunal a quo” uma correcta apreciação crítica de toda a prova, aplicando o direito em conformidade, não se verificando na decisão proferida a violação de normas jurídicas.»
E no que concerne ao recurso do assistente, os arguidos, aqui recorridos, pugnam pelo reconhecimento da extemporaneidade do recurso que incidiu sobre o despacho que rejeitou o pedido de indemnização civil e pela improcedência do recurso da decisão final e, consequentemente, pela manutenção do acórdão recorrido, aduzindo em abono da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):
«1º
Do recurso do Assistente, responde-se à:
- Alegada extemporaneidade do pedido de indemnização civil;
- Da reapreciação da prova dos pontos da matéria de facto julgados como não provados.
2º
À resposta que se seguirá quanto à alegada extemporaneidade do pedido de indemnização cível, resultará prejudicado, por inútil, a resposta à Responsabilidade Civil Pelos Danos Causados.
3º
Quanto à alegada extemporaneidade do pedido de indemnização civil, decidido por despacho de 04/10/2024, mostra-se a mesma verificar-se.
4º
O Assistente deduziu pedido de indemnização civil, apresentado a 07/09/2023, que, por despacho proferido a 04/10/2024, o “Tribunal a quo” não admitiu, fundamentando tal decisão por se mostrar que o mesmo é manifestamente extemporâneo.
5º
Desta decisão de inadmissibilidade do PIC proferida a 04/10/2024, só agora no recurso que interpôs ao Acórdão proferido, e que entrou a 24/01/2025 é que o Assistente vem recorrer.
6º
Se o Assistente não se conformou com a decisão que não admitiu o PIC, deveria ter recorrido desse despacho, no prazo de 30 dias a contar da sua notificação, conforme estatuído no art.º 411º n.º 1 al. a) do CPP.
7º
Independentemente da subida ser nos próprios autos ou em separado ou de ser imediato ou só conjuntamente com a decisão que ponha termo à causa, sempre o prazo de interposição de recurso será de 30 dias.
8º
Se o Assistente é notificado da decisão de inadmissibilidade do PIC a 16/10/2024, o prazo limite para interposição do recurso, seria o dia 20/11/2024.
9º
O Assistente ao interpor recurso sobre a decisão de não admissão do PIC só em 24/01/2025, mostra-se o mesmo manifestamente extemporâneo.
10º
Pelo que, por ser extemporâneo o recurso à decisão que não admitiu o PIC, nesta parte o recurso do Assistente deve improceder.
11º
Quando á invocada Reapreciação da provada dos pontos da matéria de facto jugados como não provados, defende-se que o assistente não cumpre os pressupostos para reapreciação da matéria de facto constantes no art.º 412º do CPP, concretamente aos n.ºs 3 e 4
12º
Ainda assim, reiteramos o mesmo já defendido na resposta ao recurso do MP que também o Assistente só valorizou, erradamente, os depoimentos do próprio e do ofendido CC, o que pelas razões já amplamente alegadas e fundamentadas não se concebe na resposta ao recurso do MP já foram expressas.
13º
Nem os depoimentos dos ofendidos prestados em audiência de julgamento foram tão credíveis e objectivos quanto o Assistente pretende passar; como já supra amplamente aflorado.
14º
Os depoimentos dos ofendidos divergem e muito das declarações por estes prestadas no processo disciplinar – Apenso I
15º
A prova tem de ser analisada e valorada no seu todo, porque a palavra seja de quem for não é sagrada, tem por conseguinte que ser confrontada com outras declarações, outros depoimentos, outros meios de prova e sempre com o sentido crítico de razoabilidade, da lógica e à luz da experiência comum.
16º
O facto de os ofendidos divergirem tanto no relato da factualidade no que à criminalização diz respeito entre as declarações prestadas dias depois dos acontecimentos e as declarações prestadas em julgamento mais de dois anos depois, diz muito sobre a credibilidade destes últimos depoimentos.
17º
A reapreciação da matéria de facto que o Assistente defende é sustentada toda ela apenas nas declarações dos ofendidos, fora de contexto, desviado da demais prova, assim, os arguidos respondem remetendo para tudo quanto foi já explanado supra em resposta ao recurso do Ministério Público, mormente as passagens das declarações supra transcritas, que por si justifica não poder proceder o recurso do Assistente no que à reapreciação da prova de factos não provados diz respeito.
18º
É FALSO, tudo o que é descrito no parágrafo 2º, fls 21 da motivação:
“ Acresce às situações descritas, que o Ofendido/Assistente, durante o seu período de adaptação, por várias vezes foi chamado de "bicho", "conas" e "uma merda", o que proliferou, uma vez mais, sentimentos de pura inferioridade, fraqueza, pequenez. O aqui lesado, foi vítima de uma verdadeira humilhação e vexame por parte dos Arguidos, perante os seus demais colegas militares.” Sublinhado nosso.
19º
Nunca tal factualidade foi falada, abordada, expressada, por quem quer que fosse, nem no processo disciplinar, nem no processo-crime, fosse em sede de inquérito, instrução e/ou audiência de julgamento.
20º
Pelas razões fundamentadas nesta resposta, e complementarmente com a resposta ao recurso ao MP, não merece qualquer censura a matéria de facto dada como não provada, devendo manter-se na íntegra.
21º
E assim sendo, não poderia ser outra a decisão que não absolver os arguidos dos crimes de que vêm acusados e desta forma, fazendo-se JUSTIÇA!»
Questões a decidir nos recursos
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que os recorrentes colocam à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
Recurso do Ministério Público
- Nulidade do acórdão por falta de fundamentação, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPPenal;
- Erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410, n.º 2, al. c), do CPenal;
- Erro de julgamento em sede de matéria de facto (art. 412.º, n.ºs 3, als. a), b) e c), e 4, do CPPenal);
- Errada qualificação jurídica.
Recursos do assistente
Recurso do despacho de 04-10-2024
- Tempestividade do pedido de indemnização apresentado;
Recurso do acórdão final
- Erro de julgamento em sede de matéria de facto;
- Qualificação Jurídica;
- Procedência do pedido de indemnização
«II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2.1 FACTOS PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa, excluindo-se matéria de direito e factos conclusivos ou irrelevantes, da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
Da pronúncia:
1) Os arguidos AA e BB assumiam, à data dos factos, 8 de agosto de 2022, o posto de Cabo Adjunto da Polícia Aérea e exerciam funções no ... da Força Aérea, em ..., Ovar.
2) Na data dos factos, os militares com mais antiguidade no posto de Cabo Adjunto eram, por ordem decrescente, o arguido AA e o arguido BB.
3) Por sua vez, CC e DD assumiam, à data dos factos, o posto de Segundo Cabo, exercendo também funções no ..., desde o início do mês de agosto de 2022, e encontravam-se a fazer a adaptação ao serviço de controlo na Porta de Armas.
4) CC e DD, enquanto militares em adaptação, eram acompanhados pelo Furriel EE, no período das 09h00 às 17h00, e, no período entre as 17h00 e as 19h00, acompanhavam o condutor de serviço.
5) Este período de adaptação implicava a passagem por diversos serviços executados na Esquadra Proteção e Segurança do ..., pelo que interagiam com os militares das diferentes secções.
6) A partir das 19h00 o período de adaptação terminava e os ofendidos CC e DD estavam dispensados pela Esquadra Proteção e Segurança de qualquer atividade.
7) No dia 8 de agosto de 2022, depois do jantar, os ofendidos CC e DD, e o 1.º Cabo LL foram buscar uma grade cervejas que, de seguida, levaram para o bar de praças do ... para se juntarem, pelo menos, ao arguido AA, que ali se encontrava, tendo, logo depois, chegado o arguido BB.
8) Quando os ofendidos chegaram com as cervejas ao bar de praças, consumiram cervejas conjuntamente com os arguidos AA e BB.
9) E enquanto ali estiveram com os arguidos realizaram exercícios físicos, nomeadamente flexões, pulos de galo, abdominais e prancha.
10) Entretanto, o arguido BB, questionou os ofendidos CC e DD nos seguintes termos: “se estivesse alguém ferido em cima do telhado do bar de praças, o que é que fariam para resolver a situação?”, o que fez com que os mesmos tentassem aceder ao telhado, escalando-o.
11) Como os ofendidos CC e DD não conseguiram aceder ao telhado, o arguido AA subiu ao telhado, utilizando uma caleira presa à parede, existente na parte lateral do bar.
12) Já no telhado, o arguido AA disse aos ofendidos, “se eu consegui subir, vocês também conseguem”.
13) De seguida, os ofendidos CC e DD, decidiram subir ao telhado, imitando o arguido AA, o qual fica a uma altura do chão, de cerca de 2,60 a 4 metros (consoante o local do telhado).
14) Após, saltaram daquele telhado para o chão, na sequência de terem visto o arguido AA a fazê-lo.
15) Momentos depois, o arguido BB enfiou um saco plástico preto na cabeça do ofendido CC e o arguido AA enfiou um saco plástico preto na cabeça do ofendido DD.
16) De seguida os arguidos e os ofendidos foram para viatura de serviço, que se encontrava à responsabilidade dos militares JJ e KK, por estarem de serviço de ronda.
17) Os ofendidos foram para a bagageira daquela viatura e os arguidos AA e BB, entraram para a viatura de serviço, a qual era conduzida pelo militar KK, e dirigiram-se para um local designado “Portão Sul”, sito num local mais remoto, na periferia da Unidade e no meio do pinhal, a cerca de 1,5km/2km do bar de praças.
18) Durante este percurso, o ofendido DD rasgou o saco plástico que tinha na cabeça.
19) Chegados ao “Portão Sul”, cerca da 01h00 do dia 9 de agosto de 2022, os ofendidos saíram da viatura e tiraram os sacos da cabeça.
20) Nesse local, os ofendidos e os arguidos AA e BB continuaram a beber bebidas alcoólicas e realizaram exercícios físicos.
21) Os ofendidos CC e DD saíram daquele local, em corrida até ao seu alojamento, pelas 02h40 do dia 9 de agosto de 2022.
Da contestação dos arguidos:
22) Nos momentos referidos em 8) e 9), ocorridos depois do jantar do dia 08.08.2022, estiveram a conviver no bar da sala de praças do ..., os ofendidos CC, DD, os arguidos AA e BB, e ainda os militares KK, JJ e LL.
23) Aí, todos os que quiseram beberam umas cervejas, com exceção do KK e JJ que estavam de serviço, e o militar LL apenas ingeriu uma cerveja.
24) Quem quis ingerir as cervejas fê-lo de livre vontade.
25) Após terem subido ao telhado, os ofendidos podiam ter optado por descer pelo mesmo tubo de água utilizado para aceder ao mesmo ao invés de saltar do telhado para o chão.
26) Os sacos plásticos pretos que foram enfiados na cabeça dos ofendidos eram sacos de lixo finos, que não foram apertados.
27) Sendo que a sua colocação na cabeça dos ofendidos teve apenas como finalidade não permitir aos ofendidos ver o caminho que estavam a percorrer, no âmbito de um jogo/brincadeira de orientação espacial dentro das instalações do ... da Força Aérea, em ..., Ovar, que os arguidos pretenderam fazer com aqueles, sendo que o intuito era perceber/constar se os ofendidos sabiam localizar-se junto com os demais do local para onde foram levados - portão sul e se saberiam regressar para ao alojamento de praças.
28) Depois de terem estado no Portão Sul, os arguidos AA e BB, os ofendidos DD e CC e ainda LL regressaram ao alojamento de praças a correr e a pé, a cantar o hino da especialidade, e foram descansar.
29) Os ofendidos CC e DD no dia 09/08/2022 pelas 09h00 entraram novamente de adaptação ao serviço, sendo que os arguidos AA e BB, estavam igualmente de serviço nesse mesmo dia e hora e até eram estes que estavam responsáveis por acompanhar os ofendidos na sua adaptação ao serviço naquele dia.
30) Neste dia 09, os ofendidos e os arguidos passaram o dia todos juntos sem que tivesse havido qualquer conversa ou comentário de desagrado, de desconforto, de desalento, de intimidação sobre o que havia ocorrido na madrugada e dia anterior, tendo decorrido tudo com normalidade, não tendo sido percetível aos arguidos que os ofendidos tivessem ficado perturbados com o convívio e brincadeiras da noite e madrugada anteriores.
31) No dia 12/08/2022, data em que os arguidos foram notificados da instauração do processo disciplinar, estes almoçaram juntos na mesma mesa com os ofendidos e com os militares MM e LL, sendo que, o ambiente era de boa disposição entre todos.
32) E dias mais tarde os ofendidos admitiram em conversa que os factos ocorridos não justificariam a queixa e/ ou denúncia existente.
33) E pretenderam mesmo retratar-se e fizeram-no junto do Capitão GG, mas tal foi desvalorizado por este.
34) A 16/08/2022, os arguidos estavam preventivamente suspensos, desde o dia 12/08/2022 data em que foram notificados da instauração contra ambos do processo disciplinar e foram constituídos arguidos, não tendo qualquer contacto com os ofendidos no sentido de os pressionar a proceder à desistência da denúncia.
Mais se provou que:
35) Não se conhecem antecedentes criminais ao arguido BB.
36) No certificado do registo criminal do arguido AA constam as seguintes condenações:
1. Por sentença proferida a 27.07.2020, transitada em julgado a 30.09.2020, no âmbito do processo sumário nº566/20.9GDVER do J2 do Juízo Local Criminal de Vila da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, o arguido foi condenado pela prática, a 26.07.2020, de um crime de condução em estado de embriaguez p. e p. no art. 292º, nº1 al. c) e 69º, nº1, al. a), do Código Penal, na pena de 75 dias de multa à taxa diária de €6,00, num total global de €450,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. A pena de multa foi posteriormente substituída por trabalho a favor da comunidade, sendo que ambas as penas já se encontram extintas pelo pagamento.
2. Por sentença proferida a 17.05.2021, transitada em julgado a 31.05.2021, no âmbito do processo sumaríssimo nº2409/20.4T9VFR do J3 do Juízo Local Criminal de Vila da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, o arguido foi condenado pela prática, a 30.09.2020, de um crime de desobediência p. e p. no art. 348º, nº1 al. b), do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de €5,00, num total global de €350,00 a qual já se encontra extinta pelo pagamento.
37) Do relatório social do arguido AA consta, entre o mais, que:
- À data dos alegados factos (Agosto/2022), o arguido assumia o posto de Cabo Adjunto da Polícia Aérea e exercia funções no Aeródromo ... nº 1 da Força Aérea, em ..., Ovar, realizando tarefas de controlo de acessos, Segurança à Unidade/rondas/vigilância, tendo ingressado na Força Aérea como voluntário, aos 18 anos de idade. Nestas circunstâncias, auferia o vencimento de 860 Euros.
- À data, estava integrado no agregado materno, vivendo com a mãe e seus dois irmãos, agora com 29 e 21 anos, ambos ativos laboralmente. Os pais separaram-se aos 7 anos de idade do arguido, que referencia o ambiente familiar como conflituoso, em virtude dos problemas de agressividade e violência da figura paterna. No presente, o arguido não mantém contacto com o pai, por iniciativa própria. Valoriza a figura materna como securizante ao nível afetivo e de proteção parental.
- Atualmente o arguido integra o agregado dos pais da companheira, QQ, de 25 anos, Técnica de Educação, com quem mantém um relacionamento afetivo desde há sensivelmente 1 ano. Os pais da companheira, ambos de 58 anos, trabalham como operários da indústria da cortiça. O ambiente familiar é referenciado como solidário e de organização normativa. Em contexto familiar, o arguido é caracterizado como elemento pacifico e adequado nas relações interpessoais.
- Habilitado com o 12º ano de escolaridade, o arguido protagonizou um trajeto escolar regular, ausente de reprovações, concluído com 18 anos de idade. Entre os 18 e os 24 anos, o arguido esteve afeto à Força Aérea Portuguesa, tendo sido expulso no âmbito do presente processo.
- Depois de sair da Força Aérea, o trabalhou na área da serralharia, durante 3 meses. Integrou depois a empresa “A..., S.A., através de Contrato de Trabalho Temporário a termo Incerto com a B..., Lda, o qual iniciou em 19-10-2023 e cessou em 19-10-2024. Neste âmbito, trabalhou na Categoria de Manobrador, auferindo um total médio mensal de 1.080Euros.
- Presentemente e desde 21-10-2024, o arguido trabalha na Empresa “C...; LDA”, sedeada em ..., com contrato de trabalho a termo resolutivo certo, com a Categoria profissional de Distribuidor de 2ª, com funções de logística/armazém, com a remuneração base no montante de 835Euros, acrescido de 110Euros, referente a isenção de horário, com subsidio de refeição de 4,77Euros. Perante esta nova realidade profissional, o arguido revela motivação.
- A situação económica do arguido é apresentada como suficiente para a cabal satisfação das necessidades básicas. Tem como despesas fixas mensais o crédito automóvel, na prestação de 250Euros; mensalidade do Ginásio, de 35Euros, Seguro de Saúde, 30Euros e prestação de Cartão de Crédito, de 40Euros, em média.
- A rotina do arguido centra-se no trabalho, ocupando os momentos de lazer em convívio com familiares e com os pares. Paralelamente, pratica a modalidade desportiva – Futebol – na Associação ..., em ..., com treinos três vezes por semana, e frequenta Ginásio.
- O presente processo não é o primeiro contacto do arguido com o sistema da administração da Justiça Penal, apresentando antecedentes criminais por condução de veículo em estado de embriaguez. Neste contexto, beneficiou de medidas de execução na comunidade, quer em suspensão provisória do processo, quer em condenação em pena de multa substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, sendo que junto dos serviços de reinserção social adotou uma postura de colaboração.
- O arguido demonstra consciência crítica relativamente à ilicitude da tipologia de crime pelo qual vem acusado, verbalizando preocupação face ao presente confronto com o sistema da administração da justiça penal, o que lhe causa ansiedade e incerteza futura.
- O presente processo teve especial impacto na sua vida. Este suspenso do serviço militar por um ano, acabando por ser expulso, com implicações negativas no seu modo de vida, então direcionado para um futuro profissional enquanto militar, que viu ser coartado. Considera este período (2022/2023) a pior fase da sua vida e revela sentimentos de pesar, considerando, no entanto, ter amadurecido enquanto pessoa.
38) Do relatório social do arguido BB consta, entre o mais, que:
- O arguido integra o agregado familiar de origem, junto dos pais e irmão, em dinâmica familiar avaliada como equilibrada e afetivamente próxima, beneficiando do seu apoio. Tem também um relacionamento salutar com os elementos do seu grupo familiar alargado
- reside na morada dos autos desde 2019, com o seu grupo familiar de origem, tratando-se de uma moradia própria dos pais, de tipologia 3, inserida em contexto residencial urbano, sem associação significativa a problemáticas sociais e que oferece condições de habitabilidade e conforto.
- ingressou na carreira militar em novembro de 2017, como voluntário, no Centro de Formação ... (...), em Lisboa, no posto de soldado recruta. Após conclusão do curso de Polícia Aérea, entre novembro de 2017 a meados de 2020, BB foi destacado para o desempenho de funções no Aeródromo ... da Força Aérea situado em ... – Ovar, ascendendo aos postos de 2º Cabo, 1º Cabo e Cabo Adjunto da Polícia Aérea. Esteve suspenso das funções profissionais entre agosto de 2022 a maio de 2023, com cessação do contrato laboral após procedimento disciplinar;
- a partir de 2021, enquanto exercia funções laborais como cabo Adjunto da Polícia Aérea no Aeródromo ... da Força Aérea em ..., Ovar, frequentou a licenciatura em Recursos Humanos no ... - Instituto Superior ..., a qual conclui recentemente, a 9 de outubro de 2024, e no âmbito da mesma concluiu três estágios profissionais no departamento de Recursos Humanos das empresas “D..., Lda.” na Trofa e no “E...”, Vila Nova de Gaia, no total de 544 horas.
- atualmente, e desde maio de 2024, o arguido trabalha, com contrato, como bagageiro/mandarete de 2ª no Hotel ..., em Vila Nova de Gaia, desde maio de 2024. Tem um vencimento mensal líquido de €744,95 e considera a sua situação económica como modesta
- o arguido tem um quotidiano estruturado em função dos seus compromissos laborais e familiares, mantendo convivência regular com a namorada, com a qual mantém relacionamento afetivo há cerca de quatro anos, beneficiando do seu apoio. De igual forma, mantém convivência com grupo de amigos avaliados como pró-sociais, com os quais pratica modalidade desportiva de futebol. Quer o arguido, quer o seu grupo familiar são bem aceites na comunidade em que se inserem.
- o presente processo é primeiro confronto do arguido com o sistema da administração da justiça penal, estando a vivenciar a sua constituição como arguido com sentimentos de preocupação e angústia. Avalia repercussões significativas do processo ao nível pessoal, associadas à desestruturação do seu projecto de vida, que estaria orientado para o ingresso no curso de Oficiais da Força Aérea após conclusão da licenciatura e para a prossecução de atividade profissional neste ramo militar. Avalia ainda repercussões no contexto económico, face ao decréscimo de remuneração, assim como ao nível emocional, pelo desgaste psicológico inerente à presente situação jurídica. Antecipa o desfecho do processo como favorável.
2.2 FACTOS NÃO PROVADOS
Não resultou provado que:
Os arguidos AA e BB, sabendo que os ofendidos eram militares em adaptação e querendo aproveitar-se da superioridade que lhes era conferida pelos seus postos, decidiram em conjugação de esforços e na execução de um plano tacitamente acordado, constranger os ofendidos a praticar atos aos quais sabiam aqueles não estarem obrigados, intimidando-os para o efeito.
No momento referido em 8) todos vieram para o exterior do bar de praças e todos consumiram cervejas.
E, por ordem dos arguidos AA e BB, sempre que um dos ofendidos terminava de beber uma cerveja, o outro tinha de terminar de imediato a cerveja que estava a beber, sendo certo que era do conhecimento dos arguidos que o ofendido CC não gostava de beber bebidas alcoólicas, por este lhes ter dito.
Os ofendidos acataram estas ordens atenta a superioridade que era conferida pelo posto dos arguidos.
Os ofendidos CC e DD realizaram os exercícios físicos referidos em 9) porque os arguidos AA e BB lhes ordenaram que os fizessem. E acataram tais ordens por aqueles serem mais antigos e terem um posto hierárquico superior e temerem a sua reação caso não acatassem as ordens.
O arguido BB continuou a aproveitar-se da superioridade conferida pelo seu posto quando questionou os ofendidos nos termos referidos em 10), pretendendo que os mesmos, por temerem represálias, tentassem aceder ao telhado, escalando-o.
Aquando da sua subida ao telhado referida em 11), o arguido AA, também continuou a aproveitar-se da superioridade conferida pelo seu posto e questionou os ofendidos no sentido de saber porque não estavam já no telhado, se ele já lá estava.
No momento referido em 13) os ofendidos CC e DD subiram ao telhado, apesar de não o quererem fazer, porque se sentiram intimidados a fazê-lo do mesmo modo que tinha feito o arguido AA, ficando, assim, a uma altura do chão de cerca de três a quatro metros, atenta a autoridade inerente à antiguidade dos arguidos AA e BB.
Os ofendidos saltaram para o chão no momento referido em 14), apesar de não o quererem fazer e temerem magoarem-se no salto, porque foram instados para tanto pelo arguido AA e se sentiram obrigados a saltar do telhado para o chão, o que fizeram por temerem represálias.
De seguida, os arguidos AA e BB continuaram a ordenar aos ofendidos CC e DD que realizassem os exercícios físicos acima referidos –flexões, pulos de galo, abdominais e prancha –, o que estes continuaram a acatar fazer por temerem represálias.
Os sacos que foram enviados na cabeça dos ofendidos dificultaram-lhes a respiração.
Durante este percurso, o ofendido DD rasgou o saco plástico que tinha na cabeça por estar a sentir-se sufocado.
Os ofendidos saíram da viatura porque os arguidos os mandaram fazê-lo e foram aqueles que lhes tiraram os sacos da cabeça.
Nesse local, os arguidos AA e BB continuaram a ordenar aos ofendidos que bebessem bebidas alcoólicas e realizassem os exercícios físicos acima referidos, o que estes continuaram a fazer por temerem represálias.
Momentos mais tarde, o arguido AA, continuando a aproveitar-se da superioridade que lhe era conferida pelo posto, dirigiu-se junto do ofendido CC e, sem que nada o fizesse prever, desferiu-lhe uma cabeçada.
De seguida, o arguido AA encostou a sua cabeça à cabeça do ofendido DD, intimidando-o.
Os ofendidos saíram do local, no momento referido em 21), após terem sido autorizados pelos arguidos AA e BB a abandonar o local em corrida até ao bar de praças, tendo de seguida sido dispensados.
Os arguidos AA e BB agiram de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e em execução de um plano tacitamente acordado, sabendo que as expressões proferidas e os comportamentos que adotaram eram adequados a constranger os ofendidos DD e CC, seus subordinados, a consumirem bebidas alcoólicas, a praticarem exercício físico, a saltarem do telhado do bar de praças, a colocarem um saco plástico na cabeça, tudo conforme acima descrito, e que os ofendidos não queriam fazer, nem a tal eram obrigados pelos deveres de serviço e da disciplina.
Os arguidos AA e BB atuaram com o intuito de provocar, como provocaram, medo e receio nos ofendidos, que apenas praticaram os atos que lhes foram ordenados pelos arguidos por temerem o comportamento destes e por estes serem mais antigos e terem um posto hierárquico superior.
Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
2.3 CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
Para a formação da sua convicção, o tribunal relevou toda a prova constante dos autos:
- a documental – designadamente:
- todo o apenso I – que corresponde à documentação do processo disciplinar que foi instaurado aos arguidos, onde consta entre o mais: o termo de abertura, datado de 12.08.2022; termo de juntada, despacho liminar, participação após a chamada telefónica de 11.08.2022; o auto de declarações do ofendido CC, de 17.08.2022, onde este refere, entre o mais, que foram buscar uma grade de minis ao alojamento de 1 militar, que ele próprio transportou…., quanto a ter sido obrigado a beber - referiu ter sido coagido, embora não obrigado e que quando iam buscar cervejas traziam para os dois ofendidos e para os dois arguidos; mais disse que não se negaram a nada do que lhes foi dito ou pedido, fazendo tudo o que lhes foi solicitado, tendo ideia que assim ganhariam o respeito dos mais antigos… sentiram que deveriam subir ao telhado….saltaram …sem que ninguém lhes tenha dito para saltarem… por se considerarem os maçaricos do grupo sentiam-se na obrigação de fazerem tudo o que lhes era solicitado… fizeram mais benefícios físicos… tendo feito o destroçar da PA todos juntos e também lhes foram feitas acercada unidade e antiguidade de uma maneira geral…. de seguida lhe foi colocado um saco na cabeça a ele e ao …. DD…. foram levados para a carrinha da PA, foram colocados na mala….não lhes tendo sido dito nada, nem os mesmo expressado qualquer reação contraditória ao que se estava a passar… realizaram benefício físico, bebendo também cervejas…. Levou uma cabeçada… do AA… não tendo a noção se foi propositado ou não, atendendo ao efeito de álcool….mais benefício físico…e regressado todos de seguida a pé… até ao alojamento físico….; o auto de declarações do ofendido DD, de 17.08.2022, onde este refere, entre o mais que: informou que não foram obrigados a beber estando os cabos mais antigos a fazer perguntas acerca da unidade…quando erravam algumas perguntas os elementos mais antigos solicitavam a realização de benefício físico … não tendo, contudo, um tom intimidatório para com estes…deram a ideia de subir para cima do, não tendo constituído uma obrigação, tendo subido pelos tubos de água de uma lateral do edifício…. AA subiu ao telhado… saltando do mesmo para o chão… tomaram iniciativa de fazer o mesmo que o … AA e saltar do telhado… referiu como cerca de 2M a altura do telhado para o chão… Voltaram as perguntas iniciais, tendo mesmo feito todos juntos o destroçar da PA…referiu que foi encapuzado com um saco na cabeça, tendo sido imobilizado, como se estivesse algemado, sem a ocorrência de qualquer tipo de agressão… foi levado para a carrinha…colocados na mala… levados para o portão sul…Levaram as cervejas na carrinha… e continuaram a beber lá, continuando as perguntas, que em caso de errarem lhes era solicitado na mesma o benefício físico, tal como anteriormente…levou uma cabeçada do …AA enquanto tinham um diálogo sobre coisas da PA, referindo que não teve a perceção se foi de propósito ou não, estando ambos sob o efeito de álcool… continuaram com o benefício físico, tendo acabado com as bebidas…tendo posteriormente regressado a pé, a cantar o hino da PA até ao alojamento….quando chegaram ao alojamento falaram a familiares a contar da situação uma vez que sentiam desmotivados e completamente de rastos, tendo sido um choque… Informou que no dia seguinte acompanharam o serviço do …AA e …. BB, e que não sucedeu nada de especial, tendo mesmo sido dispensados mais cedo pelos mesmos, mas referindo que já não sentiam o mesmo à vontade, tendo passado 2 ou 3 dias de desmotivação; o auto de declarações da testemunha LL, de 17.08.2022 onde este refere que conviveram e todos beberam de livre vontade, que não viu nada do telhado, que colocaram os sacos na cabeça dos ofendidos para que não vissem o caminho e descobrissem a volta, sendo que conseguiam um respirar. Lá beberam, continuaram as perguntas e voltaram todos a pé a cantar o hino, não tendo visto quaisquer agressões; os autos de declarações dos ofendido DD e CC, de 18.08.2022, onde o primeiro reitera, entre o mais, que que ninguém os obrigou a beber e que nunca disseram que não queriam beber…que saltaram do telhado por iniciativa própria, tendo feito o mesmo que o AA…
- a informação de fls. 55; a cópia da participação de fls. 59; as notas de assentos de fls. 105; 108; 111; 114; a certidão de fls. 117; as informações de fls. 175 e 176; o relatório final de fls. 191; o parecer de fls. 212, os relatórios sociais da DGRSP dos arguidos AA e BB e os recentes certificados do registo criminal dos arguidos
- conjugou-a com a análise crítica
- das declarações dos arguidos:
- AA e BB, que muito embora admitam parte dos factos que lhes são imputados, refutam, de todo, que alguma vez tenham obrigado os ofendidos a realizar qualquer ação que aqueles não tenham aceite voluntariamente. Referiram a existência do convívio com os ofendidos, no dia 08.08.2022, após o jantar, e referiram as pessoas que estiveram presentes nos convívios nos distintos momentos que ocorreram ao longo da noite da madrugada, sendo o cabo LL a pessoa que mais esteve com eles e com os ofendidos. Disseram que não obrigaram ninguém a beber bebidas alcoólicas ou a entrar em qualquer jogo ou brincadeira com perguntas e exercícios. Referiram que estiveram todos a beber, a falar, a contar piadas, a trocar impressões sobre o curso, e a ouvir música. Disseram que fizeram exercícios e o destroçar, todos juntos, com prancha e flexões. Admitiram que faziam questões e que os ofendidos tinham de fazer exercícios como paga se errassem as perguntas, mas que nunca se queixaram, ou mostraram não querer continuar a alinhar no jogo. Admitiram a situação do telhado nos termos que resultou provada, sendo que o BB disse que foi ele quem lançou a questão do que fariam se estivessem pessoas no telhado que teriam de socorrer, e o AA disse que uma vez que aqueles não conseguiam subir, lhes mostrou como poderiam fazer e subiu ao telhado e depois desceu dali saltando, o que aqueles imitaram. Ambos frisaram que nunca ninguém os mandou ou sequer obrigou a subir ao telhado nem tão pouco a saltar dali. Admitiram que colocaram os sacos de plásticos pretos na cabeça dos ofendidos, esclarecendo que os mesmos eram finos e que nunca os apertaram e referiram qual o intuito de o fazerem. Referiram que depois disso foram para o Portão Sul, como foram e com quem foram e o que ali fizeram, esclarecendo que o LL foi com eles na carinha e na bagageira com os ofendidos. Referiram que ali foram feitos mais exercícios e que fizeram saudações e cantaram o hino. Disseram que tudo foi uma brincadeira, em que todos alinharam, e reconheceram que poderiam ter vendado os ofendidos de outra forma, mas frisaram sempre que nunca houve qualquer violência, ou tão pouco resistência dos ofendidos ao que solicitavam ou sugeriram que aqueles fizessem. Tendo sempre, sempre alinhado na brincadeira.
- das declarações do assistente DD, que explicou que conheceu os arguidos na unidade de Ovar e referiu as funções de casa um deles. Disse que estava no inicio da adaptação ao serviço e que eram acompanhados por sargentos. Esclareceu que foi com o CC ao clube de praças, que era um espaço de convívio. Referiu que foi com o CC e o LL buscar uma grade de cerveja. Diz que lhes deram ordem nesse sentido, e assim como o ofendido CC, não sabe dizer de ou proveio tal ordem. Disse que logo que chegaram ao local que estavam intimidados, mas não foi capaz de referir qualquer ação concreta dos arguidos que fosse intimidatória, referindo de forma vaga que tinham a ideia que se não fizessem o que lhes era pedido por camaradas mais velhos (com maior antiguidade) seriam considerados ovelhas negras e não eram bem integrados na comunidade. Disse que beberam bebidas alcoólicas porque lhes disseram para o fazer e que jogaram um “quiz”. Disse que fizeram o destroçar e que foi o porta voz, estavam em prancha e a fazer flexões e cantavam o hino. Quanto à situação do telhado, disse que o BB teve a ideia e que o AA é que subiu, por um tubo, e quando chegou lá acima lhes disse se eu estou aqui vocês também conseguem. Disse que ninguém os obrigou, mas acharam que deviam fazer o que ele fez, e saltaram como ele fez. Disse que continuaram a ingerir cervejas, e que lhes meteram sacos plásticos na cabeça, e que na altura se sentiu subjugado, mas também não fez nada para reagir ou dizer que não estava a gostar da brincadeira, disse que os sacos eram grossos, mas ainda assim diz que rasgou o seu, muito embora não estivesse apertado. Referiu que podiam ter descido pela caleira, na situação do telhado. Referiu que o saco na cabeça estava aberto, e que o rasgou para ter visibilidade e que não teve qualquer problema por isso. Disse que teve medo. Disse que saíram sozinhos da carrinha e que tiraram os sacos da cabeça, e ali, no portão sul tiveram de fazer vários exercícios para pagar os erros das perguntas. Diz que foi só ele e o CC a fazer exercícios, mas depois disse que o LL também fez. Disse que o AA encostou a cabeça à sua, mas não referiu qualquer agressão, e disse não ter visto qualquer cabeçada do BB. Disse que costumava beber cervejas Diz que nesse dia tudo acabou com a corrida até ao alojamento. Por fim, disse que no dia seguinte o serviço era com os arguidos e que ele e o CC estavam mal, mas sabiam que tinham de estar com eles. Em toda a sua inquirição e no contexto do seu relato, não refere a existência de quaisquer factos objetivos que consubstanciem violência, ameaça ou ambiência de violência, pois que se percebe pelo seu relato foi sempre alinhando em tudo o que lhe foi pedido pelos arguidos, não havendo por isso mesmo por parte dos arguidos, sequer, qualquer necessidade de violência ou agressão para os constranger a fazer o que quer que fosse. Eles próprios autocolocaram em si mesmos a pressão de alinharem em tudo para serem aceites e não serem “ovelhas negras” ou “bichos”
e dos depoimentos das testemunhas ouvidas:
- desde logo, o ofendido CC, que referiu a situação ocorrida consigo e com o ofendido DD. Afirmou que depois do horário normal, porque eram maçaricos, lhes disseram para ir buscar uma cervejas e ir ter ao bar. Disse que foi buscar uma grade de cervejas, com o DD e o LL, e que depois foram para o bar de praças para o convívio. Disse que lhes disseram para beber, e diz que tinha frisado que não gostava de beber, mas que ainda assim bebeu, porque não queria que o considerassem “bicho” – que é quem não faz o que lhe é pedido na adaptação. Esclareceu que havia um questionário e que se falassem tinham castigos que eram exercícios físicos. Explicou a situação do telhado e referiu que ele e o DD fizeram o mesmo que o arguido AA, mas que ninguém os obrigou, e disse que achou que era melhor saltar porque tinha bebido (!!!), mas que havia outra soluão que era descer pela caleira. Referiu a situação dos sacos na cabeça, disse quer era um saco preto e que não via nada, e que foi para a bagageira da carrinha e depois foram para o portão sul. Referiu que lhe disseram para não tirar o saco, mas que ainda assim o levantou quando estava na carrinha, dizendo que era para respirar melhor, quando na realidade o saco não estava apertado. (!!!). Disse que mal chegaram ao local tiraram os sacos. Referiu os exercícios físicos que fizeram. Disse que o AA lhe deu uma cabeça, mas depois disse que afinal, só encostou a cabeça à dele e foi quando estavam a fazer um “rito”/Grito da polícia aérea e não teve qualquer dor e que ambos estavam alcoolizados. Explicou que no final vieram para o alojamento a correr. Esclareceu que achava que devia de fazer o que lhe pediam para melhor integração, mas que ninguém o obrigou a nada, que o fez para não serem tratados como bichos. Disse que teve medo quando saltou do telhado, e não em qualquer outra situação, mas que nessa altura também subiu porque quis porque não queria ser posto de parte. Aqui também como relatada demostra claramente que os próprios ofendidos autocolocaram-se a pressão e a obrigação de fazer o que lhes fosse ditos pelos camaradas mais velhos, fossem estes arguidos ou outros camaradas.
- e todas as outras testemunhas ouvidas em audiência – GG, II, JJ, KK, PP, LL, MM, NN, OO, RR, SS, TT, UU e VV., que referiram os factos de que tiveram conhecimento e a perceção que tiveram no contacto com a situações ou com os ofendidos,
- aliando a todas as informações recolhidas as regras da experiência, da lógica e do senso comum.
Como dispõe o art.127º do C.P.P., a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, o que significa que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
Quanto à condição económica e pessoal dos arguidos foram tidos em conta os relatórios sociais juntos aos autos e no que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos considerou-se o teor dos certificados de registo criminal a que supra se fez alusão.
A formação da convicção do tribunal quanto aos factos não provados resultou da circunstância de nenhuma prova se ter produzido em audiência que tivesse a virtualidade os afirmar e tendo-se em consideração o que foi referido pelos próprios ofendidos.»
Com efeito, DD, assistente, deduziu, na data indicada, pedido de indemnização contra AA, BB, JJ e KK, solicitando, a final, a sua condenação a um pedido de desculpas público junto da comunidade militar da Força Aérea e ao pagamento de uma indemnização em montante global não inferior a € 10 000 (dez mil euros).
Por despacho de 04-10-2024 (referência n.º 464123468), a Senhora Juiz Presidente decidiu, com argumentação que não cabe agora analisar, não admitir o pedido cível em causa por se revelar manifestamente extemporâneo.
Esta decisão foi notificada ao Ilustre Mandatário do assistente por ofício electrónico expedido a 07-10-2024.
Por requerimento entrado em juízo a 11-11-2024, veio o assistente DD contestar a alegada intempestividade do pedido de indemnização, pedindo ao Tribunal a quo a alteração do decidido.
Por despacho proferido nessa mesma data em audiência de julgamento, conforme da respectiva acta consta, foi decidido:
«No que concerne ao requerimento enviado aos autos no sentido de contestar o despacho em que se considerou intempestivo o pedido de indemnização civil, cumpre dizer que aquele despacho já conheceu sobre esta matéria (da tempestividade do pedido cível), pelo que já se esgotou o poder jurisdicional relativamente à mesma, pelo que querendo o requerente contestar o já decidido, deverá fazê-lo pelos meios legais para tanto.
Notifique.»
Apesar do teor deste despacho e de estar em causa decisão datada de 04-10-2024, notificada por ofício electrónico de 07-10-2024, o assistente apenas veio recorrer do seu teor por requerimento apresentado em juízo a 24-01-2025, mais de dois meses depois no prazo que dispunha para o efeito, recorrendo igualmente do acórdão proferido pelo Tribunal a quo a 19-12-2024.
Ora, quanto ao despacho de 04-10-2024, notificado ao aqui recorrente a 10-10-2024 (a notificação seguiu a 07-10-2024, segunda-feira, e presume-se realizada três dias depois, a 10-10-2024, quinta-feira), podia o assistente apresentar recurso no prazo de 30 dias, ou seja, até 11-11-2024, a que podiam acrescer três dia de prorrogação, tudo conforme decorre das disposições conjugadas dos arts. 107.º, n.º 5, e 107.º-A do CPPenal em conjugação com o art. 139.º, n.º 5 do CPCivil, e 113.º, n.º 12, e 411.º, n.º 1, al. a), estes do CPPenal.
O último dia para apresentar recurso do despacho de 04-10-2024 que considerou extemporâneo o pedido de indemnização apresentado pelo assistente, incluindo os três dias de prorrogação, era, assim, o dia 14-11-2024.
Mostra-se, pois, manifestamente extemporâneo o recurso apresentado desse despacho em 24-01-2025.
O recurso não devia ter sido admitido por ter sido interposto fora de tempo (art. 414.º, n.º 2, do CPPenal).
A decisão do Tribunal a quo que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior (art. 414.º, n.º 3, do CPPenal).
O recurso extemporâneo, enquanto recurso em que se verifica causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do art. 414.º do CPPenal, deve ser objecto de rejeição (art. 420.º, n.º 1, al. b), do CPPenal).
Face ao exposto, com fundamento na sua extemporaneidade, é de rejeitar o recurso interposto pelo assistente do despacho de 04-10-2024 que não admitiu o pedido de indemnização civil por si apresentado, condenando-se o recorrente nas custas do recurso, a que acresce importância a fixar nos termos do n.º 3 do art. 420.º do CPPenal, mostrando-se adequado valor correspondente ao mínimo aí previsto.
Nulidade do acórdão por falta de fundamentação
Começa o recorrente por imputar à decisão recorrida o vício da nulidade por falta de fundamentação, dado que, «não obstante terem sido indicadas quais as provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, não foi efetuado o exame crítico de tais provas, carecendo, portanto, de fundamentação.»
Afirma, nesse sentido, que «o tribunal a quo não fundamentou o facto de não ter feito constar da factualidade dada como provada a descrição feita dos factos pelos ofendidos, tendo, inexplicavelmente, relevado, no geral, a versão dos factos trazida ao processo pelos arguidos», acrescentando que «[n]o que concerne aos factos dados como não provados apenas fez constar da fundamentação que a formação da convicção do tribunal resultou da circunstância de nenhuma prova se ter produzido em audiência que tivesse a virtualidade de os afirmar, bem como o que foi referido pelos próprios ofendidos, sem justificar a razão pela qual não atendeu à versão por estes apresentada e que corroborou a descrição feita dos factos no despacho de pronúncia, pelo que teria a virtualidade de a dar como provada.»
Conclui que o acórdão recorrido «padece (…) de falta de fundamentação, em obediência ao requisito do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo penal, o que, por si só, configura a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma legal.»
Apreciando.
Dispõe o n.º 2 do art. 374.º do CPPenal, sob a epígrafe “Requisitos da sentença”, que «[a]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»
Por seu turno, determina o art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal que:
«1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F».
A simples leitura do primeiro dos preceitos citados evidencia que a fundamentação de facto e de direito não tem de ser exaustiva, isto é, não tem de fazer alusão particularizada e pormenorizada a todos factos e sua interligação com as provas produzidas, antes satisfazendo-se a exigência de fundamentação com uma exposição concisa, ainda que tanto quanto possível completa, que deve conter a indicação e o exame crítico das provas que sustentaram a convicção do Tribunal.
E só na falta destas menções se pode concluir pela nulidade da decisão, como resulta do texto do segundo dos preceitos aqui reproduzidos.
Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2018[2], segundo o qual:
«I - A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos dos artigos 374.º e 375.º do CPP, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre directamente do art. 205.º, n.º 1, da CRP. A fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
II - O dever de fundamentação satisfaz-se com a exposição concisa, mas, tanto quanto possível, completa dos motivos de facto que fundamentam a convicção do tribunal, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar tal convicção, não sendo exigível uma indicação das provas que, com especificada referência a cada um dos factos, justificam que cada um deles seja considerado provado ou não provado.
III - A falta de fundamentação implica a inexistência dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e só a falta absoluta de fundamentação determina a sua nulidade.»[3]
E ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-01-2014[4] que, quanto ao dever de fundamentação, explanou o seguinte:
«XI - O dever de fundamentação da decisão traduz-se em assumir uma síntese intelectualmente honesta e suficientemente expressiva do resultado do exame contraditório sobre as distintas fontes de prova. O juiz examina a prova e depois manifesta uma opção de sentido e valor e essa tarefa não o dispensa de, ao fixar os seus elementos de convicção, o fazer de forma clara, numa exposição das razões de facto e de direito da sua decisão (art. 374.º, n.º 2, do CPP).»
Esta análise, que se impõe que o julgador verta na sua decisão, permite aos destinatários da mesma acompanhar o processo lógico-valorativo da formação da convicção do Tribunal, verificar da legalidade da decisão face às regras de apreciação da prova – como o princípio in dubio pro reo, as regras da experiência comum, as proibições de prova, o valor da prova pericial, o grau de convicção exigível e a presunção de inocência – e, pretendendo, impugná-la especificadamente quanto aos pontos considerados mal julgados, possibilitando ainda ao Tribunal de recurso uma mais clara e efectiva reponderação da decisão da 1.ª Instância.
Como bem se definiu no acórdão desta Relação do Porto de 09-12-2015[5]:
«I - A fundamentação, na sua projecção exterior, funciona como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite da verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão, e na perspectiva intraprocessual, está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos.
II – O exame crítico da prova consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
III – A razão de ser da exigência da exposição, dos meios de prova, é não só permitir o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, mas também assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova.»
Regressando à situação dos autos e percorrendo o texto do acórdão recorrido, ressalta dele, de imediato, um outro problema, de conhecimento oficioso, qual seja, a valoração de autos de declarações e depoimento prestados no processo disciplinar e tidos, incorrectamente, como prova documental.
Com efeito, estabelece o art. 355.º do CPPenal, sob a epígrafe “Proibição de valoração de provas”, que:
«1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.»
Tem sido jurisprudência pacífica o entendimento de que esta norma não exige que todas as provas sejam produzidas ou reproduzidas em audiência. É o caso dos documentos que estejam juntos aos autos, que se consideram examinados e produzidos em audiência, independentemente de aí serem efectivamente lidos, considerando-se que a circunstância de todos os intervenientes terem deles conhecimento e poderem proceder à sua análise salvaguarda o exercício do contraditório, essencial ao direito de defesa dos arguidos.
E este entendimento é válido para uma parte do processo disciplinar, junto como Apenso I, mas não para autos de declarações ou depoimentos que aí constem, que para este efeito (valoração como prova) não são considerados prova documental, ficando sujeitos às regras aplicáveis às declarações e depoimentos prestados em fases anteriores do próprio processo crime, que também não são livremente apreciados, estando sujeitos às regras estabelecidas nos arts. 356º e 357.º do CPPenal.
Como bem se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-07-2013[6], «[s]ob pena de subversão da disciplina dos artigos 355.º, 356.º e 357.º, todos do CPP, é insusceptível de valoração, como «documental», a prova traduzida em declarações e depoimentos [provas documentais declarativas] proferidos no decurso da audiência de discussão e julgamento no âmbito de um outro processo [em que o arguido não coincide] - cuja certidão [onde, também, se inclui a transcrição daqueles] integra os autos que agora decorrem.»
Nem faria qualquer sentido que declarações e depoimentos estranhos ao desenrolar do próprio processo crime pudessem nele ser irrestritamente ponderados como “prova documental”, afrontando de forma grave o princípio da imediação e a possibilidade de contraditório, e aqueles que foram produzidos nas fases anteriores ao julgamento, de inquérito e instrução, vissem a sua possibilidade de ponderação como meio de prova limitada às situações previstas nos arts. 356.º (quando ao assistente, partes civis e testemunhas) e 357.º (quanto ao arguido) do CPPenal.
Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque[7] afirma expressamente que «[o] artigo 356.º não distingue entre as declarações prestadas no processo em que são lidas e as declarações prestadas em outro processo».
Nesta perspectiva, de tratamento das declarações e depoimentos prestados noutros processos de acordo com as mesmas regras que se aplicam aos prestados no próprio processo nas fases anteriores ao julgamento, temos como regra geral, para o que aqui importa, o determinado no art. 356.º, n.º 1, al. b), do CPPenal, que, sob a epígrafe “Reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações” preceitua que só é permitida a leitura em audiência de autos de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas.
Ou seja, a regra é a da proibição de leitura desses autos e, por maioria de razão, a sua ponderação na formação da convicção do Tribunal.
Estabelecem-se, depois, nos números seguintes, as excepções a esta regra, permitindo-se a leitura em audiência de julgamento de declarações e depoimentos prestados em inquérito ou instrução, que, quanto ao assistente, partes civis ou testemunhas, se resumem às seguintes situações:
A - Serem prestadas perante o Juiz e:
1) respeitarem as declarações tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º; ou
2) o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura; ou
3) respeitarem as declarações obtidas mediante rogatórias ou precatórias legalmente permitidas.
B - Serem prestadas perante autoridade judiciária:
1) na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou
2) quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias; ou
3) se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura; ou
4) se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.
C - Serem prestadas perante órgãos de polícia criminal:
a) – se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura.
Deve ainda atentar-se que i) é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor; ii) os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas; iii) a visualização ou a audição de gravações de actos processuais só é permitida quando o for a leitura do respectivo auto nos termos dos números anteriores; e que iv) a permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade.
No caso dos autos, compulsadas as actas das sessões de audiência de julgamento observa-se que nelas não se consignou qualquer permissão de leitura das declarações (de CC e de DD) e depoimento (de LL) prestados no processo disciplinar e que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal a quo enquanto prova documental, nem, tão-pouco, que se procedeu à sua efectiva leitura.
Partindo do pressuposto de que as actas espelham correctamente o que se passou na audiência de julgamento, podemos concluir que não só não foi autorizada a leitura daquelas referidas declarações e depoimento, no âmbito de uma das situações acima identificadas como válidas para o efeito, como efectivamente não ocorreu essa leitura, sendo apenas em sede de acórdão que tais elementos de prova foram ponderados, incorrectamente como prova documental, atentando contra o princípio da imediação e impossibilitando um eficaz contraditório dentro dos limites que o art. 356.º do CPPenal estabelece.
Essa prova, não sendo proibida por natureza, uma vez que nas condições adequadas podia ser avaliada, torna-se imprestável para fundamentar a decisão final do processo, já que não cumpre os requisitos que permitiam essa ponderação, tornando-se por essa via (não substantiva, mas processual) prova proibida, não valendo em julgamento conforme se determina no n.º 1 do art. 355.º do CPPenal.
A inclusão desta prova proibida na motivação do acórdão recorrido determina necessariamente a nulidade do mesmo, embora à margem das situações previstas nos arts. 379.º e 410.º do CPPenal.
E considerando a concreta fundamentação da convicção do Tribunal a quo, supratranscrita, não é possível determinar em que medida aqueles autos, que não podiam ser valorados, foram, ou não, relevantes para a formação dessa convicção, designadamente em confronto com as declarações e depoimentos dos mesmos intervenientes em julgamento, tornando irreparável a decisão nesta instância de recurso.
Esta deficiente explicitação da avaliação levada a cabo pelo Tribunal a quo toca, aliás, numa concreta questão que suscitou a arguição de nulidade do acórdão recorrido por parte do recorrente Ministério Público.
É que, de facto, da leitura da convicção do Tribunal a quo não resulta qualquer exame crítico das provas, qualquer opção de valor quanto à credibilidade das mesmas e de cada uma, bem como à sua concatenação, limitando-se essa fundamentação a uma descrição do que foi dito, o que é insuficiente para se perceber, na sua globalidade, a visão do Julgador sobre o mérito da prova. Limitação, no caso, agravada perante a impossibilidade de ponderação de parte dos elementos descritos, como vimos.
Neste aspecto, e dentro do contexto descrito, reconhecemos que assiste razão ao recorrente ao apontar tal nulidade.
Já não a terá quando refere que o Tribunal recorrido não fez reflectir na matéria de facto provada e não provada a descrição dos acontecimentos feita pelos ofendidos em julgamento, porquanto da leitura da síntese que no acórdão recorrido se realiza dessa prova não ressalta essa desconformidade.
Tal questão só poderá ser correctamente avaliada em sede de impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 412.º do CPPenal, com a efectiva reapreciação das provas.
Em síntese, não procede totalmente a argumentação do Ministério Público quanto aos fundamentos da nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação, mas é de deferir parcialmente este segmento do recurso quando aponta à decisão recorrida a ausência de exame crítico da prova.
Resulta de tudo o exposto que o acórdão recorrido padece de nulidade por duas vias:
- por força do disposto nos arts. 355.º e 356.º do CPPenal, por ter sido ponderada na convicção do Tribunal a quo prova que não se encontrava em condições de o ser;
- por força do disposto nos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal por ausência de exame crítico das provas.
A nulidade do acórdão decorrente da ponderação de prova que era proibida nos termos em que o foi [ponderada] determina – na impossibilidade da sua reparação pelo Tribunal de recurso como já se referiu – a baixa dos autos à 1.ª Instância para que o Tribunal a quo proceda a nova avaliação de toda a prova, dela excluindo a que foi declarada inválida para o efeito, e refaça a decisão, sendo caso disso, em termos de facto e de direito.
Esta nulidade faz retroagir o processo à fase da deliberação, confrontando-se o Colectivo de Juízes com um diferente acervo de prova, com que não contou no momento da deliberação inicial, sendo, por isso, de salvaguardar a possibilidade de ser necessário reabrir a audiência para produção de prova.
A nulidade da fundamentação por ausência de exame crítico da prova determina igualmente o regresso do processo à 1.ª Instância para que o Tribunal a quo complete a sua fundamentação de facto, tendo presente, naturalmente, as alterações que possam decorrer da reparação da nulidade por violação do disposto nos arts. 355.º e 356.º do CPPenal.
O ora decidido quanto à nulidade do acórdão prejudica o conhecimento das demais questões supramencionadas.
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
a) – Rejeitar, por extemporâneo, o recurso apresentado pelo assistente DD do despacho de 04-10-2024 que não admitiu o pedido de indemnização por si formulado nos autos;
a1) – Condenar o recorrente nas custas desse recurso, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça e em igual montante a sanção prevista no n.º 3 do art. 420.º do CPPenal (arts. 515.º, n.º. 1, al. b), do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).
b) – Reconhecer e declarar oficiosamente a nulidade do acórdão recorrido por valoração de prova que não podia ser ponderada de acordo com o disposto nos arts. 355.º e 356.º do CPPenal;
c) - Julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público e reconhecer e declarar a nulidade do acórdão recorrido por ausência de fundamentação quanto ao exame crítico das provas;
d) – Determinar, em consequência do decidido em b) e c), a baixa dos autos à 1.ª Instância para que o Tribunal a quo elabore novo acórdão expurgado da avaliação da prova proibida nos termos em que o foi e complete a fundamentação de facto com o adequado exame crítico da prova, tendo presente as alterações que possam decorrer da reparação da nulidade fundada na violação do disposto nos arts. 355.º e 356.º do CPPenal, tudo sem prejuízo da possibilidade de ser reaberta a audiência para complemento da prova.
e) – Considerar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos recursos do acórdão final apresentados pelo Ministério Público e pelo assistente DD.
Sem tributação quanto ao recurso do Ministério Público (art. 522.º, n.º 1, do CPPenal).
Notifique.
Porto, 28 de Maio de 2025
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas da relatora e da 1.ª Adjunta substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paula Natércia Rocha
Major-General José Santiago
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