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CRIME PARTICULAR
SUSPENSÃO PREVISTA NO N.º 3
POR REFERÊNCIA AO N.º 1
DO ARTIGO 6.º-B DA LEI N.º 1-A/2020
DE 19 DE MARÇO
NA REDAÇÃO DA LEI N.º 4-B/2021
DE 1 DE FEVEREIRO
PRINCÍPIO DE PROIBIÇÃO DA APLICAÇÃO RETROATIVA IN PEJUS DE LEIS PENAIS
Sumário
I - A aplicação da suspensão prevista no n.º 3, por referência ao n.º 1, do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, ao prazo de apresentação de queixa por crime particular ocorrido antes da entrada em vigor deste último diploma, não viola o princípio de proibição da aplicação retroativa in pejus de leis penais. II - A adoção de tal medida mostra-se justificada pelas circunstâncias excecionais do tempo em que foi determinada, e destinou-se, exclusivamente, a garantir o efetivo respeito por direitos inequivocamente merecedores de tutela constitucional e legal de que também gozam as vítimas de crimes (desde logo, o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e o direito da vítima a intervir eficazmente no processo penal, nos termos previstos no artigo 32.º, n.º 7, da Lei Fundamental).
Texto Integral
Processo n.º:953/20.2PAPVZ.P1 Origem: Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos (Juiz 1)l Recorrente: Ministério Público Referência do documento: 19379624
I
1. O Ministério Público impugna, no presente recurso, decisão instrutória proferida no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos (Juiz 1) que, após a competente instrução, concluiu pela não pronúncia dos arguidos no processo, por entender que se mostrava excedido o prazo de caducidade para a apresentação de queixa legalmente exigida.
2. São os seguintes os antecedentes da decisão aqui recorrida.
3. Em 22/12/2020, foi recebida na esquadra da Polícia de Segurança Pública ... uma comunicação, impressa em papel timbrado da Câmara Municipal ..., datada de 16/12/2020 e assinada pelo Vice-Presidente do referido município, do seguinte teor (cf. o documento com a referência n.º 27696713, da mesma data): «AA, na qualidade de VICE-PRESIDENTE DA Câmara Municipal ..., no uso da competência que lhe é conferida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 35.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais (aprovado pela Lei n.º 75/2013 de 12 de setembro), vem levar ao conhecimento de V.Ex.ª a factualidade que se passa a descrever, cometida por • BB e • CC, [...]. O Município celebrou com a sociedade A..., S.A., em 2 de novembro de 2016, o contrato de empreitada da obra Antiga B...: Obra. Depois de uma série de vicissitudes contratuais, por deliberação tomada em reunião de 7 de abril do corrente ano, a Câmara Municipal decidiu resolver sancionatoriamente o contrato de empreitada. Na sequência da resolução sancionatória do contrato, a Câmara Municipal tomou posse administrativa da obra, no dia 14 de abril do corrente ano. Sobre a execução do contrato de empreitada encontram-se a correr termos dois processos judiciais, ambos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto: uma providência cautelar (Processo 531/20.68EPRT) e uma Ação Administrativa (Processo 956/20.7 BEPRT). Este é o enquadramento da factualidade que se passa a descrever. Com a posse administrativa da obra por parte do Município, e sendo o imóvel propriedade privada da Autarquia, a A..., S.A. – bem como qualquer representante ou empregado desta – ficou obviamente impedida de aceder ao interior do imóvel. Sucede que, no dia 30 de outubro de 2020, por volta das 15.30 horas, BB e CC, administradores A..., S.A., entraram no edifício em causa, sem terem solicitado qualquer autorização para o efeito. Foram identificados por um trabalhador de umas das empreitadas em curso no local, DD (CC [...]), trabalhador ao serviço da empresa C..., que se encontrava a trabalhar dentro do edifício. Tal facto foi dado a conhecer via telefone, por volta das 16.00 horas, pelo trabalhador ao serviço da C..., EE (CC [...]), à trabalhadora do Município Arquiteta FF (CC [...]). Segundo o que foi relatado por DD, os dois administradores da A... entraram pelas portas a sul e visitaram o edifício e dele fizeram um registo fotográfico. Os identificados BB e CC interpelaram DD, que estava a trabalhar no piso 01, tendo-o questionado sobre o que estava lá a fazer e o porquê dos trabalhos e quais os trabalhos que estava a fazer. O Senhor DD reconheceu-os e, depois de ambos saírem de volta dele e irem para outro piso do edifício, telefonou ao seu chefe, EE, que de imediato telefonou à Arquiteta FF dando conta do ocorrido. Os identificados BB e CC – que, repita-se, não solicitaram nem lhes foi concedida qualquer autorização para acederem ao local – visitaram, sem permissão, todo o edifício, registaram com fotografias, e interpelaram ainda GG (CC [...]), trabalhador ao serviço da empresa D..., S.A., questionando-o sobre o que ele ali fazia, que tipo de trabalhos fazia e o porquê. Durante a conversa com GG que os desconhecia e pensava que, uma vez estavam no edifício, seriam técnicos do Município – registaram fotograficamente os trabalhos executados, enquanto o questionavam. Posto isto, No mesmo dia 30 de outubro de 2020, por volta das 16.30 horas, o signatário, o Engenheiro HH, Vereador da Câmara Municipal, e o Engenheiro II, que mantém com a Autarquia um contrato de prestação de serviços, encontravam-se junto ao Farol ..., nesta cidade ..., verificando a evolução dos trabalhos dos arranjos exteriores na envolvente do Farol ... (Alameda ...). Nesse momento os três representantes do Município foram alvo de uma abordagem absolutamente intempestiva e inoportuna, na via pública, por parte dos identificados BB e CC. De facto, BB e CC, depois de pararem a viatura em que circulavam (Audi .../ carrinha azul), dirigiram-se aos representantes do Município, em tom insultuoso e ameaçador, referindo-se ao contencioso judicial pendente, exibindo fotografias em telemóvel dos espaços da obra (que veio a perceber-se depois, fóram tiradas, momentos antes, no local onde decorrem os trabalhos). Nesse mesmo contexto, em tom ameaçador e aos gritos, na via pública, proferiram diversas afirmações, dirigidas aos representantes do Município, tais como • "sois todos uns filhos da puta”; • "ides pagar tudo“; • “o que têm a dizer?” Uma vez que a matéria vinda de descrever indicia a prática de crimes, assim é a mesma participada a V.Ex.ª tendo em vista a instauração do procedimento legal adequado. [...]».
4. Tal comunicação acabou por dar origem ao presente inquérito, tendo a investigação sido delegada na Polícia de Segurança Pública, por despacho proferido em 24/01/2021 (cf. o documento com a referência n.º 420850412 (19/01/2021)).
5. Nesse contexto, em 16/04/2021 foi inquirido HH, que relatou – no que para aqui interessa – o seguinte (cf. o documento com a referência n.º 29186227 (14/06/2021)): «A matéria dos autos diz que é Vereador das Obras Municipais e o legal representante da Câmara Municipal ..., conforme despacho da presidência da camara municipal. Confirma todos os factos denunciados por corresponderem à verdade. Diz que apenas é testemunha dos factos ocorridos no dia 30-10-2020, 16:30, junto ao Farol ..., quando estava na companhia do Sr. Vice-presidente AA, e do Sr. II, a verificar a evolução dos trabalhos de arranjos exteriores na envolvente do dito farol. Diz que de forma repentina e brusca um carro de marca Audi de cor azul, surge em grande velocidade e que parou de forma atravessada na estrada. Deste veículo saíram os dois suspeitos BB e CC, os quais de forma imediata começaram a injuriar em voz alta dizendo repetidamente «sois uns filhos da puta» «ides pagar tudo», «vocês os dois e o presidente da camara são uns filhos da puta, ides pagar tudo», «o que têm a dizer?». Ao mesmo tempo que proferiam repetidamente estas injúrias mostravam nos telemóveis fotografias da obra da antiga B..., obra essa que tinha sido adjudicada à A..., SA (propriedade de ambos os denunciados), mas por força das sanções de atrasos e incumprimentos deste empreiteiro o contrato foi resolvido e o município tomou posse desta obra. Afirma que, juntamente com o Sr. Vice-presidente AA e Sr. II, não responderam a esta interpelação e injúrias, simplesmente viraram as costas e dirigiram-se para o carro e abandonaram o local. Questionado diz que não se recorda qual dos suspeitos estava a conduzir a supramencionada viatura. Declara que o senhor vice presidente AA, inicialmente estava mais afastado a observar os trabalho e não deu logo conta do ocorrido, só já na fase final é que se apercebeu e questionou o motivo daquela confusão. Por estes motivos as referidas injúrias não foram dirigidas ao Sr. vice presidente AA. Declara que as injúrias «sois uns filhos da pula», «ides pagar tudo», «vocês os dois e o presidente da camara são uns filhos da puta, ides pagar tudo», «o que têm a dizer?», foram dirigidas ao depoente, ao Sr. Vereador II, e ao Sr. Presidente da Camara. A pergunta feita diz que as injúrias foram proferidas por ambos os suspeitos que apontavam com o dedo na direção do depoente e do Srº Vereador II, também tem a certeza que estas injúrias foram dirigidas ao Sr. Presidente da Camara porque os denunciados disseram repetidamente em voz alta «vocês os dois e o presidente da camara são uns filhos da pula, ides pagar tudo». Afirma que os suspeitos estavam agressivos quando proferiram estas injurias e ameaças. A pergunta feita diz que sentiu medo das ameaças. Devido a esta situação a o executivo municipal tomou a iniciativa de contratar uma empresa de vigilância 24 horas para a obra da antiga B... e reforçar os meios de policiamento nos atos públicos relacionados com a mesma, tais como a inauguração do canal pedonal do edifício e abertura do centro de atendimento municipal. Questionado disse que apesar de no local estarem a decorrer obras, devido à situação não se apercebeu de quem viu os factos, pelo que não tem outras testemunhas a indicar. O depoente deseja continuar com o procedimento criminal e foi neste ato notificado do pedido de indeminização cível nos termos do artº 75 e seguintes do CPP.».
6. Por seu turno, em 09/06/2021, foi inquirido JJ, então Presidente da Câmara ..., que declarou o seguinte (cf. o mesmo documento com a referência n.º 29186227 (14/06/2021): «A matéria dos autos diz que é presidente da Câmara Municipal .... Refere que não é testemunha dos factos. Declara que os factos denunciados pela Câmara Municipal ... e pelo Srº HH, Vereador das Obras Municipais, foram-lhe transmitidos por este último. Questionado disse que Srº HH, transmitiu-lhe que os denunciados proferiram várias injúrias e ameaças, em voz alta e repetidamente, contra o depoente na qualidade de Presidente da Camara. Declara que das ameaças e injúrias que o Srº HH lhe transmitiu apenas se recorda da expressão utilizada «filho da puta». Declara que sentiu medo das ameaças proferidas pelos suspeitos contra o depoente e que lhe foram transmitidas pelo Srº HH. Afirma que conhece os suspeitos exclusivamente no âmbito das suas funções. Diz que os factos ocorreram devido às funções que exerce na Câmara Municipal .... Deseja continuar com o procedimento criminal e foi neste ato notificado do pedido de indeminização cível nos ternos do artº 75 e seguintes do CPP. [...]».
7. Em 11/02/2023, foi proferido despacho de encerramento do inquérito – no que aqui interessa – do seguinte teor (cf. o documento com a referência n.º 443238003, da mesma data) «I – DESPACHO DE ARQUIVAMENTO Para além dos factos pelos quais se deduzirá acusação pública, AA, na qualidade de Vice-Presidente da Câmara Municipal ..., imputou aos arguidos, a prática de factos passíveis de integrar um crime de introdução em local vedado ao público, bem como do crime de injúria agravada dirigido aos três “representantes do Município”, nos quais o denunciante se enquadrava, a par com II.
* * * * *
1.1 – Crime de introdução em local vedado ao público Cotejada a prova produzida, não podemos deixar de reconhecer que os autos não comportam indícios suficientes do crime em análise. Na realidade, não foi possível demonstrar que a obra onde os arguidos entraram se encontrasse vedada e não livremente acessível. Ainda que possam ali ter entrado sem autorização, nada dos autos evidencia que hajam transposto alguma vedação que impedisse o seu acesso ao local. Assim sendo, não estando em presença de indícios suficientes do crime em apreço, determino o arquivamento, nesta parte, nos termos do artigo 277º, n.º 2 do CPP. 1.3 – Crime de injúria contra AA Cotejada a prova produzida, e apesar da referência genérica a que as expressões propaladas pelos arguidos o foram visando “os três representantes do Município”, cabe-nos realçar que, na verdade, aquelas expressões não chegaram a ser dirigidas ao denunciante e subscritor da queixa, AA, sendo, aliás, nesse sentido que se produziu toda a prova testemunhal. Isto posto, tendo sido reunida, nos autos, prova bastante da não verificação do crime na pessoa do Vice-Presidente da Câmara Municipal ..., determino o arquivamento dos autos, nesta parte, nos termos do artigo 277º, n.º 1 do CPP.
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III – DESPACHO DE ACUSAÇÃO PÚBLICA
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«I. FACTOS OS ARGUIDOS são Administradores da sociedade “A..., S.A.”, que manteve, com a Câmara Municipal ..., um contrato de empreitada da obra da antiga B..., que veio a ser resolvido por iniciativa camarária a 07/04/2020 em virtude de atrasos no cumprimento de prazos por parte da construtora. Na tarde do dia 30 de OUTUBRO de 2020, HH, na qualidade de Vereador da Câmara Municipal ..., encontrava-se junto do Farol ..., sito na Alameda ..., na ..., a verificar a evolução dos trabalhos dos arranjos exteriores daquela área, juntamente com o Vice-Presidente da Câmara, AA, e II, Engenheiro prestador de serviços à Autarquia. Naquela data, JJ assumia a Presidência da Câmara Municipal .... Cerca das 16h30, OS ARGUIDOS assomaram ao local e, por razões de discórdia relativas à resolução do citado contrato, num momento em que AA se encontrava mais afastado, proferiram as seguintes expressões: “Sois todos uns filhos da puta. Ides pagar tudo. Isto não vai ficar assim, Ladrões do caralho. Vocês os dois e o Presidente da Câmara são uns filhos da puta. Ides pagar tudo”. Cada um dos arguidos agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que praticavam atos ilícitos com relevância penal e, mesmo assim, não se inibiu de adotar tais comportamentos. Atuaram com o propósito, conseguido, de proferir as descritas expressões, quiseram dirigi-las diretamente a HH e proferi-las perante terceiros, relativamente a JJ, e, com as mesmas, tencionaram ofender a honra e consideração dos ofendidos estando cientes da qualidade profissional de Presidente e Vereador da Câmara Municipal dos mesmos, que formulavam contra eles os descritos juízos e expressões injuriosas em virtude do exercício das respetivas funções e por causa delas, sabendo também que tal conferia especial censurabilidade à sua conduta injuriosa. II. QUALIFICAÇÃO JURÍDICA Em face de todo o exposto, incorreu cada um dos arguidos BB e CC, na prática, em concurso efetivo, de: — Um crime de injúria agravada (na pessoa do Vereador da Câmara Municipal ..., HH), previsto e punível pelos artigos 181º, n.º 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea l), todos do CP. — Um crime de difamação agravada (na pessoa do Presidente da Câmara Municipal ..., JJ), previsto e punível pelo artigo 180º, n.º 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea l), todos do CP.
* * * * *».
8. Requerida a instrução por banda dos recorridos, foi então proferida a decisão aqui recorrida, do seguinte teor: «Despacho de não pronúncia proferido no processo 953/20.2PAPVZ. Os arguidos BB e CC vieram requerer a abertura da instrução por não se conformarem com o despacho de acusação registado a fls. 151 a 153 dos autos, que lhes imputa a prática, em concurso efectivo, de um crime de injúria agravada e um crime de difamação agravada, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 181.º, n.º 1, e 180.º, n.º 1, com referência às disposições conjugadas dos artigos 184.º e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal. Alegaram o que consta do seu requerimento de fls. 168 a 171 do processo no sentido da inadmissibilidade do procedimento criminal pelo não exercício atempado do direito de queixa, nos termos dos artigos 113.º, n.º 1, e 115.º, n.º 1, do Código Penal, pugnando pela não aplicabilidade da suspensão de prazos previstos nos artigos 6.º-B e 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19-93, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 01-02. O tribunal é o territorialmente competente. Das questões prévias: Do exercício do direito de queixa e da falta de uma condição de procedibilidade: Compulsados os autos, verifica-se que o inquérito se iniciou com base numa participação dirigida à PSP ..., em papel timbrado da Câmara Municipal ..., com data de 16-12-2020, contendo a assinatura do Vice-Presidente da Câmara Municipal, AA, participação esta efectuada no uso da competência que lhe é conferida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 35.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais (Lei n.º 75/2013, de 12-09) tendo em vista a instauração do procedimento legal adequado pela denunciada prática de crimes no dia 30-10-2020. Essa participação foi registada e autuada como inquérito por despacho do Ministério Público registado em 04-01-2021. Estamos perante uma participação efectuada em nome e em representação da Câmara Municipal ..., órgão executivo do Município, contra os aqui arguidos e requerentes da instrução, nomeadamente por introdução em lugar vedado ao público e por diversas afirmações dirigidas aos representantes do Município. Em 16-04-2021, por delegação de competência, a PSP procedeu à inquirição da testemunha HH, Este legal representante da denunciante Câmara Municipal ..., conforme despacho de delegação registado a fls. 26, em declarações transcritas a fls. 27, não manifestou de forma inequívoca a vontade de proceder criminalmente contra os denunciados pelas injúrias e ameaças que lhe teriam sido dirigidas. Ou seja, a testemunha HH não declarou uma vontade própria de procedimento criminal contra os denunciados pela lesão individualmente sofrida. E em 09-06-2021, do mesmo modo, em declarações transcritas a fls. 40, o Presidente da Câmara Municipal ..., JJ, disse que os factos ocorreram devido às funções que exerce na Câmara Municipal ..., mas o auto não contém qualquer declaração sua de pretender, individualmente, procedimento criminal contra os denunciados pelas injúrias e ameaças alegadamente proferidas pelos denunciados. Essa vontade de procedimento criminal apenas foi manifestada pelos representantes legais da Câmara Municipal ..., em nome e em representação do Município, entidade que possui uma personalidade jurídica distinta e que não se confunde com a personalidade jurídica dos seus representantes. Nestas circunstâncias, afigura-se-nos faltar uma condição de procedibilidade, a apresentação atempada de queixa, pelos alegados ofendidos, no prazo legal de seis meses contado a partir da data dos factos objecto da acusação, 30-10-2020. Com efeito, a participação criminal datada de 16-12-2020 não pode valer como queixa por não ter sido subscrita pelos interessados JJ e HH. E as declarações transcritas a fls. 27 e 40, datadas de 16-04-2021 e 09-06-2021, prestadas pelos representantes do Município, também não podem valer como queixa na medida em que no essencial se limitam a confirmar a primeira denúncia constante e os factos constantes da participação acima aludida. Em conclusão, deve ter lugar a extinção do procedimento criminal por falta de uma condição de procedibilidade, nos termos previstos nos artigos 49.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Penal e nos artigos 113.º, n.º 1, 115.º, n.º 1, 180.º, n.º 1, 181.º, n.º 1, e 184.º do Código Penal. Consequentemente, fica prejudicada a apreciação da questão da suspensão dos prazos aludida pelos requerentes com referência aos artigos 6.º-B e 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 01-02.
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Pelo exposto e decidindo, por falta da aludida condição de procedibilidade, nos termos do artigo 308.º, n.,º 1, do Código de Processo Penal, não pronuncio os arguidos BB e CC pelos factos e crimes que lhes eram imputados na acusação pública, declarando extinto o correspondente procedimento criminal e ordenando o arquivamento dos autos. Não há lugar a tributação.
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Notifique.»
9. O recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado): «I. Recorre-se da decisão instrutória proferida em 11.06.2024, de não pronúncia dos arguidos BB e CC, pelos crimes de injúria agravada, previsto e punível pelos artigos 181º, n.º 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea l), todos do CP, e de difamação agravada, previsto e punível pelo artigo 180º, n.º 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea l), todos do CP, com fundamento na falta de uma condição de procedibilidade – exercício do direi[t]o de queixa por parte dos ofendidos HH e JJ. II. Nos presentes autos os arguidos BB e CC requereram a abertura da instrução, na sequência da acusação que contra os mesmos foi deduzida pelo Ministério Público e onde lhes foi imputada a prática, em concurso efectivo, de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, n.º 1, 184º e 132º, n.º 2, alínea l), todos do CP, e de um crime de difamação agravada, p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1, 184º e 132º, n.º 2, alínea l), todos do CP, alegando, para além do mais, que a queixa contra si apresentada por HH e JJ era extemporânea, porquanto fora formulada já depois de completados 6 meses des[d]e os factos, não sendo aplicável a suspensão de prazos prevista nos artigos 6.º-B e 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19-93, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 01-02. III. Foi proferida decisão de não pronúncia onde, a titulo de questão prévia, se entendeu que os ofendidos não tinham apresentado queixa quanto aos referidos crimes, faltando assim uma condição de procedibilidade. IV. Salvo o devido respeito pelo douto despacho, o Ministério Público não pode conformar-se com o mesmo. V. Em 22.12.2020 foi recebida na PSP ... uma queixa em papel timbrado da Câmara Municipal ..., com data de 16-12-2020, contendo a assinatura do Vice-Presidente da Câmara Municipal, AA, participação esta efectuada no uso da competência que lhe é conferida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 35.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais (Lei n.º 75/2013, de 12-09) tendo em vista a instauração do procedimento criminal contra BB e CC, por factos ocorridos no dia 30-10-2020. VI. A queixa deu origem ao Inquérito com o NUIPC 953/20.2PAPVZ, do DIAP da Póvoa de Varzim, tendo a investigação sido delegada na PSP, por despacho de 24.1.2021. VII. Nesse contexto, em 16.4.2021 foi inquirido HH (fls. 27) que, em síntese, relatou que os dois arguidos disseram "Sois uns filhos da puta", "Ides pagar tudo", "vocês os dois e o presidente da Câmara são uns filhos da puta, ides pagar tudo" e "o que têm a dizer?", sendo que tais expressões foram dirigidas a si, ao Vereador II e ao Presidente da Câmara; mais declarou "que os suspeitos estavam agressivos quando proferiram estas injúrias e ameaça" e "sentiu medo das ameaças"; terminou declarando "deseja continuar com o procedimento criminal e foi neste acto notificado nos termos do art. 75º e seguintes do CPP". VIII. Por sua vez, JJ, então Presidente da Câmara, foi inquirido a fls. 40, em 9.6.2021, tendo declarado que não estava presente e que os factos lhe foram transmitidos por HH; este comunicou-lhe que os arguidos proferiram várias injúrias e ameaças contra si, na qualidade de Presidente da Câmara, recordando-se concretamente que foi apelidado de "filho da puta"; "sentiu medo das ameaças proferidas pelos suspeitos contra o depoente e que lhe foram transmitidas pelo Sr. HH", "Deseja continuar com o procedimento criminal e foi neste ato notificado do pedido de indemnização cível nos termos do art. 75º e seguintes do CPP". IX. Foi proferido despacho de encerramento do inquérito em 11.2.2023 onde, com relevo para a matéria em apreciação, foi determinado o arquivamento dos autos quanto ao crime de injuria, p. e p. pelo art. 181º do CP, relativo ao ofendido II nos termos do art. 277º nº1 do CPP, e deduzida acusação contra os arguidos BB e CC pela prática, em concurso efectivo, de um crime de injúria agravada (na pessoa do Vereador da Câmara Municipal ..., HH), previsto e punível pelos artigos 181º, n.º 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea 1), todos do CP, e de um crime de difamação agravada (na pessoa do Presidente da Câmara Municipal ..., JJ), previsto e punível pelo artigo 180º, n.º 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea 1), todos do CP. X. Não podemos concordar com a decisão recorrida que, a título de questão prévia, entendeu que os ofendidos não haviam apresentado queixa, sendo esta absolutamente necessária como condição de procedibilidade, atenta a natureza semi-pública dos crimes de injuria agravada e difamação agravada. XI. Na verdade, perante o teor dos dois autos de inquirição, devidamente assinados pelos dois ofendidos, resulta de forma clara que os mesmos foram vítimas de ofensas a bens jurídicos pessoais, de que são titulares e que relataram de forma concreta e detalhada, e terminaram com a afirmação "deseja continuar com o procedimento criminal e foi neste acto notificado nos termos do art. 75ºe seguintes do CPP". XII. Não vislumbramos assim, em face desta declaração inequívoca de que desejavam procedimento criminal pelos factos de que foram vítimas, e pelos quais foram inclusivamente notificados para, querendo, deduzirem pedido de indemnização civil, previsto para os ofendidos/queixosos nos arts. 75º e ss. do CPP., que os mesmos não tenham, conforme se lê na decisão recorrida, manifestado de forma inequívoca a vontade de proceder criminalmente contra os denunciados pelas injúrias e ameaças que lhes teriam sido dirigidas. XIII. As declarações prestadas por HH e JJ traduzem, de forma evidente e inegável, o exercício do seu direito de queixa, enquanto titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, mostrando-se assim verificadas as condições de procedibilidade estabelecidas pelos arts. 49º nº 1, 2, e 3 do CPP e dos arts. 113º nº 1, 115º nº 1 do CP. XIV. E no que concerne à questão da tempestividade do exercício do direito de queixa, a mesma não se coloca sequer em relação ao ofendido HH, porquanto os factos ocorreram em 30.10.2020 e o direito de queixa foi exercido aquando da sua inquirição, em 16.4.2021, antes de decorridos 6 meses sobre os factos; Quanto ao ofendido JJ, pese embora a queixa tenha sido formulada já depois de completados 6 meses desde a prática dos factos, entendemos que o decurso do prazo de caducidade previsto no art. 115º nº1 do CP se suspendeu a partir de 22.1.2021 e até 6.4.2021, pelo que deve ser considerada validamente apresentada a queixa. XV. Ao desconsiderar as manifestações de vontade plasmadas nos autos pelos dois ofendidos, que traduzem o exercício do seu direito de queixa, a decisão recorrida violou o disposto no art. 49º nº 1 e 3 do CPP, nos arts. 113º nº 1, 115º nº 1, 180º nº 1, 181º nº 1 e 184º do CP, e no art. 308º nº 1 e 3 do CP. XVI. Em consequência, atendendo às considerações supra tecidas, deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que considere atempadamente e regularmente exercido o direito de queixa pelos ofendidos e que conheça do mérito, proferindo despacho de pronúncia ou de não pronúncia, em conformidade com a avaliação que vier a ser feita acerca da suficiência dos indícios da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança, nos termos do art. 308º nº1 do CPP.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se que seja substituída por outra que conheça do mérito [...]».
10. Em resposta, vieram os recorridos nos autos aduzir: «1. Por despacho datado de 11/02/2023 foi deduzida acusação contra os Recorridos pela prática, em concurso efetivo, de (i) um crime de injúria agravada (na pessoa do Vereador da Câmara Municipal ..., HH), previsto e punível pelos artigos 181º, n.º 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal (CP) e (ii) um crime de difamação agravada (na pessoa do Presidente da Câmara Municipal ..., JJ), previsto e punível pelos artigos 180º, n.º 1 e 184º, por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea l), todos do CP. 2.Ambos os crimes, injúria agravada e difamação agravada, são crimes semipúblicos, isto é, são crimes para cujo procedimento é necessária a queixa da pessoa com legitimidade para a exercer (cf. artigos 188º, n.º 1, alínea a) e 184º do CP). 3.Em 11/06/2024, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia dos Recorridos, com fundamento na falta de uma condição de procedibilidade, a saber, o não exercício do direito de queixa pelos ofendidos HH e JJ. 4. Os factos constantes da acusação ocorreram em 30/10/2020, pelo que, importa saber se, no prazo de 6 meses, ou seja, até 30/04/2020, foi apresentada alguma queixa pelos ofendidos contra os Recorridos por conta dos factos ocorridos em 30/10/2020, em cumprimento do disposto no art.º 115.º, n.º 1, do CP. 5. Vejamos então se, no prazo de 6 meses, ou seja, até 30/04/2020, foi apresentada alguma queixa pelos ofendidos contra os Recorridos por conta dos factos ocorridos em 30/10/2020. 6. A comunicação datada de 16/12/2020, em papel timbrado da Câmara Municipal ..., assinada pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal, AA, a relatar os factos ocorridos em 30/10/2020, não é apta a constituir uma queixa dos ofendidos (HH e JJ) contra os Recorridos, porquanto, tal como se pode ler no despacho recorrido, neste ponto, não atacado pelo Ministério Público, “estamos perante uma participação efetuada em nome e em representação da Câmara Municipal ..., órgão executivo do Município, contra os aqui arguidos e requerentes da instrução, nomeadamente por introdução em lugar vedado ao público e por diversas afirmações dirigidas aos representantes do Município”. 7. Ainda antes do decurso do prazo de 6 meses, em 16/04/2021, no âmbito do inquérito iniciado na sequência da supra referida carta que a Câmara Municipal ... enviou à PSP ..., esta mesma entidade procedeu à inquirição de HH, na qualidade de testemunha, defendendo o Ministério Público que, no final da inquirição HH declarou “deseja continuar com o procedimento criminal". 8. Ora, ao referir o desejo de “continuar”, fica claro que o ofendido HH se referia a dar continuidade à participação já apresentada pela Câmara Municipal ..., a qual representa na qualidade de vereador, e não a vontade de dar início a um novo procedimento participado pelo próprio HH. 9. Como tal, ao contrário do defendido pelo Ministério Público, a declaração de que “deseja continuar com o procedimento criminal”, não expressa uma vontade própria e individual de procedimento criminal contra os Recorridos. 10. Quanto ao ofendido JJ, não existe qualquer documento nos autos em que o próprio ou mandatário constituído para o efeito, tenham apresentado queixa contra os ofendidos até 30/04/2020. 11. Quanto a este ofendido, a primeira intervenção do mesmo que, por mera hipótese, sem conceder, se pudesse considerar uma queixa, são as declarações prestadas pelo mesmo na PSP em 09/06/2021, ou seja, para além dos 6 meses de que disponha para apresentar queixa. 12. Também no caso do ofendido JJ, a mera declaração de que “deseja continuar o procedimento criminal”, aquando da sua inquirição na sequência da participação apresentada pela Câmara Municipal ..., deverá ser entendida como a vontade da Câmara Municipal ..., representada pelo seu Presidente, de continuar com o procedimento iniciado com a participação que remeteu à PSP. 13. Assim, também neste caso, ao contrário do defendido pelo Ministério Público, em nenhum momento o ofendido JJ expressou uma vontade própria e individual de procedimento criminal contra os Recorridos. 14. Em todo o caso, sempre se diga que a suspensão dos prazos de caducidade prevista no art.º 6º-B, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 01 de fevereiro, não tem aplicabilidade nos presentes autos, por ter entrado em vigor posteriormente aos factos alegados na acusação. 15. Caso contrário, estaríamos a aplicar retroativamente uma lei menos favorável aos Recorridos e, dessa forma, atentatória do princípio basilar da não retroatividade de lei penal menos favorável ao arguido. 16. Em face do exposto, andou bem o Tribunal recorrido ao considerar que as declarações proferidas pelos ofendidos, aquando da sua inquirição junto da PSP em 16/04/2021 e 09/06/2021, constituem uma confirmação, por parte dos representantes do Município, nessa mesma qualidade, da participação apresentada anteriormente apresentada em 16/12/2024. 17. Razão pela qual, o despacho de não pronúncia aqui em causa não viola qualquer noma legal, devendo, por isso, improceder o recurso apresentado pelo Ministério Público. Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o recurso ser julgado improcedente por não provado e, consequentemente, mantido o despacho de não pronúncia dos Recorridos. [...]».
11. O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos a seguir reproduzidos:
* * * * *
Quanto ao ofendido HH Sendo certo que a queixa apresentada em tribunal não foi subscrita pelo ofendido HH e que estava em causa nos factos denunciados a pática de um crime de Injuria Agravada, dirigida directamente à sua pessoa, é também certo que este ofendido foi ouvido antes do termo do prazo de 6 meses para o exercício do direito de queixa e que o mesmo ao pretender continuar o procedimento criminal já instaurado, e ao ser notificado nos termos do artigo 75.º do CPP, praticou acto concludentes dessa vontade, devendo ser considerado esse exercício do direito de queixa tempestivo. Conforme se considerou neste Tribunal da Relação no acórdão de 20-1-2010, cujo sumário de transcreve parcialmente, «O exercício do direito de queixa não está sujeito a qualquer formalidade, sendo apenas essencial a revelação inequívoca da vontade do queixoso de que contra o agente do crime seja instaurado procedimento criminal». Do mesmo modo se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra no seu acórdão de 6-3-2013 «A denúncia, queixa ou participação por crimes semi-públicos não está sujeita a formalidades especiais e, muito menos, a fórmulas sacramentais, bastando que exista uma manifestação inequívoca de vontade de que seja exercida a ação penal. Isto é, o que é necessário e essencial é que dos termos da queixa ou dos que se lhe seguirem se conclua que exista uma inequívoca vontade do ofendido de que seja exercida ação penal». Ora, tendo o ofendido se pronunciado nas suas declarações sobre os factos típicos em que era directamente ofendido, como assim se manifestou, e de seguida, tendo declarado expressamente pretender a continuidade do prosseguimento criminal contra os arguidos, não existe, qualquer dúvida, que foi essa a sua vontade inequívoca. Quanto ao ofendido JJ Também este ofendido se pronunciou em concreto sobre os factos típicos em que era diretamente ofendido e também o mesmo ofendido se pronunciou no sentido de pretender que o procedimento criminal prosseguisse contra os arguidos. Porém, estas declarações ocorreram já fora do prazo de 6 meses previsto para o exercício do direito de queixa, ou seja, a contar desde a prática dos factos, o conhecimento dos mesmos por parte do ofendido e dos seus autores. Alega o Ministério Público no seu recurso que a acrescer ao prazo dos 6 meses, ocorreu a causa de suspensão decorrente da Lei 1-A/2000 de 19-3, com a redacção dada pela Lei n.º4-B/2021, ou seja, o prazo dos 6 meses para o exercício do direito de queixa que se tinha iniciado em 30-10-2020 teria ficado suspenso entre 22-1-2021 e 6-4-2021. Na sequência das medidas adoptadas para evitar a propagação da Pandemia Covid-19, foi aprovada a Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, sucessivamente alterada. A última alteração decorre da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que altera o regime da prática de actos e realização de diligências nos tribunais, a qual entrou em vigor dia 2 de Fevereiro de 2021 (artigo 5.º). De acordo com o novo artigo 6.º B, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março, são suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de actos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes. No entanto, a referida lei estabelece excepções à prática de actos processuais (incluindo as diligências) que podem ser praticados nas circunstâncias a que alude o artigo 6.º B, n.ºs 5, 7, 8, 9 e 10 da Lei n.º 1-A/2020 de 19 de Março. Os efeitos das alterações à Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, retroagem a 22 de Janeiro de 2021, sem prejuízo das diligências judiciais e actos processuais entretanto realizados e praticados (artigo 4.º da referida lei). Ora, a questão que se levanta prende-se com o âmbito de aplicação do diploma legal de caracter excepcional citado, ou seja, se nomeadamente a causa de suspensão do prazo de caducidade referente ao exercício do direito de queixa é aplicável aos prazos que se iniciaram antes da sua entrada em vigor, ou seja, aos prazos que se iniciaram antes de 22 de Janeiro de 2021, o que acontece no caso em análise, ou se pelo contrário, tal causa de suspensão de prazo só se aplica aos prazos que se iniciavam depois de 22-1-2021. Suscitam-se dúvidas a este respeito pelas razões apontadas, nomeadamente, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9-2-2023, publicado em www.dgsi.pt,
I – No nosso sistema penal, o legislador considerou que, relativamente a certos crimes (tais como os crimes de injúria e de difamação denunciados nos autos), a existência de um procedimento criminal respectivo em tribunal está dependente da existência de uma queixa apresentada (em regra) pelo respectiva pessoa ofendida, dentro do prazo de 6 meses a contar (em regra) da data em que essa teve conhecimento (naturalístico) do facto e dos seus autores. II – Nestes casos, a queixa da pessoa ofendida é um pressuposto positivo indispensável para uma eventual punição do agressor, na medida em que sem ela nem sequer haverá procedimento criminal. Tendo esse prazo natureza substantiva, uma vez que (até haver queixa) ainda não existe sequer um processo (judicial). E sendo esse um prazo de caducidade, findo o qual se extingue o respectivo direito de queixa da (em regra) pessoa ofendida. III – Esse prazo de 6 meses foi o que legislador considerou suficiente para que a pessoa ofendida, conhecendo (naturalisticamente) os alegados factos e seus autores, decida se quer, ou não, formular uma queixa crime respectiva contra os mesmos. Pois, atenta a natureza dos alegados crimes, não se justificaria que a titular do direito de queixa pudesse exercê-lo a todo o tempo, sem qualquer limite temporal. Caso decida fazê-lo, impõe-se que o faça dentro desse prazo, cuja contagem tem início no dia imediatamente seguinte àquele conhecimento e terminando às 24 horas do dia que corresponda, no 6º mês seguinte, àquele dia. IV – O prazo (de caducidade) do direito de queixa só pode suspender-se nos casos em que a lei expressamente o determine. Tal sucedeu em virtude pandemia epidemiológica provocada pela doença Covid -19 que assolou Portugal e, no âmbito do estado de emergência e do estado de calamidade declarados no nosso país, foram aprovadas Leis (excepcionais e temporárias) que, expressamente, determinaram a suspensão dos prazos de caducidade durante os períodos temporais de 9/3/2020 a 3/6/2020 e de 22/1/2021 a 6/4/2021. Mas, esta suspensão da caducidade só opera relativamente aos prazos que tiverem início durante tais períodos. Caso estas Leis viessem a ser aplicadas a prazos de caducidade já iniciados anteriormente, fariam parar essa contagem que só seria retomada mais tarde e tal significaria (na prática) um prolongamento do respectivo prazo de queixa que (não decorrendo continuadamente) só findaria mais tarde, obviamente, em desfavor das pessoas denunciadas/arguidas. E, consequentemente, tal equivaleria a uma aplicação retroactiva, concretamente, menos favorável a estas últimas – violando o sobredito princípio basilar da não retroactividade de lei penal, concretamente, menos favorável ao arguido. Entendendo-se que o despacho de pronúncia recorrido deverá ser revogado no que diz respeito ao ofendido HH, pelas razões apontadas, já se suscitam dúvidas quanto ao exercício tempestivo do direito de queixa relativamente ao ofendido JJ. [...]».
12. A este «Parecer» responderam os recorridos, no essencial reiterando a posição exposta nas suas alegações.
13. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.
II
14. O presente recurso merece provimento.
15. 1. Contrariamente ao que se concluiu na decisão recorrida, o ofendido HH formulou queixa, válida e tempestivamente, contra os arguidos.
16. Não estabelecendo o Código Penal ou o Código de Processo Penal quaisquer requisitos no tocante à forma da queixa, tem-se sempre entendido (na formulação de Figueiredo Dias, Direito Penal Português. Parte Geral II, § 1086): «[dever] entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto. Não se toma necessário, por outro lado, que a queixa seja como tal designada; e é mesmo irrelevante que seja qualificada de outra forma pelo seu autor (…). Tão-pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona».
17. Como logo se retira do teor do depoimento do queixoso HH, é inequívoco que declarou ele «deseja[r] continuar com o procedimento criminal», expressão que, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, só pode ser interpretada como aludindo ao procedimento criminal em curso pelos factos que o dito queixoso relatou na ocasião e ficaram consignados no auto da diligência, sendo irrelevante, como se aludiu, a forma como esse mesmo procedimento teve origem, ou a qualificação que a tais factos foram dados na participação que originou os presentes autos: da expressão em apreço nenhuma dúvida resulta de que pretendia o referido queixoso procedimento criminal pelos factos de que foi vítima, o que tanto basta para se concluir ter ele validamente exercido o seu direito de queixa.
18. Aliás, que os envolvidos nos factos atribuam um caráter – digamo-lo assim – «institucional» ao que ocorreu não é decisivo para a questão que aqui importa resolver. A referida participação, apesar de apresentada pelo Município ..., já se referia, precisamente, a factos que haviam sido dirigidos contra os seus representante e funcionários, não fazendo qualquer sentido ver aí a descrição de uma qualquer realidade diversa, quase que se diria paralela, em que só o Município em apreço estaria envolvido, por oposição aos concretos indivíduos implicados nos eventos protagonizados pelos arguidos nos autos.
19. Destarte, tendo o depoimento do referido queixoso sido prestado em 16/04/2021, e tendo ele então inequivocamente desejado que prosseguisse o procedimento criminal contra os arguidos nos autos (naturalmente, pelos factos que por si tinham acabado de ser relatados), é manifesto que, nessa data, ainda não havia decorrido o prazo previsto no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal (cf., ademais, o «assento» n.º 4/2012, do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/04/2012, publicado no Diário da República, I Série, n.º 98, de 21/05/2012) e que, assim sendo, não havia ocorrido a caducidade do direito a apresentar queixa pelos factos que envolveram o mesmo queixoso.
20. 2. O exercício do direito de queixa por parte do ofendido JJ foi igualmente válido e tempestivo.
21. a) Pelas razões já expostas, também quanto ao ofendido JJ é de concluir que exerceu ele, de forma adequada, o seu direito de queixa.
22. b) Para além disso (e independentemente da questão da exata qualificação de tal direito e dos reflexos que daí possam, e devam, decorrer quanto à aplicação no tempo das normas que lhe dizem respeito), tal queixa deve igualmente considerar-se tempestiva.
23. (1) A proibição de aplicação retroativa de normas que agravem a responsabilidade penal (entre as quais a doutrina inclui todas aquelas que, v. g., alarguem o prazo de verificação de condições positivas de procedibilidade, de que é exemplo a «queixa»: cf., expressamente, Américo A. Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 3.ª ed., pág. 89) pressupõe, naturalmente, uma alteração da situação jurídico-penal que corresponda a um novo juízo do legislador sobre as soluções constantes da legislação vigente, que vêm assim a ser afastadas em virtude da sua eventual inconveniência ou desadequação a novas necessidades entretanto identificadas. Nestas circunstâncias, o princípio da irretroatividade da norma desfavorável erige-se como garantia do indivíduo contra o exercício ilegítimo e arbitrário do «ius puniendi», seja por via legislativa, seja por via judicial (e, nessa medida, como garantia de segurança jurídica), permitindo assegurar o efeito preventivo-geral da incriminação (e respetiva pena) e impondo o respeito pelo princípio da culpa (aut. cit., págs. 43 e segs., e 100 e segs.).
24. No que aqui nos interessa, no entanto, a suspensão «[d]os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos», prevista no n.º 3, por referência ao n.º 1, do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro (e depois, mais limitadamente, no artigo 6.º-E, n.ºs 7, alínea e), e 9, do primeiro diploma, na redação que lhe foi introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril) – ou seja, os «processos e procedimentos que corr[esse]m termos nos tribunais judiciais (…)», como são os processos criminais – não respondeu a qualquer reavaliação (e consequente alteração), por parte do legislador, do regime estabelecido para o exercício do direito de queixa quanto aos crimes semipúblicos e particulares previstos no nosso ordenamento jurídico-penal, limitando-se – face ao (quase) total encerramento do serviço público de justiça (tomado em sentido amplo, abrangendo todas as autoridades e entidades que, direta ou indiretamente o asseguram) decorrente das medidas então tomadas para combate ao agravamento da pandemia de Covid-19 que então grassava mundialmente – a garantir que o prazo para tanto já previstolegalmente (no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal) era efetivamente respeitado.
25. Houve aqui, pois, exclusivamente, a intenção de garantir também os direitos e interesses legítimos das vítimas de crimes, a quem o Estado – que proíbe a vindicta privata e que para si reclama o monopólio do exercício da ação penal – vedou praticamente o acesso à Justiça, seja pelo encerramento, ou funcionamento muito limitado, dos serviços em que ela se organiza, seja pelas dificuldades que impôs à livre circulação dos cidadãos, por via do dever geral de confinamento então também decretado, em vista da emergência de saúde pública que se vivia na altura, entre nós como no resto do mundo.
26. E isto, note-se, aplicou-se a todos os diferentes sujeitos processuais, pois também os arguidos, face às dificuldades no funcionamento dos vários serviços públicos em geral, e dos serviços de justiça criminal em particular, beneficiaram igualmente da suspensão de prazos então decretada, de forma a garantir-lhes que o exercício dos seus direitos não era afetado, tudo em obediência ao ideal de um processo equitativo, que não o deve ser apenas para os arguidos nos processos, ainda que seja a posição destes que mereça especial tutela, por razões óbvias.
27. Dito de outro modo, precisamente porque se tornou praticamente impossível o exercício do direito de queixa relativamente a crimes semipúblicos e particulares por parte dos seus respetivos titulares devido às circunstâncias excecionais que se viveram neste país nos anos de 2020 e 2021, durante períodos limitados de tempo (no que aqui importa, entre os dias 22 de janeiro e 6 de abril de 2021: cf. artigos 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril), estritamente coincidente com o que então se mostrou necessário para contrariar a disseminação da Covid-19 no território nacional de modo a salvaguardar exigências de saúde pública indeclináveis, é que se determinou que tal período não fosse computado para efeitos do decurso do prazo para esse exercício, de molde a (também) não descurar a proteção dos direitos e legítimos interesses (que são igualmente protegidos constitucionalmente) desses mesmos titulares.
28. Nestas circunstâncias, a adoção de medidas justificadas pelas circunstâncias excecionais do tempo em que foram tomadas, e que se destinaram a garantir o efetivo respeito por direitos (como o de queixa) já anteriormente reconhecidos às vítimas de crimes semipúblicos e particulares anteriormente cometidos (mas em relação aos quais não o tivessem elas ainda exercido), não pode considerar-se um qualquer exercício arbitrário e ilegítimo do jus puniendi estatal, nem vem a atingir desproporcionadamente os direitos e interesses dos autores de factos ilícitos-típicos criminais face à necessidade de respeitar, igualmente, os direitos e interesses das vítimas de tais factos.
29. Sendo assim as coisas, a aplicação da suspensão aludida aos prazos para exercício do direito de queixa então em curso (ou que se iniciaram durante o período em que a mesma se prolongou) – e só quanto a eles aqui nos pronunciamos – não só não implica uma alteração (desfavorável) do regime legal previsto para tal exercício para efeitos de aplicação do princípio estabelecido no artigo 2.º, n.º 4, primeira parte, do Código Penal – pois que esse regime se manteve idêntico, surgindo a suspensão em apreço apenas como forma de assegurar que não viesse a ser encurtado o prazo de exercício do direito aqui em causa (ou seja, o prazo em apreço não foi propriamente acrescido de cerca de dois meses, apenas não foi encurtado nesse mesmo período de tempo devido à impossibilidade prática do seu exercício) –, como responde à necessidade, imposta pela excecionalidade dos tempos que então se viveram, de proteção de direitos e interesses legítimos das vítimas de crimes, também eles carecidos e merecedores de tutela constitucional e legal (desde logo, o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, ou o direito a intervir no processo, nos termos previstos no artigo 32.º, n.º 7, da Lei Fundamental).
30. (2) Nos moldes expostos, tendo em consideração que os factos aqui em questão ocorreram em 30/10/2020, e que o ofendido JJ exerceu validamente o seu direito de queixa, nos moldes indicados, no dia 09/06/2021, não pode deixar de ter-se por tempestivo o exercício de tal direito.
31. 3. No caso, não há lugar à fixação de quaisquer custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
III
32. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, julgando procedente o presente recurso, revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, nada mais obstando, pronuncie os arguidos pelos factos e respetiva qualificação jurídica constante da acusação contra eles formulada nos autos.
33. Sem custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Porto, 28 de maio de 2025
(acórdão assinado eletronicamente).
Pedro M. Menezes
Paula Natércia Rocha
Amélia Catarino