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ACÓRDÃO CUMULATÓRIO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DE CONCURSO DE CRIMES
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
Sumário
I - O facto de, por força das regras do art.º 77.º e 78.º, ambos do Código Penal, o acórdão cumulatório proferido no âmbito dos autos, de que os presentes são um apenso, ter decidido que, por se tratar no caso em apreço de conhecimento superveniente de concurso de crimes, o cúmulo final a efetuar devia abranger todas as penas consideradas nos cúmulos anteriores, desfazendo-os e, após ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, determinar nova(s) medida(s) concreta(s) da pena, não contende com o aludido princípio ne bis in idem, pois, em momento algum há a violação do objeto do processo relativo a cada uma das infrações que consubstanciam o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. No acórdão cumulatório proferido no âmbito no processo n.º 944/22.9T8PNF, aliás assim como no proferido no âmbito do processo n.º ..., visou-se apenas a punição do concurso de infrações criminosas praticadas pelo arguido, em cada momento, assentando na consideração unitária da pessoa ou da personalidade do agente que praticou todos os crimes. II - É certo que no âmbito dos autos n.º ... não deveria ter sido proferido o despacho, em 26.04.2023, que declarou extinta a pena principal e a pena acessória em que o arguido foi condenado nesses autos, porque tendo aquela pena sido integrada no cúmulo jurídico elaborado no âmbito dos autos n.º 944/22.9T8PNF, de que os presentes são um apenso, perdeu a sua autonomia. Contudo, tal circunstância não determina que o acórdão cumulatório proferido no âmbito do processo n.º 944/22.9T8PNF viola o princípio da proteção da confiança, porquanto, quando foi proferido tal acórdão em 06.07.2022 (depositado em 07.07.2022 e transitado a 19.01.2023), aquelas penas ainda não estavam extintas, pelo que as mesmas deviam ser, como foram, incluídas no cúmulo.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Proc. n.º 944/22.9T8PNF-B.P1 Tribunal de origem: Juízo Central Criminal de Penafiel – J3 – Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
No âmbito do Processo Comum com intervenção de Tribunal Coletivo n.º 944/22.9T8PNF a correr termos no Juízo Central Criminal de Penafiel – J3- por proferido despacho datado de 20.02.2025, com referência “Citius” n.º 97829421, que decidiu:
“Fls. – 620 a 636, 638 a 653 e 654 a 682: Considerando os dados antecedentes, salienta-se que o poder jurisdicional do Tribunal sobre a matéria ora invocada esgotou-se com a prolação do acórdão cumulatório, que se mostra já devidamente transitado em julgado, após a referida decisão ter sido integralmente confirmada pelo acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, com data de 26.10.2022, razão pela qual nada cabe determinar para os efeitos pretendidos pelo condenado. Em todo o caso, ainda que se revele falha na comunicação da presente decisão ao anterior processo de cúmulo, o certo é que a referida pena parcelar perdeu a sua autonomia ao ser integrada na presente decisão, o que ocorreu, com trânsito, em data anterior ao despacho que a declarou extinta. Facto esse que, aliás, era do conhecimento do arguido, tal como todos os restantes trâmites processuais. Por conseguinte, e sem prejuízo do infra decidido quanto à pena de multa já paga pelo condenado, indefere-se a reformulação do cúmulo jurídico realizado nos presentes autos. Notifique. Fls. – 664: Considerando, no entanto, que o arguido procedeu ao pagamento da pena de multa integrada no presente cúmulo, declara-se a mesma extinta pelo cumprimento, nos termos do disposto no art. 475.º do Código de Processo Penal. Notifique e envie boletim ao registo criminal. d.n. Consequentemente, face à extinção da referida pena de multa, importa reformular a liquidação de pena constante de fls. 616 dos autos. Para o efeito, abra vista ao Ministério Público”.
Desta decisão veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
I- Afigura-se ao Recorrente que, com o devido respeito, carece de fundamento de direito e uma violação dos princípios constitucionais, o despacho prolatado pelo Mmo. Juiz, com a referência 97829421, e pelo qual, foi indeferida a reformulação do cúmulo jurídico em função da informação junta aos autos quanto à existência de um cúmulo anterior, também ele já transitado em julgado e extinto pelo cumprimento, referente a processos comuns, pelo que foram violados os artigos 2.º, 17.º, 29.º n.º 5 e 205.º n.º 1 da C.R.P., artigos 77.º, 78.º, 80.º e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
II- Na sequência da liquidação da pena apresentada nos presente autos, após análise cuidada do processo e de acordo com o relatório do Acórdão do Recurso Penal do Cúmulo Jurídico (que correu termos no Juízo Central Criminal de Penafiel – Juiz 3, criados na sequência de certidão oriunda do processo nº ...), após realização de audiência de julgamento a que se refere o artigo 472.º nº 1 do Código de Processo Penal, por acórdão proferido em 06.07.2022 (mas depositado apenas no dia 07.07.2022) foi realizado o cúmulo jurídico das penas em que o arguido AA havia sido condenado nos processos nºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ....
III- Acontece que consultado o acórdão do cúmulo do Processo nº ... - Juízo Central Criminal de Penafiel - Juiz 1, - anterior ao Processo nº 944/22.9T8PNF – vemos que este diz respeito aos processos ..., ..., ... e ..., e aqui, em 29.06.2017 foi o arguido condenado na pena única de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, que se suspendeu na sua execução pelo mesmo período de 3 (três) anos e 10 (dez) meses, condicionando-se tal suspensão a regime de prova, que assentou em plano individual de readaptação do arguido, a elaborar pelos serviços da DGRSP, nos termos do disposto nos arts. 50.º e 53.º do Código Penal; na pena acessória de proibição de contactos com a vítima (...), BB, pelo período de 3 (três) anos, incluindo o afastamento da residência e local de trabalho da mesma devendo o seu cumprimento ser fiscalizado por meios tecnológicos de controlo à distância, nos termos do disposto no artigo 152.º, n. os 4 e 5 do Código Penal, e na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a quantia de € 900,00 (novecentos euros).
IV- Ou seja, o cúmulo dos presentes autos contemplou os mesmos processos do cúmulo do ponto anterior.
V- Foi o Tribunal a quo confrontado com tal situação pois, atento o supra exposto, não podiam nunca estas penas entrar neste segundo cúmulo, estando assim, o arguido a ser condenado duas vezes pela prática dos mesmos crimes, violando o princípio non bis in idem, constitucionalmente reconhecido no nosso ordenamento jurídico.
VI- Nesse seguimento, por despacho de 24.01.2025, foi solicitada a cópia do acórdão do cúmulo do Processo n.º ... -Juízo Central Criminal de Penafiel - Juiz 1, com nota de trânsito em julgado, bem como solicitada informação ao proc. ..., se a pena suspensa foi já declarada extinta, bem como, a pena de multa aplicada ao condenado, e se os referidos autos tiveram conhecimento do cúmulo efetuado no âmbito dos presentes autos, que desfez o cúmulo de penas anteriormente realizado.
VII- Em resposta o Tribunal a quo efetivamente houve um lapso dos nestes autos que não comunicaram que aquele acórdão foi desfeito e que as penas ali em causa foram, englobadas nos nossos autos, além de que algumas das penas que foram englobadas nos nestes autos (e que tinham anteriormente sido englobadas nos autos n.º ...) foram declaradas extintas nos autos n.º ... apenas por despacho de 26-04-2023, quando os nossos autos já tinham transitado em julgado.
VIII- Não se conformando, veio o Requerente requerer a reformulação do cúmulo jurídico porquanto com tal atuação há uma clara violação do princípio da proteção da confiança uma vez que defraudavam as legítimas expectativas do Recorrente, violando o artigo 2.º da CRP, o que foi indeferido.
IX- Ressalva para algumas datas importantes:
X- Em 29.06.2017, foi proferido acórdão de cúmulo jurídico no Processo n.º ..., condenando o arguido na pena única de 3 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período. O acórdão transitou em julgado a 10.09.2018. Posteriormente, em 03.01.2019, foi elaborado o plano de reinserção social, confirmando a suspensão da pena até 10.07.2022, data igualmente referida no relatório de execução da medida de 17.02.2020 e no relatório final notificado ao arguido em 28.03.2022.; em 07.07.2022, foi depositado acórdão de cúmulo jurídico no Processo n.º 944/22.9T8PNF; em 10.07.2022, verificou-se o termo da pena suspensa, tendo sido solicitado o relatório final à DGRSP no dia seguinte, em 26.10.2022, foi proferido acórdão do Tribunal da Relação no Processo n.º 944/22.9T8PNF, transitando em julgado a 19.01.2023; em 26.04.2023, foi proferido despacho no Processo n.º ..., declarando a extinção da pena principal e da pena acessória aplicadas ao arguido, isto após vários agendamentos e adiamentos de diligências desde outubro de 2022.
XI- Com consequência do despacho de indeferimento da reformulação do cúmulo o Recorrente viu ser-lhe retirada a sua liberdade, visto que a pena dos presentes autos é efetiva.
XII- Se atentarmos à data prevista para o término da pena do primeiro cúmulo jurídico, mais do que do conhecimento da DGRS Equipa ..., que realizava os relatórios de acompanhamento, esta equipa foi notificada em julho de 2022 para proceder ao envio do relatório final, o que só fez em outubro e por insistência. Tal atuação levou a que se fosse adiando desde julho de 2022 até abril de 2023 a extinção da pena e arquivamento dos autos
como veio a acontecer.
XIII- A consequência do incumprimento do dever de terceiros (DGRS), bem como a atuação de terceiros alheios ao Recorrente (funcionários judiciais, guardas prisionais), determinou que este fosse prejudicado, privado da sua liberdade e visse todo o processo de reinserção social a que se propôs e cumpriu, ao longo de bem mais de três anos e dez meses, ser desvalorizado, ignorado e pior, desfeito por ter sido a última decisão a ser proferida.
XIV- Daqui retiramos desde logo duas violações, a primeira ao princípio ne bis in idem intrínseco ao artigo 29.º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa bem como ao princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP, na medida em que implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expetativas que a elas são juridicamente criadas”.
Princípio ne bis in idem
XV- É certo que o principio ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a julgamento por um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida já objeto de sentença ou decisão que se lhe equipare, independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado.
XVI- Se processualmente não se aceita que o arguido possa responder mais do que uma vez pelos mesmos factos, também materialmente não se pode fazer corresponder à conduta delituosa uma punição a cumprir por mais do que uma vez. Do que se trata é sempre de procurar assegurar que “qualquer efeito já sofrido pelo delinquente deve ser considerado na sentença posterior” (Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do CP, II, p.
166).
XVII- Ao integra-se no cúmulo operado nestes autos, as penas de prisão suspensas, que estavam contempladas no primeiro cúmulo jurídico do processo ..., e tendo sido, por esta via, recuperadas as penas de prisão iniciais ou principais, no mínimo tinha que se determinar, em relação a cada uma dessas penas substituídas pelo cúmulo, se uma vez iniciado o prazo de suspensão houve cumprimento das condições e dos deveres concretamente impostos ao Recorrente.
XVIII- O conhecimento destas informações sobre a pena suspensa revela-se essencial à ponderação do eventual desconto proporcional, ponderação que se torna obrigatória a partir do momento em que uma pena suspensa já iniciada noutro processo venha a ser englobada num cúmulo jurídico e passe a integrar a pena única de prisão efetiva, mormente quando ocorreu ali o cumprimento de /alguma condição imposta ao Recorrente, isto porque se impõe salvaguardar o ne bis in idem.
XIX- Do que se trata é sempre de procurar assegurar que “qualquer efeito já sofrido pelo delinquente deve ser considerado na sentença posterior ” (Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do CP, II, p. 166).
XX- Daí que o princípio penal geral do “desconto” encontre previsão nos arts. 80.º a 82.º do CP. Este “princípio fundamental” – princípio fundamental e, não, uma regra de exceção, que, esta sim, poderia colocar entraves à analogia – abrange “não apenas a prisão preventiva, mas outros efeitos já sofridos pelo mesmo facto” (Eduardo Correia, loc. cit.).
XXI- Nos arts. 80.º a 82.º do CP, que tratam do desconto, não se encontra enunciada expressamente (o cumprimento d) a prisão suspensa. Mas o elemento literal de interpretação não se apresenta aqui decisivo e da omissão não resulta que a intenção do legislador tenha sido a de excluir da norma e retirar do princípio geral que consagra (o princípio do desconto) a situação sub judice.
XXII- Da ausência de previsão legal expressa na secção IV do Código Penal, que, repete-se, consagra um princípio geral de desconto, não resulta nada de inequívoco no sentido de o legislador ter pretendido excluir dali a situação em análise. E há sempre que garantir que o ne bis in idem permanece incólume.
XXIII- Apesar da comunicação ao Tribunal a quo, da extinção da pena, pelo decurso do tempo e cumprimento dos deveres impostos, facto importante para que se salvaguardasse os direitos do Recorrente, foi opção do mesmo Tribunal não atender à informação em causa, descredibilizando e ignorando um processo que seguiu todas as normas processuais e findou com o cumprimento da pena e como tal indeferiu uma reformulação do cúmulo com o desconto do que já fora cumprido.
XXIV- Ou seja, ao negar-se tal reformulação do cumulo jurídico operado, vai o Recorrente cumprir duas vezes a mesma pena, o que é uma clara violação ao principio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º n.º 5 da CRP, bem como uma violação do artigo 80.º do CP.
Principio de estado de Direito
XXV- O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que o Estado de Direito democrático consagrado no art.º 2.° da CRP envolve "uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas", razão pela qual "a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica".
XXVI- Ora há uma clara violação deste principio quando se interpreta a norma do artigo 77.º n.º 1 e 78.º n.º1 do CP, no sentido de que basta o trânsito em julgado do último cúmulo jurídico ser anterior ao despacho de extinção de um primeiro cúmulo jurídico, sem que do seu cumprimento e estado se afira, para que este perca autonomia e todas as suas penas parcelares sejam integradas na pena única aplicada. Sem que para tal, sequer se afira do cumprimento no tempo e dos deveres inerentes à pena aplicada e sem que tal seja elemento de aferição da personalidade do agente, ou sequer relevado para desconto da pena.
XXVII- A última decisão de que fora o Recorrente notificado, foi exatamente a da extinção daqueles autos e de que as finalidades daquela pena foram cumpridas. Criou o Recorrente a expectativa de que, em função daquela decisão lhe fosse retificada a pena destes autos, por inerente comunicação processual. O Recorrente confiou na justiça, nos seus elementos e por inerência teria de ser valorada toda esta decisão.
XXVIII- No entanto com o evoluir processual não foi alterada a decisão dos autos e ao ignorar-se toda a tramitação processual de ambos os processos, todas as datas, seja de transito em julgado dos acórdãos, do inicio da pena, do término efetivo da suspensão da pena aplicada e termo do processo ... que ocorre antes do trânsito dos presentes autos há uma clara violação do princípio da proteção da confiança uma vez que defraudavam as legítimas expectativas do arguido.
XXIX- Em momento algum se valorou o cumprimento do primeiro cúmulo jurídico, em momento algum se teve em atenção a prevenção especial do Recorrente que viu ser-lhe retirado todo o valor da última decisão jurídica que lhe fora aplicada. Com a interpretação do artigo 77.º e 78.º nos moldes em que foram aplicados, impedindo uma reformulação do cúmulo jurídico dos presentes autos há uma clara violação do princípio da segurança jurídica e da confiança inerentes e como tal uma violação ao artigo 2.º da CRP, e 77.º e 78.º do CP.
E ainda,
XXX- No processo nº ..., a pena do Recorrente foi 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, que se suspendeu na sua execução pelo mesmo período de 3 (três) anos e 10 (dez) meses e o término da pena estava previsto para 10/07/2022. Mas se contabilizarmos o período que vai desde o trânsito em julgado, até ao despacho que declarou extinta a pena, passaram mais 09 meses desde aquela que foi pena aplicada. Ou seja, na realidade o Recorrente cumpriu 4 (quatro) anos, 6 (seis) meses e 16 (dezasseis) dias.
XXXIV- No concurso de crimes superveniente não devem ser englobadas as penas suspensas já anteriormente declaradas extintas nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do CP, pois, não tendo sido cumpridas as penas de prisão substituídas e, portanto, não podendo as mesmas serem descontadas na pena única, tal englobamento só agravaria injustificadamente a pena única final.
XXXV- No acórdão dos presentes autos, transitado em janeiro de 2023, foi englobada na pena única uma pena suspensa cujo prazo de suspensão já havia findado e onde ainda não fora proferido despacho a prorrogar o prazo de suspensão ou a declará-la extinta ou a mandá-la executar.
XXXVI- Tendo sido comunicado, pelo Recorrente, aos presentes autos tal situação, visto não ter havido comunicação com o primeiro cúmulo, foi proferido o despacho de que se recorre, onde se fundamenta apenas que a falta de comunicação é irrelevante, pois os presentes autos transitaram antes do despacho final de extinção.
XXXVII- Ora, como já se decidiu no Ac. do STJ de 29-04-2010, proc. n.º 16/06.3GANZR.C1.S (com a mesma composição de juízes), se no concurso de crimes superveniente não devem ser englobadas as penas suspensas já anteriormente declaradas extintas nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do CP, então há que refletir que não é possível considerar na pena única as penas suspensas cujo prazo de suspensão já findou, enquanto não houver no respetivo processo despacho a declarar extinta a pena nos termos daquela norma ou a mandá-la executar ou a ordenar a prorrogação do prazo de suspensão. Na verdade, no caso de extinção nos termos do art.º 57.º, n.º 1, a pena não é considerada no concurso, mas já o é nas restantes hipóteses.
XXXVIII- É certo que na altura em que foi proferido o acórdão nos presentes autos, ainda não tinha decorrido o prazo fixado para a suspensão -faltavam 3 dias – mas também não foi cumprido o dever de informar aquele processo da existência deste, ou sequer da data do seu termo, o que desde logo adiava o depósito da decisão, e como tal a pena anteriormente declarada suspensa já se mostraria cumprida e, portanto, nada obstaria a que não fosse integrada no concurso de infrações. Ou seja, findo aquele prazo e declarada extinta a pena suspensa, nos termos do art.º 57.º do CP, já a mesma não integraria o concurso.
XXXIX- Assim, o tribunal a quo ao manter a decisão de englobar no cúmulo dos presentes autos, as penas parcelares do processo n.º ..., onde a pena única foi suspensa na sua execução e já com o prazo de suspensão esgotado, sem aguardar decisão nesse processo sobre a respetiva execução, prorrogação ou extinção, e ao indeferir a reformulação do cúmulo jurídico, incorreu numa nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
XL- A falta de comunicação aos autos do primeiro cúmulo, da existência do cúmulo dos presentes autos, para pronuncia quanto à possibilidade de perda ou não de autonomia, incorreu desde logo numa nulidade da decisão por omissão de pronuncia que foi reiterada novamente no Douto despacho de que se recorre, pois apenas se teve em conta a data dos trânsitos em julgado e em momento algum a data do término da pena.
Termina pedindo seja julgado procedente o recurso apresentado, e em consequência, seja revogado o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que reformule o cúmulo jurídico por forma a que sejam descontadas as penas já extintas no âmbito do primeiro cúmulo jurídico.
Ao recurso interposto pelo arguido respondeu o Ministério Público, terminando com a formulação das seguintes conclusões: 1. Nestes autos foi decidido desfazer o cúmulo de penas anteriormente realizado e realizar novo cúmulo. 2. Algumas das penas que foram englobadas nos nossos autos (e que tinham anteriormente sido englobadas nos autos nº ...) foram declaradas extintas nos autos n.º ..., mas foram-no apenas por despacho de 26-04-2023, quando os nossos autos já tinham transitado em julgado. 3. As penas que estão em curso e cuja execução ainda não atingiu o terminus do prazo devem ser incluídas na operação de cúmulo jurídico superveniente. 4. Por conseguinte, considerando que, quando foi proferido o Acórdão nos nossos autos, aquelas penas suspensas ainda não estavam extintas, sendo que, inclusive, ainda não tinha decorrido o prazo fixado para a suspensão, as mesmas deviam, como foram, ser incluídas no cúmulo. 5. Concorda-se, pois, com o Douto Despacho do Mmo Juiz que indeferiu a pretensão deduzida pelo condenado de que fosse reformulado o cúmulo dos presentes autos contemplando apenas os processos não extintos, uma vez que referida pena parcelar perdeu a sua autonomia ao ser integrada na presente decisão, o que ocorreu, com trânsito, em data anterior ao despacho que a declarou extinta.
Termina pedindo seja negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, seja mantido o despacho recorrido.
Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra nos autos pugna pela improcedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, veio o recorrente responder mantendo a sua posição já defendida nas alegações de recurso.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II- Fundamentação: Fundamentação de facto: 1. Por douto acórdão cumulatório de penas proferido nos autos n.º... em 29.06.2017, o arguido AA foicondenado na pena única de 3 anos e 10 meses de prisão, suspensa na suaexecução por igual período, suspensão esta condicionada a regime de prova,assente em plano individual de readaptação, bem como na pena acessória deproibição de contactos com a vítima BB pelo períodode 3 anos, incluindo o afastamento da residência e local de trabalho da mesma, e,ainda, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 6,00, o que perfaz a quantiade € 900,00. (cf. certidão, referência citius n.º 89341345, de 06.07.2022). 2. O acórdão cumulatório de penas proferido nos autos n.º... em 29.06.2017, e referido em 1., englobou as penas em que oarguido tinha sido condenado nos Processos nºs ... (crime de furto ecrime de violência doméstica), ... (crime de condução semhabilitação legal e crime de violência doméstica), ... (crime decondução sem habilitação legal) e ... (crime de condução semhabilitação legal), concretamente atendeu às seguintes penas em que o arguido foi condenado:
● X - Por sentença proferida em 09.07.2015, no processo comum singular n.º ... do Tribunal Judicial de Porto Este, Juízo Local Criminal de Lousada, transitada em julgado em 28/09/2015, pela prática em 30/07/2014 de um crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203.º do Código Penal, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 6,00, e pela prática em 28/06/2014, de um crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, com a pena acessória de proibição de contacto com a vítima;
● XI - Por acórdão proferido em 15/12/2015, no processo comum coletivo n.º ... do Tribunal Judicial de Porto Este, Juízo Central Criminal de Penafiel, transitado em julgado em 27/01/2016, pela prática em 17.05.2015 de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, na pena parcelar de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução, e pela prática em 03/11/2014, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena parcelar de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução. Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova;
● XII - Por sentença proferida em 09/09/2015, no processo sumário n.º ..., do Tribunal Judicial de Porto Este, Juízo Local Criminal de Lousada, transitada em julgado em 16/09/2016, pela prática em 01/08/2015, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro e 121º do Código da Estrada, na pena de 4 meses de prisão efetiva, a qual foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 22 de junho de 2016, e substituída por 24 períodos de “prisão por dias livres”;
● XIII - Por sentença proferida em 02.11.2016, no processo comum singular n.º ..., que deu origem aos identificados autos n.º ..., do Tribunal Judicial de Porto Este, Juízo Local Criminal de Lousada, transitada em julgado em 05/12/2016, pela prática em 28/07/2015, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, n.os 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro e 121º do Código da Estrada, na pena de 5 meses de prisão, que será cumprida por dias livres, em 30 períodos, entre as 21:30 horas de sexta-feira e as 21:30 horas de domingo. (Cf. certidão, referência citius n.º 89341345, de 06.07.2022). 3. O acórdão cumulatório de penas proferido nos autos n.º... em 29.06.2017, e referido em 1., transitou em julgado a 10.09.2018 (cf. certidão, referência citius n.º 89341345, de 06.07.2022). 4. Nos autos de Processo n.º 944/22.9T8PNF – Cúmulo Jurídico (a correr termos no Juízo Central Criminal de Penafiel – Juiz 3, criados na sequência de certidão oriunda do processo n.º ...), após realização de audiência de julgamento a que se refere o artigo 472.º n.º 1 do Código de Processo Penal, por acórdão proferido em 06.07.2022 (mas depositado apenas no dia 07.07.2022) foi realizado o cúmulo jurídico das penas em que o arguido AA havia sido condenado nos processos nºs ..., 616.15.0GALSD, ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... (cf. certidão, referência citius n.º 98347261, de 07.04.2025). 5. O acórdão cumulatório de penas proferido nos autos n.º944/22.9T8PNF em 06.07.2022 (depositado a 07.07.2022), e referido em 4., considerou as seguintes penas aplicadas ao arguido:
a) a 2.3.2015, de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, em concurso aparente com as contraordenações, previstas e punidas pelos artigos 13.º, n.º 5 e 43.º, n.º 2, todos do Código de Estrada e artigo 23.º, al. a), do Decreto Regulamentar n.º 22-A/1998, de 1 de outubro e Quadro 23 Anexo ao referido Decreto Regulamentar, na pena de 15 meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 18 meses;
b) a 2.3.2015, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do SL 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 15 meses de prisão;
c) a 2.3.2015, de um crime de resistência e coação, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão;
d) a 11.4.2015, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do SL 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 15 meses de prisão;
e) a 13.3.2016, de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, al. b) e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por referência aos artigos 4.º, 24.º, 27.º, 29.º, 30.º, 35.º, 41.º, n.º 1, als. c), e), f) e g), do Código da Estrada e artigo 21.º do Regulamento de Sinalização de Trânsito, na pena de 17 meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 24 meses; e
f) a 13.3.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do SL 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 17 meses de prisão;
tendo englobado as mesmas em dois blocos:
● i. um abrangendo as penas aplicadas:
a) no processo n.º ...: 3 anos de prisão;
b) no processo n.º ...: 4 meses de prisão;
c) no processo n.º ...: 5 meses de prisão;
d) no processo n.º ...: 1 ano de prisão + 1 ano de prisão;
e) no processo n.º ...: 16 meses de prisão + 6 meses de prisão;
f) no processo n.º ...: 2 anos e 6 meses de prisão + 10 meses de prisão; e
g) no processo n.º ...: 15 meses de prisão + 15 meses de prisão + 18
meses de prisão + 15 meses de prisão;
● ii. Outro abrangendo as penas aplicadas:
a) no processo ...: 17 meses de prisão + 17 meses de prisão; e
b) no processo n.º ...: 1 ano e 10 meses de prisão,
vindo o arguido a ser condenado em dois blocos de penas, a serem cumpridas sucessivamente,
sendo o primeiro na pena única de três (3) anos e seis (6) meses de prisão; na pena de cento e cinquenta (150) dias de multa à taxa diária de seis euros (6 €); na pena acessória de proibição de contactos com BB pelo período de 3 anos, com obrigação de se afastar da residência e local de trabalho daquela; e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor na via pública pelo período de dezoito (18) meses;
e sendo o segundo na pena única de dois (2) anos de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor na via pública pelo período de vinte e quatro (24) meses. (Cf. certidão, referência citius n.º 98347261, de 07.04.2025). 6. O acórdão cumulatório de penas proferido nos autos n.º944/22.9T8PNF em 06.07.2022 (depositado a 07.07.2022), e referido em 4., foi objeto de recurso, tendo o Tribunal da Relação do Porto mantido a decisão na íntegra (cf. certidão, referência citius n.º 98347261, de 07.04.2025). 7. O acórdão cumulatório de penas proferido nos autos n.º944/22.9T8PNF em 06.07.2022 (depositado a 07.07.2022), e referido em 4., transitou em julgado a 19.01.2023 (cf. certidão, referência citius n.º 98347261, de 07.04.2025). 8. Nos autos de Processo n.º 944/22.9T8PNF foi proferido, com data de 09.12.2024 e referência citius n.º 97151600, o seguinte despacho:“Por despacho datado de 08.02.2024 foi liquidada a pena a cumprir pelo condenado AA, por referência à decisão de cúmulo jurídico efetuado nos presentes autos, nos seguintes termos: a) o termo da pena ocorrerá a 25 de janeiro de 2028; b) o meio da pena ocorrerá a 24 de abril de 2025; c) dois terços da pena ocorrerá a 25 de março de 2026. Entretanto, por despacho de 04.10.2024, já transitado em julgado, foi determinada a conversão da pena de multa em que o arguido foi condenado – 150 dias – nos correspondentes 100 dias de prisão subsidiária, ao abrigo do art. 49.º, nº 1, do Código Penal. Importa, agora, reformular a liquidação da pena do identificado arguido, com o acréscimo dos dias correspondentes de prisão subsidiária, o que se faz do seguinte modo: a) o termo da pena ocorrerá a 25 de janeiro de 2028 + 100 dias = 4 de maio de 2028; b) o meio da pena ocorrerá a 24 de abril de 2025 + 100 dias = 2 de agosto de 2025; c) dois terços da pena ocorrerá a 25 de março de 2026 + 100 dias = 03 de Julho de 2026, (477º, nº 2 do Código de Processo Penal e 61º, nº 3, 62º e 90º do Código Penal). Comunique nos termos e para os efeitos do disposto no art. 35º, da Portaria nº 280/2013 de 26/08, nos termos promovidos, notificando simultaneamente o arguido e respetivo defensor – arts. 477º, nº 1 a 5 do C. P. Penal e dê conhecimento ao EP e ao TEP. Dê conhecimento ao TEP do despacho de fls. 611, com nota do trânsito em julgado. (…)”. 9. Nos autos de Processo n.º 944/22.9T8PNF foi proferido o despacho recorrido, datado de 20.02.2025 e com referência citius n.º 97829421, nos seguintes termos: “Fls. – 620 a 636, 638 a 653 e 654 a 682: Considerando os dados antecedentes, salienta-se que o poder jurisdicional do Tribunal sobre a matéria ora invocada esgotou-se com a prolação do acórdão cumulatório, que se mostra já devidamente transitado em julgado, após a referida decisão ter sido integralmente confirmada pelo acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, com data de 26.10.2022, razão pela qual nada cabe determinar para os efeitos pretendidos pelo condenado. Em todo o caso, ainda que se revele falha na comunicação da presente decisão ao anterior processo de cúmulo, o certo é que a referida pena parcelar perdeu a sua autonomia ao ser integrada na presente decisão, o que ocorreu, com trânsito, em data anterior ao despacho que a declarou extinta. Facto esse que, aliás, era do conhecimento do arguido, tal como todos os restantes trâmites processuais. Por conseguinte, e sem prejuízo do infra decidido quanto à pena de multa já paga pelo condenado, indefere-se a reformulação do cúmulo jurídico realizado nos presentes autos. Notifique. Fls. 664: Considerando, no entanto, que o arguido procedeu ao pagamento da pena de multa integrada no presente cúmulo, declara-se a mesma extinta pelo cumprimento, nos termos do disposto no art. 475.º do Código de Processo Penal. Notifique e envie boletim ao registo criminal. d.n. Consequentemente, face à extinção da referida pena de multa, importa reformular a liquidação de pena constante de fls. 616 dos autos. Para o efeito, abra vista ao Ministério Público”. 10. Nos autos de Processo n.º 944/22.9T8PNF foi proferido despacho, datado de 20.02.2025, com referência citius n.º 97944904, nos seguintes termos: “Considerando que foi declarada extinta a pena de multa, que anteriormente foi convertida em 100 dias de prisão subsidiária, importa reformular a liquidação de pena do condenado, nos seguintes termos: a) o termo da pena ocorrerá a 25 de janeiro de 2028; b) o meio da pena ocorrerá a 24 de abril de 2025; c) dois terços da pena ocorrerá a 25 de março de 2026. Comunique nos termos e para os efeitos do disposto no art. 35.º, da Portaria n.º 280/2013 de 26/08, nos termos promovidos, notificando simultaneamente o arguido e respetivo defensor – arts. 477.º, nº 1 a 5 do C. P. Penal e dê conhecimento ao EP e ao TEP. Concomitantemente, dê conhecimento ao TEP do teor do despacho de fls. 683 dos autos. (…)”. 11. No âmbito dos autos n.º ... foi proferido, a 26.04.2023, o seguinte despacho: “(…) declaro extinta a pena principal e a pena acessória em que o arguido foi condenado nestes autos.”
Fundamentos do recurso:
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
Questão que cumpre apreciar:
- se o cúmulo jurídico efetuado nos presentes autos deve ser reformulado e descontadas as penas já extintas no âmbito do primeiro cúmulo jurídico efetuado nos autos nº ..., sob pena de violação dos princípios constitucionais non bis in idem e do Estado de Direito.
Vejamos.
No recurso interposto do despacho proferido, alega o arguido recorrente que o cúmulo jurídico efetuado nos presentes autos contemplou os mesmos processos do cúmulo jurídico efetuado no âmbito dos autos n.º .... Ora, não podiam nunca estas penas entrar naquele segundo cúmulo, pois, assim sendo, o arguido está a ser condenado duas vezes pela prática dos mesmos crimes, violando o princípio non bis in idem, constitucionalmente reconhecido no nosso ordenamento jurídico. Mais alega que algumas das penas que foram englobadas no cúmulo efetuado nos autos de que os presentes são um apenso (e que tinham anteriormente sido englobadas nos autos n.º ...) foram declaradas extintas nos autos n.º ... por despacho de 26.04.2023, e não sendo efetuada a reformulação do cúmulo jurídico, efetuado nos autos de que os presentes são um apenso, há uma clara violação do princípio da proteção da confiança uma vez que defrauda as legítimas expectativas do recorrente.
Apreciemos.
Na punição do concurso de infrações criminosas, importa atender primordialmente à disciplina vertida no art.º 77.º do Código Penal, nos termos do qual “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena”, na medida da qual “são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” (nº 1).
A moldura penal abstratamente estabelecida para o concurso de infrações terá, à luz do que no n.º 2 do citado preceito se estatui, como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (não podendo exceder 25 anos de prisão ou 900 dias de multa, consoante os casos), e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas a tais crimes.
Tal como se pode constatar do teor do acórdão cumulatório proferido no âmbito dos autos, de que os presentes são um apenso, o cúmulo jurídico foi efetuado apenas porque se constatou que posteriormente à prolação da decisão no processo que deu origem aos autos n.º 944/22.9T8PNF, de que os presentes são um apenso, isto é, posteriormente à prolação da decisão proferida no processo n.º ..., se constatou que o arguido praticara anteriormente outros ilícitos pelos quais veio a ser condenado, procedendo-se, por isso, à aplicação plena do normativo do art.º 78.º do Código Penal, segundo o qual “se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena já cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”.
O trânsito em julgado obstará a que com essa infração, ou outras cometidas até ao trânsito, se cumulem infrações que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, que funcionará assim como barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso cometidos após aquele limite. A primeira decisão transitada é, assim, o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objeto de unificação. A partir desta barreira inultrapassável afastada fica a unificação, formando-se outras penas autónomas, de execução sucessiva que poderão integrar outros cúmulos — cf., com interesse para a presente decisão, Acórdão da Relação do Porto de 17 de dezembro de 2009, in www.dgsi.pt
Após analisar estes e outros considerandos, entendeu o acórdão cumulatório efetuado nos autos, de que os presentes são um apenso que se impunha proceder a cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido em dois blocos:
i. um abrangendo as penas aplicadas:
a) no processo n.º ...: 3 anos de prisão;
b) no processo n.º ...: 4 meses de prisão;
c) no processo n.º ...: 5 meses de prisão;
d) no processo n.º ...: 1 ano de prisão + 1 ano de prisão;
e) no processo n.º ...: 16 meses de prisão + 6 meses de prisão;
f) no processo n.º ...: 2 anos e 6 meses de prisão + 10 meses de prisão;
e
g) no processo n.º ...: 15 meses de prisão + 15 meses de prisão + 18 meses de prisão + 15 meses de prisão;
ii. Outro abrangendo as penas aplicadas:
a) no processo ...: 17 meses de prisão + 17 meses de prisão (pontos 19.5 e 19.6); e
b) no processo n.º ...: 1 ano e 10 meses de prisão (ponto 20.).
Mais foi ali considerado que, por se tratar no caso em apreço de conhecimento superveniente de concurso de crimes, o cúmulo final a efetuar devia abranger todas as penas consideradas nos cúmulos anteriores, mantendo a multa aludida autónoma, segundo o entendimento ali explanado, agora a reformular.
Assim, nos termos do artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal, ficou ali estabelecido naquele acórdão cumulatório que a moldura abstrata a ponderar no primeiro bloco de penas é de 3 anos de prisão a 16 anos e 8 meses de prisão e quanto ao segundo bloco de penas a moldura abstrata tem como mínimo 1 ano e 5 meses de prisão e como máximo 4 anos e 1 mês de prisão (resultante da conversão da pena de 160 dias de multa).
Após ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, entendeu aquele Tribunal Coletivo determinar a medida concreta da pena, tendo em conta ainda as penas parcelares aplicadas e os fins de prevenção geral e especial das penas e consideradas as enunciadas molduras abstratamente aplicáveis, nos seguintes termos: A. Ao primeiro bloco de penas a pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; – na pena de cento e cinquenta (150) dias de multa à taxa diária de seis euros (6 €); – na pena acessória de proibição de contactos com BB pelo período de 3 anos, com obrigação de se afastar da residência e local de trabalho daquela; e – na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor na via pública pelo período de dezoito (18) meses; ; e B. Ao segundo bloco de penas a pena única de 2 (dois) anos. – na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor na via pública pelo período de vinte e quatro (24) meses. E em consequência condenar o arguido em cada uma das penas únicas agora mencionadas em A. e B., as quais serão cumpridas, sucessivamente, desfazendo-se o cúmulo de penas anteriormente realizado.
Esta decisão foi objeto de recurso pelo ora arguido recorrente, tendo o Tribunal da Relação do Porto mantido a decisão na sua integralidade, tendo a decisão proferida transitado em julgado a 19.01.2023.
Ora, no presente caso a punição do concurso de infrações criminosas praticadas pelo arguido obedeceu quer à disciplina vertida no art.º 77.º do Código Penal quer ao normativo do art.º 78.º, ambos do Código Penal, e o concurso de crimes assentou na consideração unitária da pessoa ou da personalidade do agente que praticou todos os crimes, o que, aliás, foi confirmado pelo Tribunal de recurso, tendo tal decisão, como se referiu, transitado em julgado em 19.01.2023.
Considerando o que se deixa exposto, e tendo o acórdão cumulatório proferido obedecido às normas legais impostas para o efeito, não se compreende que o recorrente defenda que não podiam as penas consideradas no acórdão cumulatório proferido (em 29.06.2017) no âmbito dos autos n.º ... entrar neste (segundo) cúmulo jurídico (n.º 944/22.9T8PNF), por o arguido estar a ser condenado duas vezes pela prática dos mesmos crimes, violando o princípio non bis in idem, constitucionalmente reconhecido no nosso ordenamento jurídico.
O princípio ne bis in idem é um princípio do direito penal que proíbe que alguém seja julgado ou punido mais de uma vez pelo mesmo crime. É uma garantia fundamental da pessoa humana que visa evitar a duplicidade de punições.
O princípio do caso julgado ou da exceptio judicati, mormente na sua vertente preclusiva de outro pronunciamento, encontra-se consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP) através do n.º 5 do artigo 29.º, na senda da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no qual se estabelece: ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
Como direito subjetivo fundamental (neste sentido, vide Prof. Gomes Canotilho e Prof. Vital Moreira, in CRP Anotada), o princípio ne bis in idem garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores desse direito (direito de defesa negativo). Como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
Existe concordância na doutrina e na jurisprudência de que o referente “mesmo crime” não deve ser interpretado no seu sentido estrito técnico-jurídico, mas sim em função do valor que o princípio assume para a dignidade da pessoa humana, de forma a garantir-se que “aquele que viveu a dramática experiência do processo penal, que não possa mais, por aquele acontecimento, voltar a ser incomodado, assegurando-se, assim, ad futurum, a paz jurídica do cidadão” (neste sentido, vide Frederico Isasca).
Do Ac. STJ de 15.03.2006 decorre que o conteúdo e limites do caso julgado só podem ser fornecidos pelo objeto do processo; sendo o objeto do processo o mesmo estaremos perante a exceptio judicati, caso contrário não ocorrerá violação do princípio ne bis in idem. Ora, comportamento referenciado ao facto, como expressão da conduta penalmente punível, não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que diretamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do “objeto do processo”.
Acompanhando-se o acórdão n.º 303/05 do Tribunal Constitucional, pode dizer-se que do ponto de vista substantivo, o princípio [ne bis in idem] proíbe a plural imposição de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infração; do ponto de vista processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infração penal sobre a qual se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação».
O ne bis in idem tem, pois, por ratio a garantia da paz jurídica do cidadão, traduzindo-se numa limitação do jus puniendi do Estado na medida em que impede a repetição de um processo contra a mesma pessoa.
Ora, considerando o que se deixa exposto, é manifesto que o facto de, por força das regras do art.º 77.º e 78.º, ambos do Código Penal, o acórdão cumulatório proferido no âmbito dos autos, de que os presentes são um apenso, ter decidido que, por se tratar no caso em apreço de conhecimento superveniente de concurso de crimes, o cúmulo final a efetuar devia abranger todas as penas consideradas nos cúmulos anteriores, desfazendo-os e, após ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, determinar nova(s) medida(s) concreta(s) da pena, não contende com o aludido princípio ne bis in idem, pois, em momento algum há a violação do objeto do processo relativo a cada uma das infrações que consubstanciam o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. No acórdão cumulatório proferido no âmbito no processo n.º 944/22.9T8PNF, aliás assim como no proferido no âmbito do processo n.º ..., visou-se apenas a punição do concurso de infrações criminosas praticadas pelo arguido, em cada momento, assentando na consideração unitária da pessoa ou da personalidade do agente que praticou todos os crimes.
Soçobra, deste modo, a alegação do recorrente.
Alega, ainda, o recorrente que algumas das penas que foram englobadas no cúmulo efetuado nos autos de que os presentes são um apenso (e que tinham anteriormente sido englobadas nos autos n.º ...) foram declaradas extintas nos autos n.º ... por despacho de 26.04.2023, e não sendo efetuada a reformulação do cúmulo jurídico, efetuado nos autos de que os presentes são um apenso, há uma clara violação do princípio da proteção da confiança uma vez que defrauda as legítimas expectativas do recorrente.
Salvo o devido respeito, também não poderemos acompanhar a alegação do recorrente, pois entendemos não se verificar a invocada violação do princípio do Estado de Direito ou do princípio da proteção da confiança.
É certo que no âmbito dos autos n.º ... não deveria ter sido proferido o despacho, em 26.04.2023, que declarou extinta a pena principal e a pena acessória em que o arguido foi condenado nesses autos, porque tendo aquela pena sido integrada no cúmulo jurídico elaborado no âmbito dos autos n.º 944/22.9T8PNF, de que os presentes são um apenso, perdeu a sua autonomia.
Contudo, tal circunstância não determina que o acórdão cumulatório proferido no âmbito do processo n.º 944/22.9T8PNF viola o princípio da proteção da confiança, porquanto, quando foi proferido tal acórdão em 06.07.2022 (depositado em 07.07.2022 e transitado a 19.01.2023), aquelas penas ainda não estavam extintas, pelo que as mesmas deviam ser, como foram, incluídas no cúmulo.
Todas as considerações tecidas pelo ora recorrente sobre os eventuais “atrasos” ocorridos no âmbito daqueles autos n.º ... na prolação do despacho que (incorretamente, como já vimos) declarou extinta a pena aplicada ao arguido não poderão aqui ser considerados, porquanto, como já se referiu, à data em que foi proferido o acórdão no âmbito do processo n.º 944/22.9T8PNF - 06.07.2022 (depositado em 07.07.2022 e transitado a 19.01.2023)-, aquelas penas aplicadas ao arguido no âmbito do processo n.º ... ainda não estavam extintas, pelo que as mesmas deviam ser, como foram, incluídas no cúmulo jurídico elaborado nos autos n.º 944/22.9T9PNF.
Considerando tudo quanto se deixa exposto, soçobra na sua totalidade o recurso interposto pelo arguido.
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça.
Porto, 28 de maio de 2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)
Paula Natércia Rocha
Lígia Trovão
Maria Joana Grácio [Não obstante entender que não deve haver cúmulo jurídico de penas suspensas, no contexto do presente processo voto toda a decisão.]