DESPACHO DE NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
OBJECTO DO RECURSO
Sumário


I. O objecto necessário, e exclusivo, do recurso é toda a parte dispositiva que se revele desfavorável ao recorrente, o que se compreende, já que o pedido impugnatório (maxime, recursório) é um pedido de revogação de um acto processual, a decisão judicial; e, assim, exclui-se do objecto do recurso a antecedente argumentação ou fundamentação, que não integram o objeto directo da revogação.
II. Excepcionalmente, os fundamentos de uma decisão judicial poderão ser revogados se for pedido o seu conhecimento incidental ao abrigo do art.º 91.º, n.º 2, do CPC (ou em ação autónoma), ou se for pedida a ampliação do objecto do recurso nos termos do art.º 636.º do CPC, ou ainda se tiverem eficácia jurídica autónoma.
III. Vindo a parte vencida numa acção recorrer da sentença nela proferida, mas não elegendo como objecto do seu recurso a respectiva parte dispositiva (isto é, não pedindo a revogação do comando de convocação de uma assembleia geral de determinada sociedade), com ela se conformando, e antes elegendo como objecto único do dito recurso parte da matéria de facto julgada como assente pelo Tribunal a quo (para fundamentar a sua decisão), terá o recurso que ser rejeitado (por tais factos não consubstanciarem questões ou incidentes cujo conhecimento tivesse sido previamente pedido ao abrigo do art.º 91.º, n.º 2, do CPC, por necessariamente não poderem integrar qualquer ampliação do objecto do recurso pedida nos termos do art.º 636º do CPC, apenas acessível à parte recorrida, e por não terem eficácia jurídica autónoma).

Texto Integral


DESPACHO de não admissão do recurso (sem objecto próprio)

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I - RELATÓRIO

1.1. EMP01... - Tinturaria e Acabamentos, Limitada, com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., instaurou a presente acção especial de convocação de assembleia geral de sócios, pedindo que:

· se mandasse convocar a assembleia geral de EMP02... - Energia, Limitada, com sede na Rua ..., ..., em ..., para deliberar (com discussão e aprovação) sobre o relatório de gestão e contas do exercício de 2023, sobre a proposta de aplicação de resultados, sobre a apreciação geral da administração e fiscalização da dita Sociedade, e sobre outros assuntos de interesse para a mesma.

Alegou para o efeito, em síntese, ser ela própria e EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada, únicas sócias de EMP02... - Energia, Limitada, em partes iguais.
Mais alegou encontrarem-se os respectivos representantes legais desavindos desde meados de 2023; e, por isso, não se lograr a necessária aprovação do relatório de gestão e contas do exercício de 2023, bem como de proposta de aplicação de resultados, ou de apreciação geral da respectiva administração e fiscalização.  

1.2. Regularmente citada, EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada (na qualidade de sócia de EMP02... - Energia, Limitada) contestou, pedindo que se julgasse a instância extinta, fosse por falta de interesse em agir da Requerente (EMP01... - Tinturaria e Acabamentos, Limitada), fosse por manifesta inutilidade da lide.
Alegou para o efeito, em síntese, não ser ela própria sócia de EMP02... - Energia, Limitada, por ter cedido, em  data anterior a 23 de Julho de 2024, a sua quota na mesma a AA (embora ainda sem o devido registo), que se tornou seu gerente único; e ter o mesmo AA beneficiado igualmente da cedência da quota que BB detinha na Requerente (EMP01... - Tinturaria e Acabamentos, Limitada), ficando assim titular de todo o seu capital social (já que possuía originariamente 50% do mesmo) e seu gerente único.
Defendeu, por isso, dispor o dito AA de todas as condições para convocar e realizar a assembleia geral de EMP02... - Energia, Limitada (nomeadamente, por ser titular de 50% do seu capital social e ser seu gerente único, e ainda por a própria Requerente ser titular da remanescente quota na dita Sociedade, sendo que o mesmo AA detém a Requerente na totalidade e é seu gerente único).

1.3. Sob convite expresso, a Requerente (EMP01... - Tinturaria e Acabamentos, Limitada) veio responder, reiterando o que pedira no seu requerimento inicial.
Alegou para o efeito, sempre em síntese, que embora tenha sido negociado entre o seu legal representante (AA) e o legal representante de EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada (BB) um acordo-quadro relativo à separação das respectivas participações sociais em ambas as Sociedades, o dito acordo-quadro consubstanciou um mero protocolo de entendimento geral; e, carecendo de sucessivos contratos subsequentes (nomeadamente, de cessões de quotas), os mesmos nunca chegaram a ser celerados, vindo ainda AA, por carta remetida a 18 de Abril de 2024, a resolver o referido acordo-quadro.
Defendeu, por isso, manter-se EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada, como efectiva sócia de EMP02... - Energia, Limitada; e ter-se sempre comportado como tal até à presente acção.

1.4. Veio depois EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada alegar que, no dia 20 de Setembro de 2024, em assembleia geral universal própria, foi deliberado por unanimidade a venda a BB da quota que ela própria detinha antes no capital social de EMP02... - Energia, Limitada; e ter-se desse modo assegurado a validade do prévio negócio de venda da mesma quota (datado de 02 de Outubro de 2023), titulado pelo instrumento denominado por «acordo» (o mesmo apelidado pela Requerente como acordo-quadro).
Mais alegou não lhe ser imputável a falta de registo da aquisição de quota de EMP02... - Energia, Limitada a favor de AA.

1.5. Foi proferida sentença, julgando a acção procedente, lendo-se nomeadamente na mesma:

«(…)
Factos com interesse para a decisão a proferir:
a) Os gerentes da EMP03... (BB) e EMP01... (AA) – as duas sócias da Rqda. - são cunhados entre si.
b) E são ambos sócios da sociedade EMP03... – Estamparia Têxtil, Lda, sociedade comercial por quotas, NUIPC ...38, com o capital social de 600.000,00€, e com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., do concelho ....
c) Como, de resto, são também da sociedade EMP01... - Tinturaria e Acabamentos, Lda, sociedade comercial por quotas, com o NUIPC ...76, com o capital social de 720.000.00€, com sede na mesma morada.
d) Cada uma destas sociedades é, por sua vez, titular de uma quota de 25.000,00€ cada, e representativa de 50% do capital social da sociedade EMP02... – Energia, Lda, sociedade comercial por quotas, com o NUIPC ...39, com o capital social de 50.000,00€ e com sede, também, na mesma morada.
e) Com efeitos a 13 de Outubro seguinte, o AA renunciou à gerência da EMP03..., e, bem assim, o R. renunciou à gerência da EMP01....
f) No dia 20/9/2024, em assembleia geral universal da EMP03... foi deliberada por unanimidade a venda a BB da quota de que a EMP03... era titular no capital social da EMP02....
g) A EMP02... ainda não diligenciou pelo registo da aquisição da quota a favor de AA.
h) A quota que a EMP03... detinha no capital social da EMP02... foi cedida a AA, cedência essa que ocorreu em momento anterior à assembleia geral de 23/7/2024.
i) AA resolveu o referido acordo por carta remetida a 18 de Abril de 2024.
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Motivação.

 A convicção do Tribunal naturalmente assenta na prova documental junta aos autos pelas partes, que consiste em certidões paramentes das aludidas sociedades, bem como nos acordos estabelecidos e comunicações havidas entre essas sociedades e da iniciativa dos respetivos sócios.
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Fundamentação Jurídica.

É a seguinte a questão que importa resolver:
Saber se estão verificados os pressupostos para dever ser judicialmente convocada assembleia geral da Sociedade Requerida.
 Nos termos do disposto no art.º 1057º nº 1 do Código de Processo Civil, se a convocação de assembleia geral puder efectuar-se judicialmente, ou quando, por qualquer forma, ilicitamente se impeça a sua realização ou o seu funcionamento, o interessado requererá ao juiz a sua convocação.
 Trata-se de preceito que adjectiva vários casos previstos de possibilidade de convocação judicial de assembleia de sócios, entre os quais o disposto no art.º 375º Código das Sociedades Comerciais.
 O art.º 375º nº 2 do Código das Sociedades Comerciais prevê que a Assembleia Geral deve ser convocada quando o requererem um ou mais accionistas que possuam acções correspondentes a, pelo menos, 5% do capital social. O requerimento em causa deve ser feito por escrito e dirigido ao presidente da mesa da Assembleia Geral indicando com precisão os assuntos a incluir na ordem do dia e justificando a necessidade da reunião da assembleia. Quando não proceda à convocação ou não defira o requerimento o presidente deve justificar por escrito a sua decisão, no prazo de 15 dias. Finalmente o nº 6 do preceito prevê que os accionistas cujos requerimentos não foram deferidos podem requerer a convocação judicial da assembleia.
 As deliberações sociais, enquanto acto de formação da vontade da sociedade, são a consequência de um determinado processo formativo que exige como pressuposto que a assembleia tenha sido regularmente convocada e tenha também funcionado regularmente. A convocatória define os limites materiais da competência deliberativa de uma determinada assembleia, fixando-lhe o seu objecto.
 Para além da Assembleia Geral Anual (art. 376º do Código das Sociedades Comerciais), pode haver Assembleias Gerais de Sócios sempre que a lei o determine, os seus órgãos de administração o entendam conveniente ou um sócio o requeira (art.º 375º nºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais).
 Dispõe o art. 375º nº6 do Código das Sociedades Comerciais que os accionistas cujos requerimentos não sejam deferidos podem requerer a convocação judicial da assembleia.  O sócio/accionista pode requerer a convocação judicial da assembleia, tal como previsto no art. 375º, nº 6 do Cód. das Sociedades Comerciais e regulado no art. 1057º do Cód. do Proc. Civil, onde no seu nº 1 se estatui o seguinte: «Se a convocação de assembleia geral puder efectuar-se judicialmente, ou quando, por qualquer forma, ilicitamente se impeça a sua realização ou o seu funcionamento, o interessado requererá ao juiz a convocação.»
(…)
Ora no caso, em apreço pese embora a alegação pertinente constante da resposta, resulta da apreciação da factualidade relevante que a cedência de quotas se mostra ainda litigiosa e não está registada, pois caso contrário a presente instância não teria qualquer utilidade e haveria falta de interesse em agir por parte da A.
 Atenta a estrutura societária da Requerida a situação de empate a manter-se é inultrapassável, pois que um dos sócios votou a favor e o outro votou contra, pelo que ao ROC a nomear deve atribuir-se o poder de desempate caso volte a verificar-se uma situação de empate, sendo que os encargos que se verificarem são da responsabilidade/correm por conta da sociedade.
Em face do exposto, impõe-se a designação de data para a realização de Assembleia Geral nos termos descritos nos autos, razão pela qual se nos afigura que o pedido de convocação deva ser julgado integralmente procedente, nos termos do disposto no art. 1057º do Código de Processo Civil.
 Considerando a situação de empate, nomeio, para as funções de presidente da mesa, nos termos do disposto nos artigos 263º, 374º do Código das Sociedades Comerciais, um ROC que integre as listas oficiais a indicar pela Ordem dos Revisores Oficiais de Contas.  As custas devidas a juízo, bem como as despesas ocasionadas pela convocação e reunião da assembleia ficam a cargo da requerida, nos termos do disposto nos art.ºs 263º nº 3 e 375º nº 7 do Código das Sociedades Comerciais.
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V - Decisão:

Pelo exposto, e na procedência do pedido, o tribunal decide:
 A - Convocar judicialmente a assembleia geral da EMP02..., LDA, com sede na Rua ..., ..., ... ..., para reunir no dia 21/02/2025, pelas 18 horas, na sua sede social, com a seguinte ordem de trabalhos:
1) Discussão e aprovação do relatório de gestão e contas do exercício de 2023;
2) Discussão e deliberação sobre a proposta de aplicação de resultados;
3) Apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade; 4) Outros assuntos de interesse para a sociedade.
B - Atribuir, para a realização da assembleia, as funções de presidente da mesa a um ROC inscrito na Lista Oficial e a indicar pela Ordem dos Revisores Oficiais de Contas e a quem se atribuiu o poder de desempatar, se voltar a verificar-se o empate na deliberação dos pontos mencionados em 1) e 2).
C - Designar uma segunda data para a realização da AG, caso não se mostre possível a realização da mesma na primeira data, para o dia 24/02/2025 para as 18 horas.  Custas pela requerida – art.º 527º nºs 1 e 2 Código de Processo Civil e art. 263º nº3 e 375º nº 7 do Código das Sociedades Comerciais.
Registe e notifique.
Publicite-se o aviso convocatório, nos termos conjugados dos art.ºs 377 e 167º ambos do Código das Sociedades Comerciais, e art.º 1º nº 1 da Portaria 590-A/2005, de 14/07.
(…)»

1.6. Notificada da sentença, veio EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada interpor recurso de apelação da mesma, defendendo que a sua legitimidade como recorrente, «para além de a decisão proferida ser diferente daquilo que pugnou (nº 1 do art. 631º do CPC), radica na circunstância de o teor da fundamentação de facto ser susceptível de irradiar efeitos passíveis de condicionarem indevidamente, e em prejuízo da ora Recorrente, discussões a ter noutras lides, o que a faz directa e efectivamente prejudicada pela decisão aqui proferida (n.º 2 do art. 631.º do CPC)».
Nas conclusões do seu recurso (como previamente já o fizera no respectivo corpo), reconheceu, porém, que «será aceitável o dispositivo da sentença, como condição de ultrapassar o impasse em que se encontra a EMP02..., cujo interesse e visa tutelar com a presente acção» [1]; mas defendeu a alteração da matéria de facto provada (nomeadamente, da vertidas nas suas alíneas a), b), c), d), e) e i)), por alegadamente se mostrar «violado o disposto no nº 5 do art. 607º do CPC» e se impor «que a decisão a proferir evite afirmações ou considerandos que, não sendo necessários para julgar a questão vertente, possam irradiar efeitos pra futuras pendências» [2].

1.7. Não tendo sido apresentadas contra-alegações, foi proferido despacho pelo Tribunal a quo, admitindo o recurso interposto, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Admite-se o recurso interposto, o qual é de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
(…)»

1.8. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, por proferido despacho pela Relatora, convidando as partes a pronunciarem-se sobre o eventual não conhecimento do objecto do recurso, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
. Não conhecimento do objecto do recurso - Audição das partes

Afigurando-se-me que o recurso interposto por EMP03... – Estamparia Têxtil, Limitada não é admissível (por versar apenas sobre a matéria de facto julgada e não sobre o dispositivo da sentença, e por aquela matéria de facto só ter eficácia jurídica no concreto processo onde foi fixada), ordeno a notificação das partes para, em 10 dias, querendo, se pronunciarem, conforme art.º 655.º, n.º 1, do CPC.
(…)»

1.9. As partes permaneceram silentes e inertes.
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II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a questão da admissibilidade, ou não admissibilidade, do recurso de apelação, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

3.1. Delimitação objectiva do recurso
3.1.1. Dispositivo da decisão
Lê-se no art.º 635.º do CPC que se «a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é (…) lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre» (n.º 2); e, na «falta de especificação, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente» (n.º 3).
Logo, objecto necessário, e exclusivo, do recurso será «toda a “parte dispositiva da sentença” que se revele desfavorável, naturalmente demarcada da argumentação ou da fundamentação que antecede a extracção das conclusões» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, pág. 84) [3].
Dito por outras palavras, fica «claro (…) que o objeto do recurso é a decisão que prejudica o recorrente e não os respetivos fundamentos, os quais apenas interessam enquanto objeto de argumentação que será inserida nas alegações ou, quando ao recorrido, nas contra-alegações, na medida em que o art. 636º o prevê» (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Susa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Setembro de 2018, pág. 762).
Compreende-se que assim seja, já que «o pedido impugnatório, maxime, recursório é um pedido de revogação de um ato processual: a decisão judicial» (Rui Pinto, O Recurso Civil. Uma Teoria Geral. Noção, Objeto, Natureza, Fundamento, Pressupostos e Sistema, 2017, AAFDL Editora, Lisboa 2017, pág. 58).
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3.1.2. Fundamentação (de facto e/ou de direito)    
Mais se lê, no art.º 636.º do CPC, que, no «caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação» (n.º 1); e pode «ainda o recorrido, na respetiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas» (n.º 2).
Logo, e não sendo «inteiramente líquida a amplitude do caso julgado que flui do disposto no art. 619º, divergindo a doutrina e a jurisprudência quanto à sua extensão ou não aos fundamentos essenciais que sustentam a decisão», certo é que fica, porém, «fora de tal polémica (…) a manifestação da vontade de interposição de recurso que deve ser dirigida à decisão em si, e não à respectiva motivação, sendo por aquela que se avalia a legitimidade inerente à qualidade de parte vencida. Com efeito, a motivação da sentença, para efeitos de delimitação do objecto do recurso, só ganha inequívoco realce com a norma do art. 636.º que permite à parte recorrida, apesar da sua concordância com o resultado final, introduzir nas contra-alegações a reponderação do modo como o tribunal resolveu determinadas questões cuja resolução pode interferir naquele resultado se, a final, for dada razão ao recorrente a partir das questões suscitadas nas suas alegações» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, pág. 84).
Compreende-se, por isso, que se afirme que «os fundamentos da parte dispositiva [da decisão judicial] não integram o objeto direto da revogação; ou seja, o recorrente não pode pedir a sua revogação.
Efetivamente, é a parte dispositiva da decisão que afeta a esfera jurídica do recorrente, com “força obrigatória dentro do processo e fora dele” (cf. artigo 619º n.º 1) quando faça caso julgado material».
Precisa-se, porém, que, «excecionalmente, os fundamentos podem ser revogados se for pedido o seu conhecimento incidental ao abrigo do artigo 91º nº 2 (ou em ação autónoma), se for pedida a ampliação do objeto do recurso nos termos do artigo 636º e ainda se tiverem eficácia jurídica autónoma» (Rui Pinto, O Recurso Civil. Uma Teoria Geral. Noção, Objeto, Natureza, Fundamento, Pressupostos e Sistema, 2017, AAFDL Editora, Lisboa 2017, pág. 65).
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3.1.3. Conhecimento e consequências da irrecorribilidade da decisão objecto de recurso
Lê-se no art.º 641.º do CPC que, findo «os prazos concedidos às partes» para alegarem e contra-alegarem, «o juiz aprecia os requerimentos apresentados, pronuncia-se sobre as nulidades arguidas e os pedidos de reforma, ordenando a subida do recurso, se a tal nada obstar» (n.º 1); e o «requerimento [de interposição de recurso] é indeferido quando» se «entenda que a decisão não admite recurso» (n.º 2).
Logo, compete ao juiz a quo emitir despacho sobre o requerimento de interposição de recurso, nomeadamente conhecendo, ainda que de forma oficiosa, as questões ligadas à sua admissibilidade, onde se inclui a recorribilidade da decisão impugnada.

Mais se lê, no n.º 5 do art.º 641º citado, que a «decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior».
Compreende-se, por isso, que se leia, no art.º 652.º, n.º 1, al. b), do CPC, que o juiz [do tribunal ad quem] a quem o processo for distribuído fica a ser o relator, incumbindo-lhe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente verificar «se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso».
Logo, a «decisão de admissão do recurso não é definitiva, tal como não são definitivas as decisões a fixar a espécie do recurso e a determinar o efeito que lhe compete. Tais decisões não são susceptíveis de impugnação por recurso, mas o tribunal ad quem pode decidir não conhecer do recurso, (…) ou alterar o efeito, uma vez que não está vinculado pela decisão do tribunal a quo» (José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 69).
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3.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
3.2.1. Parte dispositiva - Fundamentação de facto
Concretizando, verifica-se que, tendo a presente acção especial sido instaurada pedindo que se mandasse convocar a assembleia geral de EMP02... - Energia, Limitada, com uma precisa ordem de trabalhos, foi proferida decisão julgando-a totalmente procedente; e, em consequência, convocando «judicialmente a assembleia geral», com a mesma precisa ordem de trabalhos inicialmente indicada.
Mais se verifica que, vindo depois EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada, na qualidade de sócia da dita EMP02... - Energia, Limitada, interpor recurso de apelação daquela sentença, não elegeu como objecto do dito recurso a parte dispositiva daquela decisão (isto é, não pediu a revogação da determinação de convocação da assembleia geral da dita Sociedade), com ela se conformando; e antes elegeu como objecto do recurso por si interposto apenas parte da matéria de facto julgada como assente pelo Tribunal a quo (para fundamentar a dita decisão).
Ora, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não são os ditos factos pretendidos impugnar (reitera-se, de forma autónoma e independente da parte dispositiva da sentença em causa, cuja revogação não foi simultaneamente pedida) susceptíveis de constituírem objecto único do recurso de apelação interposto, nomeadamente por não consubstanciarem questões ou incidentes cujo conhecimento tivesse sido previamente pedido ao abrigo do art.º 91.º, n.º 2, do CPC, por necessariamente não poderem integrar qualquer ampliação do objecto do recurso pedida nos termos do art.º  636º do CPC (apenas acessível à parte recorrida), e por não terem eficácia jurídica autónoma.
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3.2.2. Consequência processual (não admissão do recurso)
Concretizando novamente, não tendo objecto o recurso pretendido interpor por EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada, e não obstante o Tribunal a quo o tenha admitido, deverá o mesmo ser neste momento rejeitado por este Tribunal da Relação, na competência deferida por lei ao Juiz Relator a quem o processo foi distribuído.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, não admitindo, por falta de objecto próprio, o recurso de apelação interposto por EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, não admito o recurso de apelação pretendido interpor por EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada, por o seu único e exclusivo objecto (a fundamentação de facto da sentença proferida pelo Tribunal a quo) não ser legalmente admissível.
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Custas do incidente de não admissão do recurso de apelação pela respectiva Recorrente (EMP03... - Estamparia Têxtil, Limitada), que fixo no mínimo, atenta a sua simplicidade.
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Notifique.
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Dê baixa; e, oportunamente, remetam-se os autos à 1.ª Instância.
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Guimarães, 30.04.2025.

O presente despacho é assinado electronicamente pela respectiva

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos.


[1] Lê-se, a propósito, no corpo das alegações de recurso:
«(…)
Talvez se possa dizer que, na perspectiva da EMP02..., sociedade em cujo interesse é accionado e autorizado o mecanismo de convocação judicial de assembleia, a sentença até tem justificação.   
Talvez se possa dizer que, assumindo-se a ideia de que é litigiosa a cessão de quota e que tal cessão (ainda) não foi levada ao registo, os interesses da sociedade não se compadecem com este quadro de dúvida ou incerteza.  
Isso até poderia, em tese, justificar o sentido da decisão.  
Porém, ainda que assim fosse e ainda que fosse para decidir nos termos que se encontram no dispositivo da sentença, o respectivo teor – sobremaneira a fundamentação de facto - não está isento de críticas, justificando o presente recurso.
(…)» 
[2] Lê-se, a propósito, no corpo das alegações de recurso:
«(…)
Quando é a própria sentença a reconhecer o quadro de litígio e a omissão no registo comercial, o rigor e a cautela impõem que a decisão aqui proferida evite afirmações ou considerandos que, não sendo necessários para julgar a questão vertente, possam irradiar efeitos para futuras pendências
Isto é,   
Deve evitar-se que a decisão venha, ainda que inadvertidamente, a projectar efeitos de caso julgado ou de autoridade de caso julgado, assim afectando indesejavelmente discussões a ter noutra lides – lides que envolvem (ou podem envolver) as sociedades e as duas pessoas acima identificadas, aí se incluindo a Recorrente.
(…)»
[3] No mesmo sentido:
. José João Baptista, Dos Recursos, Universidade Lusíada, Lisboa, 1988, pág. 36, onde se lê que «só esta [parte dispositiva] e não também os fundamentos podem ser objecto de recurso»; e, na parte dispositiva, o «recurso só pode ter por objecto a parte desfavorável, porque só quanto a ela o recorrente ficou vencido».
. José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 42 (a propósito do análogo art.º 684.º do CPC de 1967), onde se lê que «a delimitação do âmbito do recurso é feita objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente».
 . Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Novembro de 2015, pág. 132, onde se lê que «o âmbito do objecto do recurso não é toda a sentença, mas apenas a decisão e nesta a parte com prejuízo».