LAR DE IDOSOS
IDOSO DEPENDENTE
CRIME DE MAUS TRATOS
CARACTERIZAÇÃO
INTERESSE PROTEGIDO
PRESSUPOSTOS
VÍTIMAS
DANOS
GRAVIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I – O conceito de “maus tratos” não se limita às situações mais evidentes de ofensas à integridade física ou psíquica das vítimas, frequentemente traduzidas em agressões físicas/sexuais, insultos, humilhações ou ameaças, antes abarcando um espetro muito alargado de comportamentos suscetíveis de ofender a saúde física, psíquica e emocional das pessoas às quais são dirigidos, neles se incluindo ausência da prestação de cuidados alimentares e de higiene pessoal exigíveis e adequados a preservar o seu bem-estar e integridade pessoal.
II - É de notar que a APAV (Associação Portuguesa de Apoio á Vítima) identifica como exemplo de práticas de violação de direitos de pessoas institucionalizadas, entre muitas outras, «deixar pessoas idosas com dificuldade de mobilização sentadas ou deitadas durante muito tempo, sem ajudá-las a levantar-se» e «não mobilizar regularmente pessoas idosas acamadas», para além de «práticas de violação de direitos ao nível da supervisão técnica», incluindo «Não assegurar que a equipa técnica é qualificada e que há um número adequado de profissionais que a compõem», e de «Práticas de violação de direitos ao nível da higiene pessoal», nomeadamente «Deixar as pessoas idosas sujas (por exemplo, de fezes e urina) durante muito tempo» e «Não lavar as pessoas idosas acamadas na totalidade durante longos períodos de tempo». Acrescenta-se a prática de «Negligenciar a alimentação das pessoas idosas por falta de ajuda durante as refeições».
III - O AUJ n.º 6/2014 perfilhou uma leitura atualista do disposto nos artigos 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1, do Código Civil, de modo a que a dor e o sofrimento, particularmente graves, das pessoas com uma relação afetiva de grande proximidade com um lesado direto, fossem indemnizáveis em situações em que este, apesar de sobrevivente, tivesse sofrido lesões, também elas particularmente graves.
IV. Na aplicação da doutrina deste acórdão uniformizador, a realizar num campo em que o traçado das margens é ténue e irregular, na determinação do que é “particularmente grave” há que valorar, por um lado, as caraterísticas das lesões sofridas e das suas sequelas, e por outro lado, o grau de sofrimento das pessoas mais próximas do lesado assistirem ao padecimento de um ente querido, além da privação da qualidade do relacionamento com este e ainda o custo existencial do acréscimo das necessidades de acompanhamento.
V- Por deverem ser considerados graves, são indemnizáveis os danos não patrimoniais próprios sofridos pela filha da vítima, que, em consequência do comportamento omissivo dos arguidos/demandados, sofreu desidratação grave com risco de vida enquanto esteve internada no lar, tendo sido hospitalizada de urgência e ficado, posteriormente, aos cuidados da demandante.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

PROC. N.º 2349/23.5T9VNG.P1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I - Relatório

No âmbito do processo comum coletivo que, sob o nº 2349/23.5T9VNG, corre termos pelo Juízo Central Criminal do Porto, foram submetidos a julgamento os arguidos «Lar A...», instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos [ERPI], AA, BB, CC e DD, tendo sido proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

«IV - Decisão

Pelo exposto, os juízes que compõem este Tribunal Coletivo julgam a acusação totalmente improcedente e, em consequência, absolvem os arguidos de todos os crimes de que vêm acusados, bem como do PIC formulado.

Sem custas na parte crime e custas cíveis pela demandante na parte cível.

Notifique».


*

Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas “conclusões” (corrigidas, por forma a suprir as omissões assinaladas no despacho proferido em 8/4/2025 – cf. referência citius 19258494), que se transcrevem:

«1. O Ministério Público recorre do douto Acórdão proferido em 26.11.2024, que absolveu todos os arguidos dos crimes por que vinham acusados.

2. No presente processo foram os arguidos IPSS Lar A..., AA, BB, CC e DD, acusados nos seguintes termos:

- a pessoa coletiva IPSS “O Lar A...”, representada pelo seu atual Presidente de Direção, em concurso real de infrações, foi acusada pela prática de dois crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152- A, n.º 1, al. a), com referência ao art.º 11º, n.º 2, al. a) e b), n.º 4, n.º 5 e n.º 7, todos do Código Penal;

- AA, foi acusado, em concurso real de infrações, pela prática de dois crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º- A, do Código Penal;

- BB foi acusada em concurso real de infrações, pela prática de dois crimes de maus tratos, previstos e punidos pelo artigo 152.º- A, do Código Penal;

- CC, acusada pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152.º- A, do Código Penal;

- DD, foi acusada pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152.º- A, do Código Penal.

3. O Tribunal a quo, perante a factualidade julgada provada, concluiu que nenhuma responsabilidade criminal pode ser assacada aos arguidos, absolvendo-os.

4. Não concordamos com tal conclusão e decisão, por enfermar, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, de evidente e deficiente interpretação dos factos achados provados.

5. Entendemos que o Acórdão proferido enferma de:

-vício de contradição entre factos provados e não provados – cfr. artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP.

- erro na aplicação do direito, ao não atribuir relevância criminal aos factos provados e a condenar os arguidos em conformidade – cfr. artigo 412.º, n.º 2 do C.P.P.

6. No caso dos autos há dois idosos ofendidos, a senhora EE e o senhor FF.

7. A ofendida EE era utente do Lar de A... desde 2018. À data dos factos tinha 65 anos e padecia de doença neurológica degenerativa, movimentando-se em cadeiras de rodas.

8. O ofendido FF tinha 91 anos de idade à data dos factos. Deu entrada no lar dos autos no dia 18 de Agosto de 2020 onde esteve até ao dia 29 de Agosto de 2020.

9. Foram 11 dias que esteve no lar dos autos.

10. Tratava-se de um idoso totalmente dependente de terceiros, apresentava a perna esquerda amputada, cegueira e dependia totalmente de terceiros para as atividades da vida diária.

11. Quando entrou no lar dos autos foi colocado no piso 3 para cumprir um período de isolamento de 14 dias em conformidade com a legislação “Covid” que estava em vigor.

12. Não chegou a cumprir esses 14 dias de isolamento porque no dia 29 de Agosto de 2020, ou seja, ao décimo primeiro dia de permanência no lar, foi conduzido ao serviço de urgência do Centro Hospitalar ....

13. Estes dois utentes encontravam-se ao cuidado da arguida Lar de A... que tinha a obrigação de assegurar o seu bem estar e as suas necessidades básicas.

14. É o que se dá como provado logo no ponto 1.º do acervo factual dado como provado.

15. Resulta também da matéria assente que estes dois ofendidos apresentavam ambos um estado de desidratação grave que resultou de uma insuficiente ingestão de líquidos que, no caso do ofendido FF, lhe provocou uma lesão renal aguda e um estado de doença que, caso não tivesse havido uma intervenção terapêutica, poderia ter determinado a sua morte.

16. É o que resulta do ponto 12.º e 13.º da matéria assente em relação à ofendida EE.

17. E dos pontos 22.º a 25.º da matéria assente relativamente ao ofendido FF.

18. O estado de desidratação dos ofendidos EE e FF deveu-se a uma insuficiente toma de líquidos.

19. É dado como provado que são as auxiliares de ação direta (AAE) que tratam da alimentação dos utentes e em alimentação temos de incluir o fornecimento de líquidos, com maior acuidade no caso do ofendido FF que, estando acamado, com uma perna amputada e cego, dependia totalmente destas auxiliares para ver satisfeitas as suas necessidades básicas e os líquidos tinham de lhe ser ministrados necessariamente uma vez que ele próprio não podia diligenciar nesse sentido (ponto 4.º da matéria assente).

20. Mais se dá como provado que, uma das formas que o lar introduziu para aferir do estado de hidratação dos utentes acamados era o controlo das fraldas e que se as auxiliares se apercebessem de algo de anormal que se passasse com os utentes, no período de covid, como falta de apetite, febre, deviam reportar à equipa de enfermagem ou médica (ponto 27.º da matéria dada como provada).

21. E que eram as auxiliares que interpretavam de forma subjetiva e totalmente dependente da sua sensibilidade, se uma fralda tinha pouca ou urina normal (ponto 32.º da matéria de facto dada como provada).

22. E que o lar dos autos não ministrava ações de formação às auxiliares de ação direta (ponto 33.º da matéria assente).

23. Mau grado tenha sido dado como provado tudo isto, o Tribunal a quo conclui que não vislumbra qualquer omissão por parte do pessoal do lar de A... e muito menos do seu corpo dirigente.

24. Escrevendo na fundamentação do Acórdão recorrido que:

«Na verdade, dos factos 20 a 36 não vislumbramos qualquer deficiência no diagnóstico, nem qualquer violação grave dos mais elementares organizacionais ou de cuidado que tivessem impedido uma correta avaliação do ofendido FF. Concretizando, temos que do ponto de vista organizacional, não podemos formular qualquer reparo à instituição. Foi feita uma triagem ao utente, foram indicadas as suas necessidades e o mesmo foi colocado de quarentena, como impunha a lei.

Durante a quarentena foi sempre acompanhado pelas auxiliares de ação direta que lhe prestaram os cuidados de higiene e alimentação necessária, bem como reportaram a quantidade de urina nas fraldas e qualquer outro elemento anormal que se sucedia (factos 27 a 30). – negrito e sublinhados nossos.

25. Como pode conceber-se que seja dado como provado no ponto 25.º da matéria de facto dada como provada que o estado de desidratação do senhor FF se deveu a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que se foi agravando progressivamente e depois se conclua na fundamentação que este ofendido sempre foi acompanhado pelas auxiliares de ação direta que lhe prestaram os cuidados de higiene e alimentação necessária?

26. É um contrassenso.

27. Note-se que este idoso estava totalmente dependente de terceiros em razão das qualidades minguantes de que padecia para a satisfação das suas necessidades mais básicas e que deu entrada no lar dos autos no dia 18 de Agosto de 2020 após ter tido alta de uma unidade hospitalar apresentando-se, nessa altura, estável e hidratado com uma nota de alta hospitalar onde se menciona a necessidade de ser incentivada a ingestão hídrica (Cfr documento de fls. 136- nota de alta de 18.8.2020).

28. Em apenas 11 dias que esteve no lar dos autos houve uma degradação acentuada do estado de saúde deste idoso que apresenta um quadro de desidratação que, no ponto 22.º da matéria de facto dada como provada, é assente que medicamente se classifica como grave e que desencadeou uma lesão renal aguda, provando-se ainda no ponto 24.º da matéria assente que, caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à morte do idoso.

29. Perante este acervo que foi e, bem, dado como provado, como se pode concluir que o senhor FF foi acompanhado pelas auxiliares de ação direta que lhe prestaram os cuidados de higiene e alimentação necessária.

30. Os factos dados como provados impunham, em nosso entender, outra conclusão bem diversa, ou seja, impunham a conclusão de que o senhor FF não recebeu os cuidados necessários ao seu bem estar, tal como se referia no ponto 34.º da acusação pública.

31. Sustenta-se no Acórdão de que se recorre que, mesmo que se concluísse que pudesse ser imputada diretamente uma omissão às AAD, a arguida CC e a arguida DD nunca poderiam ser responsabilizadas em razão da situação de quarentena em que o ofendido FF se encontrava, tendo elas que confiar nas informações prestadas pelas AAD.

32. Ora, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, não nos revemos igualmente nesta conclusão que temos por contrária às regras da experiência comum.

33. A pandemia trouxe muitos condicionamentos à vida em sociedade tal como a conhecíamos e é sabido que existiram restrições nos contactos e que o ofendido FF estava em quarentena.

34. Tal, porém, não legitima, a nosso ver, a conclusão de que a encarregada de piso onde o idoso se encontrava e a chefe de serviços gerais vissem o esvaziamento das suas funções.

35. Veja-se o que é dado como provado, no que concerne às competências funcionais destas arguidas no ponto 4.º da matéria assente:

«- à Chefe de Serviços Gerais compete organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais;

- às Encarregadas de Sector (Piso) compete coordenar no seu sector o serviço prestados pelo ERPI através das Auxiliares de Ação Direta aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar pelo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD.»

36. Não haverá muitos doentes num lar que tenham as patologias que o ofendido FF, de 91 anos de idade padecia, recorde-se, cego, amputado de uma perna, mobilidade reduzida, totalmente dependente de terceiros para fazer face às necessidades básicas do dia à dia.

37. Como tal, é de esperar, de acordo com as regras da normalidade, que uma encarregada de piso saiba do estado dos doentes que estão no seu piso e garanta que um utente com as particularidades do senhor FF esteja a receber por parte das auxiliares que trabalham no lar e no piso em que se encontra, os cuidados adequados ao seu estado.

38. Não olvidando que, conforme é dado como provado no ponto 7.º da matéria assente, dentro de um armário situado no piso 3 do lar dos autos existe um dossier individualizado com o nome de cada utente denominado “...”, do conhecimento de toda a estrutura organizativa do lar.

39. Perante o entendimento preconizado pelo Tribunal a quo, em pandemia as funções de fiscalização ficam esvaziadas de conteúdo, já que as arguidas tinham, como se plasma no Acórdão, de confiar nas informações prestadas pelas AAD.

40. Os utentes ficariam à mercê das AAD que, como é dado como provado no ponto 33.º da matéria assente, não recebiam ações de formação e aprendiam com as mais velhas.

41. Não nos revemos nesta conclusão porque contrária às regras da experiência comum.

42. O Ministério Público não optou por acusar a hierarquia das AAD em vez das AAD.

43. Foi proferido um despacho de arquivamento relativamente à atuação das AAD por não ter sido possível reunir indícios suficientes das concretas auxiliares que prestaram cuidados ao senhor FF.

44. Aliás, em sede de audiência de discussão e julgamento, foi possível constatar essa dificuldade, pois, todas as auxiliares que foram ouvidas apresentaram um discurso no sentido de dizer que não prestaram cuidados a este idoso ou, então, que já não se recordavam.

45. Parecendo que o senhor FF esteve 11 dias no lar dos autos entregue à sua sorte.

46. Apesar de não ter sido possível concluir com a certeza necessária quem foram em concreto as auxiliares de ação direta que estiveram a cuidar do senhor FF nos 11 dias em que esteve no lar dos autos e que foram diretamente responsáveis pelo grau de desidratação que este utente sofreu, tal não exime de responsabilidade aqueles que, na cadeia hierárquica, tinham o dever de verificar se os líquidos eram ministrados e, não o sendo, de os ministrarem ou darem ordens nesse sentido.

47. Perante a factualidade que foi dada como provada, salvo o devido respeito por opinião em contrário, entendemos que deveria ter sida outra a decisão do tribunal a quo e considerar que no caso concreto estão preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152.º-A do Código Penal.

48. Os factos que foram dados como provados são, para nós, de molde a concluir que a omissão em causa nestes autos integra o conceito de maus tratos a que alude o artigo 152.º-A, n.º 1 alínea a) do Código Penal.

49. Os estados de desidratação que nos autos foram diagnosticados aos utentes EE e FF constituem mau trato nos termos e para os efeitos previstos no artigo 152.º-A, n.º 1 alínea a) do Código Penal.

50. É um facto de conhecimento geral que a pessoa de muita idade por vezes não tem consciência da necessidade de beber água.

51. E se o cuidador estiver ausente ou desatento, isso pode ser fatal.

52. “As pessoas com a idade tendem a perder a sensação de sede, e só se os cuidadores (ou a família) os lembrarem de beber é que eles evitam a desidratação.

53. Tal significa que, estando-se na presença de utente especialmente vulnerável com doença neurológica degenerativa diagnosticada em 2009, como é o caso da senhora EE, não basta colocar água à sua disposição como se refere no douto Acórdão de que se recorre.

54. As AAD teriam de fazer o devido acompanhamento, certificando-se de que a idosa consumia água e se encontrava devidamente hidratada, pois que só assim é que asseguravam o seu bem-estar.

55. «Os estados de desnutrição e de desidratação não são fenómenos súbitos ou de emergência espontânea, antes constituem condição física que são o culminar de um processo mais ou menos prolongado no tempo e são fortemente indiciadores da qualidade (ou falta dela) dos cuidados de alimentação, higiene, saúde e bem estar físico prestados à pessoa que os apresenta» – Acórdão da Relação de Lisboa de 23/02/2022, Relatora Desembargadora Cristina Almeida e Sousa.

56. A circunstância de a utente EE se alimentar por si, a desidratação, de gravidade moderada a grave, não afasta a responsabilidade do Lar, por se ter obrigado a prestar-lhe todos os cuidados necessários ao seu bem estar através dos diferentes colaboradores que trabalhavam para si, sejam aqueles que diretamente tinham essa tarefa como aqueles que ocupavam cargos de chefia e que tinham a missão de se certificar da qualidade do serviço prestado, quer através de intervenção direta quer através da adoção de procedimentos adequados à concretização de tal objetivo.

57.Já quanto ao utente FF, embora o Tribunal Coletivo reconheça a sua incapacidade de prover aos seus cuidados básicos de saúde, higiene e alimentação e de necessitar em exclusivo do apoio de terceiros, por ter 91 anos, ser cego e estar amputado da perna esquerda, entendeu que as medidas restritivas implementadas com a pandemia Covid 19 que ainda permaneciam, nomeadamente as de que os contactos das colaboradoras com os utentes em isolamento/quarentena deveriam ser reduzidas ao mínimo, explicavam o evento, não merecendo ainda qualquer apreciação crítica o facto da arguida DD, encarregada de piso, e CC, chefe de serviços gerais, nunca o terem contactado por as suas funções serem mais de “gestão”, daí cabendo às AAD fazer o acompanhamento ao utente.

58. Mas, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, não é isso que os factos provados e a experiência de vida nos dizem.

59. Este idoso foi admitido no Lar A... no dia 18/09/2020, pelas 15.30 horas e nessa data foi avaliado pela Equipa de Enfermagem que não fez consignar na Folha de Avaliação Inicial de Enfermagem que consta dos autos de fls. 113 que o ofendido se apresentasse com sinais de desidratação.

60. Na Nota da Alta do Hospital 1..., junto de fls. 134 a 137, onde esteve entre 04/10/2019 a 18/08/2020, vindo de Hospital 2..., fez-se constar ter sido “Incentivado para a ingestão hídrica, com alguma dificuldade em aderir” (fls. 136) e que apresentava a “Pele integra, mucosas coradas e hidratadas”.

61. Quando este utente quando deu entrada no Lar A... estava aparentemente bem e não apresentava qualquer sinal visível de desidratação. Onze dias depois de ali ter dado entrada, já lhe foi diagnosticado quadro de desidratação grave, que lhe causou lesão renal aguda.

62. No hospital para onde foi levado de urgência, foi-lhe administrado 1.000 ml de soro ao longo de 10 horas, por via endovenosa, sendo que caso não tivesse beneficiado dessa assistência médica era previsível a sua morte.

63. A testemunha GG, médico que o observou na urgência, verbalizou que o seu estado de saúde era grave e o estado de desidratação bastante elevado e que teria resultado de um processo evolutivo com 5 dias, pelo menos.

64. Este estado de desidratação resultou de uma insuficiente toma de líquidos e, pela gravidade e consequências que causou na saúde do idoso FF integra a noção de mau trato nos termos e para os efeitos previstos no artigo 152.º-A do Código Penal.

65. O Acórdão de que se recorre atribui a responsabilidade do estado de desidratação diagnosticado aos ofendidos EE e FF ao facto daquela, tendo água à sua disposição, não a ter querido beber e, no caso do senhor FF, à implementação das medidas decorrentes do estado de emergência do Despacho Normativo 4097-B/2020 de 2/4.

66. impendendo sobre a instituição arguida e respetivos representantes, os aqui arguidos AA, BB, CC e DD, respetivamente, Presidente da Direção, Diretora Técnica, Chefe de Serviços Gerais e responsável do piso 3 – cf. art.º 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 16º, 20º, 36º e 37º - o dever de garante em relação ao ofendido FF, omitiram os arguidos os atos adequados a evitar a ofensa à sua saúde, que podiam e deviam ter sido adotados, ocorrendo, por essa via, uma situação de maus tratos, imputável a título omissivo.

67. Pelas funções funcionais atribuídas a cada um dos arguidos na estrutura organizativa do lar, era-lhes exigido uma atuação pró-ativa que garantisse a qualidade do serviço prestado aos seus residentes visando a satisfação dos já referidos cuidados de saúde, alimentação e higiene

68. As lideranças não são um mero rótulo, elas têm que ser efetivas na prática e têm que ser presentes e visíveis.

69. A formação das auxiliares de ação direta é um ponto fulcral na qualidade dos serviços prestados pelos lares, cabendo aos líderes da estrutura a sua programação e efetividade, conforme se defendeu na acusação pública.

70. A formação, que o tribunal desvalorizou, é um meio que permite desenvolver as competências dos colaboradores de maneira a melhorar o seu desempenho funcional e melhor prepará-los para os sinais de alarme e necessidade de atuação imediata por si ou através de colaboradores com especialidade na saúde, como o enfermeiro ou o médico.

71. O artigo 31.º dos factos provados só se pode compreender no sentido do estado de desidratação diagnosticado ao utente FF ter sido possível por quem dele cuidava em primeira linha não ter compreendido e valorizado as sucessivas diminuições de urina nas fraldas, que, caso tivessem essa formação/saber, teria funcionado como alerta para que algo de anormal se estava a passar e evitado o sofrimento a que estes dois ofendidos foram sujeitos, apelando atempadamente à intervenção da Equipa de Enfermagem ao providenciando a sua condução ao hospital.

72. O Tribunal a quo não valorou todas as conclusões do parecer técnico científico elaborado pelo Conselho médico legal e, apesar de ter sido requerida, em 08.11.2024, a audição do Exm.º sr Dr HH, que assinou o parecer técnico cientifico em questão, o Tribunal a quo indeferiu essa audição (Cfr acta de 12.11.2024).

73. Tendo ocorrido redução significativa e progressiva da avaliação semi-quantitativa de urina na fralda no dia 27, 28 e 29 de Agosto de 2020, a informação era, como se conclui no parecer técnico científico em questão, facilmente percetível por cuidador atento e zeloso, tendo o seu averbamento no registo de Controlo dos Esfíncteres do utente demonstrado que foi detetado mas não interpretado de forma correta pelas AAD, por não terem feito intervir a Equipa de Enfermagem (que só intervinha a sua solicitação cf. art.º 31) nem promovido a sua ida ao hospital.

74. Sendo que, esta interpretação incorreta das auxiliares de ação direta advém da falta de formação que lhes devia ter sido prestada e que o Tribunal a quo desvalorizou.

75. No ponto 9.º dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo verifica-se que o Tribunal recorrido eliminou o facto que constava da acusação pública relativamente à ofendida EE «andava algaliada cronicamente».

76. Este facto “andava algaliada cronicamente” foi omitido nos factos provados, não constando da motivação da matéria fáctica qualquer explicação para que tal sucedesse.

77. Porém, dos registos clínicos do S.U. do Centro Hospitalar ..., onde a utente EE deu entrada em 03/04/2020, pelas 16.22 horas (Cfr fls. 15 do anexo 3), ou seja, 21 dias antes dos factos dados como provados no artigo 10.º, que fazem parte da certidão inicial que instruiu os autos, consignou-se que a ofendida era uma doente “Algaliada cronicamente”.

78. Deste modo, impõe-se que ao dito artigo 9.º do acervo factual dado como provado seja acrescentado que a utente EE “andava algaliada cronicamente”.

79. Tendo-se considerado no artigo 12.º dos factos provados que o estado de desidratação sofrido pela utente EE era, do ponto de vista médico-legal, de gravidade moderada a grave, decorre da experiência comum que estes estados patológicos de desidratação habitualmente estão associados a sintomas como dores de cabeça, cansaço, boca seca, redução da urina, que, a terem existido, como seria expectável no caso desta residente, facilmente seriam percecionados por cuidador atento e zeloso.

80. Sendo que, tratando-se de uma utente que se encontrava algaliada cronicamente, este estado de desidratação teria de ser percecionado pelos seus cuidadores.

81. Caso a utente EE tivesse sido tratada por cuidadores atentos, interessados e com conhecimentos da atividade, facilmente teriam concluído que a utente se encontrava em processo progressivo de desidratação.

82. Foi dado como não provado “que os arguidos se tivessem demitido das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes aos cuidados que ocupavam e que essa hipotética omissão tenha sido causal do estado de desidratação que os utentes em causa sofreram”.

83. Este facto está em contradição com os artigos 1º, 2º, 3º,4º,5º,6º,7º,8º,9º., 13º, 16º, 18º, 20º, 21º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31, 32º, 33º, 35º, 36º e 37º dos factos dados como provados.

84. Foi reconhecido no artigo 35º dos factos provados que os dois ofendidos pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam, eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o ofendido FF era totalmente dependente dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo ERPI que os acolhia.

85. Competia ao Lar A... assegurar a execução das tarefas necessárias a garantir o bem-estar e saúde dos respetivos utentes, provendo diariamente pela sua alimentação e cuidados médicos.

86. Está configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, particularmente dos ofendidos EE e FF.

87. A instituição arguida, por errada compreensão do conteúdo das funções das suas chefias (e ainda por não dispor da quantidade de funcionários suficiente, cf. art.º 16º da matéria assente), omitiu a prestação dos cuidados de alimentação (fornecimento de hídricos) e saúde dos utentes mais vulneráveis e dependentes, com a frequência e qualidade necessárias, como sucedeu com os aqui ofendidos EE e FF, causando-lhes estado de desidratação.

88. Não condenando cada um dos arguidos pelo crime de maus tratos por que vinham acusados, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 152.º-A, n.º 1, al. a ) do Código Penal.

Decidindo em consonância com as conclusões ora tecidas e delas extraindo as legais consequências, farão Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores,

JUSTIÇA».

O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo (não suspensivo).


*

Apresentaram resposta ao recurso os arguidos «Lar de A...», BB, CC e DD, defendendo a sua improcedência, nos termos constantes dos respetivos articulados e cujo teor aqui damos por reproduzido. Condensaram a sua posição no seguinte conjunto de conclusões, que se transcrevem (total ou parcialmente).

a. Resposta da arguida «Lar de A...».

1. Bem andou o Tribunal a quo ao julgar totalmente improcedente a acusação e ao absolver todos os Arguidos pelo crime de maus-tratos.

2. O Ministério Público não logrou alegar ou provar factos suscetíveis de responsabilizar criminalmente os Arguidos.

3. O Tribunal a quo interpretou corretamente toda a prova produzida, e assentou a sua convicção numa apreciação crítica e em harmonia com o princípio da livre apreciação da prova.

4. O acórdão está devidamente fundamentado e reflete a aplicação de critérios objetivos e lógicos, e um enquadramento dos factos provados ao contexto espácio-temporal vivido na data dos factos.

5. O objeto do recurso circunscreve-se à análise sobre se o acórdão em crime padece de vício de contradição entre factos provados e não provados e/ ou de erro na aplicação do direito, ao não atribuir relevância criminal aos factos provados e a condenar os arguidos em conformidade.

6. Aos Ofendidos foi diagnosticado, além do mais, estado de desidratação moderado no caso da Ofendida, e grave no caso do Ofendido.

7. Do diagnóstico não decorre, sem mais prova — que não foi produzida — que a administração insuficiente de líquidos está associada a uma omissão, dolosa ou mesmo negligente por parte de qualquer um dos Recorridos, ou de qualquer agente do ora Recorrido, mesmo que não acusado.

8. Ficou provado que as AAD sempre fizeram o necessário acompanhamento da Ofendida, certificando-se que a mesma ingeria água.

9. A ingestão insuficiente de líquidos não é fator único e bastante para aferir da desidratação.

10. O diagnóstico da desidratação pressupõe a conjugação dos dados referentes à ingestão de água, da quantidade de urina expelida, bem como a verificação das mucosas, a orientação geral do Utente, entre outros fatores, e não implica que as AAD não tenham prestado os cuidados necessários, ou que pelas mesmas não tenha sido fornecida água.

11. Não decorre do diagnóstico que tenham sido omitidos deveres de cuidado, assistência, ou de fiscalização por todos os Arguidos, ou outros agentes do Recorrido, nem foi produzida nenhuma prova nesse sentido.

12. À data dos factos já tinha sido diagnosticada doença por COVID 19 à Ofendida, estando em isolamento, e tendo sido hospitalizada por evolução da doença, detetada pelas auxiliares.

13. A Ofendida fazia 16 horas de oxigénio por dia, o que é suscetível de provocar secura nas mucosas oral e nasal.

14. As ilações do Tribunal não estão sustentadas em vício de interpretação, nem assentam na errada qualificação dos factos como provados ou não provados.

15. Apesar do contexto excecional e das restrições legalmente impostas, os cuidados essenciais continuaram a ser prestados.

16. Os meios humanos eram escassos e as regras emanadas pela DGS impunham duras restrições relativas aos contactos no âmbito das estruturas residenciais para idosos.

17. Tal contexto foi atendido pelo Tribunal a quo no juízo sobre qualquer ação ou omissão dos Arguidos.

18. Não ficou provado que o estado de desidratação da Ofendida fosse facilmente observado por cuidador zeloso.

19. Não foi alegado, nem provado que tivesse sido negada água ou comida à Ofendida.

20. É necessário compreender o alcance e o âmbito das funções de cada Arguido dentro da estrutura organizacional do Recorrido para aferir da eventual omissão de deveres, o que o Tribunal a quo fez.

21. Ficou provado que havia instruções para fornecer água aos utentes, e que sempre que algo de anómalo fosse observado deveria ser reportado, designadamente ao corpo clínico, o que aconteceu.

22. A Ofendida foi encaminhada para o Hospital logo o corpo clínico, alertado pelas AAD, assim o entendeu.

23. O Presidente da Direção e a Diretora Técnica não tinham ingerência nestas decisões por não terem a necessária competência, tendo os Arguidos cumprido com o seu escopo funcional.

24. Não se entende o que mais o Ministério Público considera que devia ter sido pelos Arguidos.

25. Em contexto de pandemia uma conduta mais proativa por parte dos Arguidos era suscetível de violar as normas e restrições, e culminar em crime de desobediência ou de propagação de doença

26. Nada mais era exigível aos Arguidos além de garantir os meios humanos e os recursos para os profissionais da linha de frente e assegurar que aqueles desempenhavam as suas funções

27. A inviabilidade de fiscalizar diretamente e in loco não se confunde com a ideia de os Utentes serem deixados à sua sorte, ou de as AAD sere deixadas em roda livre, o que não sucedeu.

28. Não se deteta no douto acórdão qualquer erro na apreciação da prova.

29. Não resultou da prova que ao Ofendido FF tenham sido omitidos os cuidados necessários, ou que não lhe tenha sido ministrada alimentação ou hidratação.

30. Não existem dúvidas de que ao mesmo foi prestado acompanhamento próximo, atentos os diversos registos efetuados pelas AAD na sequência dos cuidados prestados, nos diários de ocorrência.

31. Foi registado o débito de urina.

32. Não foi produzida prova sobre qualquer dificuldade das AAD em interpretar os resultados de urina nas fraldas, ou que existisse impedimento em registar os resultados, nem mesmo em ministrar líquidos ao Ofendido.

33. Logo que verificado algo de anómalo foi imediatamente acionado o corpo clínico, e encaminhado o Ofendido para o Hospital.

34. Não há contrassenso em julgar provado o estado de desidratação e simultaneamente julgar provado que o Ofendido sempre foi acompanhado pelas AAD.

35. Não fosse a intervenção das AAD e do corpo clínico que encaminhou o Ofendido para o hospital, o seu estado agravar-se-ia.

36. O Ministério Público faz uma subsunção dos factos objetivamente demonstrados sem considerar o contexto espácio temporal.

37. O Ofendido encontrava-se em período de quarentena, com as limitações de contacto absolutamente restritas e equiparadas às dos pacientes infetados.

38. As interações com os Utentes estavam limitadas ao mínimo imprescindível, e as tarefas de alimentação e hidratação, saúde e higiene estavam atribuídas a equipas previamente estabelecidas.

39. Não resultou provado que o estado de desidratação se tivesse ficado a dever à falta de cuidados ou de ministração de líquidos, ou a uma incorreta interpretação do débito de urina nas fraldas.

40. O Ministério Público faz uma subsunção dos factos objetivamente demonstrados sem considerar o contexto espácio temporal.

41. Os Utentes não ficaram à mercê das AAD, nem ficaram esvaziadas as funções de fiscalização dos Arguidos por causa da Pandemia.

42. As funções de fiscalização não abrangem a substituição dos agentes diretos pelos Arguidos.

43. O contexto impunha o distanciamento do pessoal não essencial à prestação dos cuidados aos idosos.

44. A verificação da necessidade de ministrar mais ou menos líquidos, ou a necessidade de encaminhar um Utente para o Hospital por diminuição do débito de urina, sempre seria da competência do corpo clínico.

45. Os Arguidos não tinham competências para se imiscuir nas funções da equipa médica/ de enfermagem.

46. Nada há a assinalar relativamente ao acórdão atenta a inexistência de interpretação deficiente ou qualquer vício de contradição entre factos provados e não provados.

47. O Tribunal a quo faz uma correta e fundamentada subsunção dos factos ao direito, retirando a conclusão de que não foi pelos Arguidos praticado qualquer crime de maus-tratos.

48. Não ficou demonstrada nos autos a não satisfação de necessidades básicas por ação ou por omissão, ou que tivesse sido negada a administração de água aos Ofendidos nos autos.

49. Não ficou demonstrado que os Arguidos nada fizeram para evitar o estado de desidratação dos Ofendidos.

50. Não ficou provado que as AAD, o corpo clínico, ou mesmo dos Arguidos, tivessem deixado de providenciar os cuidados essenciais aos Ofendidos, sequer por inação ou desinteresse.

51. Não se provou que os danos sofridos fossem devidos a uma conduta dolosa ou negligente dos Arguidos, ou das AAD, ou sequer do corpo clínico.

52. Não ficou provado o dolo em qualquer das suas modalidades.

53. No crime de maus-tratos, o dolo traduz-se na consciência e vontade de causar uma lesão da integridade física da vítima, ou de criar um risco de lesão da saúde do ofendido, ou perigo de criação de prejuízos para a saúde da vítima, o que não ficou demonstrado.

54. Há dolo necessário ou eventual quando, não pretendendo causar diretamente o resultado danoso, o agente tem consciência de que tal resultado ocorrerá como consequência necessária ou possível da sua conduta e, mesmo assim, conforma-se com essa possibilidade, o que não resultou provado nos presentes autos.

55. O déficit na ingestão de líquidos não foi imputado aos Arguidos.

56. Não se provou ter sido negada água ou líquidos aos Ofendidos, ou que a desidratação diagnosticada no Hospital fosse visível.

57. Não se demonstrou que os Arguidos, as AAD, ou o corpo clínico, tiverem pretensão de provocar déficit de hidratação, ou o mero risco.

58. Não se provou que representaram como possível a existência de um déficit de hidratação e que, mesmo assim, se conformaram com tal resultado.

59. Não ficou demonstrada qualquer omissão por parte dos Arguidos, sequer que estes estavam cientes de eventuais deficiências nos serviços prestados, ou que tenham sido alertados para as mesmas.

60. Os Arguidos, as AAD ou o corpo clínico não estavam cientes de que poderia estar a ocorrer uma ingestão insuficiente de líquidos por parte dos Utentes, para compensar as perdas, ou da possibilidade de haver ou causar dano.

61. Não se alcança que mais poderiam os Arguidos ter feito para evitar o resultado verificado.

62. Impõe-se a absolvição dos Arguidos e da pessoa coletiva.

63. Não pode a pessoa coletiva ser responsabilizada atenta a absolvição dos demais Arguidos.

64. Um eventual comportamento negligente dos seus agentes, não poderia responsabilizar a pessoa coletiva por decorrer de atuação em desconformidade com as ordens e instruções veiculadas por quem representa o Recorrido.

65. A decisão ora recorrida não enferma de qualquer vício, sequer os apontados pelo Recorrente, pelo que deve ser mantida.

Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser negado provimento ao Recurso interposto pelo Ministério Público e confirmado o douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos, assim fazendo Vossas Excelências a habitual e sã JUSTIÇA».

Notificada do teor das novas conclusões apresentadas pelo recorrente, respondeu nos seguintes moldes:

«I.

DAR POR REPRODUZIDO o teor da sua resposta à motivação de recurso apresentado, pugnando pela improcedência do recurso, nos precisos termos invocados na mencionada resposta.

II.

ADERIR ao teor do requerimento junto aos autos no dia de ontem pelo Arguido AA, dando o mesmo por integralmente reproduzido relativamente às conclusões ora aditadas pelo Recorrente.

b. Resposta da arguida BB.

«A) Vinha a aqui Arguida acusada, nos presentes autos, de dois crimes de maus tratos, em concurso real de infrações, previsto e punido pelo artigo 152-A do Código Penal, tendo sido absolvida de ambos os crimes, bem como do PIC formulado, por douto acórdão datado de 26-11-2024.

B) Inconformado, veio o Ministério Público intentar Recurso, referindo, em súmula, que o Acórdão recorrido padece de vício de contradição entre factos provados e não provados (artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP) e de erro na aplicação do direito, ao não atribuir relevância criminal aos factos provados e assim condenando os arguidos em conformidade (artigo 412.º, n.º 2 do C.P.P.).

C) Exposição e conclusões das quais, com todo o respeito, discordamos profundamente, por não terem qualquer respaldo na prova produzida nos presentes autos.

SENÃO VEJAMOS,

D) No que concerne à alegada contradição entre factos provados e não provados, refere o MP que é inconcebível “que seja dado como provado no ponto 25.º da matéria de facto dada como provada que o estado de desidratação do senhor FF se deveu a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que se foi agravado progressivamente e depois se conclua na motivação que este ofendido sempre foi acompanhado pelas auxiliares de ação direta que lhe prestaram os cuidados de higiene e alimentação necessária” (itálico nosso).

E) Primeiramente, destacar que a necessidade de ingestão de recursos hídricos é, naturalmente, variável de pessoa para pessoa, sendo também variável no tempo, dependendo de vários fatores como a alimentação, medicação ou estado de saúde do indivíduo.

F) De facto, nunca foi alegado na acusação que foi negada hidratação aos ofendidos, não tendo tal facto também, obviamente, resultado provado. Contrariamente, foi percetível através de vários testemunhos – como das testemunhas II e JJ, e das próprias declarações da aqui Arguida e do Arguido AA - que as AAD tinham instruções para fornecer líquidos aos utentes com frequência.

G) Inclusive, a testemunha KK, irmã da ofendida, quando questionada a este título, referiu que “não se pode queixar da ingestão hídrica”, não tendo nada a apontar no que concerne aos cuidados prestados à Ofendida nesse âmbito.

H) Em suma, não obstante estar provado que ambos os ofendidos foram conduzidos ao serviço de urgência num estado de desidratação, nunca se provou que tal se deveu a uma atitude de omissão por parte dos Arguidos, em particular da aqui Arguida, Diretora Técnica do Lar.

I) Nesta senda, é importante fazermos um apontamento para explicar que resultou claro da prova produzida que as funções da aqui Arguida, Diretora Técnica, eram, única e exclusivamente, as que constavam dos estatutos, não se imiscuindo nunca a Arguida em decisões de ordem médica.

J) A título de exemplo, a testemunha LL, enfermeiro do Lar, quando questionado se a Diretora Técnica tinha intervenção em questões de “saúde” dos utentes, negou prontamente, respondendo que era “óbvio que não”, tal como o fez o Arguido AA, esclarecendo que a Diretora Técnica “não tem competências para tal”.

K) A aqui Arguida confiava no corpo clínico a avaliação e ação nestes casos; não tinha competência para - nem podia, funcionalmente - andar de quarto em quarto vigiando o trabalho dos seus subordinados.

L) Ademais, negou quando questionada se algo de anómalo lhe tinha sido reportado, num testemunho completamente credível, sincero e isento.

M) O MP considera ainda existir, no douto acórdão recorrido, vício do erro notório da apreciação da prova, do n.º2 c) do artigo 410.º do Código Penal, porquanto entendeu que um funcionário atento e zeloso, deveria ter reconhecido nos ofendidos o seu estado de desidratação, travando a sua progressão.

N) Ora, salvo devido respeito por opinião diversa, não podemos concordar com tal entendimento.

O) Isto porque todos os testemunhos das AAD nos levaram a concluir que nunca existiu qualquer dificuldade na interpretação dos dados que tinham ao dispor, nomeadamente a quantidade de urina nas fraldas, todas elas afirmando igualmente ter instruções para, perante alguma situação anómala, acionar o corpo clínico – que foi, in casu, o que aconteceu.

P) E, nesta esteira, destaquemos testemunho do médico GG, que explicou que o estado de desidratação de um indivíduo não se afere única e exclusivamente pelo débito urinário ou pelo estado das mucosas, mas sim por uma conjugação de fatores. Aliás, quando confrontado com os registos de muda de fralda do Ofendido FF, a testemunha indicou que com aqueles dados, por si só, não se pode concluir da existência de desidratação, devendo essa conclusão ser sempre feita mediante uma análise de quem tem competência médica para o efeito.

Q) Face ao exposto até aqui, não se compreende como pretende o MP que seja atribuída relevância criminal aos factos provados, condenando assim os arguidos.

R) A Arguida sempre exerceu as suas funções de forma exemplar, providenciando para que a Instituição tivesse pessoal suficiente, o que fez, sempre de acordo com o protocolado com a Segurança Social, conforme resultou das suas declarações.

S) Nunca se demitiu dos seus deveres de fiscalização, fazendo-o com recurso à delegação de poderes, não sendo expectável – nem sequer possível, sob pena de se gerar uma grande confusão - mais do que isso numa instituição do tamanho do Lar de A....

ASSIM,

T) O Tribunal apreciou corretamente a prova produzida em audiência, retirando as conclusões lógicas que a matéria dada como provada impunha, fazendo apelo ao princípio consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, sem olvidar que a audiência de julgamento obedece também ao princípio da imediação que se encontra estreitamente ligado ao princípio da oralidade, respeitando a decisão as regras da lógica e experiência.

U) Ademais, verificamos que o Tribunal teve o cuidado de discriminar em que provas fundamentou a sua convicção e em que sentido foram interpretadas.

V) Não se detetando, no douto acórdão em análise, qualquer erro na apreciação da prova.

W) Pelo que somos do entendimento que o douto acórdão recorrido não merece qualquer reparo, devendo a decisão de primeira instância manter-se na íntegra.

Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser negado provimento ao Recurso interposto pelo Recorrente e confirmado o douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos, assim fazendo Vossas Excelências a habitual e sã JUSTIÇA».

c. Resposta da arguida CC.

«a. Por douto Acórdão datado de 26/11/2024, foi a acusação deduzida pelo M.P, julgada totalmente improcedente e em consequência decidiu o tribunal recorrido absolver todos os arguidos dos crimes de que vinham acusados e do PIC formulado pelo assistente.

b. Deste modo, arguida CC, foi absolvida da prática de um crime de maus tratos, p.e.p pelo artigo 152.º A do Código Penal, pelos quais vinha acusada.

c. Inconformado, com a douta decisão vertida no Acórdão que antecede veio o MP interpor o recurso a que se responde.

d. Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respetiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

e. Assim, iremos responder às conclusões vertidas no recurso que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

f. No ponto 5 das conclusões do recurso o MP, refere que o Acórdão proferido enferma de:

- vício de contradição entre factos provados e não provados – cfr. artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP;

- erro na aplicação do direito, ao não atribuir relevância criminal aos factos provados e a condenar os arguidos em conformidade – cfr. artigo 412.º, n.º 2 do C.P.P.

g. Salvo o devido respeito, consideramos que o supra alegado, não tem qualquer fundamento, sendo apenas e tão só uma convicção do recorrente, que não teve respaldo em qualquer elemento de prova, como ele bem sabe.

h. Nessa sequência, considerando os factos provados e não provados, desde já se deixa expresso, que deve improceder o recurso a que se responde, mantendo-se integralmente o douto Acórdão recorrido.

i. Importa salientar que a convicção do tribunal recorrido relativamente aos factos provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência, testemunhal e na prova documental constante dos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, que impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objetivos.

j. Ademais, na motivação do Acórdão recorrido é feita uma análise aprofundada e conjugada da prova produzida e se elaboram cuidadosamente os motivos que estiveram na base da formação daquela convicção, os quais se encontram devidamente explicitados, de forma individualizada, aliás, houve o cuidado de analisar criticamente, os diversos depoimentos prestados, permitindo acompanhar todo o processo lógico decisório subjacente à fixação dos factos provados e dos factos não provados.

k. Destarte, da leitura da motivação do Acórdão recorrido, resulta que a convicção do tribunal a quo, quanto a toda a factualidade provada e não provada encontra-se devida, clara e exaustivamente fundamentada, alicerçando-se no conjunto da prova produzida em audiência, sabiamente concatenada com as regras da experiência comum e de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

l. Neste seguimento, nenhum reparo há a fazer quanto ao processo lógico e decisório subjacente à fixação dos factos provados e dos factos não provados que conduziram à absolvição além do mais, da arguida CC.

m. Isto posto, o douto Acórdão cumpre inteira e adequadamente o dever de fundamentação, não padecendo de qualquer vício que o possa enfermar.

n. O Acórdão recorrido é claro, objetivo, percetível e bem fundamentado, devendo manter-se nos seus precisos termos.

o. Podemos ler nas conclusões do recurso a que se responde o seguinte:

a. “31. Sustenta-se no Acórdão de que se recorre que, mesmo que se concluísse que pudesse ser imputada diretamente uma omissão às AAD, a arguida CC e a arguida DD nunca poderiam ser responsabilizadas em razão da situação de quarentena em que o ofendido FF se encontrava, tendo elas que confiar nas informações prestadas pelas AAD.

b. 32. Ora, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, não nos revemos igualmente nesta conclusão que temos por contrária às regras da experiência comum.

c. 33. A pandemia trouxe muitos condicionamentos à vida em sociedade tal como a conhecíamos e é sabido que existiram restrições nos contactos e que o ofendido FF estava em quarentena.

d. 34. Tal, porém, não legitima, a nosso ver, a conclusão de que a encarregada de piso onde o idoso se encontrava e a chefe de serviços gerais vissem o esvaziamento das suas funções.”

p. Antes de mais, importa deixar claro que não houve qualquer esvaziamento de funções, como o recorrente refere. O que o Acórdão recorrido procurou fazer, foi uma contextualização dos factos em termos temporais.

q. Vejamos, foi dado como provado que o Sr. FF, nascido no dia ../../1928, com 91 anos de idade, integrou o ERPI Lar de A..., no dia 18/08/2020.

r. O ERPI Lar de A..., de acordo com os factos provados, apresenta uma organização estruturada em que no topo da hierarquia se situa o Presidente da Direção, a seguir a Diretora Técnica, no nível abaixo a Chefe de Serviços Gerais, no seguinte as Encarregadas de Setor e na base as Auxiliares de Ação Direta (doravante designadas AAD).

s. Foi ainda dado como provado que aquando da entrada deste utente no referido lar, a arguida CC desempenhava as funções de Chefe de Serviços Gerais, desde julho de 2020.

t. Decorre do artigo 52.º do Estatuto do Lar de A..., e da informação vertida a fls. 405 e 406, que à Chefe de Serviços Gerais compete organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais.

u. Resulta igualmente da factualidade dada como provada que no dia 29/08/2020, pelas 15.54 horas, por solicitação do ERPI que o estado de saúde de FF necessitava de cuidados de saúde hospitalares, o mesmo foi admitido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., por hipotensão (TA-80/60), associado a taquicardia (-125bpm) e a dificuldades respiratórias (polipneia, respiração predominantemente abdominal e episódios de hipoventilação), saturação de oxigénio no sangue (Sp02) de 85- 94%, sem alterações do estado de consciência, febre ou outros sintomas.

v. Observado pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos:

a. - infeção respiratória;

b. - hipernatrémia;

c. - hipocaliemia;

d. - lesão renal aguda de provável etiologia pré-renal. Apresentava ainda a pele e mucosas coradas mas ligeiramente desidratadas e estava cianótico.

w. O quadro clínico referido em supra é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como grave (tendo presente o achado creatinina = 1,79mg/dl, ureia= 119mg/di, Nat=165 mmol/L e a queda tensional para o valor de 80/60mmHG).

x. Deste modo, os factos a que estes autos dizem respeito coincidem temporalmente com a pandemia, ou seja, com a situação absolutamente excecional, provocada pela infeção epidemiológica por SARS - CoV - 2 e pela doença COVID 19, que levou a que fosse declarado o estado de emergência do país.

y. Recorde-se que quando o utente FF ingressou no Lar de A..., foi-lhe imposto que ficasse em quarentena por um período de 14 dias, cumprindo assim as diretrizes impostas pela DGS.

z. Importa não olvidar, que durante o período da quarentena, os tais 14 dias, os contactos eram reduzidos ao mínimo possível e eram feitos pelo menor número de pessoas, as quais, mesmo com as restrições impostas pela DGS, tinham de cuidar das necessidades básicas dos utentes a nível de saúde, higiene, alimentação.

aa. Assim, as visitas dos profissionais de saúde (enfermeiros e médicos) e do restantes colaboradores do Lar era reduzido ao mínimo essencial, por forma a evitar as cadeias de contágio e possíveis contaminações.

bb. Pelo que como bem refere o douto Acórdão, qualquer juízo sobre a ação ou omissão dos arguidos tem de levar em conta este quadro excecional decorrente da pandemia.

cc. Quadro excecional que se repercutiu nas inúmeras baixas médicas por doença dos profissionais deste setor, num “cenário de quase guerra”, como foi descrito pela testemunha MM. É inegável que o quadro clínico do utente FF, aquando da sua entrada no hospital era grave e o estado de desidratação era bastante elevado, com processo evolutivo com 5 dias pelo menos, segundo a testemunha GG, médico.

dd. Porém, não ficou provado, nem foi alegado que o Lar ou algum dos seus colaboradores aqui arguidos tenham negado água, alimentos líquidos ou outros, ao utente em questão.

ee. Segundo a testemunha GG, médico, que explicou de forma cristalina que o estado de desidratação não se revela com uma simples observação das mucosas, pois que esta observação é apenas um dos elementos para aferir da desidratação de uma pessoa.

ff. E o mesmo se diga a respeito da observação de urina nas fraldas, devendo estes elementos (urina e mucosas) constituírem fatores de alerta para um possível diagnóstico.

gg. Dito de outro modo, a quantidade de urina nas fraldas é apenas um elemento a ter em conta para possíveis processos de desidratação, devendo articular-se com outros meios de diagnóstico, como sejam, inter alia, a febre, falta de apetite, prostração. Sucede que, para interpretar tais elementos é preciso ter formação. Formação essa, que não existe, nem nunca existiu na instituição, como bem lembraram todas as testemunhas que foram inquiridas no decurso da audiência de discussão e julgamento.

hh. Segundo a tese do MP a arguida CC omitiu o dever de cuidado, com base num errado diagnóstico na análise da urina nas fraldas do utente FF.

ii. Ora, a arguida CC não tinha contacto com o referido utente, tendo por base a situação absolutamente excecional da pandemia.

jj. Acresce que, nenhuma situação anormal lhe foi reportada pelo que a sua intervenção nem sequer foi suscitada.

kk. Quem tinha a função de ministrar líquidos ao Sr. FF, eram as AAD, que curiosamente não foram acusadas no âmbito deste processo.

ll. Por outro lado, quem tinha competência técnica e científica para aferir sinais de alarme decorrentes da alegada desidratação eram os médicos e enfermeiros, que igualmente não foram acusados neste processo.

Note-se que a equipa clínica tinha total autonomia para efetivação de diagnósticos e cuidados de saúde.

mm. Aliás isto mesmo, foi referido pela enfermeira NN, ouvida na qualidade de testemunha, que encaminhou o Sr. FF para o hospital quando uma AAD lhe deu conhecimento que este utente não estaria bem.

nn. Assim e sem mais delongas, uma conclusão se impõe: não houve qualquer omissão do dever funcional por parte da arguida CC, porquanto a mesma cumpriu as suas funções com absoluta diligência e zelo.

oo. Acresce que, tendo por base as suas funções e bem assim, as restrições decorrentes da pandemia covid 19, a arguida CC não tinha a obrigação, nem os conhecimentos técnicos para detetar uma situação de desidratação.

pp. O contacto com os utentes em quarentena era feito pelas AAD e não pela arguida CC, tendo por base as limitações impostas pela DGS.

qq. Os contactos com os utentes eram bastante reduzidos e limitados a um restrito número de pessoas, como ficou cabalmente demonstrado no decurso da audiência de discussão e julgamento.

rr. Ora, nenhuma omissão foi imputada às AAD, pelo que não pode a superior hierárquica das mesmas ser responsabilizada nos termos constantes da acusação e do recurso.

Nestes termos e nos demais de Direito e por tudo o supra expendido, negando provimento ao Recurso interposto pelo Recorrente e confirmando o douto Acórdão recorrido nos seus precisos termos, Vossas Excelências farão a habitual e sã JUSTIÇA».

Notificada do teor das novas conclusões apresentadas pelo recorrente, respondeu a arguida nos seguintes termos: «Reitera integralmente o teor da sua resposta à motivação de recurso apresentado, pugnando pela improcedência do recurso do MP, nos precisos termos invocados na mencionada resposta, nada mais tendo a acrescentar».

d. Resposta da arguida DD.

«1. De forma Justa, o tribunal a quo absolveu a arguida DD do crime de maus tratos de que veio acusada.

2. Resumidamente, o Ministério Público acusou a arguida DD, pela prática de um crime de maus tratos, por não ter percebido (através das fraldas usadas), enquanto encarregada de sector, que o ofendido Sr. FF estava desidratado.

3. Salienta-se que se viviam tempos de COVID-19 e que a senhora DD não tinha acesso ao quarto de isolamento (quarentena) em que o Sr. FF estava. Salienta-se, também, que o registo de controlo das fraldas não seguia qualquer padrão formal/oficial, neste sentido o acórdão reconheceu que:

“[a] leitura e interpretação dos dados resultantes da urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem.”

4. Como apurado em julgamento, o lar tinha dezenas de utentes e os funcionários estavam todos sobrecarregados com o excesso de trabalho (com a sobrecarga física e emocional potencializada pela pandemia do COVID-19).

5. Ficou provado que a análise visual da urina presente nas fraldas dos utentes não é (e nunca poderia ser) meio adequado e suficiente para averiguar que qualquer utente estivesse desidratado. Neste sentido, transcreve-se trecho do acórdão absolutório, relativamente às declarações da testemunha e médico, Dr. GG:

“Não deixando aqui de salientar o depoimento da testemunha GG que afirmou que o estado de saúde do utente era grave e o seu estado de desidratação era bastante elevado e que certamente resultaria de um processo evolutivo com 5 dias pelo menos. No entanto, esta testemunha explicou igualmente que o estado de desidratação não se revela com uma simples observação das mucosas, ou com a observação de urina nas fraldas, havendo outros elementos clínicos que conjugados nos podem conduzir a esse diagnóstico, devendo os elementos que supra referimos – urina e mucosas – constituírem fatores de alerta para um possível diagnóstico.”

6. De forma geral, a acusação deduzida pelo Ministério Público, que aqui se dá por integralmente reproduzida, não demonstrou qualquer nexo causal entre a conduta da arguida e o resultado (desidratação do ofendido).

7. Sabe-se que o nexo causal, entre a conduta e o resultado, é um dos elementos constitutivos do crime. A conduta (ação ou omissão), o nexo causal, a tipicidade, o resultado, para além da antijuridicidade, formam o crime – sendo a culpabilidade mero pressuposto de aplicação da pena (através da teoria finalista bipartida do conceito do crime).

8. Nos presentes autos, não existe qualquer nexo causal entre a conduta da arguida e o crime de que vem acusada.

9. Ora, a senhora DD não é enfermeira e não é médica (não faz e nunca fez parte do corpo clínico do Lar). A senhora DD não tem (e não tinha à época dos factos) qualquer capacidade técnica para realizar diagnósticos de desidratação a qualquer utente – pois a si isso não era expectável ou exigível a análise clínica dos utentes.

Nesses termos, e nos demais em direito, relativamente à arguida DD, o douto acórdão deve ser confirmado, negando-se provimento ao recurso, mantendo-se a absolvição da mesma».

Notificada do teor das novas conclusões apresentadas pelo recorrente, respondeu a arguida nos seguintes moldes: «[…] em resposta às conclusões aperfeiçoadas do Recorrente, vem reiterar os exatos termos da Resposta ao recurso interposto. Com máximo respeito por opinião contrária, reitera-se que em todos os autos, nomeadamente na acusação e nas novas conclusões, inexiste qualquer nexo causal capaz de extrair ou atribuir, à arguida, o crime de que vem acusada de praticar».


*

Por fim, o arguido AA, notificado do teor das novas conclusões apresentadas pelo recorrente, respondeu nos seguintes moldes: «A repetição nas conclusões do que é dito na motivação, traduz-se em falta de conclusões, pois não havendo indicação concisa dos fundamentos explanados e desenvolvidos nas motivações, não há conclusões, o que conduz à rejeição do recurso.

Pelo exposto, nos termos do art. 420° n. 1, al. c) do CPP, deve o recurso ser rejeitado ou, caso assim não se entende, não devem ser conhecidas as novas conclusões de recurso apresentadas pelo MP».


*

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se pela procedência do recurso, concluindo nos seguintes moldes quanto ao respetivo mérito (segue transcrição, com exclusão do conteúdo das notas de rodapé): «Por serem completas, exaustivas e constituírem uma das várias soluções de direito plausíveis (aquela se possui uma relação de proximidade e congruência mais próxima dos textos legais na cor das minhas lentes e indo até para lá da cautela razoável), adiro às considerações e motivos constantes das proficientes alegações apresentadas pelos(a) Digníssimos(a) magistrados(a) do Ministério Público junto da 1.ª instância, que aqui se convocam, para as quais se remete e cujo conteúdo factual, descritivo e narrativo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos e que desta peça faz parte integrante e incindível, devendo, por conseguinte, julgar-se o recurso procedente e revogar-se o Acórdão recorrido que deve ser substituído por outro que condene os arguidos pelos crimes que foram acusados, nada mais tendo a acrescentar por tudo já ter sido dito, equacionado e debatido nas referidas motivações e igualmente nas conclusões, evitando-se assim o calvário ou via sacra de fastidiosas e inúteis repetições (e porventura, com uma duplicação inútil de argumentos e recorrendo a uma estética puramente subjectiva, acabar por (re)dizer o mesmo por outras palavras, num arranjo de ideias, gramatical e formalmente diferente, mas substancialmente idêntico, criando a ilusória aparência de inovação e – falsa – novidade ou prestabilidade – artigo 130.º do Código de Processo Civil – C.P.C., ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal – C.P.P. – uma vez que as questões suscitadas não necessitam de mais apurada argumentação). Tal é o teor do meu parecer e ora se dá à estampa».


*


Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer pela arguida CC reiterando a posição assumida na resposta apresentada, pugnando pela improcedência do recurso do Ministério Público.

A assistente OO apresentou resposta nos seguintes moldes: «OO, Assistente melhor identificada nos autos que neste Tribunal correm termos notificada que foi do teor do Parecer doutamente proferido pelo Ministério Público que antecede, vem pelo presente responder ao mesmo, dizendo que dá por integralmente reproduzido o vertido na sua resposta ao Recurso apresentado e na respetiva motivação, nada mais tendo a acrescentar».

Com data de 15/5/2025, foi proferido despacho de admissão do recurso com o seguinte teor (segue transcrição parcial):

«Na sequência do despacho proferido nos presentes autos (ref.ª 19258494), o recorrente apresentou novas conclusões do recurso por si interposto, suprindo adequadamente as insuficiências oportunamente assinaladas.

Além disso, as conclusões do recurso revelam-se concisas e cumprem os requisitos estabelecidos no artigo 412.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPP.

Assim, mostrando-se tempestivo, tendo sido admitido com o efeito e regime de subida adequados, nada obstando ao seu conhecimento, deve ser julgado em conferência (art.º 419.º do Código de Processo Penal). […]».

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II - Fundamentação

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

Assim, podemos equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes [1]:

a) Vícios decisórios.

b) Impugnação da matéria de facto.

c) Preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito do crime de maus tratos – eventual condenação de todos os arguidos pela prática do referido ilícito típico e respetivas consequências.


*


Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão proferida.


*


Factos provados e não provados; motivação da decisão de facto (segue transcrição integral):

«II – Fundamentação:

1 – Matéria de facto provada:

De relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:

Como Instituição Particular de Solidariedade Social, registada na Direção Geral da Segurança Social (DGSS) sob a inscrição n.º .../84, desde 06/06/1984, o Lar A... é uma pessoa coletiva sem fins lucrativos, que tem como fins e principais atividades a concessão de bens, prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades, nomeadamente nos domínios do apoio a pessoas idosas e na resposta social da estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI). Tem as suas instalações na Rua ..., ... e ..., em ....

Em termos de funcionamento o ERPI Lar A... apresenta uma organização estruturada em que no topo da hierarquia se situa o Presidente da Direção, a seguir a Diretora Técnica, no nível abaixo a Chefe de Serviços Gerais, no seguinte as Encarregadas de Sector (Piso) e na base as Auxiliares de Acão Direta (AAD).

Nos termos do art.º 52.º dos Estatutos do referido lar compete ao Presidente da Direção:

a) Superintender na administração do Lar A... orientando e fiscalizando os respetivos serviços;

b) Convocar e presidir às reuniões da Direção, dirigindo os respetivos trabalhos;

c) Representar o Lar A... em juízo ou fora dele;

d) Assinar e rubricar os termos de abertura e encerramento e rubricar o livro de atas da Direção;

e) Despachar os assuntos normais de expediente e outros que careçam de solução urgente, sujeitando estes últimos à confirmação da Direção na primeira reunião seguinte.

A Direção Técnica do ERPI compete a um técnico, cujo nome, formação e conteúdo funcional se encontra afixado em lugar visível e a quem cabe a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo. À Diretora Técnica compete, em geral, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços.

- à Chefe de Serviços Gerais compete organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais;

- às Encarregadas de Sector (Piso) compete coordenar no seu sector o serviço prestados pelo ERPI através das Auxiliares de Ação Direta aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar pelo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD.

- às Auxiliares de Ação Direta (AAD) realizar atividades de higiene, mobilização, alimentação do utente, manter as condições de limpeza e higienização nas instalações, garantir o cumprimento das prescrições médicas, fazer acompanhamento e zelar pelo bem-estar geral do utente.

No ano de 2020 o Presidente da Direção era o arguido AA, a Diretora Técnica a arguida BB, a Chefe de Serviços Gerais a arguida CC, a Encarregada de Sector (Piso) 2 era MM (aqui testemunha), e a Encarregada do Sector (Piso) 3 era a arguida DD, cabendo àqueles que ocupam lugares superiores supervisionar e dar ordens aos que se posicionam abaixo de si.

Todas estes agentes exerciam as suas funções em virtude de um vínculo que os habilitava a assegurar o bem-estar dos utentes acolhidos no ERPI, agindo em nome e no interesse da instituição Lar A....

Aquando da admissão à instituição Lar A... todos os utentes eram observados pela Equipa de Enfermagem a fim de avaliar o seu estado de saúde e, nos casos em que se faziam acompanhar por informação médica, era ainda verificado se a mesma correspondia à avaliação feita, integrando todos estes elementos, e em especial no caso de se tratar de residente com toma de medicação, um dossier individualizado em nome de cada utente designado “...”, do conhecimento de toda a estrutura organizativa do Lar, geralmente guardado dentro de um armário situado no piso 3 correspondente ao Gabinete Médico/Enfermagem e disponível a todos que nele exerciam funções, tal como ocorreu com a admissão dos ofendidos EE e FF.

A ofendida EE, nascida em ../../1952, com 65 anos, integrou o ERPI Lar A... em 22/08/2018, por entre a arguida Lar A... (ERPI) e a ofendida ter sido firmada uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas da segunda, ocupando quarto situado no Piso 2.

A ofendida EE padecia de doença neurológica degenerativa (paraparésia espática hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, mas mantinha independência para certas atividades, designadamente para alimentação.

10º

No dia 24 de Abril de 2020, foi admitida pelas 18.27 horas, no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., com queixas de dispneia desde há 3 semanas, com agravamento súbito naquele dia, esforço respiratório, tosse com expetoração que não expele e temperatura de 37.9 º.

11º

Observada pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos:

a) Covid 19 admissão; data 1º resultado positivo 19/04/2020: data de início de sintomas/dias de evolução da doença: desconhecido/= 3 semanas; fatores de risco para progressão desfavorável: HTA, idade>65 anos, achados analíticos desfavoráveis; PCR >10mg/dl; doença atual, Pneumonia com hipoxia (fase II b); suporte de O2 atual: 4 cânula (débt L/min);

b) IR tipo 2;

c) Hipernatrémia: NA + 154; d) Hipocaliémia; K+ 2,86; e) LRA: creatinina 1,04 (basal 0,8). Apresentava ainda as “Mucosas coradas, mas desidratadas”.

12º

O quadro clínico referido em supra, é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como de gravidade moderada a grave (tendo presente o achado de TA (tensão arterial) 72/53mmHg, Hipernatrémia: Nat+154 e Creatinina 1,04 (basal 0.89)).

13º

O estado de desidratação resultou da insuficiente toma de líquidos que compensassem as perdas, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal.

14º

O quadro clínico degradou-se com episódios de dessaturação em parte condicionadas por secreções abundantes, vindo a utente EE falecer, sendo o óbito verificado a ../../2020, pelas 14.10 horas.

15º

No Serviço de Urgência foi-lhe administrado soro e outras substâncias para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, bem como morfina para as dores.

16º

Aquando da sua admissão ao Serviço de Urgência do CH... o arguido AA e a arguida BB mantinham-se como Presidente da Direção e Diretora Técnica do Lar, respetivamente, não havendo colaboradora que desempenhasse as funções de Encarregada Geral, sendo que a Encarregada do Sector (Piso) 2 MM esteve ausente do serviço desde 05/04/2020, por estar infetada com Covid 19. Nesse mês, cerca de 20 colaboradores da instituição não estavam ao serviço por estarem infetados com Covid 19.

17º

No mês de Abril de 2020, o estado de emergência estava ativo, estando em pleno vigor o despacho normativo n.º 4097-B/2020, de 2 de Abril, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

18º

FF, nascido em ../../1928, com 91 anos de idade, integrou o ERPI Lar A... em 18/08/2020, por entre a arguida Lar A... e o ofendido ter sido constituída uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas do segundo, tendo sido colocado no Piso 3, para cumprir período de isolamento de 14 dias de acordo com a legislação Covid 19 então vigente.

19º

Durante o período de isolamento, o número de pessoas que entrava no quarto do ofendido FF era reduzido ao mínimo, nomeadamente as AAD que prestavam os cuidados de higiene e alimentação e o pessoal médico, caso fosse necessário, mas sempre cumprindo as regras de segurança e higiene recomendadas pela DGS.

20.º

Aquando da sua admissão AA continuava a ser o Presidente da Direção, a arguida BB mantinha-se como Diretora Técnica do Lar, CC tinha iniciado em Julho desse ano as funções de Chefe de Serviços Gerais e DD, após um período de gozo de férias, regressou ao serviço em 25 de Agosto e era a responsável pelo piso 3.

21º

O ofendido FF, apresentava amputação da perna esquerda, cegueira, hipoacúsia grave, patologia tiroideia, HTA, dislipidemia e falta de mobilidade, dependendo para as atividades de vida diária em exclusivo dos cuidados que a instituição lhe prestava (banho, apoio, vigilância, incentivo, alimentação, higiene, vestuário, medicação, mudança de fralda, etc).

22º

No dia 29 de Agosto de 2020, pelas 15.54 horas, por solicitação do ERPI que entendeu que o estado de saúde de FF necessitava de cuidados de saúde hospitalares, o mesmo foi admitido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., por hipotensão (TA-80/60), associado a taquicardia (-125bpm) e a dificuldades respiratórias (polipneia, respiração predominantemente abdominal e episódios de hipoventilação), saturação de oxigénio no sangue (Sp02) de 85- 94%, sem alterações do estado de consciência, febre ou outros sintomas.

Observado pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos:

a) infeção respiratória;

b) hipernatrémia;

c) hipocaliémia;

d) lesão renal aguda de provável etiologia pré-renal. Apresentava ainda a pele e mucosas coradas mas ligeiramente desidratadas e estava cianótico.

O quadro clínico referido em supra é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como grave (tendo presente o achado creatinina = 1,79mg/dl, ureia=119mg/dl, Nat=165 mmol/L e a queda tensional para o valor de 80/60mmHG).

23º

No Serviço de Urgência do CH..., para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, foram administrados ao ofendido 1.000ml de soro a 100 ml/h, ou seja, ao longo de 10 horas, por via endovenosa, tendo posteriormente sido transferido para o Serviço de Urgência do Hospital 2..., para prosseguir a fluidoterapia endovenosa.

24º

Caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à sua morte.

25º

O estado de desidratação deste ofendido deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos.

26º

Uma das formas que o ERPI introduziu no seu funcionamento para aferir do estado de hidratação dos utentes acamados, como no caso do utente FF, era o do controlo das fraldas, que, em regra, eram mudadas cinco vezes ao dia, entendendo-se este por período de 24 horas, uma durante a noite, duas no período da manhã e outras duas durante a tarde, e sempre que se procedia a uma muda de fralda a colaboradora que o fazia, que por regra era Auxiliar de Ação Direta (AAD), registava na Ficha Cuidados de Higiene e Imagem (Controle dos Esfíncteres) a quantidade de urina observada numa classificação que podia ser “Muito, “Pouco”, ”Nenhum” ou “normal”.

27º

Para além deste elemento as AAD também deveriam reportar algo de anormal que se passasse com os utentes, como febre, falta de apetite, etc., sendo que, no período de covid, apenas depois do reporte de alguma anormalidade é que a equipa de enfermagem e/ou médica intervinha para fazer o diagnóstico do utente.

28.º

Durante essa semana foram reportadas, no livro de turno/ocorrências as seguintes situações pelas AAD relativas ao ofendido FF:

- no dia 18/08/2020 a entrada do utente que ficou em isolamento no quarto sem número. Para além disso, o utente comunicou dores de cabeça, tendo sido ordenada pela enfermeira NN a toma de Bem-u-ron.

- no dia 19/08/2020 que o utente comia comida passada;

- no dia 21/08/2020 que o utente recusou a medicação do jantar;

- no dia 22/09/2020 que o utente recusou a medicação do jantar.

29.º

Na Ficha dos Cuidados de Higiene referida em supra do residente FF foram feitos os registos seguintes:

1- Referente a 27 de Agosto de 2020.

- noite (de 26 para 27) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas uma com “Pouco” e outra com “normal”; tarde duas mudas com “Pouco”.

2- Referente a 28 de Agosto de 2020.

- noite (de 27 para 28) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas sem registos de urina na fralda (Nenhum) ; tarde duas mudas com “Pouco”.

3- Referente a 29 de Agosto de 2020.

- noite (28 para 29) uma muda com “Nenhum”; manhã uma muda com “Nenhum”.

30º

Sendo que nos registos referentes à presença de urina na fralda entre a data da sua admissão ao ERPI a 18 de Agosto e o dia 27 desse mês, de acordo com a Ficha dos Cuidados de Higiene e Imagem foi sempre detetada a presença de urina nas mudas de fralda (dia 18, quatro mudas, uma com “Pouco” e as restantes “Normal”; dia 19, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 20, cinco mudas todas “Normal”; dia 21, cinco mudas, quatro “Normal e uma “Pouco”; dia 22, cinco mudas todas “Normal”; dia 23, cinco mudas todas “Normal”; dia 24, cinco mudas, três “Normal” e duas “Pouco”; dia 25, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 26 cinco mudas todas “Normal”).

31º

As Auxiliares de Ação Direta que nos dias 27 e 28 de agosto cuidaram do ofendido, cuja identidade não foi possível apurar, não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de Agosto.

32º

O preenchimento do conceito de fralda com “Pouco” ou “Normal” urina era feito de forma subjetiva e dependia da sensibilidade do que cada uma das Auxiliares de Ação Direta entendia por “Pouco” ou “Normal”.

33º

O lar de A..., como a grande generalidade das instituições similares, não ministrava ações de formação às AAD, sendo costume da instituição as mais novas apreenderem com as mais velhas e com os profissionais de saúde as melhores práticas e os procedimentos a adotar.

34.º

A leitura e interpretação dos dados resultantes da urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem.

35º

Os dois ofendidos pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o ofendido FF era totalmente dependente dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo ERPI Lar A....

36.º Os arguidos AA e BB não fizeram qualquer visita a estes utentes quando os mesmos estavam em isolamento e quarentena, como aliás não era costume fazerem, sendo que a arguida BB apenas costuma ter contacto com os utentes aquando da admissão, tudo isto sem prejuízo de eventuais visitas de rotina que poderiam fazer ao lar.

37º

A arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia.

38.º

O arguido AA já foi condenado, no âmbito do processo nº ... - Juízo Central Criminal ..., pela prática de crimes de coação sexual agravada e importunação sexual agravada, em cúmulo das penas parcelares na pena unitária de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com imposição de deveres e regras de conduta. Os factos ocorreram entre 2017 e 2019. O acórdão transitou em julgado em 24-05-2024.

39.º

Do seu relatório social consta o seguinte:

1 - CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS

No período dos factos subjacentes ao presente processo, AA residia na morada dos autos com o então cônjuge. Exercia, desde o ano de 2005, funções como presidente da direção do Lar de A..., localizado na Rua ..., ... .... Tal função não era remunerada. Possuía isenção de horário, porém, habitualmente encontrava-se no lar de segunda a sexta-feira. Entre dezembro/2021 e novembro/2022, no âmbito de medida de coação do processo nº ... – Juízo Central Criminal ..., esteve suspenso de tais funções de presidente do lar em apreço. Desde janeiro/2024, por não ter ganho as últimas eleições, já não ocupa qualquer cargo no Lar de A....

Presentemente, AA encontra-se a residir igualmente na morada dos autos. Vive com o ex-cônjuge, sendo que em julho/2024, oficializaram o divórcio. Pese embora mantenham uma relação cordial, AA perspetiva, a médio prazo, encontrar uma alternativa habitacional. Ocupa o seu tempo no espaço habitacional, ou então em caminhadas na zona da praia.

Encontra-se reformado desde o ano de 2013. Ao longo de três décadas, exerceu funções de Presidente da Junta de Freguesia ..., em .... Em 2014, nas últimas eleições em que se candidatou, acabou por não sair vencedor e assim, progressivamente afastou-se da militância política.

Concomitantemente, exercia funções labutares como bancário, no Banco 1..., principalmente na agência de ..., onde se manteve profissionalmente ativo durante trinta e seis anos consecutivos.

AA aufere cerca de 1.050€/mês de reforma como ex-bancário, acrescidos de mais 260€/mês devido a descontos efetuados quando pertencia à Junta de Freguesia. O ex-cônjuge, sexagenário, trabalha há mais de três décadas na Câmara Municipal ... e recebe cerca de 800€/mês. Vivem em casa própria, no centro de ..., correspondente à morada dos autos. Possui como despesas principais, 60€/mês de condomínio, 90€/mês de crédito pessoal, 100€/mês de cartão de crédito e despesas de consumíveis domésticos, eletricidade, água e gás na ordem dos 400€/mês. Descreve condições económicas ajustadas face aos rendimentos e gastos assumidos. No meio sociocomunitário é identificado pelas atividades comunitárias a que já esteve ligado.

AA, filho único, cresceu com os pais, em .../.... Detém como habilitações literárias o ensino secundário, pese embora ainda tenha ingressado, sem conclusão, no ensino superior, na licenciatura em administração pública. Entre os 16 e os 36 anos, foi atleta e por último treinador da equipa feminina de andebol no Grupo Desportivo .../....

AA, aos 26 anos de idade, registou o primeiro casamento. Desta relação nasceram dois filhos, respetivamente em 1972 e 1979. Após cerca de catorze anos, sobreveio o divórcio. Entretanto, quando contava 40 anos, AA oficializou o segundo matrimónio e em 1987, fruto desta relação, nasceu o seu terceiro filho. Preserva contactos e convívios com os filhos e netos. 2 - REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO

AA refere vivenciar este confronto com o sistema de administração da justiça penal, de modo pesaroso, com revolta. Aduz sentimentos de desânimo, por se tratar da vivência de mais um confronto judicial e correlacionado com o Lar de A.... Mais refere que a situação jurídica penal atual e a vivenciada anteriormente levaram ao desgaste da relação de matrimónio, por se tratar de processos com impacto na comunidade envolvente.

AA é acompanhado por estes serviços da DGRSP, no âmbito do processo nº ... - Juízo Central Criminal ..., em que foi condenado pela prática de crimes de coação sexual agravada e importunação sexual agravada, em cúmulo das penas parcelares na pena unitária de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com imposição de deveres e regras de conduta. Os factos ocorreram entre 2017 e 2019. O acórdão transitou em julgado em 24-05-2024. AA tem sido assíduo e cooperante nas entrevistas dinamizadas pela DGRSP e concomitantemente, desde 09-07-2024, encontra-se em acompanhamento na consulta de sexologia clínica que decorre no Hospital 3..., no Porto.

3 - CONCLUSÃO

AA, com 76 anos de idade, formou a sua personalidade junto da família de origem, com vinculação e com favoráveis condições socioeconómicas. Apresenta hábitos de trabalho e um envolvimento institucional ativo. Durante mais de três décadas trabalhou como bancário. Também esteve ligado à militância política, como presidente da Junta de Freguesia ..., em .... Entre 2005 e 2024 exerceu funções de presidente da direção do Lar de A.... Desde janeiro/2024, apresenta um quotidiano sem qualquer envolvimento em atividades comunitárias.

Apresenta suporte familiar junto de filhos e netos. Revela também uma conjuntura económica financeira ajustada. Encontra-se em acompanhamento e tem colaborado com esta Equipa da DGRSP, no âmbito de uma medida de execução na comunidade, por factos ocorridos enquanto exercia funções na Lar de A....

Em caso de condenação e se a pena concretamente aplicada o permitir, consideramos que AA apresenta condições para a execução de uma medida na comunidade, com vista a uma verdadeira interiorização do desvalor da conduta em apreço.

40.º

A arguida BB não tem antecedentes criminais.

41.º

Do relatório social da arguida BB consta que a mesma é diretora técnica do Lar A..., auferindo cerca de 1200€ mensais. Vive com a sua filha, de 19 anos de idade, estudante, em casa própria pagando cerca de 538€ mensais de empréstimo.

O presente confronto judicial é o único contacto de BB com o Sistema de Justiça Penal, estando a ser vivenciado com apreensão e desconforto. Beneficia de total apoio familiar, nomeadamente da sua irmã.

42.º

A arguida CC não tem antecedentes criminais.

43.º

Do relatório social da arguida CC consta o seguinte:

I – Condições sociais e pessoais

À data dos factos subjacentes à acusação (2020), CC residia com o filho mais novo num apartamento arrendado, situado na mesma artéria onde mora atualmente, esta sendo correspondente à residência da progenitora. Teve que sair desse apartamento em junho de 2022, em virtude de a proprietária não ter renovado o contrato de arrendamento. Desde então vive na morada dos autos, tratando-se de um apartamento de tipologia 2, adquirido pela mãe. A sua subsistência assentava no salário auferido no Lar A..., onde é funcionária há mais de 8 anos, desfrutando de uma situação de efetividade.

Atualmente reside graciosamente em casa da progenitora, a qual assume todas as despesas inerentes à habitação, sendo a arguida quem assegura a aquisição de alimentos. O agregado familiar é composto pela mãe – 64 anos, funcionária do mesmo Lar – e pelo descendente mais novo da arguida – 18 anos, trabalhador em tempo parcial. Pelo que apurámos, desfruta de uma situação familiar equilibrada e isenta de dificuldades de relevo, com base no salário auferido – 948,00 € líquidos - na qualidade de chefe de serviços gerais, de acordo com o recibo salarial que nos apresentou. A progenitora aufere o salário mínimo e a pensão de viuvez, e o descendente ganha 420,00 €, com o que supre os gastos pessoais.

A arguida é funcionária do Lar A... desde janeiro de 2016, onde começou a laborar como auxiliar de serviços gerais, tendo progredido na carreira regularmente: passou a cuidadora, depois a encarregada de sector, e em agosto de 2020 a chefe de serviços, responsável por todos os sectores; desde janeiro de 2024 e até ao presente está responsável apenas pelo sector de limpeza. Verbaliza gostar do seu trabalho, mantendo um relacionamento positivo com os demais funcionários.

CC iniciou a sua vida profissional aos 17 anos, possuindo hábitos de trabalho: já laborou em cafetarias, pronto-a-vestir, jardim de infância, escolas, supermercados, transitando sempre na procura de melhores condições e não apresentando períodos de desemprego relevantes. Habilitada com o 9º ano de escolaridade, num percurso escolar pouco investido, que abandonou aos 17 anos, mostra agora vontade de investir no seu crescimento pessoal e tenciona vir a obter o 12º ano. Estipula ainda como objetivos a obtenção de uma habitação que lhe permita viver autonomamente.

A arguida contraiu matrimónio precocemente (aos 17 anos), relacionamento de que resultou o seu filho mais velho, atualmente com 25 anos. Após a separação voltou a estabelecer um relacionamento afetivo (já terminado), tendo nascido então o seu filho mais novo.

O convívio familiar e o exercício laboral constituem os pilares do seu quotidiano, aproveitando os tempos livres para descansar e saindo para se divertir ocasionalmente com uma amiga. Na zona de residência é vista como uma pessoa discreta, com um comportamento ajustado, nada se constando em desabono do seu comportamento. Segundo a progenitora, o percurso de vida de CC tem sido caracterizado pela regularidade, sem problemas significativos, destacando a boa relação e apoio recíprocos que pautam a relação familiar, assim como as competências profissionais.

A arguida conta com o apoio da mãe e dos descendentes, que constituem a sua família mais próxima; os pais separaram-se na sua infância e a figura paterna foi pouco presente ao longo do seu desenvolvimento, mais próximo do núcleo materno, tendo a progenitora e a avó assumido o seu sustento e educação, assim como tendo procurado incutir-lhe regras comportamentais e respeito pelos valores sociais comuns. O pai já faleceu e o único irmão que cresceu no agregado familiar dos avós paternos, tem um relacionamento distante com este núcleo familiar.

No que concerne à natureza dos factos subjacentes ao presente processo, a arguida demonstra capacidade de compreensão sobre a ilicitude e gravidade deste tipo de conduta e a existência de vítimas e danos que deles decorrem. Este processo judicial, o primeiro na sua história de vida, tem tido na sua vida um impacto significativo, provocando-lhe desestabilização, preocupação e angústia, perturbação para a qual foi medicada. Embora manifeste apreensão face às eventuais consequências, expressa a expectativa de vir a ser absolvida.

II - Conclusão

CC cresceu numa família monoparental, tendo o seu processo de desenvolvimento sido assumido pela progenitora, atento o desinteresse do progenitor, com ajuda da avó materna, as quais procuraram incutir-lhe regras comportamentais e respeito pelos valores sociais comuns.

Na adolescência revelou parco investimento académico, tendo concluído apenas o 9º ano; encetou o seu percurso profissional aos 17 anos, o qual tem decorrido em várias áreas de atividade, tendo estabilizado há quase 9 anos no Lar A..., onde permanece, apresentando progressão na carreira e satisfação face às atividades desenvolvidas. O seu quotidiano encontra-se organizado em função do exercício laboral e do convívio familiar, desfrutando de boa inserção sócio-familiar, assim como de estabilidade económica.

Possui competências cognitivas e de personalidade para avaliar a ilicitude dos factos de que está acusada e os danos causados às vítimas, mostra-se penalizada face ao presente processo judicial, único na sua história de vida, e demonstra motivação para manter um comportamento adequado ao normativo social e jurídico, dispondo de uma rede de suporte.

Face ao exposto, e no caso de vir a ser condenada, consideramos que a arguida reúne condições para a execução de uma medida na comunidade, a qual deverá permitir-lhe interiorizar o desvalor da conduta em apreço.

44.º

A arguida DD não tem antecedentes criminais.

45.º

Do seu relatório social consta que a arguida tem como habilitações criminais a 4.ª classe, vivendo, desde fevereiro de 2019, com o seu marido e um neto de 7 anos, em apartamento moradia de tipologia 3, arrendado, assumindo as despesas habitacionais gerais (água, eletricidade, gás e telecomunicações), com ajustada inserção social e habitacional.

Aufere cerca de 900€ na sua função no lar A..., sendo que o seu marido aufere cerca de 1500€ mensais. Tem empréstimos de cerca de 450€ mensais, ao que acresce a renda de 700€ mensais.

A arguida mantém regular integração familiar, laboral e sociocomunitária, com interações normativas no atual contexto residencial.

46.º

O Lar de A... não tem quaisquer antecedentes criminais.

47.º

A demandante OO, filho do utente FF, ficou muito triste com a situação vivida pelo seu pai, não tendo permitido que o mesmo regressasse ao Lar após alta hospitalar, tendo deixado o seu trabalho para tomar conta do seu pai.

Sentiu-se culpada pela situação vivida pelo seu pai, embora não tivesse tido qualquer contacto com o lar A..., em virtude de nessa altura, por causa do Covid 19, os lares estarem fechados e não ser permitida qualquer visita.

48.º

Após o episódio ocorrido com o utente FF deu instruções específicas para a hidratação dos utentes, o que não existia até então.

Factos não provados

Não ficou assente:

- que as funções do presidente da direção, consagradas nos Estatutos ERPI Lar A..., fossem mais do que aquelas que foram dadas como provadas e que constam do art.º 52.º dos referidos estatutos;

- que as funções de diretora técnica, responsável de piso ou encarregada geral fossem mais para além das que foram dadas como assentes

- que a ofendida EE não se conseguisse alimentar sozinha e que estivesse totalmente dependente de terceiros para tomar as suas refeições e para beber água;

- que o estado de desidratação que a ofendida EE apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do lar A... e que o mesmo fosse visível por qualquer funcionário zeloso;

- que as AAD que prestaram cuidados ao utente FF tivessem interpretado de forma incorreta os dados revelados pela troca de fraldas;

- que os arguidos devessem ter dado ações de formação às AAD para correta interpretação dos dados resultantes da troca de fraldas;

- que os arguidos se tivessem demitido das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes aos cuidados que ocupavam e que essa hipotética omissão tenha sido causal do estado de desidratação que os utentes em causa sofreram;

- não resultaram também provados outros factos alegados na acusação, contestação ou durante a discussão da causa, que se mostrem em contradição com os factos dados como provados ou por eles prejudicados;

2 - Indicação probatória quanto aos factos dados como provados e não provados

- todos os documentos juntos aos autos nomeadamente:

- Parecer Técnico- Científico elaborado pelo Conselho Médico-Legal de fls. 385 a 397;

- Informação da Direção Técnica do Lar A... de fls. 44 e v.;

- Informação do Chefe de Equipa de Enfermagem do Lar A... de fls. 103 a 114, 116 a 117 a 154;

- Informação de fls. 163 a 169;

- Estatutos Lar A... de fls. 423 a 438;

- Ata de Tomada de Posse dos novos Órgãos Sociais do Lar A... de 15/01/2024 de fls. 453 a 457;

- Informação da Direção do Lar A... de fls. 349;

- Informação de fls. 363;

- Informação do Presidente da Direção do Lar de fls. 405 a 406;

- Certidão de fls. 417 a 419, extraída do Inquérito n.º 1024/18.7T9 da 2.º Secção do DIAP de V N Gaia;

- Registos clínicos do Apenso 1 do utente FF;

- Registos clínicos do Anexo 3 da utente EE;

- Certidão de fls. 6 a 32 do processo de interdição do utente FF n.º 19725/18.8T8PRT, do Juízo Local Cível do Porto, J6, do apenso A (397/21.9T9PRT);

- CRC dos arguidos e relatórios sociais.

- declarações dos arguidos AA, BB e DD;

- declarações da assistente demandante OO;

- declarações das testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento.

- KK;

- PP;

- Dra. QQ;

- Dr. GG ;

- RR, enfermeira do Lar, id. a fls. 84;

- NN, enfermeira do Lar, id. a fls. 89;

- LL, enfermeiro do Lar, id. a fls. 118;

- SS, id. a fls. 250;

- TT, id. a fls. 283;

- UU, id. a fls. 298;

- MM. Id. a fls. 325;

- II, id. a fls. 335;

- JJ, id. a fls. 339.


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Como é sabido, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127.º).

As regras ou normas da experiência, como refere Cavaleiro de Ferreira, são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto "sub judice", assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação de alicerçam, mas para além dos quais têm validade.

Por outro lado, a livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores (...).

Em suma, a prova deve ser apreciada pelo julgador livremente, de acordo com o bom senso, a lógica e a experiência de vida, temperados pela capacidade de distanciamento dada pela experiência de julgar.

Conforme se pronunciou o Acórdão da Relação de Évora de 09/01/2018, disponível em www.dgsi.pt “I - para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.

II – A atividade judicatória na valoração dos depoimentos há de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente”.

Nesta conformidade, o princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.º 355 do Código de Processo Penal. É aí que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova.

Nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais diretas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objetiva, atípica, e de valoração pela íntima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". - Cfr. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”.

O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto direto, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.

Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais ". -In "Direito Processual Penal", 10 Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 233 a 234.


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Procedendo à explicação dos motivos que nos levaram a considerar provados e não provados certos factos, entendemos que devemos fazer um ponto prévio.

É que estes episódios ocorreram durante o início da pandemia por covid-19, sendo que os meses de Março e Abril de 2020 foram particularmente difíceis, com inúmeros contágios. Por causa disso, foram emitidas medidas especiais, tendo sido declarado o estado de emergência e tendo os lares de idosos sido encerrados e limitados os contactos com o exterior. Sempre que um doente era infetado com Covid 19 o mesmo tinha que ficar em isolamento e sempre que um utente dava entrada num lar de idosos, tinha que estar de quarentena por um período de 14 dias. Nos isolamentos e na quarentena o contacto com os utentes era o mínimo possível e feito pelo menor número de pessoas possíveis, as quais, mesmo com as restrições impostas pela DGS, tinham de cuidar das necessidades básicas dos utentes, a nível de saúde higiene e alimentação, bem como prestar os cuidados de saúde possíveis.

Logo, qualquer juízo sobre a ação ou omissão dos arguidos, tem que levar em conta este quadro excecional, esclarecendo-se igualmente que as funções de cada um dos arguidos, nomeadamente a concretização do dever de fiscalização está na ténue fronteira entre a matéria de facto e a matéria de direito.

No caso em apreço, os elementos clínicos, aqui se incluindo o parecer médico-legal junto aos autos, as informações hospitalares e as informações constantes dos registos internos do lar permitiram-nos dar como assentes os estados de saúde dos utentes do lar aqui em causa.

Já quanto às funções que cada um dos arguidos desempenhava, os estatutos do lar e a informação de fls. 405 e 406 permitiram-nos dar como provadas as funções de cada um dos arguidos no lar, tendo em conta o cargo que ocupavam.

Quanto a questões mais especificas, designadamente a concretização dessas funções, a alegada omissão de deveres funcionais por parte dos arguidos e as consequências dessas alegadas omissões na saúde dos utentes aqui em causa, a prova produzida não nos permitiu muito mais além do que aquilo que consta nesses documentos.

Porém, alguma da prova produzida, nomeadamente dos depoimentos dos arguidos e das pessoas que lá trabalhavam, permitiram-nos concluir por uma total independência da equipa médica e de enfermagem nos cuidados de saúde. Por outro lado, eram as AAD quem contactava diretamente com os utentes, prestando-lhe os cuidados básicos de saúde e higiene, reportando sempre alguma situação anormal no livro de turno ou comunicando logo diretamente com os enfermeiros, sendo que eram apenas as AAD que prestavam os cuidados básicos de higiene e alimentação aos utentes, ficando as restantes pessoas na cadeia hierárquica com funções de gestão e organização. Quanto os utentes estavam com covid ou de quarentena os contactos eram reduzidos ao mínimo, conforme referido pela testemunha UU, de forma a evitar o contágio, como decorria das orientações da DGS.

Também foi referido por todas as testemunhas a ausência de ações de formação das AAD, tendo sido referido expressamente que as mais novas apreendiam com as mais velhas. Foi referenciado e é do conhecimento comum a inexigência de habilitações para exercer as funções de AAD e a grande falta de profissionais qualificados no setor, sendo que no período do Covid essa falta ainda se fez sentir com maior acuidade atenta as grandes necessidades que se fizeram sentir e as inúmeras baixas médicas por doença dos profissionais desse setor – muitos ficaram infetados – aliado a um abandono de muitas pessoas que tiveram medo de ir trabalhar para os lares, por medo de contágio.

A propósito das ações de formação, a testemunha UU, que tem formação como auxiliar de saúde, na área da geriatria, confirmou ser normal não haver ações de formação nesta área, referindo expressamente que nunca lhe foi ministrada, durante o curso que tirou, qualquer formação para a interpretação da urina nas fraldas, referindo que o conceito de pouco, muito ou normal advém do senso comum. Aliás, e um pormenor que apenas a imediação pode verificar, essa testemunha sorriu e mostrou surpresa quando lhe foi perguntado se era normal haver esse tipo de formação, aparentando considerar ridícula a questão que lhe foi colocada, “obrigando” o Tribunal a justificar e a enquadrar a pergunta colocada.

Já a testemunha MM foi importante para descrever o normal funcionamento do lar e a forma como o mesmo funcionou no período Covid (a testemunha RR enfermeira do Lar depôs em sentido idêntico), principalmente no seu início, descrevendo um cenário quase de guerra, falando da ausência de muitos profissionais e no abandono de muitas práticas que até então se faziam. A esse propósito a testemunha MM, que era encarregada de setor - piso 2, afirmou expressamente que no seu piso, devido ao incremento de trabalho, deixaram de fazer o registo no livro de ocorrências, bem como o reporte dos cuidados de higiene e imagem dos utentes. Porém e não obstante esse depoimento, não deixamos de dar como assente o teor das fichas que constam de fls. 168 e 169 relativamente ao utente FF, uma vez que a testemunha era encarregada de piso diferente e as funcionárias que trabalharam no piso 3 (TT, UU, JJ e SS), que era o piso do utente FF, não afirmaram em Tribunal que deixaram de cumprir esse procedimento, embora tenham colocado dúvidas sobre a autenticidade da sua assinatura nesses documentos, a qual consistia numa simples aposição das iniciais.

As testemunhas LL e RR, enfermeiros do Lar, afirmaram terem total autonomia para prestar cuidado médicos, não reportando falhas graves de material no Lar, apenas referindo a enorme quantidade de serviço que tinham, pois consideravam o quadro de enfermagem insuficiente. Mais referiram que durante o Covid as visitas de rotina aos utentes passaram a ser o mínimo, pois a elevada quantidade de trabalho não o permitia, sendo que eram as AAD que contactavam diretamente com os utentes e lhes reportavam se algo de anormal se passava. A testemunha LL ainda referenciou a falta de meios no que concerne às AAD, explicando que muitas delas eram o primeiro emprego e sem qualquer formação, louvando o esforço dos mais antigos em ensinar e orientar as pessoas mais novas que entravam na instituição. Completou o seu depoimento referindo a normalidade deste facto, atenta a elevada falta de pessoas (qualificadas ou não qualificadas) para trabalhar nesta área.

Por fim, nenhuma das testemunhas falou ser normal o presidente e a diretora do lar controlarem o estado de saúde dos utentes, verificando se os cuidados médicos lhe eram ministrados, atribuindo-lhes apenas funções de gestão e orientação, para o bom funcionamento da instituição, tendo a testemunha RR realçado o papel da arguida BB na organização dos serviços, nomeadamente na elaboração de turnos do pessoal.


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Continuando na análise probatória centremo-nos na situação da utente EE, em que o Digno Magistrado do Ministério Público consubstancia a sua acusação no estado de desidratação que a mesma apresentou quando foi levada para o hospital, referindo que tal estado se deveu a deficiente ingestão de líquidos que deveriam ter sido fornecidos pelo lar A..., salientando que naquela data não havia encarregada geral e a encarregada do setor -piso2- estava de baixa médica, concluindo por uma omissão de prestação de cuidados da instituição por responsabilidade do arguido AA, enquanto presidente da direção, e da arguida BB, enquanto diretora-geral da instituição.

Sem cairmos na tentação de, nesta sede, tecermos considerações de direito, temos que da prova produzida se veio efetivamente a concluir que a testemunha MM estava de baixa médica, por ter sido infetada por covid 19. Isso mesmo foi confirmado por essa testemunha. Porém, não só essa testemunha esteve de baixa como muitas outras pessoas o estiveram em Abril de 2020, conforme foi dito pela enfermeira RR, que descreveu a situação naquele período como caótica, fruto da pandemia e da falta de meios que houve na altura, pois que muito do pessoal foi embora e outros ficaram infetados.

Em relação à utente EE, a testemunha MM afirmou recordar-se da mesma, afirmando que a referida EE tinha autonomia para consumir refeições, o que também foi confirmado pela sua irmã, a testemunha KK. Esta última testemunha afirmou que fruto dos condicionamentos motivados pelo Covid ficou impossibilitada de visitar a irmã, estando muito magoada com o lar, pois que não lhe deu quaisquer informações sobre o estado de saúde da sua irmã, desde que começou o confinamento, apenas lhe tendo comunicado o seu falecimento, raramente atendendo os telefonemas que efetuou, sendo que quando faziam, não a deixavam falar com a irmã, nem lhe davam informações sobre a mesma.

Dos elementos clínicos resultou que a mesma testou positivo ao Covid 19 em 19/04/2020 e que foi enviada ao hospital em 24/04, tendo vindo a falecer em 26/04. Na altura, em que deu entrada no hospital apresentou um estado de desidratação moderada. Dos elementos clínicos e do parecer médico junto aos autos, resulta que a utente tomava cerca de 16 horas diárias de oxigénio, o que pode determinar a secreção das mucosas, não havendo qualquer evidência, conforme referido no parecer médico-legal, de que o estado de desidratação das mucosas seria facilmente observado por cuidador zeloso.

Com esta prova e tendo em conta os factos constantes da acusação demos como assente os factos em singelo, não sufragando qualquer conclusão vertida na acusação, embora de um modo não muito percetível, de que a instituição omitiu a sua obrigação de prestar os cuidados de saúde e de alimentação necessário ao bem-estar da utente.

Na verdade, não ficou provado nem foi alegado que a instituição negou água ou comida à utente, apenas parecendo resultar que alguém dentro da instituição se deveria ter apercebido desse estado de desidratação mais cedo e que o mesmo era notório. Todavia, isso não resulta da prova produzida, pois que no parecer médico-legal o seu subscritor afirma não ter dados suficientes para dar uma resposta concreta a tal pergunta. Além disso, foi explicado pela testemunha GG, médico, que o estado das mucosas é apenas um dos elementos para aferir da desidratação, havendo muitos outros fatores a ter em conta para se poder efetuar um diagnóstico positivo. Se adicionarmos o estado caótico dos serviços, por todas as circunstâncias que acima referimos e que não podemos imputar a quem quer que seja e ainda o facto da utente estar infetada por covid 19, de que veio a falecer, o que fazia com que outras patologias como a possível desidratação não fossem tão evidentes face a essa doença mais grave, então não vislumbramos qualquer omissão por parte do pessoal do lar A... e muito menos do seu corpo dirigente.


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Já quanto à situação do utente FF verifica-se que o mesmo estava de quarentena na instituição por ter sido transferido do hospital. A sua situação de saúde também era evidente, estando totalmente incapacitado de prover os seus cuidados básicos de saúde, higiene e alimentação, necessitando de terceira pessoa para o efeito, pois estava cego e tinha uma perna amputada.

Perante este cenário seria normal ter um acompanhamento mais próximo por parte dos funcionários do lar.

Porém, não podemos deixar de salientar que estávamos num período de covid 19, sendo que apesar de Agosto de 2020 ter sido um período de acalmia, algumas medidas restritivas ainda eram adotadas.

Uma delas era reduzir o contacto ao mínimo das pessoas que estavam isoladas ou de quarentena. Por tal facto, as visitas de rotina de enfermagem ou de outro pessoal de saúde estava reduzido ao mínimo essencial.

Logo, apenas demos como provado os factos em singelo, bem como todo o quadro fático existente à volta deste utente, dando ainda como provados os elementos que referimos na parte geral relativamente ao estado de saúde do utente, quando da sua entrada no hospital, não deixando aqui de salientar o depoimento da testemunha GG que afirmou que o estado de saúde do utente era grave e o seu estado de desidratação era bastante elevado e que certamente resultaria de um processo evolutivo com 5 dias pelo menos. No entanto, esta testemunha explicou igualmente que o estado de desidratação não se revela com uma simples observação das mucosas, ou com a observação de urina nas fraldas, havendo outros elementos clínicos que conjugados nos podem conduzir a esse diagnóstico, devendo os elementos que supra referimos – urina e mucosas- constituírem fatores de alerta para um possível diagnóstico. Em relação a este utente, as testemunhas inquiridas - AAD e enfermeiros - afirmaram lembrarem-se do mesmo, mas não se recordarem da intervenção que tiveram com o referido utente. Já a arguida DD negou qualquer contacto com o utente, argumentando que a sua função era mais de gestão e que quem o acompanhava eram as AAD, tendo também salientado que apenas regressou ao serviço no dia 25 de agosto, após o gozo de férias.

Ora, perante a falta de prova testemunhal e tendo sido junto aos autos o livro de ocorrências e o relatório dos cuidados de higiene, demos as informações constantes desses documentos como assentes, não obstante, como supra referimos, a testemunha MM ter dito que na altura não estavam a preencher o referido relatório por falta de tempo (a testemunha referiu-se ao seu piso – piso2- nada sabendo quanto ao piso 3).


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Por fim e quanto às funções dos arguidos, entendemos que a concretização do dever de fiscalização terá que ser feita em sede de direito, esclarecendo que apenas demos como assentes as funções que derivam dos estatutos e da informação do lar de A... de fls. 405 e 406, sendo que quanto ao contacto dos arguidos com os utentes aqui em causa, o mesmo foi inexistente, com exceção da arguida BB que teve contacto com o mesmo aquando da admissão. No resto, os arguidos negaram contacto e as testemunhas inquiridas e que trabalhavam na instituição sempre referiram, no que ao período em causa importa, que quando os utentes estiveram em isolamento ou quarentena apenas os AAD interagiram com os utentes. Já em relação aos enfermeiros, os mesmos (RR, LL e NN) depuseram que tinham total autonomia para efetivação de diagnósticos e cuidados de saúde, tendo a enfermeira NN referido que foi ela quem enviou o utente FF para o hospital, por ter sido alertada pela AAD que contactou diretamente com o utente FF que o mesmo não estaria bem».

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Apreciando os fundamentos do recurso.

I) Impugnação da matéria de facto e vícios decisórios.

O recorrente impugna parcialmente a matéria de facto considerada provada constante do ponto 9), considerando que a prova produzida na audiência de julgamento, de natureza documental, impõe que da sua redação fique a constar o segmento «andava algaliada cronicamente», incluído no despacho de acusação. E considera, para além disso, que a decisão enferma dos vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova (vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP).

Vejamos se lhe assiste razão.

Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal).

A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber:

- no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento;

- mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.

Quanto a esta última modalidade de impugnação (a ampla) o legislador impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa; ónus que tem que ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão [2].

O ónus de especificação deve, assim, ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não «por atacado», impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado [3].

Havendo gravação das provas, tais especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal).

Tais imposições legais fundam-se na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico [4].

O ónus de impugnação especificada foi observado pelo recorrente de forma adequada, pelo que importa analisar as razões de discordância enunciadas quanto à decisão sobre a matéria de facto reportada aos segmentos atrás identificados.

Neste âmbito importa notar que o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e, por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida [5].

O ponto 9) da matéria de facto provada tem o seguinte teor, reproduzindo parcialmente o que constava do despacho de acusação: «A ofendida EE padecia de doença neurológica degenerativa (paraparésia espática hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, mas mantinha independência para certas atividades, designadamente para alimentação».

Considera o recorrente que a prova documental constante dos autos comprova que a ofendida EE tratava-se de doente «algaliada cronicamente», inexistindo qualquer justificação que o tribunal a quo tivesse feito constar da motivação da decisão de facto para a exclusão daquele segmento.

Analisando a prova documental indicada pelo recorrente [em concreto, o «relatório de urgência» referente à admissão da mencionada ofendida no serviço de urgência do Centro Hospitalar ..., provinda do Lar de A..., no dia 3/4/2020, constante do Anexo 3 junto aos autos] verificamos que, efetivamente, tal meio de prova comprova que a ofendida EE, internada no Lar de A..., tratava-se de doente «algaliada cronicamente», o que deve ser incluído no ponto 9) dos factos provados, de forma coincidente com o que consta do mesmo ponto da acusação [«andava algaliada cronicamente»].

Resolvida esta questão, analisemos os restantes fundamentos do recurso que se prendem com a impugnação da matéria de facto.

Como vimos, o Ministério Público/recorrente aponta, à decisão recorrida, a existência dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP.

As hipóteses que configuram o chamado recurso de «revista ampliada» integram-se nas patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410.º, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem.

O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [6].

Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.

O vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP abrange, na verdade, dois vícios distintos:

- A contradição insanável da fundamentação; e

- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [7].

Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

É de notar, porém, que a contradição ali postulada é só aquela que se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento, como é salientado no acórdão do TRL de 21/5/2015 [8].

Sustenta o recorrente que o acórdão objeto do presente recurso padece do vício de contradição insanável entre os factos provados e os não provados, argumentando que o segmento que o tribunal a quo considerou não ter ficado provado - «o estado de desidratação que a ofendida EE apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do lar A... e que o mesmo fosse visível por qualquer funcionário zeloso» – está em contradição com o conteúdo dos artigos 1º, 2º, 4º e 6º inseridos no elenco dos factos provados.

Vejamos, então.

O conteúdo dos pontos 1), 2), 4) e 6) da matéria de facto provada é o seguinte:

1) Como Instituição Particular de Solidariedade Social, registada na Direção Geral da Segurança Social (DGSS) sob a inscrição n.º .../84, desde 06/06/1984, o Lar A... é uma pessoa coletiva sem fins lucrativos, que tem como fins e principais atividades a concessão de bens, prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades, nomeadamente nos domínios do apoio a pessoas idosas e na resposta social da estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI). Tem as suas instalações na Rua ..., ... e ..., em ....

2) Em termos de funcionamento o ERPI Lar A... apresenta uma organização estruturada em que no topo da hierarquia se situa o Presidente da Direção, a seguir a Diretora Técnica, no nível abaixo a Chefe de Serviços Gerais, no seguinte as Encarregadas de Sector (Piso) e na base as Auxiliares de Acão Direta (AAD).

4) A Direção Técnica do ERPI compete a um técnico, cujo nome, formação e conteúdo funcional se encontra afixado em lugar visível e a quem cabe a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo. À Diretora Técnica compete, em geral, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços.

- à Chefe de Serviços Gerais compete organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais;

- às Encarregadas de Sector (Piso) compete coordenar no seu sector o serviço prestado pelo ERPI através das Auxiliares de Ação Direta aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar perlo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD.

- às Auxiliares de Ação Direta (AAD) realizar atividades de higiene, mobilização, alimentação do utente, manter as condições de limpeza e higienização nas instalações, garantir o cumprimento das prescrições médicas, fazer acompanhamento e zelar pelo bem-estar geral do utente.

6) Todas estes agentes exerciam as suas funções em virtude de um vínculo que os habilitava a assegurar o bem-estar dos utentes acolhidos no ERPI, agindo em nome e no interesse da instituição Lar A....

Reportando-se à análise da específica situação da utente EE, escreveu o tribunal a quo, no acórdão recorrido, o seguinte:

«Continuando na análise probatória centremo-nos na situação da utente EE, em que o Digno Magistrado do Ministério Público consubstancia a sua acusação no estado de desidratação que a mesma apresentou quando foi levada para o hospital, referindo que tal estado se deveu a deficiente ingestão de líquidos que deveriam ter sido fornecidos pelo lar A..., salientando que naquela data não havia encarregada geral e a encarregada do setor -piso2- estava de baixa médica, concluindo por uma omissão de prestação de cuidados da instituição por responsabilidade do arguido AA, enquanto presidente da direção, e da arguida BB, enquanto diretora-geral da instituição.

Sem cairmos na tentação de, nesta sede, tecermos considerações de direito, temos que da prova produzida se veio efetivamente a concluir que a testemunha MM estava de baixa médica, por ter sido infetada por covid 19. Isso mesmo foi confirmado por essa testemunha. Porém, não só essa testemunha esteve de baixa como muitas outras pessoas o estiveram em Abril de 2020, conforme foi dito pela enfermeira RR, que descreveu a situação naquele período como caótica, fruto da pandemia e da falta de meios que houve na altura, pois que muito do pessoal foi embora e outros ficaram infetados.

Em relação à utente EE, a testemunha MM afirmou recordar-se da mesma, afirmando que a referida EE tinha autonomia para consumir refeições, o que também foi confirmado pela sua irmã, a testemunha KK. Esta última testemunha afirmou que fruto dos condicionamentos motivados pelo Covid ficou impossibilitada de visitar a irmã, estando muito magoada com o lar, pois que não lhe deu quaisquer informações sobre o estado de saúde da sua irmã, desde que começou o confinamento, apenas lhe tendo comunicado o seu falecimento, raramente atendendo os telefonemas que efetuou, sendo que quando faziam, não a deixavam falar com a irmã, nem lhe davam informações sobre a mesma.

Dos elementos clínicos resultou que a mesma testou positivo ao Covid 19 em 19/04/2020 e que foi enviada ao hospital em 24/04, tendo vindo a falecer em 26/04. Na altura, em que deu entrada no hospital apresentou um estado de desidratação moderada. Dos elementos clínicos e do parecer médico junto aos autos, resulta que a utente tomava cerca de 16 horas diárias de oxigénio, o que pode determinar a secreção das mucosas, não havendo qualquer evidencia, conforme referido no parecer médico-legal, de que o estado de desidratação das mucosas seria facilmente observado por cuidador zeloso.

Com esta prova e tendo em conta os factos constantes da acusação demos como assente os factos em singelo, não sufragando qualquer conclusão vertida na acusação, embora de um modo não muito percetível, de que a instituição omitiu a sua obrigação de prestar os cuidados de saúde e de alimentação necessário ao bem-estar da utente.

Na verdade, não ficou provado nem foi alegado que a instituição negou água ou comida à utente, apenas parecendo resultar que alguém dentro da instituição se deveria ter apercebido desse estado de desidratação mais cedo e que o mesmo era notório. Todavia, isso não resulta da prova produzida, pois que no parecer médico-legal o seu subscritor afirma não ter dados suficientes para dar uma resposta concreta a tal pergunta. Além disso, foi explicado pela testemunha GG, médico, que o estado das mucosas é apenas um dos elementos para aferir da desidratação, havendo muitos outros fatores e ter em conta para se poder efetuar um diagnóstico positivo. Se adicionarmos o estado caótico dos serviços, por todas as circunstâncias que acima referimos e que não podemos imputar a quem quer que seja e ainda o facto da utente estar infetada por covid 19, de que veio a falecer, o que fazia com que outras patologias como a possível desidratação não fossem tão evidentes face a essa doença mais grave, então não vislumbramos qualquer omissão por parte do pessoal do lar A... e muito menos do seu corpo dirigente».

Ora, a circunstância de a utente EE preservar autonomia para a realização de algumas atividades, alimentando-se sozinha, não significa, obviamente, que não carecesse de apoio, vigilância e supervisão por parte das colaboradoras do Lar de A..., que dela cuidavam, designadamente no que toca à ingestão de recursos hídricos em quantidade necessária, tanto mais que, como reconheceu o tribunal a quo nos pontos 9) e 35) da matéria de facto provada, a ofendida, pelas comorbilidades que apresentava, tratava-se de pessoa especialmente vulnerável.

Sendo assim, e considerando, ainda, a natureza das obrigações assumidas pelo ERPI Lar A... para com a utente EE, com vista à satisfação de todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene e medicação de que esta carecia (cf., para além da factualidade expressamente invocada pelo recorrente, também o que resultou provado no ponto 8), parece-nos flagrantemente contraditória com esta realidade a negação, constante do elenco da factualidade considerada não provada, de que «o estado de desidratação que a ofendida EE apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do lar A...».

Como assinala o recorrente, o quadro de desidratação não é um estado normal da pessoa humana e, no caso em apreço, o estado de desidratação que a utente evidenciava quando foi observada pela equipa médica do serviço de urgência do Centro Hospitalar ... – classificável, medico-legalmente, como de gravidade moderada a grave (cf. os pontos 11) e 12) considerados provados) - resultou, como reconheceu o tribunal a quo, da não ingestão de substâncias hídricas em quantidades suficientes para compensar as perdas (cf. o ponto 13), sendo que, naturalmente, o seu fornecimento - ou, de modo equivalente, a supervisão da toma de líquidos em quantidades adequadas [9]– competia aos colaboradores do Lar de A..., entidade que assumiu a obrigação de cuidar da referida utente, especialmente vulnerável, já que padecia de doença neurológica degenerativa diagnosticada em 2009, deslocava-se em cadeira de rodas e andava cronicamente algaliada, encontrando-se, para além disso, doente com covid 19 e, por esse motivo, em isolamento, tal como assinalou o tribunal a quo na motivação da decisão de facto constante do acórdão recorrido.

Importa, assim, suprir a contradição insanável evidenciada, eliminando do elenco da factualidade não provada o descrito segmento factual dele constante [«que o estado de desidratação que a ofendida EE apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do Lar A...»] e corrigindo-se a redação do ponto 13) da matéria de facto provada, por forma a fazer constar da matéria de facto provada, em sintonia com o que constava do despacho de acusação, o seguinte:

«O estado de desidratação deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do ERPI Lar A... que dela cuidavam».

Resolvida esta questão, importa, agora, indagar se a decisão recorrida está afetada de «erro notório na apreciação da prova» - vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP -, como sustenta o recorrente.

O «erro notório na apreciação da prova» configura uma patologia extrema da decisão que, não se confundindo com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova levada a efeito pelo julgador, traduz-se na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, violadora das regras da experiência, das legis artis ou das regras sobre o valor da prova vinculada, refletida no próprio texto da decisão recorrida. Radica, assim, em situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova, em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[10]

Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum [11].

Neste contexto, é de notar que, no âmbito da valoração e apreciação crítica da prova, o tribunal rege-se pelo princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação e na sua convicção pessoal, segundo as regras da experiência [12].

Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g, por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só [13]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível [14].

Densificando o vício decisório cuja análise agora nos ocupa, começa o Ministério Público /recorrente por assinalar, reportando-se ao segmento da matéria de facto não provada anteriormente tratado, o seguinte: «No segmento específico de o estado de desidratação que a ofendida EE apresentava “não ser visível por qualquer funcionário zeloso”, pode ainda configurar o vício do erro notório na apreciação da prova, do n.º 2, alí. c) do art. 410.º do CPPenal. Com efeito, tendo-se considerado no artigo 12.º dos factos provados que o estado de desidratação sofrido pela utente era do ponto de vista médico-legal de gravidade moderada a grave, decorre da experiência comum que estes estados de desidratação habitualmente estão associados a sintomas como dores de cabeça, cansaço, boca seca, redução da urina, que, a terem existido, como seria expectável no caso desta residente, facilmente poderiam ser percecionados por cuidador atento e zeloso, o que não aconteceu. Por outro lado, como atrás já se consignou, “porque se trata de factos de conhecimento geral decorrente de um grau mínimo de experiência de vida e da vulgarização e massificação de certos ensinamentos básicos de ciência médica ao alcance de todos nós, nem os estados de desnutrição e de desidratação são fenómenos súbitos ou de emergência espontânea, antes constituem condição física que são o culminar de um processo mais ou menos prolongado no tempo e que são fortemente indiciadores da qualidade (ou falta dela) dos cuidados de alimentação, higiene, saúde e bem estar físico prestados à pessoa que os apresenta” – Ac da Relação de Lisboa de 23/02/2022, Relatora Desembargadora Cristina Almeida e Sousa- donde, a conclusão a extrair é a de caso esta residente tivesse sido tratada por cuidadores atentos, interessados e com conhecimentos da atividade, facilmente teriam concluído que a utente se encontrava em processo progressivo de desidratação».

Não reconhecemos, porém, razão ao recorrente na crítica que, neste âmbito, dirige ao acórdão recorrido, não se evidenciando pela leitura da decisão em causa que o tribunal a quo, julgando não provada a matéria factual relacionada com a cognoscibilidade do estado de desidratação evidenciado pela utente EE por «qualquer funcionário zeloso», haja violado regras da experiência comum ou ainda regras de valoração da prova vinculada (maxime, de natureza pericial).

Com efeito, todos os sintomas físicos enunciados pelo recorrente [dores de cabeça, cansaço, boca seca, redução da urina] assentam num exercício meramente especulativo, sem tradução na factualidade especificamente atendida pelo tribunal a quo (e que, de resto, nem sequer estavam descritos no despacho de acusação, como se constata da respetiva leitura). Além disso, o tribunal faz menção ao parecer médico-legal constante dos autos, salientando que não existia qualquer evidência, conforme ali referido, que «o estado de desidratação das mucosas seria facilmente observado por cuidador zeloso», acrescentando que «foi explicado pela testemunha GG, médico, que o estado das mucosas é apenas um dos elementos para aferir da desidratação, havendo muitos outros fatores e ter em conta para se poder efetuar um diagnóstico positivo».

Prossegue o recorrente, assinalando a existência de «erro notório na apreciação da prova» relativamente ao segmento da matéria de facto não provada relacionado com a invocada incorreta interpretação dos dados revelados pela troca das fraldas [«que as AAD que prestaram cuidados ao utente FF tivessem interpretado de forma incorreta os dados revelados pela troca de fraldas»].

Ora, apesar de nos parecer evidente que era efetivamente exigível ao ERPI Lar A... que tivesse dado ações de formação às AAD, designadamente para correta avaliação do estado de hidratação dos utentes acamados – como era o caso do utente FF – através do controlo das fraldas, a simples leitura do acórdão recorrido não evidencia a ocorrência de um erro na apreciação da prova – e, muito menos, de forma notória – por referência ao segmento factual em apreço.

Com efeito, é certo que as auxiliares de ação direta que nos dias 27 e 28 de agosto cuidaram do ofendido não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem – como deveriam -, nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de agosto. Contudo, os elementos disponíveis resultantes do acórdão não revelam se tal omissão ficou a dever-se, efetivamente, a deficiente interpretação dos dados resultantes da observação da urina contida nas fraldas do utente FF ou a qualquer outro motivo (descuido, desatenção ou até esquecimento por parte das AAD).

Já a conclusão de que os arguidos se demitiram das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes aos cargos que ocupavam e que essa omissão foi causal do estado de desidratação que os utentes em causa sofreram – conclusão excluída pelo tribunal a quo, levando, por isso, à inclusão da factualidade respetiva na matéria de facto não provada – impunha-se como decorrência lógica dos factos que o tribunal, no acórdão recorrido, considerou terem ficado provados e, em particular, dos que constam dos pontos 1), 2), 3), 4), 5), 6) – estes, relacionados com as funções atribuídas aos cargos dirigentes do ERPI e respetivos colaboradores - e 7), 8), 9), 13),16), 18), 20), 21), 25), 26), 27), 28), 29), 30), 31), 32), 33), 35), 36) e 37) da matéria de facto provada.

Como foi reconhecido pelo tribunal a quo, os dois ofendidos, pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam, eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o ofendido FF era totalmente dependente dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo ERPI Lar A... (cf. o ponto 35 da matéria de facto provada).

O Lar A... é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem uma estrutura residencial para idosos, prestando esse serviço, tendo sido utentes desta estrutura a ofendida EE (nascida em ../../1952), no período compreendido entre 22/8/2018 a 26/4/2020 (data do seu óbito), e o ofendido FF (nascido em ../../1928), no período de 18/08/2020 a 29/08/2020.

Competia, assim, ao Lar A... assegurar a execução das tarefas necessárias a garantir o bem-estar e saúde dos respetivos utentes, provendo diariamente pela sua alimentação e cuidados médicos.

Deste modo, e como bem assinala o recorrente, da factualidade apurada pelo tribunal resulta inequivocamente configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, particularmente destes dois ofendidos, derivada do especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a instituição arguida estava contratualmente obrigada e, ainda, a situação de vulnerabilidade e dependência, fruto da doença das duas vítimas [e também da sua idade avançada, no que concerne ao ofendido FF]. É de notar que, no que concerne à utente EE, a circunstância de preservar autonomia para a realização de algumas atividades, alimentando-se sozinha, não significa, como já tivemos oportunidade de assinalar, que não carecesse de apoio, vigilância e supervisão por parte das colaboradoras do Lar de A..., que dela cuidavam, designadamente no que toca à ingestão de recursos hídricos em quantidade necessária, uma vez que, como reconheceu o tribunal a quo nos pontos 9) e 35) da matéria de facto provada, a ofendida, pela condição de saúde que apresentava, tratava-se de pessoa especialmente vulnerável.

Reconhece-se que a situação pandémica, então vivenciada, introduziu restrições relevantes ao nível do contacto direto com os utentes deste tipo de estabelecimentos, impondo, em determinados casos, medidas de isolamento obrigatório, como sucedeu com o utente FF (cf. o ponto 18) e, tanto quanto resulta do acórdão recorrido, também com a utente EE. Contudo, nem tal circunstância, nem o facto de competir às AAD fazer o acompanhamento direto aos utentes, pode significar um esvaziamento das funções de organização, supervisão e vigilância atribuídas ao Presidente do Lar e, em especial, à Diretora Técnica, à Chefe de Serviços Gerais e à Encarregada de Piso [15].

Dir-se-á, até, que as especiais limitações e dificuldades decorrentes da situação pandémica deveriam ter levado aqueles que, na estrutura, exerciam funções de organização, liderança, vigilância e supervisão a uma maior e atenta intervenção, de forma a garantir que os serviços prestados pelo ERPI asseguravam os cuidados básicos destes utentes. Sucede que, não obstante os arguidos AA, BB, CC e DD terem, estatutariamente, funções de supervisão, vigilância e coordenação, aparentemente não as exerciam relativamente ao desempenho das AAD, limitando-se a confiar nas informações por elas prestadas, designadamente à equipa de enfermagem (cf. os pontos 27), 31), 33), 36) e 37) da matéria de facto provada), apesar de ser conhecida a falta de formação técnica específica daquelas profissionais (cf. os pontos 32) e 33) considerados provados).

Sendo particularmente evidente a gravidade da omissão deste dever de vigilância em relação ao ofendido FF, dada a sua condição de dependência absoluta dos cuidados que lhe eram prestados – impondo-se, por isso, que o ERPI, conhecedor deste facto, tivesse delineado estratégias com vista a garantir uma adequada ingestão hídrica por parte do utente (cf. os pontos 7, 22, 24 e 25) -, também estamos convictos de que a circunstância de a utente EE se alimentar por si e de o seu estado de desidratação, de gravidade moderada a grave, poder não ser percetível, não afasta a responsabilidade do Lar, por se ter obrigado a prestar-lhe todos os cuidados necessários ao seu bem estar através dos diferentes colaboradores que trabalhavam para si, sejam aqueles que diretamente tinham essa tarefa (as AAD), como aqueles que ocupavam cargos de chefia e que tinham a missão de se certificar da qualidade do serviço prestado, mostrando-se exigível a adoção de procedimentos adequados à concretização de tal objetivo. Neste sentido, assume relevância, como salienta o recorrente, que só após o episódio ocorrido com o utente FF quem dirigia o Lar deu instruções específicas para a hidratação dos utentes, o que não existia até então (cf. o ponto 48) dos factos provados), evidenciando uma falha ao nível dos procedimentos adequados que, a par da inexistência de efetiva e eficaz vigilância dos serviços e cuidados prestados pelas AAD, esteve na origem do estado de desidratação que afetou os dois utentes, realidade que deveria ter sido reconhecida pelo tribunal coletivo, pois regras da lógica e da experiência comum assim o impunham [16].

Dito isto, não podemos deixar de assinalar que a análise da prova (tal como se encontra enunciada na decisão recorrida), em conjugação com juízos de normalidade decorrentes da experiência comum, implicava que o tribunal tivesse retirado as necessárias ilações quanto ao dolo dos arguidos.

Com efeito, a prova do dolo, na ausência de confissão, assenta naturalmente em prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível dos arguidos, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum [17].

Ora, sabendo-se que se tratava de utentes com as caraterísticas atrás referidas, que os tornava pessoas especialmente vulneráveis, e demitindo-se os arguidos de exercer as suas funções de organização, vigilância, inspeção e orientação das AAD, comportamentos que serviriam para corrigir ou reduzir ao mínimo qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos que lhes eram prestados, impunha-se logicamente a conclusão de que os arguidos admitiram como possível que de tal omissão poderiam resultar para aqueles utentes estados de desidratação, conformando-se com tais resultados.

É esta, efetivamente, a única conclusão lógica a extrair da globalidade da prova e dos demais factos feitos constar no elenco da factualidade provada – tarefa que o tribunal não levou até ao fim, quando regras da experiência e da lógica assim o impunham, incorrendo, deste modo, num erro notório na apreciação da prova.

Exigia-se, assim, na conclusão de uma tarefa consequente com os princípios da lógica e adequada valoração da prova apreciada na sua globalidade, tal como se encontra enunciada na decisão recorrida, a seleção dos factos que se afiguravam congruentes com a atuação dolosa dos arguidos AA, BB, CC e DD.


*

Como se assinala no acórdão do TRP de 22/6/2016 [18], o reenvio do processo para novo julgamento, previsto no art.426.º, do CPP, deve constituir a exceção e a sanação dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, deve ser a regra. O tribunal de recurso só deve proceder ao reenvio quando for objetivamente inviável a decisão da causa pela segunda instância com os elementos de que dispõe.

No presente caso, é possível sanar no tribunal de recurso o aludido vício, alterando a decisão sobre a matéria de facto.

Assim, ao elenco dos factos provados são aditados os seguintes, reproduzindo o sentido da factualidade constante da acusação:

- O estado de desidratação [da utente EE] deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do ERPI Lar A... que dela cuidavam (aditamento à matéria de facto provada, reproduzindo parcialmente o artigo 13.º da acusação – o que, como vimos, também decorria da supressão do vício de contradição insanável, já tratado).

- Encontrando-se a ofendida EE aos cuidados da arguida ERPI Lar A... e podendo e devendo a instituição assegurar a alimentação, saúde e demais cuidados necessários ao seu bem-estar, através dos seus diferentes colaboradores, por falta de cuidado e de assistência, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável do estado de desidratação em que a ofendida se encontrava, quando no dia 24/4/2020 deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ... (artigo 17º da acusação, corrigindo-se o erro de escrita aí constante quando à menção da data).

- O estado de desidratação deste ofendido [FF] deveu-se a uma insuficiente ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos pelos colaboradores do ERPI que dele cuidavam e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos (correção do ponto 25) da factualidade provada, em consonância com o artigo 26º da acusação).

- Não obstante se ter detetado uma diminuição progressiva da urina na fralda a partir de 27 de Agosto, que deveria funcionar como alerta para o cuidador de que algo não estaria a correr com normalidade a nível do fornecimento dos recursos hídricos ao ofendido, as Auxiliares de Ação Direta que nos dias 27 e 28 de Agosto cuidaram do ofendido, cuja identidade não foi possível apurar, não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de Agosto (correção do ponto 31) da matéria de facto provada, em parcial consonância com o alegado no artigo 30.º da acusação).

- Igualmente, a correção do comportamento de quem diretamente cuidou deste utente (AAD) não foi efetuada pelas chefias, por se terem demitido do exercício das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes ao cargo que ocupavam (aditamento ao elenco dos factos provados, reproduzindo o artigo 33.º da acusação).

- Encontrando-se o ofendido FF aos cuidados da arguida ERPI Lar A... e podendo e devendo a instituição assegurar a alimentação, saúde e demais cuidados necessários ao seu bem-estar, através dos seus diferentes colaboradores, por falta de cuidado e de assistência, que podia e devia ter prestado, mas omitiu, foi a responsável do estado de desidratação em que o ofendido se encontrava, quando no dia 29/8/2020 deu entrada no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ... (artigo 34º da acusação).

- Pelas funções que os arguidos AA, BB, CC e DD desempenhavam na estrutura do ERPI Lar A... recaía o dever jurídico de acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes nele acolhidos pelos diferentes colaboradores, de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem-estar geral, servindo a sua intervenção para corrigir, debelando ou reduzindo o mais possível qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados aos residentes e aqui ofendidos EE e FF (artigo 36.º da acusação).

- Ao omitir o dever de vigilância e fiscalização, os arguidos AA e BB representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral dos dois ofendidos e, apesar disso, permaneceram inativos, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., o que lhes causou sofrimento (artigo 37.º da acusação).

- Do mesmo modo, ao omitir o dever de acompanhamento, vigilância e fiscalização, as arguidas CC e DD representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem-estar geral do ofendido FF e, apesar disso, permaneceram inativas, assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontrava aquando da sua submissão ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ... (artigo 37.º da acusação).

- Atuaram livres, conscientes e voluntariamente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (artigo 38.º da acusação).

Simultaneamente, devem ser eliminados os seguintes segmentos da matéria de facto não provada, para além dos referenciados através de formulação genérica utilizada pelo tribunal a quo («outros factos alegados na acusação, contestação ou durante a discussão da causa, que se mostrem em contradição com os factos dados como provados ou por eles prejudicados»):

- que o estado de desidratação que a ofendida EE apresentava resultasse de qualquer omissão das colaboradoras do Lar A...;

- que os arguidos devessem ter dado ações de formação às AAD para correta interpretação dos dados resultantes da troca de fraldas;

- que os arguidos se tivessem demitido das suas funções de vigilância, fiscalização e acompanhamento dos cuidados básicos inerentes aos cuidados que ocupavam e que essa hipotética omissão tenha sido causal do estado de desidratação que os utentes em causa sofreram.


*

II) Enquadramento jurídico-penal.

a. Verificação dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito do crime de maus tratos.

Escreveu-se no acórdão recorrido, a propósito do crime de maus tratos imputado à totalidade dos arguidos, o seguinte (segue transcrição parcial do texto, com exceção das notas de rodapé):

«O crime de maus tratos vem previsto no art.º 152.ºA, do Código Penal.

O art.º 152.º A, do C. Penal dispõe do seguinte modo:

1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:

a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;

b) A empregar em atividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou

c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

Esta disposição legal está inserida no capítulo dos crimes contra a integridade física, sendo que a sua ratio está na proteção da pessoa individual e da dignidade da pessoa humana.

O bem jurídico protegido é a saúde entendida como um bem jurídico complexo suficientemente amplo e nas suas múltiplas dimensões para se identificar com a integridade do ser humano, em todas as suas componentes física, psíquica, mental e moral a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, nos mesmos termos em que se encontra protegida no art. 25º da CRP.

Tal como acentuado, na exposição de motivos inserta na Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojecto da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, do qual resultou este art. 152º A do CP, a razão de ser desta incriminação é o fortalecimento da defesa dos bens jurídicos visados com a incriminação, especialmente, «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas».

O referido preceito visa, pois, a prevenção, combate e repressão de frequentes e quase sempre subtis formas de violência física, psíquica e sexual dirigidas contra pessoas com menor capacidade de reação ou defesa, tidas como mais frágeis ou vulneráveis a partir de certos índices, como a idade, doença, ou condição física ou psíquica ou gravidez e quando envolvidas num contexto relacional muito específico com o agressor: trata-se de relações de poderes/deveres de cuidado, de guarda, de direção ou educação, ou de natureza laboral que criam, pela sua própria existência, um certo ascendente natural ou posição mais privilegiada ou preponderante do agressor em relação ao agredido.

O vínculo de dependência existencial da vítima em relação ao autor do crime já não se funda na coabitação, nas relações familiares ou de namoro e afins como na violência doméstica, mas numa ligação institucional: o art. 152ºA, «(…) tem por objeto os maus tratos praticados nas escolas, hospitais, nas creches ou infantários, em lares de idosos ou instituições ou famílias de acolhimento de crianças, bem como os maus tratos cometidos na própria casa de habitação (por exemplo contra a empregada doméstica ou “baby-sitter”) ou na empresa, não deixando de fora, ainda e por exemplo, as pessoas que assumam, espontânea e gratuitamente, o encargo de tomar conta de “pessoas particularmente indefesas”, nomeadamente crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência» (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 536).

Neste crime tutela-se um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana, pelo que, para constituir maus tratos, a conduta do agente deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas características (a analisar no caso concreto, à luz do específico contexto relacional existente entre o agente e a vítima, correspondente a um dos descritos no corpo do n.º 1 da norma incriminadora), se reflete negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduz à degradação da sua dignidade pessoal.

Desta forma, os atos praticados pelo agressor, que podem ser de várias espécies, são considerados na sua integração num comportamento global dotado de uma unidade de sentido de ilicitude, cujo elemento característico corresponde, precisamente, ao tipo dos maus tratos, previsto no artigo 152.º-A do Código Penal.

Por sua vez, o art. 10º do CP equipara, em geral, a omissão à ação, nos crimes de resultado, estabelecendo que, quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como também a omissão adequada a evitá-lo. São os crimes comissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, nisso se distinguindo dos crimes omissivos puros que se caracterizam pela simples abstenção de agir e são crimes de mera atividade.

A punibilidade do omitente depende da existência de um específico dever jurídico que o obrigue a agir, para evitar o resultado. Só há equivalência entre o desvalor da ação e o desvalor da omissão, porque o agente tem uma posição de garante da não produção do resultado, à luz de um dever jurídico de agir que constituí o fundamento da punição e sem o qual a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um.

O facto típico materializa-se na «criação de um risco de verificação de um resultado típico» que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da ação esperada e exigível por referência àquilo que segundo a descrição típica é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a ação devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Dto Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928).

Para haver imputação do resultado à conduta do agente é necessário que exista entre a conduta (ação ou omissão) e o resultado, um nexo causal concreto, ou seja, é indispensável que tenha sido a conduta a causa efetiva do resultado.

Esclareça-se ainda que o dever jurídico de garante da não ocorrência do resultado antijurídico pode resultar diretamente da lei (dever legal especial), de um contrato, de situações de criação de perigo e/ou relações familiares íntimas de solidariedade e confiança que importem a aceitação de facto de deveres cuja execução importe ingerência/apoio entre o omitente e o titular do bem jurídico que suporte o dever de agir, numa posição de proteção ou de uma posição de controlo.

Por fim, este crime é doloso, pressupondo uma conduta dolosa do agente, por ação ou omissão.

Passemos a explicar e a integrar com uma linguagem menos jurídica o que está aqui em causa nos autos.

Na tese da acusação, havia um dever jurídico de garante por parte do lar, por estarmos perante duas pessoas idosas, acamadas e sem possibilidades de asseguraram as suas necessidades básicas de higiene e alimentação, sendo que esse dever jurídico advinha do contrato celebrado entre as pessoas em causa e o lar que resultou na admissão das mesmas nas instalações do Lar A....

Por causa desse contrato e na tese da acusação, o lar tinha que assegurar as necessidades básicas desses utentes, sendo que ao não fazê-lo, designadamente ao não dar líquidos aos 2 utentes provocou-lhes uma doença. Porém, a acusação não acusou as pessoas singulares que alegadamente eram as responsáveis por não fornecer os líquidos e não o fizeram, ou seja quem omitiu tal ação, mas sim aqueles que, na sua ótica, tinham o dever de verificar se os líquidos eram ministrados ou não e, em caso negativo, de os ministrar ou de ordenarem a outros para fazê-lo. Além disso, também entendeu que ao alegadamente não dar formação especifica aos seus funcionários os AAD para poderem detetar situações de desidratação, os seus dirigentes ocorreram numa omissão grave que poderia ter evitado a desidratação dos utentes.

Passemos então à subsunção dos factos ao direito que acabamos de descrever.

Começando pelo primeiro requisito do art.º 152.º-A não há dúvida do seu preenchimento, pois que por força do contrato celebrado entre a instituição arguida e os utentes em causa, a mesma tinha obrigação de providenciar de cuidados básicos dos utentes como a habitação, alimentação, higiene e saúde, sendo que os arguidos pessoas singulares também estavam sujeitos a esse dever geral de garante por força das funções exercidas no seio da pessoa coletiva.

Já quanto ao conceito de pessoas especialmente vulneráveis também entendemos que o mesmo está preenchido, atentas as patologias que padecem os utentes em causa.

O art.º 67-A do CPP prevê o seguinte:

a) 'Vítima':

i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime;

ii) Os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte;

iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;

b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;

No caso em apreço e apesar de estarmos perante graus e situações diferentes, não temos dúvidas em concluir que EE e FF, pela idade que tinham e pelas doenças que padeciam, eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o facto da EE se conseguir alimentar sozinha, a sua vulnerabilidade não era tão acentuada quanto a do FF.

Avançando na análise das condutas chegamos ao terceiro ponto que consiste em saber se foram infligidos aos utentes em causa maus-tratos físicos.

Analisando os factos temos que os arguidos não vêm acusados por nenhuma ação, mas sim por omissão. E aqui a omissão consiste no facto dos utentes em causa não terem ingerido líquidos em quantidade suficiente para evitar que tivessem ficado desidratados e de tal facto se ter ficado a dever à circunstância de não lhe terem sido ministrados pelos colaboradores do ERPI, bem como ao incumprimento do dever de controlar a atividade das AAD de quem teria essa obrigação dentro da instituição.

Da factualidade provada ficou assente que eram as AAD que tinham contacto direto com os utentes, sendo elas as responsáveis pela prestação dos cuidados de higiene e alimentação dos utentes. Questão que se coloca é saber se essas técnicas deram ou não quantidade suficiente de líquidos aos utentes para evitar a desidratação. Ora, de uma forma objetiva temos que responder que os líquidos que os utentes ingeriram não foram suficientes para compensar a perda, mas isso não significa que tenha havido culpa de alguém no deficit de líquidos que foi detetado nos utentes.

Com efeito e desde logo o verbo dar tem de ser entendido de forma diferente relativamente aos dois utentes, pois que a utente EE conseguia alimentar-se sozinha e o utente FF não. Logo, entendemos que o termo mais correto, relativamente à utente EE, será o de proporcionar e em relação ao utente FF ministrar. E aqui esta distinção prende-se com o facto da utente EE ter autonomia suficiente para se alimentar o que não sucedia com o utente FF.

Prosseguindo na análise temos que foi diagnosticada à utente EE uma desidratação moderada a grave, apresentando mucosas coradas, mas desidratadas.

O estado de desidratação resultou da insuficiente toma de líquidos que compensassem as perdas, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal. Por fim, entre 19 de Abril a 24 de Abril de 2020, a utente EE estava em isolamento por ter dado resultado positivo ao Covid.

Com estes factos e não tendo ficado assente que alguma vez tenha sido negada água ou líquidos à utente e estando a mesma em isolamento e em condições de se alimentar a si mesma, não vislumbramos em que medida possa ter havido qualquer atitude negligente dos funcionários do lar, no que concerne a esta doença - desidratação. Na verdade e começando pelo primeiro argumento, a utente alimentava-se sozinha e não estava totalmente dependente de terceiro, pelo que a toma de líquidos não tinha que ser ministrada pelos funcionários, mas apenas proporcionada – colocar água à disposição. Também verificar e acompanhar se a utente bebia ou não a água que lhe era proporcionada é algo difícil de se fazer e algo que naquela altura, com inúmeros casos graves de covid, não seria preocupação primordial dos funcionários do lar. Acresce que essa desidratação não era visível – as mucosas não estavam coradas - pelo que teria que haver um diagnóstico mais profundo, algo que apenas poderia ser efetuado por equipas de enfermagem ou equipas médicas.

Assim sendo e se houvesse alguma responsabilidade pelo estado de saúde da EE, designadamente pelo seu estado de desidratação, a mesma seria da equipa médica ou de enfermagem, pois que as mesmas, no Lar A..., tinham total autonomia para efetuar diagnósticos, o que aliás constituiu uma prática usual e é uma boa prática.

Mas será que houve?

Os factos em causa sucederam-se em pleno período de pandemia, no seu início, em que as medidas decretadas eram um pouco contraditórias, havendo mais dúvidas que certezas sobre o que fazer. Nesse período e por haver elevados surtos de covid em lares, foi decretado o encerramento dos mesmos. No Lar A... muita gente foi infetada, estando em Abril de 2020, cerca de 20 funcionários do lar ausentes do serviço, por variadas razões – infetados, isolamento obrigatório ou recusa em trabalhar. O estado de desidratação que a utente EE padecia - moderada/grave - resultou da insuficiente toma de líquidos que compensassem as perdas, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal. A utente EE estava infetada com covid, estando em isolamento coercivo. Naquela altura e para evitar o contágio, os contactos com os infetados eram reduzidos ao mínimo possível. A utente tinha autonomia para se alimentar. A desidratação não era visível nas mucosas. A utente veio a falecer por covid e não por desidratação.

Com este quadro não vislumbramos em que medida tenha havido qualquer negligencia ou qualquer omissão por parte da equipa médica ou de enfermagem, não lhes sendo exigível qualquer outro comportamento. Com efeito e com o diagnóstico de covid 19, a doença a tratar era essa, sendo que não estando visível a desidratação, não era expetável que se fizesse um despiste a essa doença, uma vez que a mesma não era prioritária. Além disso, não nos podemos esquecer do quadro caótico que se viveu na altura em causa e na redução de contactos ao mínimo para evitar a proliferação da doença, pelo que não era exigível ao corpo clínico que verificasse a possibilidade de uma desidratação ou não.

Porém, não são as AAD e o corpo clínico que estão a ser julgados, mas sim a direção do lar, por alegadamente não ter exercido corretamente o seu dever de fiscalização no que concerne à utente EE, tendo permitido que a desidratação existisse e não fosse detetada. Ora, como já referimos não houve qualquer falha dos funcionários do lar a negar líquidos ou a não os proporcionar à utente, nem tampouco qualquer negligência na omissão de diagnóstico, pelo que não há qualquer responsabilidade dos arguidos AA e BB. No entanto e mesmo que tivesse havido negligência na omissão do diagnóstico ou falha na ação das AAD, o que não ocorreu, consideramos que mesmo assim os arguidos BB e AA não teriam praticado qualquer crime, no que se refere à utente EE.

Na verdade, não concordamos minimamente com a interpretação que o Digno Magistrado do Ministério Público parece fazer dos estatutos e do conceito geral do dever de fiscalização, sendo que da prova produzida não se pode retirar idêntica conclusão.

Com efeito e desde logo estamos perante uma instituição de caráter social que emprega dezenas de pessoas e serve centenas de utentes.

Esta instituição tem carater hierarquizado, estando o presidente da direção, na altura o arguido AA, no topo dessa pirâmide e a arguida BB no lugar imediatamente a seguir.

Como qualquer pessoa que ocupe uma posição de topo numa hierarquia, as suas funções são mais de gestão, deliberação e orientação do que de execução, propriamente dita. Mas isso não significa que também não tenham responsabilidade na execução dos planos que delinearam ou das linhas gerais que traçaram e que fiquem eximidos do dever de verificar se as suas decisões estão a ser implantadas e de forma correta.

Aplicando o que referimos no caso concreto, o poder de fiscalização desses arguidos seria apenas o de verificar e providenciar para ter equipas médicas ou de enfermagem para acompanhar os utentes e não de se intrometer nos seus diagnósticos ou tratamentos. Já no que concerne aos AAD o dever de execução e de fiscalização dos arguidos é apenas de garantir a sua existência e da existência em número suficiente para o bom funcionamento dos serviços, bem como garantir que têm meios suficientes para executar corretamente o seu trabalho, não se eximindo também de, quando alertados por utentes, terceiros ou por pessoas que trabalhem na instituição – não é expetável que um presidente da direção de uma instituição com carater social com centenas de trabalhadores ou de uma diretora-geral dessa instituição estejam a controlar e monitorizar as ações dos seus funcionários, antes deixando tal função para cadeias hierárquicas inferiores - exercer o seu poder hierárquico – dar ordens – ou disciplinar caso a função dos AAD não esteja a ser corretamente exercida.

Se assim não entendêssemos e perfilhássemos da posição do Digno Magistrado do Ministério Público, então o dever de fiscalização iria do topo ao final da cadeia hierárquica, tendo qualquer superior hierárquico que fiscalizar todos os elementos que lhe são inferiores nessa cadeia, não podendo delegar tal poder, pois que poderiam ser sempre responsabilizados criminalmente por atos dos seus subalternos. E isto não significa que não possam ser comprometidos por falhas dos seus subalternos, mas em sede de outro tipo de responsabilidade, como a politica, ética ou moral mas não sob a alçada da responsabilidade criminal. Assim e a titulo de exemplo, ao perfilhar-se esta posição (do Ministério Público), os diretores dos bancos seriam sempre e independentemente das circunstâncias responsáveis criminalmente por abusos de confiança dos seus funcionários, ou um diretor do hospital como o hospital de São João ou Santa Maria seria sempre responsável por um errado diagnóstico médico prestado na sua instituição ou os diretores nacionais das polícias seriam sempre responsáveis criminalmente por qualquer crime cometido pelo respetivo agente policial, etc. Claro que não é assim, não se podendo confundir a responsabilidade cível e possivelmente criminal da instituição, com a responsabilidade criminal do seu representante máximo ou do seu diretor-geral, confundindo-se o dever de fiscalização e/ou de controle com a obrigação de todos os funcionários executarem corretamente a sua função. A defender esta tese não haveria necessidade de haver chefias e postos intermédios, pois que a responsabilidade ultima seria sempre do cargo superior da empresa.

No caso e no que concerne à utente EE, não se verificou a prática de qualquer omissão por parte dos funcionários ou do corpo clínico da instituição, sendo que a existência da desidratação da referida utente e o seu não diagnóstico pelo corpo clínico não pode ser imputado a alguém da instituição.

Com isto não queremos referir que a morte de um utente não seja sempre de lamentar e que o facto referido pela irmã da utente de que a instituição nunca lhe deu noticias sobre a EE não seja de censurar- que é -, mas simplesmente que as pessoas acusadas não cometeram qualquer crime e que a sua alegada atuação, neste caso omissão, não teve qualquer nexo de causalidade com a morte da utente, que se deveu a uma doença que vitimou milhões de pessoas no mundo inteiro (últimos dados falam de 6.919.573 pessoas).

Quanto ao utente FF, deve-se aplicar o mesmo raciocínio, havendo que tecer mais algumas considerações, pela diferença da situação, nomeadamente pelo facto de haver mais pessoas da cadeia hierárquica a serem acusadas e de, felizmente, a doença em causa ter sido detetada e tratada a tempo, não ocorrendo um desfecho fatal como no caso da utente EE.

Acresce que para além de repetir a formulação genérica da responsabilidade criminal das pessoas individuais que formulou relativamente à utente EE, o Digno Magistrado do Ministério Público concretizou a omissão do dever de cuidado por parte das funcionárias do lar, com base num errado diagnóstico na análise da urina nas fraldas do utente FF, acusando as arguidas CC e DD de, na qualidade de superiores hierárquicas, não terem corrigido esse diagnóstico, e os arguidos AA e BB de não terem ministrado às funcionárias do lar ações de formação necessárias tendentes à correta interpretação desses dados.

Ora, não podemos concordar minimamente com tal interpretação, sendo que a mesma não tem qualquer correspondência com a realidade.

Primeiro ponto: o utente FF estava desidratado e, sendo uma pessoa tolamente dependente de terceiros, o estado de desidratação deste ofendido deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos.

Logo, e objetivamente a responsabilidade por esse facto poderia ser imputada a quem estava encarregue de lhe ministrar tais líquidos, ou seja as AAD, pois que o ofendido estava de quarentena como impunha a lei, e consequentemente, os contactos com as demais pessoas deviam reduzir-se ao mínimo para evitar possíveis contaminações. Não obstante, nenhuma dessas AAD foi acusada, tendo o Ministério Público optado por acusar a hierarquia desses funcionários, desde o 2.º andar da pirâmide (responsável do piso) até ao topo (diretor da instituição), com os argumentos que supra expusemos.

Com esta formulação da acusação o objeto do processo passa-se a centrar na omissão de diagnóstico e não na causa da doença. Logo é aí que nos temos de focar. Subsumindo a matéria de facto dada como assente, não conseguimos assacar qualquer responsabilidade criminal aos arguidos, não obstante a gravidade e seriedade da situação vivida pelo utente FF.

Na verdade, dos factos 20 a 36 não vislumbramos qualquer deficiência no diagnóstico, nem qualquer violação grave dos mais elementares organizacionais ou de cuidado que tivessem impedido uma correta avaliação do ofendido FF. Concretizando, temos que do ponto de vista organizacional, não podemos formular qualquer reparo à instituição. Foi feita uma triagem ao utente, foram indicadas as suas necessidades e o mesmo foi colocado de quarentena, como impunha a lei. Durante a quarentena foi sempre acompanhado pelas auxiliares de ação direta que lhe prestaram os cuidados de higiene e alimentação necessária, bem como reportaram a quantidade de urina nas fraldas e qualquer outro elemento anormal que se sucedia (factos 27 a 30).

Por outro lado, a leitura e interpretação dos dados resultantes da urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem.

Perante este cenário, não vislumbramos qualquer falha na organização da instituição para evitar a ocorrência de situações de doença, nem tampouco qualquer conduta negligente no diagnóstico do ofendido, sendo que sempre que foi solicitada a equipa de enfermagem não deixou de fazer recomendações e prescrever tratamentos ao utente. Por outro lado, a ausência de exames e observações de rotina, apesar de não ser a situação ideal, era justificável na altura em causa, pois que os recursos humanos não eram infinitos e os esforços estavam mais centrados na cura dos utentes do que na rotina e na prevenção. Por fim, esclareça-se que a quantidade de urina nas fraldas é apenas um elemento a ter em conta em conta para possíveis processos de desidratação, devendo articular-se com outros meios de diagnóstico como febre, falta de apetite, estado de prostração, etc, situações anómalas que nunca foram reportadas por quem contactava diretamente com o utente. Nessa conformidade, a conduta dos arguidos - pessoas singulares - não merece qualquer censura, pois não podendo/devendo aceder ao quarto do FF por este se encontrar de quarentena e não sendo reportada qualquer situação anormal quanto ao seu estado de saúde, não se vislumbra a necessidade e a obrigação de terem tido qualquer intervenção. Acresce que se houvesse algum sinal de alarme, também não seriam os arguidos a ter de intervir, mas sim a equipa médica ou de enfermagem, pelo que se torna incompreensível o teor da acusação. Por fim, saliente-se que se tomássemos o critério de urina nas fraldas como algo de absoluto, então também não mereceria reparo a atuação dos elementos clínicos da instituição arguida, pois que no dia em que realmente se verificou uma situação anormal – dia 29 de Agosto – foi imediatamente solicitada intervenção hospitalar e providenciado transporte para o utente.

Na verdade e apesar de no dia 28 ter havido duas mudas de fralda com nenhuma urina, certo é que no período da tarde já houve 2 mudas com pouca urina, pelo que, e apesar de não estar em causa a conduta da equipa médica ou de enfermagem, que não sabemos se chegou ou não a analisar aquele relatório, não podemos censurar a sua conduta de não enviar alguém para o hospital num quadro de pandemia, onde os hospitais eram muitas vezes focos de doença e propagadores do covid 19, sendo que tal pessoa se encontrava em isolamento profilático.

Logo, não houve qualquer omissão do dever funcional de qualquer um dos arguidos, que com a função que ocupavam e com as restrições que existiam não tinham obrigação nem tampouco forma de conseguir detetar uma desidratação que estava em pleno avanço, sendo que os sinais que estavam a ser reportados por quem tinha contato direto com o utente em nada apontavam nesse sentido e, no dia em que se poderia cogitar que algo estaria mal, a intervenção médica/hospitalar foi logo solicitada.

Além disso e mesmo que esses sinais fossem em sentido contrário, não cabia ao arguido AA, enquanto presidente da instituição, e à arguida BB enquanto diretora-geral, desencadearem os procedimentos necessários para a intervenção das equipas médicas e/ou de enfermagem, não podendo igualmente estender o conceito geral do dever de fiscalização destes arguidos a estas situações. Na verdade e reiterando o que já supra referimos não é exigível ao presidente ou a um diretor de uma instituição que emprega dezenas de pessoas e atende centenas de pessoas que fiscalize/verifique se um diagnóstico médico está a ser bem efetuado ou se a uma AAD muda corretamente a fralda de um utente. É indubitável que não tem tempo, nem competência para o efeito, sendo que se levássemos o dever de fiscalização a esse extremo, a cadeia hierárquica deixava de ser piramidal e cairíamos no ridículo de ter uma pessoa a executar, outra a verificar em tempo real se o serviço estava a ser bem feito e mais outra a verificar se quem fiscalizou o fez corretamente e assim sucessivamente. E aqui não vale a pena enunciar dezenas de acórdãos existentes em que os responsáveis do lar são responsabilizados criminalmente por maus tratos a idosos, pois estamos sempre perante situações muito diversas, nomeadamente e quase sempre de lares com natureza familiar, com poucos utentes e pouco trabalhadores, em que existe um contacto direito do proprietário com os utentes. Além disso, na maior parte das situações estamos perante casos muito mais graves do que o presente, em que há agressões ou situações de abandono total dos idosos, o que não é o caso pelo que o que podemos retirar desses acórdãos é a brilhante interpretação do direito efetuada pelos Venerandos Juízes Desembargadores e Conselheiros, mas não a subsunção dos factos ao direito pois aqui os factos são diferentes.

Já em relação às arguidas CC e DD, o seu dever de fiscalização já é diferente, pois que estão mais próximas hierarquicamente das AAD. Porém e no caso concreto não sendo imputável diretamente qualquer omissão às AAD - não está em causa não ter sido ministrada água ao utente FF, mas tão só não ter sido detetada mais cedo a desidratação que estava a padecer - não lhes pode ser igualmente imputado qualquer incumprimento desse dever de fiscalização, pois que nada de mal tendo sido feito pelo inferior hierárquico, o seu superior hierárquico não pode ser condenado por não ter verificado e corrigido o que não foi mal feito pelo subordinado. Além disso, mesmo que por mera hipótese académica e em abstrato se impusesse conduta diversa a essas duas arguidas, a realidade na altura impedia esse diferente comportamento, pois que estando o utente de quarentena, as orientações dadas pela DGS iam no sentido do mínimo contato exterior com as pessoas que estavam nessa situação, pelo que estas arguidas não poderiam, naquela altura, verificar in loco o que se estava a passar e, consequentemente fiscalizar de modo proativo as informações dadas pelas AAD, tendo de confiar e interpretar corretamente as informações por elas prestadas.

Por fim, a questão das necessárias ações de formação para interpretação da quantidade de urina nas fraldas.

Da prova produzida não resultou que esse tipo de ações existisse, tendo igualmente ficado provado que nesta área, atenta a enorme carência de pessoas, que a formação das AAD é adquirida através da experiência profissional e dos conselhos e ensinamentos dos mais velhos, sendo que a interpretação da quantidade de urina nas fraldas advém do senso comum, não sendo necessárias ações de formação específica. A esse respeito também não podemos deixar de revelar alguma surpresa pelo teor da acusação, mostrando estupefação pela alegada necessidade de ações de formação para interpretar a quantidade de urina na fralda, considerando este Tribunal que saber se uma fralda tem muita, pouca ou nenhuma urina nas fraldas é algo que decorre do senso comum e da normal experiencia de vida, não sendo necessitário recorrer a ensinamentos de terceiro para o efeito».

Estabelece o n.º 1, do art.º 152.º-A do Código Penal que, “1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) a empregar em atividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) a sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Esta incriminação resulta da autonomização do crime de violência doméstica relativamente ao de maus tratos que constava, antes da revisão do Código Penal de 2007, do art.º 152º Código Penal, segundo a redação que lhe foi introduzida pelo D. L. 48/95, de 15/3, entretanto modificada pelas Leis 65/98, de 2/9, e 7/2000, de 27/5, o qual tutelava diferentes formas de violência no seio da família, da educação e do trabalho.

Ainda que o bem jurídico coincida com o tutelado pelo crime de ofensa à integridade física, na medida em que «em causa estará então em ambos os casos, no essencial, a proteção de um estado de completo bem-estar físico e mental», como observa Nuno Brandão (in A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar nº12 (especial), ASJP, Lisboa, Set.- Dez. 2010, p. 13 e ss.), trata-se de assegurar a integridade da saúde física e mental de pessoas mais vulneráveis, o seu bem-estar físico, psíquico e emocional (cf. A. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 299).

Por isso, o bem jurídico protegido é a saúde, entendida como um bem jurídico complexo suficientemente amplo e nas suas múltiplas dimensões para se identificar com a integridade do ser humano, em todas as suas componentes - física, psíquica e moral, abrangendo ainda a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, nos mesmos termos em que se encontra protegida no art.º 25º da CRP.

Tal como acentuado na exposição de motivos inserta na Proposta de Lei n.º 98/X, Anteprojeto da Lei 59/2007, de 4 de setembro, do qual resultou este art.º 152.º- A do CP, a razão de ser desta incriminação é o fortalecimento da defesa dos bens jurídicos visados, especialmente «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas».

O referido preceito visa, pois, a prevenção, combate e repressão de frequentes e quase sempre subtis formas de violência física, psíquica e sexual dirigidas contra pessoas com menor capacidade de reação ou defesa, tidas como mais frágeis ou vulneráveis a partir de certos índices, como a idade, doença, ou condição física ou psíquica ou gravidez e quando envolvidas num contexto relacional muito específico com o agressor: trata-se de relações de poderes/deveres de cuidado, de guarda, de direção ou educação, ou de natureza laboral que criam, pela sua própria existência, um certo ascendente natural ou posição mais privilegiada ou preponderante do agressor em relação ao agredido.

O vínculo de dependência existencial da vítima em relação ao autor do crime já não se funda na coabitação, nas relações familiares ou de namoro e afins, como na violência doméstica, mas numa ligação institucional: o art.º 152º-A «(…) tem por objeto os maus tratos praticados nas escolas, hospitais, nas creches ou infantários, em lares de idosos ou instituições ou famílias de acolhimento de crianças, bem como os maus tratos cometidos na própria casa de habitação (por exemplo contra a empregada doméstica ou “baby-sitter”) ou na empresa, não deixando de fora, ainda e por exemplo, as pessoas que assumam, espontânea e gratuitamente, o encargo de tomar conta de “pessoas particularmente indefesas”, nomeadamente crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência» (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152ºA, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 536).

É, aliás, essencialmente, neste vínculo que o crime de maus tratos se distingue do de violência doméstica.

Assim, vítima ou sujeito passivo só pode ser uma pessoa que, simultaneamente, preencha dois requisitos positivos - o de que se encontre em relação de subordinação existencial ou laboral com o agente, ou seja, que a vítima esteja ao cuidado, à guarda ou sob a responsabilidade da direção ou educação do agente ou a trabalhar ao seu serviço; o de que seja menor ou particularmente indefesa em razão da idade (avançada), de deficiência, da doença ou da gravidez - e um outro, negativo - o de que não exista entre o agente e a vítima uma relação de coabitação, pois, nesse caso, estará em causa um crime de violência doméstica, nos termos da al. d) do nº 1 do art.º 152º.

Os modos de ação típica são muito diversificados em sintonia com a amplitude e complexidade do bem jurídico, estando enumerados exemplificativamente os comportamentos suscetíveis de qualificação como maus tratos físicos ou psíquicos, ao invés de uma enumeração taxativa, que não esgotaria todo o espectro de atos potencialmente lesivos do bem jurídico visado proteger com a incriminação do art.º 152º-A do CP.

O crime consuma-se tanto com as condutas integradoras de ofensas à integridade física simples (os maus tratos físicos), ou seja, todas as agressões que envolvam alguma perturbação no corpo e saúde da vítima, como com os maus tratos psíquicos, incluindo humilhações, provocações, quer estas se reconduzam ou não a atos, gestos, palavras, expressões, escritos, etc., englobando quaisquer comportamentos que ofendam a integridade moral ou o sentimento de dignidade da vítima, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros e compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional puníveis, em si mesmas, ou não, como crimes de injúria e difamação, de ameaça ou de coação.

O crime de maus tratos proíbe também o tratamento cruel, que não se traduz, necessariamente, na imposição de lesões físicas, mas pode incluir outros tipos de comportamentos que impliquem um desgaste constante na vítima, devendo caracterizar-se pela sua adequação à inflição de sofrimento físico ou psicológico com uma certa tónica de reiteração ou permanência.

Este tipo proíbe ainda a sujeição a atividades desumanas, perigosas ou proibidas, que assim deverão ser qualificadas por referência às características e fragilidades específicas de cada vítima que, respetivamente, as humilhem ou degradem, ou com utilização de meios particularmente perigosos, ou na colocação da vítima em situações, também elas, especialmente perigosas, ou que correspondam à prática de factos ilícitos.

Por fim, entre as modalidades de maus tratos também se contam os trabalhos excessivos. A excessividade dos maus tratos afere-se também atendendo às características da vítima e ao tipo de trabalhos concretamente impostos.

Segundo o critério do resultado material, tanto podem ser classificados como crimes de resultado – quando a execução típica se traduz em maus tratos físicos ou em privações da liberdade - como de mera atividade – no caso de a conduta integradora do tipo constituir provocações, ameaças ou o emprego em atividades perigosas, desumanas ou proibidas -, sendo que, nos primeiros, o resultado é elemento do tipo de crime e nos segundos, apenas constitui motivo da incriminação.

De acordo com o critério da intensidade da lesão do bem jurídico, estes crimes também podem ser crimes de dano, por exemplo no caso de ofensas sexuais ou corporais e das privações de liberdade, ou crimes de perigo, nas situações em que ocorram ameaças ou humilhações ou o emprego em atividades perigosas. Nos primeiros, a efetiva lesão do bem jurídico é elemento do tipo legal, enquanto nos segundos o tipo legal apenas exige a colocação em perigo do bem jurídico.

Trata-se de um crime específico que será impróprio quando as condutas integradoras do crime de maus tratos, isolada e autonomamente consideradas, já constituam crime (v.g. os maus tratos físicos que traduzirão sempre ofensas à integridade física e certas modalidades de maus tratos psíquicos reconduzem-se aos crimes de injúria, ameaça, difamação, coação sequestro), na medida em que a qualidade do autor do facto ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar.

Se as condutas não configurarem, em si mesmas consideradas, qualquer outro ilícito penal, como tal previsto na parte especial do CP, o crime de maus tratos será, então, um crime específico próprio pois, nestes casos, como quando se submete a vítima a atividades perigosas, a trabalhos excessivos, a certas formas de crueldade, é a qualidade do agente que constitui o motivo da incriminação.

No que especificamente concerne aos idosos, a Organização Mundial de Saúde define maus tratos como um ato único ou repetido, ou ainda, ausência de ação apropriada que cause dano, sofrimento ou angústia e que ocorra no contexto e desenvolvimento de um relacionamento de confiança que atenta contra a sua vida, ou é lesiva da sua integridade física ou psíquica, da sua liberdade, segurança económica ou compromete o desenvolvimento da sua personalidade (Action on Elder Abuse (AEA, 1993) e adotada pela Organização Mundial de Saúde - WHO/INPEA. Missing voices: views of older persons on elder abuse. Geneva: WHO; 2002, https://apps.who.int/iris/handle/10665/67371).

Assim, dentro destes limites e com estas características, podem enumerar-se como formas de maus tratos a idosos: qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fraturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas, que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos); os maus-tratos psicológicos ou emocionais, materializados em condutas que causam dano psicológico como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afetiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afeto, isolamento e marginalização; a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos), que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como seja, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de auto-negligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano, (cf., Hirsch CH, Stratton S, Loewy R., The primary care of elder mistreatment. WEST J MED 1999 Jun; 170 (6): 353-8; Fernández-Alonso MC, Herrero-Velázquez S. Maltrato en el anciano: posibilidades de intervención desde la atención primaria (I). Aten Primaria 2006 Ene; 37 (1):56-9; Howard M. Fillit, Kenneth Rockwood, John B Young, Brocklehurst's Textbook of Geriatric Medicine and Gerontology E-Book pp 943 e 944 https://www.us.elsevierhealth.com/ e Briony Dow e Melanie Joosten, Entendendo o abuso de idosos: uma perspetiva de direitos sociais, Janeiro de 2012, Psicogeriatria Internacional 24(6): 853-5 DOI: 10.1017/S1041610211002584 https://www.cambridge.org/core). [19]

Em princípio, a estrutura objetiva do tipo implica a reiteração, pois que a lesão do bem jurídico complexo protegido (a saúde) envolverá uma pluralidade de condutas da mesma ou de diferentes espécies repetidas por um período mais ou menos prolongado, embora com a expressão de «modo reiterado ou não» se admita que certas condutas isoladas, desde que dotadas de gravidade bastante, podem também operar a consumação dos maus tratos.

A imputação subjetiva do tipo, pese embora as diferentes modalidades que pode revestir, tem o seu fundamento exclusivo no dolo em qualquer das suas modalidades que, justamente por causa das diferentes formas que a consumação do crime de maus tratos pode revestir, tem conteúdo variável.

Implica, desde logo, sempre, o conhecimento da existência dos deveres inerentes à assunção da relação laboral, ou do vínculo de proteção-subordinação, do estado de menoridade, deficiência, velhice, doença ou gravidez da vítima.

Na vertente de maus tratos físicos, o dolo abrange o resultado, traduzindo-se na consciência e vontade de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido ou do perigo de afetação do normal desenvolvimento da criança aos cuidados do agente ou de criação de prejuízos para a saúde da vítima.

Existe, ainda, dolo (necessário ou eventual) quando o agente, não pretendendo diretamente causar o resultado danoso, tem consciência de que este ocorrerá como consequência necessária ou possível da sua conduta e com isso se conforma (cf. o art.º 14.º, nºs 2 e 3 do CP).

O art.º 10º do CP equipara, em geral, a omissão à ação, nos crimes de resultado, estabelecendo que, quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como também a omissão adequada a evitá-lo. São os crimes comissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, nisso se distinguindo dos crimes omissivos puros que se caracterizam pela simples abstenção de agir e são crimes de mera atividade.

A punibilidade do omitente depende da existência de um específico dever jurídico que o obrigue a agir, para evitar o resultado. Só há equivalência entre o desvalor da ação e o desvalor da omissão, porque o agente tem uma posição de garante da não produção do resultado, à luz de um dever jurídico de agir que constitui o fundamento da punição e sem o qual a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um.

O facto típico materializa-se na «criação de um risco de verificação de um resultado típico» que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da ação esperada e exigível por referência àquilo que, segundo a descrição típica, é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a ação devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928).

Assim, o tipo de ilícito dos maus tratos fica preenchido por omissão quando por força da ausência da ação devida ou esperada se cria ou potencia um risco de verificação do resultado típico.

O dever jurídico de garante da não ocorrência do resultado antijurídico pode resultar diretamente da lei (dever legal especial), de um contrato, de situações de criação de perigo e/ou relações familiares íntimas de solidariedade e confiança que importem a aceitação de facto de deveres cuja execução importe ingerência/apoio entre o omitente e o titular do bem jurídico que suporte o dever de agir, numa posição de proteção ou de uma posição de controlo.

É o que acontece quando idosos são acolhidos em instituições ou lares de acolhimento e de assistência, através de um contrato de prestação de serviços remunerado, pois esta relação negocial transfere para o proprietário e para a direção técnica e os cuidadores ao serviço da instituição ou do lar, o dever de garantes da saúde física, mental, psíquica, do bem-estar emocional, da satisfação das necessidades mais básicas inerentes à própria sobrevivência, como a alimentação, a higiene, a saúde, a toma de medicação adequada, a assistência médica e hospitalar que se mostrarem necessárias, além de outros deveres de cuidado e assistência, com aqueles que, pela sua idade avançada, são mais vulneráveis e estão dependentes de terceiros [20].

No presente caso, embora reconhecendo que ambos os ofendidos, por força da sua idade e condição de doença, eram pessoas especialmente vulneráveis e, para além disso, o dever jurídico de garante por parte do «Lar A...» - assinalando, no acórdão recorrido, que «por força do contrato celebrado entre a instituição arguida e os utentes em causa, a mesma tinha obrigação de providenciar de cuidados básicos dos utentes como a habitação, alimentação, higiene e saúde, sendo que os arguidos pessoas singulares também estavam sujeitos a esse dever geral de garante por força das funções exercidas no seio da pessoa coletiva» -, considerou o tribunal a quo que não se encontravam, desde logo, preenchidos os demais elementos do tipo objetivo do crime de maus tratos, designadamente a comprovação de que pudesse ser imputada a qualquer dos arguidos a omissão de uma ação devida ou esperada e da criação ou potenciação, por essa via, de um risco de verificação do resultado típico.

Delimitado dogmaticamente o tipo de crime de maus tratos, analisemos, assim, se o conjunto de factos que resultaram provados – aqui se incluindo aqueles que foram aditados ao elenco da matéria de facto provada, por força do reconhecimento do erro de julgamento e da existência dos vícios decisórios já tratados – são ou não suscetíveis de integrarem os elementos objetivos e subjetivos do referido tipo de ilícito, para além do respetivo tipo de culpa.

Começamos por assinalar que a arguida “Lar A...”, instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos (ERPI), dispondo de uma estrutura residencial para pessoas idosas, tem sobre si o dever jurídico de garantir que aos respetivos utentes é providenciada a assistência e cuidados alimentares, de higiene e saúde adequados e de impedir que os seus utentes sofram maus tratos.

Neste sentido, a Portaria 67/2012, de 21/3 que, além do mais, define as condições de organização, funcionamento e instalação das estruturas residenciais para pessoas idosas, estabelece que a estrutura residencial presta um conjunto de atividades e serviços, designadamente: a) Alimentação adequada às necessidades dos residentes, respeitando as prescrições médicas; b) Cuidados de higiene pessoal; c) Tratamento de roupa; d) Higiene dos espaços; e) Atividades de animação sociocultural, lúdico-recreativas e ocupacionais que visem contribuir para um clima de relacionamento saudável entre os residentes e para a estimulação e manutenção das suas capacidades físicas e psíquicas; f) Apoio no desempenho das atividades da vida diária; g) Cuidados de enfermagem, bem como o acesso a cuidados de saúde; h) Administração de fármacos, quando prescritos (cf. o artigo 8.º, n.º 1, da referida Portaria).

Tal dever jurídico de impedir que os utentes do «Lar A...» sofressem maus tratos estende-se aos arguidos pessoas singulares, os quais exerciam as suas funções em virtude de um vínculo que os habilitava a assegurar o bem-estar dos utentes acolhidos no ERPI, agindo em nome e no interesse da instituição Lar A..., cabendo-lhes, respetivamente, as seguintes funções (cf. pontos 3), 4), 5) e 6) da matéria de facto provada):

- Ao arguido AA, na sua qualidade de «Presidente da direção», para além do mais, «Superintender na administração do Lar A... orientando e fiscalizando os respetivos serviços».

- Á arguida BB, enquanto «Diretora Técnica do ERPI», a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo, competindo-lhe dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços.

- Á arguida CC, na sua qualidade de «Chefe de serviços gerais», organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais.

- Á arguida DD, enquanto «Encarregada do Setor (Piso 3)», coordenar no seu sector os serviços prestados pelo ERPI através das «Auxiliares de Ação Direta» aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar pelo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD.

Aquando da admissão à instituição Lar A... todos os utentes eram observados pela Equipa de Enfermagem a fim de avaliar o seu estado de saúde e, nos casos em que se faziam acompanhar por informação médica, era ainda verificado se a mesma correspondia à avaliação feita, integrando todos estes elementos e, em especial no caso de se tratar de residente com toma de medicação, um dossier individualizado em nome de cada utente designado “...”, do conhecimento de toda a estrutura organizativa do Lar, geralmente guardado dentro de um armário situado no piso 3 correspondente ao Gabinete Médico/Enfermagem e disponível a todos que nele exerciam funções, tal como ocorreu com a admissão dos ofendidos EE e FF (cf. o ponto 7).

A ofendida EE, nascida em ../../1952, com 65 anos, integrou o ERPI Lar A... em 22/08/2018, por entre a arguida Lar A... (ERPI) e a ofendida ter sido firmada uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas da segunda, ocupando quarto situado no Piso 2 (cf. o ponto 8).

A ofendida EE padecia de doença neurológica degenerativa (paraparésia espática hereditária) confirmada em 2009, movimentava-se em Cadeiras de Rodas, andava cronicamente algaliada, mas mantinha independência para certas atividades, designadamente para alimentação (ponto 9).

No dia 24 de Abril de 2020, foi admitida pelas 18.27 horas, no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., com queixas de dispneia desde há 3 semanas, com agravamento súbito naquele dia, esforço respiratório, tosse com expetoração que não expele e temperatura de 37.9 º (ponto 10).

Observada pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos: a) Covid 19 admissão; data 1º resultado positivo 19/04/2020: data de início de sintomas/dias de evolução da doença: desconhecido/= 3 semanas; fatores de risco para progressão desfavorável: HTA, idade>65 anos, achados analíticos desfavoráveis; PCR >10mg/dl; doença atual, Pneumonia com hipoxia (fase II b); suporte de O2 atual: 4 cânula (débt L/min); b) IR tipo 2; c) Hipernatrémia: NA + 154; d) Hipocaliémia; K+ 2,86; e) LRA: creatinina 1,04 (basal 0,8). Apresentava ainda as “Mucosas coradas, mas desidratadas” (ponto 11).

O quadro clínico referido em supra, é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como de gravidade moderada a grave (ponto 12).

O estado de desidratação deveu-se a uma insuficiência de ingestão de recursos líquidos que lhe deveriam ter sido fornecidos em quantidade adequada às suas necessidades pelas colaboradoras do ERPI Lar A... que dela cuidavam, sendo que a utente fazia cerca de 16h de oxigénio diárias, o que também pode determinar secura das mucosas oral e nasal (ponto 13).

O quadro clínico degradou-se com episódios de dessaturação em parte condicionadas por secreções abundantes, vindo a utente EE falecer, sendo o óbito verificado a ../../2020, pelas 14.10 horas (ponto 14).

No Serviço de Urgência foi-lhe administrado soro e outras substâncias para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, bem como morfina para as dores (ponto 15).

Aquando da sua admissão ao Serviço de Urgência do CH... o arguido AA e a arguida BB mantinham-se como Presidente da Direção e Diretora Técnica do Lar, respetivamente, não havendo colaboradora que desempenhasse as funções de Encarregada Geral, sendo que a Encarregada do Sector (Piso) 2 MM esteve ausente do serviço desde 05/04/2020, por estar infetada com Covid 19. Nesse mês, cerca de 20 colaboradores da instituição não estavam ao serviço por estarem infetados com Covid 19 (ponto 16).

Relativamente à situação do utente FF apurou-se o seguinte:

FF, nascido em ../../1928, com 91 anos de idade, integrou o ERPI Lar A... em 18/08/2020, por entre a arguida Lar A... e o ofendido ter sido constituída uma relação contratual nos termos da qual, a primeira se obrigou, mediante uma contrapartida monetária, a prestar todos os cuidados de saúde, alimentação, higiene, vestuário, medicação e tudo o mais necessário à satisfação das necessidades quotidianas do segundo, tendo sido colocado no Piso 3, para cumprir período de isolamento de 14 dias de acordo com a legislação Covid 19 então vigente (ponto 18).

Durante o período de isolamento, o número de pessoas que entrava no quarto do ofendido FF era reduzido ao mínimo, nomeadamente as AAD que prestavam os cuidados de higiene e alimentação e o pessoal médico, caso fosse necessário, mas sempre cumprindo as regras de segurança e higiene recomendadas pela DGS (ponto 19).

Aquando da sua admissão AA continuava a ser o Presidente da Direção, a arguida BB mantinha-se como Diretora Técnica do Lar, CC tinha iniciado em Julho desse ano as funções de Chefe de Serviços Gerais e DD, após um período de gozo de férias, regressou ao serviço em 25 de Agosto e era a responsável pelo piso 3 (ponto20).

O ofendido FF, apresentava amputação da perna esquerda, cegueira, hipoacúsia grave, patologia tiroideia, HTA, dislipidemia e falta de mobilidade, dependendo para as atividades de vida diária em exclusivo dos cuidados que a instituição lhe prestava (banho, apoio, vigilância, incentivo, alimentação, higiene, vestuário, medicação, mudança de fralda, etc).

No dia 29 de Agosto de 2020, pelas 15.54 horas, por solicitação do ERPI que entendeu que o estado de saúde de FF necessitava de cuidados de saúde hospitalares, o mesmo foi admitido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., por hipotensão (TA-80/60), associado a taquicardia (-125bpm) e a dificuldades respiratórias (polipneia, respiração predominantemente abdominal e episódios de hipoventilação), saturação de oxigénio no sangue (Sp02) de 85- 94%, sem alterações do estado de consciência, febre ou outros sintomas.

Observado pela Equipa Médica do Hospital foram considerados os seguintes problemas ativos: a) infeção respiratória; b) hipernatrémia; c) hipocaliémia; d) lesão renal aguda de provável etiologia pré-renal. Apresentava ainda a pele e mucosas coradas mas ligeiramente desidratadas e estava cianótico.

O quadro clínico referido em supra é compatível com estado de desidratação que médico-legalmente se classifica como grave (pontos 21 e 22).

No Serviço de Urgência do CH..., para reverter o estado de desidratação e repor a quantidade de água e o volume de outros líquidos necessários para o bom funcionamento do organismo, foram administrados ao ofendido 1.000ml de soro a 100 ml/h, ou seja, ao longo de 10 horas, por via endovenosa, tendo posteriormente sido transferido para o Serviço de Urgência do Hospital 2..., para prosseguir a fluidoterapia endovenosa (ponto 23).

Caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à sua morte (ponto 24).

O estado de desidratação deste ofendido deveu-se a uma insuficiência ingestão de recursos líquidos e que se foi agravando progressivamente até ser levado ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., sendo que o utente tomava diuréticos o que acelera o processo de desidratação e impõe a toma de mais líquidos (ponto 25).

Uma das formas que o ERPI introduziu no seu funcionamento para aferir do estado de hidratação dos utentes acamados, como no caso do utente FF, era o do controlo das fraldas, que, em regra, eram mudadas cinco vezes ao dia, entendendo-se este por período de 24 horas, uma durante a noite, duas no período da manhã e outras duas durante a tarde, e sempre que se procedia a uma muda de fralda a colaboradora que o fazia, que por regra era Auxiliar de Ação Direta (AAD), registava na Ficha Cuidados de Higiene e Imagem (Controle dos Esfíncteres) a quantidade de urina observada numa classificação que podia ser “Muito, “Pouco”, ”Nenhum” ou “normal” (ponto 26).

Para além deste elemento as AAD também deveriam reportar algo de anormal que se passasse com os utentes, como febre, falta de apetite, etc., sendo que, no período de covid, apenas depois do reporte de alguma anormalidade é que a equipa de enfermagem e/ou médica intervinha para fazer o diagnóstico do utente (ponto 27).

Na Ficha dos Cuidados de Higiene referida em supra do residente FF foram feitos os registos seguintes:

1- Referente a 27 de Agosto de 2020.

- noite (de 26 para 27) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas uma com “Pouco” e outra com “normal”; tarde duas mudas com “Pouco”.

2- Referente a 28 de Agosto de 2020.

- noite (de 27 para 28) uma muda com “Pouco”; manhã duas mudas sem registos de urina na fralda (Nenhum) ; tarde duas mudas com “Pouco”.

3- Referente a 29 de Agosto de 2020.

- noite (28 para 29) uma muda com “Nenhum”; manhã uma muda com “Nenhum” (ponto 29).

Sendo que nos registos referentes à presença de urina na fralda entre a data da sua admissão ao ERPI a 18 de Agosto e o dia 27 desse mês, de acordo com a Ficha dos Cuidados de Higiene e Imagem foi sempre detetada a presença de urina nas mudas de fralda (dia 18, quatro mudas, uma com “Pouco” e as restantes “Normal”; dia 19, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 20, cinco mudas todas “Normal”; dia 21, cinco mudas, quatro “Normal e uma “Pouco”; dia 22, cinco mudas todas “Normal”; dia 23, cinco mudas todas “Normal”; dia 24, cinco mudas, três “Normal” e duas “Pouco”; dia 25, cinco mudas, quatro “Normal” e uma “Pouco”; dia 26 cinco mudas todas “Normal”).

As Auxiliares de Ação Direta que nos dias 27 e 28 de agosto cuidaram do ofendido, cuja identidade não foi possível apurar, não solicitaram a intervenção da Equipa de Enfermagem nem promoveram a sua ida ao hospital, o que apenas ocorreu no dia 29 de Agosto (pontos 30 e 31).

O preenchimento do conceito de fralda com “Pouco” ou “Normal” urina era feito de forma subjetiva e dependia da sensibilidade do que cada uma das Auxiliares de Ação Direta entendia por “Pouco” ou “Normal” (ponto 32).

O Lar de A..., como a grande generalidade das instituições similares, não ministrava ações de formação às AAD, sendo costume da instituição as mais novas apreenderem com as mais velhas e com os profissionais de saúde as melhores práticas e os procedimentos a adotar (ponto 33).

A leitura e interpretação dos dados resultantes da urina na fralda e de outros indicadores era feita pela equipa de enfermagem que tinha plenos poderes para a prestação dos cuidados de saúde, sendo que em pleno período de covid, fruto das contingências da pandemia, esses dados muitas das vezes não eram preenchidos e/ou nem eram analisados em tempo útil pela equipa de enfermagem (ponto 34).

Os dois ofendidos pelas idades que tinham e pelas fragilidades a nível de saúde que evidenciavam eram pessoas especialmente vulneráveis, sendo que o ofendido FF era totalmente dependente dos cuidados quotidianos que lhe eram prestados pelo ERPI Lar A... (ponto 35).

Os arguidos AA e BB não fizeram qualquer visita a estes utentes quando os mesmos estavam em isolamento e quarentena, como aliás não era costume fazerem, sendo que a arguida BB apenas costuma ter contacto com os utentes aquando da admissão, tudo isto sem prejuízo de eventuais visitas de rotina que poderiam fazer ao lar (ponto 36).

A arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia (ponto 37).

Deste modo, e como bem assinala o recorrente, da factualidade apurada pelo tribunal resulta inequivocamente configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, particularmente destes dois ofendidos, derivada do especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a instituição arguida estava contratualmente obrigada e, ainda, a situação de vulnerabilidade e dependência, fruto da doença das duas vítimas [e também da sua idade avançada, no que concerne ao ofendido FF]. É de notar que, no que concerne à utente EE, a circunstância de preservar autonomia para a realização de algumas atividades, alimentando-se sozinha, não significa, como já tivemos oportunidade de assinalar, que não carecesse de apoio, vigilância e supervisão por parte das colaboradoras do Lar de A..., que dela cuidavam, designadamente no que toca à ingestão de recursos hídricos em quantidade necessária, uma vez que, como reconheceu o tribunal a quo nos pontos 9) e 35) da matéria de facto provada, a ofendida, pela condição de saúde que apresentava, tratava-se de pessoa especialmente vulnerável.

Reconhece-se que a situação pandémica, então vivenciada, introduziu restrições relevantes ao nível do contacto direto com os utentes deste tipo de estabelecimentos, impondo, em determinados casos, medidas de isolamento obrigatório, como sucedeu com o utente FF (cf. o ponto 18) e a utente EE, por estar infetada com covid 19.

Contudo, nem tal circunstância, nem o facto de competir às AAD fazer o acompanhamento direto aos utentes, pode significar um esvaziamento das funções de organização, supervisão e vigilância atribuídas ao Presidente do Lar e, em especial, à Diretora Técnica, à Chefe de Serviços Gerais e à Encarregada de Piso.

Dir-se-á, até, que as especiais limitações e dificuldades decorrentes da situação pandémica deveriam ter levado aqueles que, na estrutura, exerciam funções de organização, liderança, vigilância e supervisão a uma maior e atenta intervenção, de forma a garantir que os serviços prestados pelo ERPI asseguravam os cuidados básicos destes utentes.

Sucede que, não obstante os arguidos AA, BB, CC e DD terem, estatutariamente, funções de supervisão, vigilância e coordenação, aparentemente não as exerciam relativamente ao desempenho das AAD, limitando-se a confiar nas informações por elas prestadas, designadamente à equipa de enfermagem (cf. os pontos 27), 31), 33), 36) e 37) da matéria de facto provada), apesar de ser conhecida a falta de formação técnica específica daquelas profissionais (cf. os pontos 32) e 33) considerados provados).

Sendo particularmente evidente a gravidade da omissão deste dever de vigilância em relação ao ofendido FF, dada a sua condição de dependência absoluta dos cuidados que lhe eram prestados – impondo-se, por isso, que o ERPI, conhecedor deste facto, tivesse delineado estratégias com vista a garantir uma adequada ingestão hídrica por parte do utente (cf. os pontos 7, 22, 24 e 25) -, também estamos convictos de que a circunstância de a utente EE se alimentar por si e de o seu estado de desidratação, de gravidade moderada a grave, poder não ser percetível, não afasta a responsabilidade do Lar, por se ter obrigado a prestar-lhe todos os cuidados necessários ao seu bem estar através dos diferentes colaboradores que trabalhavam para si, sejam aqueles que diretamente tinham essa tarefa (as AAD), como aqueles que ocupavam cargos de chefia e que tinham a missão de se certificar da qualidade do serviço prestado, mostrando-se exigível a adoção de procedimentos adequados à concretização de tal objetivo [21]. Neste sentido, assume relevância que, só após o episódio ocorrido com o utente FF, quem dirigia o Lar deu instruções específicas para a hidratação dos utentes, o que não existia até então (cf. o ponto 48) dos factos provados), evidenciando uma falha ao nível dos procedimentos adequados que, a par da inexistência de efetiva e eficaz vigilância dos serviços e cuidados prestados pelas AAD, esteve na origem do estado de desidratação que afetou os dois utentes, realidade que deveria ter sido (e não foi) reconhecida pelo tribunal coletivo.

Podemos, assim, concluir que, impendendo sobre a instituição arguida e respetivo representante e colaboradores/funcionários (os arguidos AA, BB, CC e DD) o dever de garante em relação aos ofendidos EE e FF [assim como, naturalmente, aos demais utentes a seu cargo], omitiram os arguidos os comportamentos adequados a evitar tais ofensas à sua saúde e integridade física, que podiam e deviam ter sido adotados, ocorrendo, por essa via, uma situação de maus tratos, imputável a título omissivo.[22]

Na verdade, o conceito de “maus tratos” não se limita às situações mais evidentes de ofensas à integridade física ou psíquica das vítimas, frequentemente traduzidas em agressões físicas/sexuais, insultos, humilhações ou ameaças, antes abarcando um espetro muito alargado de comportamentos suscetíveis de ofender a saúde física, psíquica e emocional das pessoas às quais são dirigidos, neles se incluindo ausência da prestação de cuidados alimentares exigíveis e adequados a preservar o seu bem-estar e integridade pessoal.[23]

É de notar que a APAV (Associação Portuguesa de Apoio á Vítima) [24] identifica como exemplo de práticas de violação de direitos de pessoas institucionalizadas, entre muitas outras, «deixar pessoas idosas com dificuldade de mobilização sentadas ou deitadas durante muito tempo, sem ajudá-las a levantar-se» e «não mobilizar regularmente pessoas idosas acamadas», para além de «práticas de violação de direitos ao nível da supervisão técnica», incluindo «Não assegurar que a equipa técnica é qualificada e que há um número adequado de profissionais que a compõem», e de «Práticas de violação de direitos ao nível da higiene pessoal», nomeadamente «Deixar as pessoas idosas sujas (por exemplo, de fezes e urina) durante muito tempo» e «Não lavar as pessoas idosas acamadas na totalidade durante longos períodos de tempo». Acrescenta-se a prática de «Negligenciar a alimentação das pessoas idosas por falta de ajuda durante as refeições».

Resta analisar se, como sustenta o recorrente, se encontra demonstrada uma atuação dolosa por parte dos arguidos. E, neste âmbito, importa reiterar que o elemento subjetivo do tipo de ilícito compreende o dolo em qualquer das suas modalidades – direto, necessário e eventual -, não se exigindo, para além disso, um “dolo específico”.

Assim sendo, pode verificar-se uma atuação dolosa por parte dos arguidos, mesmo que as falhas nos cuidados de alimentação e supervisão dos utentes não hajam resultado de atos intencionalmente praticados pelos funcionários do Lar.

Analisando a matéria factual que ficou demonstrada – incluindo aquela que foi aditada na sequência do reconhecimento da verificação dos vícios decisórios, conforme decidido no capítulo antecedente do presente acórdão – resulta inequívoco o preenchimento do elemento subjetivo do tipo de ilícito - o dolo -, tendo em resumo resultado provado que os arguidos pessoas físicas, pelas funções que desempenhavam no ERPI Lar A..., tinham o dever de acompanhar, vigiar e fiscalizar a prestação dos cuidados básicos prestados aos utentes nele acolhidos pelos diferentes colaboradores, de forma a assegurar e garantir a sua saúde e bem estar geral, servindo a sua intervenção para corrigir, debelando ou reduzindo o mais possível, qualquer deficiência ao nível dos cuidados básicos prestados aos aqui ofendidos EE e FF (embora, no que concerne às arguidas CC e DD, tal dever apenas se concretizasse relativamente ao ofendido FF, por exercerem unicamente as suas funções no piso 3, onde estava alojado este ofendido, ocupando a ofendida EE um quarto situado no piso 2); e, ainda, que omitindo voluntária e conscientemente uma atuação conforme com os descritos deveres de acompanhamento, vigilância e fiscalização representaram como consequência possível desse comportamento a ocorrência de uma ofensa à saúde e bem estar geral dos identificados ofendidos (relativamente a ambos, no que concerne aos arguidos AA e BB, e unicamente quanto ao ofendido FF, no que se refere às arguidas CC e DD), assim se conformando com o resultado que daí adviesse, como efetivamente veio a ocorrer com o estado de desidratação em que se encontravam aquando da sua admissão ao serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Deste modo, reconhece-se que cada um dos arguidos teve a possibilidade fáctica de intervenção no acontecimento e, não obstante o dever de garante que sobre si recaía, não interveio. Assim, cada um dos arguidos pessoas físicas é, nos termos do artigo 26º do Código Penal, punível como autor,[25] pois que «É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.»

Quanto à questão da unidade e pluralidade de infrações, uma vez que o tipo de ilícito dos maus-tratos protege bens eminentemente pessoais, a pluralidade de vítimas implica uma pluralidade de sentidos de ilícito, mesmo tendo em conta que se trata do cometimento por omissão [26]. Assim, a situação é de concurso efetivo, nos termos do artigo 30º do Código Penal, no que concerne aos arguidos AA e BB.

Analisemos, agora, a responsabilidade (criminal) imputada à arguida «Lar A...», instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos [ERPI].

Como é sabido, o artigo 11º do Código Penal estabelece as condições em que as pessoas coletivas podem ser responsabilizadas criminalmente.

Para tanto será necessário que (nº 2 daquele art.º 11.º):

- o responsável seja uma pessoa coletiva ou entidade equiparada, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público;

- que esteja em causa um dos crimes de «catálogo» (os previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, 152º-A e 152º-B, nos artigos 159º e 160º, nos artigos 163º a 166º sendo a vítima menor, e nos artigos 168º, 169º, 171º a 176º, 217º a 222º, 240º, 256º, 258º, 262º a 283º, 285º, 299º, 335º, 348º, 353º, 363º, 367º, 368º A e 372º a 376º);

- que esse crime tenha sido cometido em nome da pessoa coletiva ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.

Refere Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2ª Ed., p. 94) que “o critério de imputação da responsabilidade criminal às pessoas coletivas e equiparadas é duplo: ou reside no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por uma pessoa singular colocada em posição de liderança na pessoa coletiva ou equiparada, sendo esta posição de liderança baseada na sua pertença a um órgão da pessoa coletiva competente para tomar decisões em nome desta ou a um órgão da pessoa coletiva competente para fiscalizar aquelas decisões ou ainda na atribuição de poderes de representação pela pessoa coletiva àquela pessoa singular; ou reside no cometimento da infração criminal em nome e no interesse da pessoa coletiva por qualquer pessoa singular que ocupe uma posição subordinada na pessoa coletiva ou equiparada e o cometimento de crime se tenha tornado possível em virtude de uma violação pelas pessoas que ocupam uma posição de liderança dos seus deveres de controlo e supervisão sobre os respetivos subordinados”.

Ora, descendo ao caso concreto e analisando as atribuições funcionais dos arguidos pessoas físicas, facilmente se conclui que os arguidos AA e BB desempenhavam funções que os colocavam numa posição de liderança da arguida «Lar A...», competindo ao primeiro, para além do mais, superintender na administração do Lar, orientando e fiscalizando os respetivos serviços, convocar e presidir às reuniões da Direção, dirigindo os respetivos trabalhos e representar o Lar A... em juízo ou fora dele, e á segunda, a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo, incumbindo-lhe, nessa medida, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes.

Além disso, os crimes de maus-tratos cometidos por omissão pelos arguidos pessoas físicas foram em nome e no interesse coletivo da arguida, pois que foram cometidos por quem agia em seu nome e no exercício da atividade a que se dedicava a arguida «Lar A...» - alojamento e assistência a pessoas idosas.

Finalmente, não resulta dos factos provados que os arguidos pessoas físicas tenham agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito (cf. o n.º 6 do referido art.º 11.º do CP). Exerciam cada um as suas respetivas funções ao serviço da arguida e exerceram-nas mal, é certo, no circunstancialismo em apreço, como resulta do que já deixámos assinalado, omitindo comportamentos que lhes eram impostos pelos cargos que ocupavam, mas tal não é sinónimo de que tenham agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito [27].

Em conclusão, deve a arguida «Lar A...» ser responsabilizada criminalmente pelos dois crimes cometidos, como defendido pelo recorrente.

Nestas circunstâncias, cabe a este Tribunal da Relação proceder à determinação das consequências do crime, pois, conforme jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (no Acórdão n.º 4/2016, Diário da República, 1.ª série — N.º 36 — 22 de fevereiro de 2016, p. 532), «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, al. b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, als. a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do CPP.»


*


b. Escolha e determinação da medida concreta das penas.

O crime de maus-tratos praticado por cada um dos arguidos é punido com pena de prisão de um a cinco anos (cf. o artigo 152.º-A, n.º 1, a), do Código Penal).

Importa, porém, atender ao disposto no artigo 10º, n.º 3 do Código Penal, norma que estabelece que, nos crimes cometidos por omissão, «a pena pode ser especialmente atenuada».

Como é assinalado no acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 27/11/2024, [28] a expressa previsão pelo legislador da possibilidade de atenuação especial de pena encontra-se político-criminalmente fundada no facto de o crime omissivo impróprio, apesar de equiparado tipicamente ao crime de ação, surgir em regra como dotado de uma menor dignidade punitiva que o delito de ação correspondente, resultante de um conteúdo menos grave de ilicitude e de culpa, levando até que na doutrina se defenda que a atenuação deveria ser obrigatória para todos os delitos de omissão.

Não sendo a atenuação especial prevista no artigo 10.º n.º 3 do CP obrigatória, dependendo ainda de uma valoração autónoma do julgador, como se retira do artigo 72.º do CP [29], a verdade é que a ilicitude do facto e a culpa do agente, por comparação com o crime cometido por ação, se mostram naturalmente diminuídas, como é reconhecido pela doutrina [30].

No presente caso, afigura-se-nos plenamente justificada a atenuação especial das penas aplicáveis a todos os arguidos, incluindo á pessoa coletiva, atendendo ao particular circunstancialismo que rodeou a sua atuação e á circunstância de, entretanto, terem sido adotadas medidas tendentes a reduzir o risco de repetição de situações análogas (cf. o ponto 48) da matéria de facto provada e os artigos 10.º, n.º 3, 72.º, 73.º e 90.º-A, n.º 4, todos do CP).

Temos assim que, para os arguidos pessoas físicas, a moldura abstrata da pena é de um mês a três anos e quatro meses de prisão.

A tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites legalmente determinados, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.

A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).[31]

Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).

A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).

Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.

Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [32].

Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: «o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena».

Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar [33], “As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.

Neste âmbito importa assinalar que o grau de ilicitude inerente ao comportamento dos arguidos no que concerne à situação que teve por vítima FF é mais acentuado, considerando as consequências danosas particularmente gravosas para a sua saúde causadas pelo comportamento omissivo dos arguidos e o seu especial estado de fragilidade. Por relação a este utente, também nos parece mais gravoso o comportamento omissivo das arguidas CC e DD, no que concerne às apontadas falhas de fiscalização e supervisão da atuação das AAD, embora também se possa afirmar que a implementação de procedimentos específicos com vista a assegurar a hidratação dos utentes competisse especialmente aos arguidos que ocupavam posições de liderança (ou seja, os arguidos AA e BB) e, em particular, à arguida BB.

Por outro lado, todos os arguidos denotam adequada inserção socio-profissional e as arguidas BB, CC e DD são primárias. O arguido AA conta com uma condenação posterior em pena de prisão cuja execução ficou suspensa e não exerce atualmente qualquer função no Lar A....

Por fim, embora as exigências de prevenção geral sejam geralmente elevadas neste tipo de crimes, designadamente quando cometidos em instituições de acolhimento de pessoas idosas [34], nada indica que as situações aqui tratadas correspondessem a um padrão de normalidade [no sentido de ocorrência reiterada e frequente] naquela instituição, antes parecendo tratar-se de situações episódicas.

Deste modo, ponderando todos os fatores assinalados - em particular, o grau de ilicitude correspondente à violação dos deveres impostos a cada um dos arguidos e a dimensão das consequências danosas para a saúde de cada um dos ofendidos -, consideramos adequadas à culpa de cada um dos arguidos e necessárias para responder às exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração globalmente verificadas, as seguintes penas:

- quanto aos arguidos AA e BB: 9 meses de prisão e 1 ano de prisão, quanto às situações que tiveram por vítimas os ofendidos EE e FF, respetivamente;

- quanto às arguidas CC e DD, as penas de 1 ano e 3 meses de prisão [por referência, unicamente, à situação que teve por vítima o ofendido FF].

Passemos, agora, à determinação da medida concreta das penas a aplicar à arguida “Lar A...”, considerando que a moldura abstrata da pena de multa aplicável, já especialmente atenuada, tendo em conta o disposto no artigo 90º-B, n.º 2 do CP, tem como limites mínimo e máximo 10 e 400 dias.

As exigências de prevenção geral são elevadas, pelas razões já explicitadas. Contudo, importa assinalar o caráter aparentemente episódico das situações aqui analisadas, a circunstância de a pessoa coletiva ser primária, nunca tendo sido condenada pela prática de qualquer outro crime, e o facto de ter prontamente diligenciado, após a ocorrência do incidente com o ofendido FF, pela implementação de medidas específicas com vista a garantir a hidratação dos utentes, minimizando, desta forma, o risco de repetição de situações análogas.

Assim sendo, julgamos adequado fixar as penas parcelares de 120 e de 150 dias de multa por cada um dos crimes de maus tratos que tiveram por vítimas os ofendidos EE e FF, respetivamente.

Cumpre agora determinar a pena única a aplicar aos arguidos pelo concurso de crimes, nos termos impostos pelo artigo 77.º do Código Penal.

De acordo com as regras da punição do concurso de crimes, estabelecidas no art.º 77.º, n.º 2, do Código Penal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Assim, em concreto, a moldura abstrata da pena conjunta de prisão oscila entre o limite mínimo de 1 ano e o limite máximo de 1 ano e 9 meses e a pena conjunta de multa entre o limite mínimo de 150 dias e o máximo de 270 dias.

Na determinação da medida concreta da pena unitária, o que interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz, nomeadamente, uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido (cf. o art.º 77.º, n.º 1, do CP) [35].

Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) que a nossa lei penal rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.

A pena conjunta tenderá, assim, a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão “auctoris causa” própria do concurso de crimes.

Por outro lado, na confeção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso.

Nesta abordagem, importa atender aos critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efetivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta [36].

Em suma, para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.

Como se observa no acórdão do STJ de 14/12/2023 [37], as conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente.

A revelação da personalidade global emerge essencialmente dos factos praticados, mas também importa ponderar as condições pessoais e económicas do agente e a sua recetividade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, elementos particularmente relevantes no apuramento das exigências de prevenção.

Revertendo ao caso concreto, verificamos que:

- São dois os crimes em causa, praticados em abril e agosto de 2020.

- Ambos reportam-se a maus tratos a pessoas idosas institucionalizadas, sendo elevadas as inerentes exigências de prevenção geral.

- As necessidades de prevenção especial não excedem a mediania, considerando a circunstância de a arguida BB não apresentar antecedentes criminais e de o arguido AA, embora não sendo primário, já não exercer funções no Lar A... ou em qualquer outra instituição congénere.

Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade dos arguidos e os fins das penas, e atendendo, ainda, aos princípios da proporcionalidade, da adequação e de proibição do excesso, consideramos adequadas para cada um deles as penas conjuntas de 1 ano e 3 meses de prisão.

Quanto à arguida “Lar A...” (ERPI), consideramos adequada a pena conjunta de 200 dias de multa. Relativamente à respetiva taxa diária, que o tribunal deve fixar entre € 100 e € 10.000, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos com os trabalhadores (cf. os artigos 47º e 90º-B do CP), julgamos adequado e proporcionado o quantitativo diário de 120 € (cento e vinte euros).


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Analisemos, agora, a possibilidade de suspensão da execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos AA, BB, CC e DD, hipótese que a nossa lei penal expressamente contempla no artigo 50.º.

Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão [38].

Por outro lado, em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral.[39]

A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.

Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença de que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloca em causa de forma irremediável a necessária tutela de bens jurídicos (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 14/5/2009, disponível em www.dgsi).

Como salientado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2017 [40] (igualmente disponível em www.dgsi.pt), reproduzindo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, "A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correção», «melhora» ou – ainda menos - «metanoia» das conceções daquele sobre a vida e o mundo. Constitui um elemento decisivo aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».

Apesar de se mostrarem acentuadas as exigências de prevenção geral associadas a este tipo de criminalidade, consideramos que a necessária manutenção da ordem jurídica e da fidelidade do público ao direito ainda consente a condenação dos arguidos numa pena não detentiva.

Com efeito, e no que tange ao arguido AA, embora não sendo primário, o arguido nunca foi condenado por este tipo de criminalidade e beneficia de apoio familiar, fatores que, naturalmente, favorecem a sua reinserção social. Além disso, não desempenha atualmente qualquer função no «Lar A...» (ou em qualquer outro), o que atenua o risco de repetição de comportamentos análogos.

Relativamente às arguidas BB, CC e DD, a circunstância de serem primárias e revelarem adequada inserção socio-profissional, conjugada com o facto de a instituição ter implementado medidas específicas para prevenir novos episódios de desidratação dos respetivos utentes, constituem fatores que seriamente permitem prognosticar que, de futuro, pautarão a sua conduta no sentido da fidelização ao direito.

Decide-se, assim, nos termos do art.º 50º do C. Penal, por ser mais favorável à recuperação social dos arguidos e ainda suportável ao nível da comunidade, suspender a execução das penas aplicadas por iguais períodos temporais, na confiança de que os arguidos se manterão afastados da criminalidade, mostrando-se desnecessária, em face das necessidades de prevenção especial assinaladas, a imposição de quaisquer deveres, regras de conduta ou sujeição dos arguidos a regime de prova.


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c. Pedido de indemnização civil.

Resta-nos, por fim, apreciar o pedido de indemnização civil formulado nos autos por OO, na qualidade de filha do ofendido FF.

Invoca a demandante que, em consequência do estado grave de desidratação de que ficou a padecer no decurso da sua permanência no ERPI Lar A..., o ofendido FF, seu pai, sofreu graves lesões físicas, tendo sido internado no hospital e subsequentemente levado para a sua residência. Sustenta que esta situação causou-lhe graves danos não patrimoniais, traduzidos em tristeza e angústia decorrentes do trauma psicológico a que foi exposta, ocasionando-lhe ainda insónia e forte complexo de culpa.

Defendendo que os danos invocados merecem a tutela do direito, pede, para o respetivo ressarcimento, que lhe seja atribuída uma indemnização no valor de € 30.000,00, a suportar por todos os arguidos.

Não se fundando na invocação dos danos sofridos pelo ofendido FF, a pretensão indemnizatória formulada pela assistente/demandante convoca, assim, a necessidade de delimitação da natureza do evento lesivo que pode originar o direito a compensação e, para além disso, da definição da titularidade do direito a indemnização [41].

No que respeita à titularidade do direito a indemnização, tem sido tradicionalmente entendido no nosso ordenamento jurídico que o direito à indemnização por dano patrimonial ou não patrimonial cabe, em regra, ao sujeito titular do direito absoluto ou do interesse legalmente protegido imediatamente violados pela conduta lesiva - sujeito designado por lesado imediato - e não também a outros sujeitos que, muito embora tenham sofrido um dano na sua esfera jurídica, resultante dos efeitos do mesmo facto lesivo, apenas foram atingidos de forma reflexa - sujeitos comummente designados por vítimas mediatas, indireta ou reflexamente atingidas. A atribuição pelo legislador, em hipóteses determinadas, de direito a indemnização por danos patrimoniais ou por danos não patrimoniais a sujeitos que não a vítima imediata revestiria, segundo o entendimento tradicional, natureza excecional.

De acordo com o disposto nos n.ºs 2 a 4 do Código Civil, «Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem» (previsão do n.º 2). «Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes» (previsão do n.º 3). «O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores» (previsão do n.º 4).

Deste modo, segundo a hipótese expressa nos n.ºs 2 a 4 do artigo 496.º do Código Civil, a «indemnização» pelos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima imediata pode ser-lhes arbitrada em caso de morte desta.

Porém, logo nos primeiros anos de vigência do Código Civil, doutrina e jurisprudência foram chamadas a resolver a questão de saber se é de reconhecer direito a indemnização igualmente em hipóteses em que o evento lesivo, embora não tendo causado a morte da vítima imediata, se reveste de gravidade análoga.

A questão tem sido objeto de cuidada reflexão nas hipóteses em que um sujeito é lesado gravemente na sua integridade física, ficando dependente da assistência dos seus familiares próximos (pais, cônjuge, filhos).

A jurisprudência, acompanhando o entendimento seguido por certa doutrina, recusou, num primeiro momento, haver direito a indemnização, com base numa interpretação literal do artigo 496.° que, recorde-se, apenas reconhece direito a «indemnização» em caso de morte. Considerou, para tanto, a natureza excecional da norma e o elemento histórico da interpretação, já que a solução mais flexível constante do Anteprojeto Vaz Serra não foi traduzida no texto definitivo do Código Civil.

Contudo, mais recentemente, sobretudo a partir do final da década de 90 do século passado, o Supremo Tribunal de Justiça considerou, em algumas decisões, serem compensáveis o sofrimento grave e as perturbações sérias à vida pessoal e familiar padecidas pelo cônjuge, progenitores ou filhos [42]em virtude de lesão grave à integridade física do seu ente próximo. Para tanto, admitiu a interpretação extensiva dos n.ºs 2 a 4 do artigo 496.° ou considerou que a vítima tradicionalmente designada por mediata era titular de um direito de personalidade também ofendido - o direito ao desenvolvimento da personalidade, o direito de manter relações sexuais com o cônjuge, o direito à plena comunhão de vida com o cônjuge, o direito de ver crescer o filho com saúde, no âmbito do poder paternal.

Perante os diversos entendimentos sufragados, e tendo sido chamado a decidir sobre se o cônjuge de vítima que padeceu graves lesões à integridade física em consequência de um acidente de viação tem direito a ser indemnizado pelo sofrimento resultante do que aconteceu ao seu ente querido e pela alteração negativa da sua vida pela assistência permanente que a este presta, o Supremo Tribunal de Justiça, em reunião plenária das secções cíveis, pelo seu Acórdão n.º 6/2014, de 9 de janeiro de 2014, uniformizou a jurisprudência, admitindo o direito a indemnização do cônjuge, nos termos seguintes: «Os artigos 483.º, n.º 1, e 496.º n.º 1, do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave».

Na fundamentação da solução que obteve vencimento, o Supremo Tribunal de Justiça recusou o elemento histórico da interpretação e afastou uma interpretação literal da norma, procedendo a uma interpretação atualista dos artigos 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1, do Código Civil: o Supremo Tribunal atendeu à evolução da responsabilidade civil no sentido de uma maior proteção das vítimas - sobretudo no domínio dos acidentes de viação - e ainda ao tratamento da questão decidenda no plano internacional e na ordem interna de vários países.

Assinalando que a interpretação atualista assumida no referido AUJ tem como pressuposto que os danos do lesado sejam particularmente graves e que tenham determinado no outro sofrimento muito relevante, o STJ logo admitiu não poder questionar-se que, para além do cônjuge, outros familiares (desde logo, os expressamente contemplados no artigo 496.º do CC) possam e devam beneficiar da tutela deste tipo de danos [43].

Ora, como justamente assinala Maria Gabriela Páris Fernandes[44], a alteração ao Código Civil de 1966, introduzida pela Lei n.º 8/2017, de 3 de março, veio tornar premente a recusa de uma interpretação literal do artigo 496.º, quanto à natureza do evento lesivo que pode fundar o direito a «indemnização» dos familiares. Na verdade, a Lei n.° 8/2017 aditou ao Código Civil o artigo 493.°-A, cujo n.° 3 reconhece ao proprietário de animal de companhia direito a indemnização adequada pelo desgosto ou sofrimento moral de que tenha padecido por morte do seu animal, por privação de um seu importante órgão ou membro ou por afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção. O referido diploma legal não alterou, contudo, a redação do artigo 496.° do Código Civil, o que significa que a letra deste artigo continua a referir-se ao sofrimento dos familiares pela morte da vítima imediata, sem explicitar as hipóteses em que esta tenha sofrido grave lesão corporal.

Como assinala a autora, temos, naturalmente, por certo que a tutela jurídica da dimensão relacional da pessoa, nos laços afetivos que a unem aos seus familiares, não pode ser menos intensa do que a tutela do vínculo que a liga a um animal de companhia.

Por esta razão, a descrita alteração legislativa ao Código Civil, que ilustra a superação de uma conceção individualista da responsabilidade civil, a favor do respeito pela pessoa, compreendida em todas as suas dimensões existenciais, não pode deixar de reclamar, sob pena de grave incoerência valorativa, a proteção da dimensão relacional da pessoa, não apenas em caso de morte dos seus familiares, mas também em caso de grave lesão à sua integridade física [45].

Analisando, agora, o caso concreto, importa realçar que, em consequência de conduta omissiva culposa imputada à totalidade dos arguidos, a vítima FF, utente do ERPI Lar A..., sofreu estado de desidratação classificado médico-legalmente como grave, o qual lhe determinou, para além do mais, lesão renal aguda. Caso não tivesse ocorrido intervenção terapêutica no serviço de urgência do CH..., onde deu entrada no dia 29 de agosto de 2020, era previsível a progressão da desidratação que, no seu termo, poderia conduzir à morte (cf. os pontos 22) a 25) da matéria de facto provada).

De acordo com o nº 1 do art.º 483º do C.C., a obrigação de indemnizar, por imputação de um dano, exige a verificação dos seguintes pressupostos: existência de um facto ilícito; imputação subjetiva do facto ao lesante; nexo de causalidade entre o facto e o dano [46].

Resulta, assim, da matéria de facto apurada que os arguidos/demandados atuaram de forma ilícita e culposa, tornando-se responsáveis pela reparação dos danos, designadamente de natureza não patrimonial, que hajam causado.

Não tendo sido formulado pedido tendente à compensação dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima direta do comportamento ilícito e culposo imputado aos arguidos/demandados, os únicos que importa ponderar são aqueles que, reflexamente, foram causados à demandante, na sua qualidade de filha do ofendido.

A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais está dependente de um juízo de valoração objetivo, tendente a afirmar a sua gravidade, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 496º do C.C.

Ora, o tribunal a quo considerou demonstrado que «A demandante OO, filho do utente FF, ficou muito triste com a situação vivida pelo seu pai, não tendo permitido que o mesmo regressasse ao Lar após alta hospitalar, tendo deixado o seu trabalho para tomar conta do seu pai. Sentiu-se culpada pela situação vivida pelo seu pai, embora não tivesse tido qualquer contacto com o lar A..., em virtude de nessa altura, por causa do Covid 19, os lares estarem fechadas e não ser permitida qualquer visita» (cf. o ponto 47 dos factos provados).

Embora a factualidade apurada a este propósito seja escassa, desconhecendo-se, por exemplo, o período temporal durante o qual a demandante manteve a assistência prestada ao seu pai, com a inerente afetação da sua vida pessoal e profissional, a verdade é que os danos comprovadamente sofridos pela demandante (tristeza e sentimento de culpa; afetação temporária da sua vida profissional e pessoal em virtude da assistência prestada ao progenitor) são objetivamente graves e relevantes, considerando todo o circunstancialismo apurado [47].

Verificados, na totalidade, os pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo dos demandados, resta-nos determinar o valor da indemnização a atribuir à demandante.

Os danos não patrimoniais, reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral [48], são insuscetíveis de avaliação pecuniária, visando, por isso, o seu ressarcimento uma compensação das dores físicas ou morais sofridas pelo lesado, bem como sancionar, em alguma medida, a conduta do lesante.

Como vem salientando a jurisprudência, a compensação por danos não patrimoniais, para constituir uma efetiva possibilidade compensatória, deve ser significativa e não meramente simbólica. Refere-se, a este propósito, no acórdão do STJ de 24/4/2013 (disponível em www.dgsi.pt), que a fixação da indemnização não deve ser simbólica, miserabilista ou arbitrária, mas nortear-se por critérios de equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art.º 494.º do CC. [49]

A matéria de facto provada evidencia a elevada ilicitude do comportamento dos arguidos, considerando a condição clínica e elevada dependência do ofendido FF da assistência e cuidados prestados por terceiros, para além da gravidade da ofensa à integridade física que lhe foi causada, justificando, deste modo, o grau elevado dos danos não patrimoniais reflexamente causados à demandante.

Deste modo, e ponderando ainda a situação económico-financeira dos arguidos/demandados, afigura-se-nos equitativa a quantia de € 8.000,00 por forma a compensar adequadamente a demandante dos graves danos não patrimoniais por ela sofridos e, pela mesma via, sancionar adequadamente o comportamento ilícito e culposo dos arguidos/demandados.

Como estabelece o artigo 497.º, n.º 1, do Código Civil, se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade.

Sobre a referida quantia acrescem juros de mora contados desde a notificação dos arguidos/demandados (cf. o artigo 805.º, n.º 3, 2ª parte, do CC).


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III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto no seguinte:

I - Concedem provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, como consequência do reconhecimento da verificação dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP, e do erro de julgamento quanto à matéria de facto, determinam:

a) A alteração da decisão recorrida quanto à matéria de facto, nos moldes explicitados no presente acórdão.

b) A condenação dos arguidos AA e BB pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 9 meses de prisão e de 1 ano de prisão.

Em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenam cada um dos arguidos nas penas conjuntas de 1 ano e 3 meses de prisão, cuja execução suspendem por igual período temporal, nos termos previstos no artigo 50.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código Penal.

c) A condenação das arguidas CC e DD pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 1 ano e 3 meses de prisão, cuja execução fica suspensa por igual período temporal, nos termos previstos no artigo 50.º, n.ºs 1, 4 e 5, do Código Penal.

d) A condenação da arguida «Lar A...», instituição particular de solidariedade social e estrutura residencial para idosos (ERPI), com o NIPC ...80 e sede na Rua ..., ..., pela prática, em concurso efetivo, de dois crimes de maus tratos, p. e p. pelo artigo 252.º-A, n.º 2, a), do Código Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 10.º, n.º 3, 72.º e 73.º do mesmo diploma legal, nas penas especialmente atenuadas de 120 e 150 dias de multa.

Em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, condenam a arguida na pena conjunta de 200 dias de multa, á taxa diária de € 120 euros.

e) Na decorrência das alterações introduzidas na matéria de facto e preenchimento do tipo objetivo e subjetivo do crime de maus tratos, julgam parcialmente procedente o pedido de indemnização civil apresentado por OO e, consequentemente, condenam solidariamente os demandados ERPI Lar A..., AA, BB, CC e DD no pagamento à demandante da quantia de € 8.000,00 (oito mil euros), acrescida de juros legais de mora contados desde a notificação até efetivo e integral pagamento.

Não são devidas custas pelos arguidos (cf. o art.º 513.º, n.º 1, do CPP, “a contrario sensu”).

As custas relativas ao pedido de indemnização civil serão suportadas por demandante e demandados na proporção dos respetivos decaimentos.

Notifique.


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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)


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Porto, 21 de maio de 2025.

Liliana Páris Dias (Desembargadora relatora)

Fernanda Sintra Amaral (Desembargadora 1ª adjunta)

Raul Cordeiro (Desembargador 2º adjunto)

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[1] As questões que constituem o objeto do recurso serão conhecidas de acordo com as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (cf. o artigo 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 4.º do Código de Processo Penal).
[2] Mas mesmo essa reapreciação ampla, como assinala o STJ, no acórdão de 2/6/2008, (no proc. 07P4375, in www.dgsi.pt) sofre as limitações que decorrem e resultam dos seguintes fatores:

- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;

- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios;

- de a análise e ponderação a efetuar pelo Tribunal da Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de

- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º), e não apenas a permitirem.

[3] Como se observa no acórdão deste TRP, datado de 13/12/2023 (relatado pelo Desembargador José António Rodrigues da Cunha e consultável em www.dgsi.pt), «Questionada a decisão matéria de facto através da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, n.º 3, do CPP, recai sobre o recorrente o ónus de especificar e individualizar os concretos factos que, em seu entender, se encontram incorretamente julgados, cabendo-lhe, também, indicar as concretas provas de onde resultem os alegados erros de julgamento e que impõem decisão diversa. Feita tal indicação, deverá ainda explicar a razão pela qual as provas ou os meios de prova que especifica impõem decisão diversa da recorrida. Por exemplo, não basta transcrever excertos de declarações ou de depoimentos e dizer que dali resulta o contrário do decidido. Acresce que o ónus deve ser observado relativamente a cada um dos factos impugnados, e não por atacado, impondo-se ao recorrente relacionar e fazer a necessária correspondência do conteúdo específico do meio de prova que segundo ele impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.
Porque não se trata de um novo julgamento, e constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância, faltando-lhe a imediação e a oralidade da prova, não pode o Tribunal da Relação fazer tábua rasa da livre apreciação da prova em que assentou o juízo do tribunal recorrido. Face a essa limitação, o tribunal de recurso, em sede de impugnação ampla da matéria de facto, só pode alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem. Isto é, quando a convicção do julgador da primeira instância tiver na sua base erros de tal modo evidentes e óbvios que tornem a decisão inaceitável».
[4] Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2006, Proc. nº 06P120, (disponível em www.dgsi.pt) com as especificações consagradas nos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal «visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Impõe-se, por isso uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos».
[5] Tem sido este, de facto, o entendimento predominante da jurisprudência dos tribunais superiores. Como é sublinhado no acórdão da Relação de Coimbra, de 8/2/2012 (relatado pelo Desembargador Brízida Martins e disponível em www.dgsi.pt), “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não aqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se afigurou como coerente e plausível), sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1º instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127º e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Veja-se também o acórdão deste TRP, de 2/6/2019 (relatado pelo Desembargador Paulo Costa e disponível em www.dgsi.pt), “Constatando-se que não são detetáveis desconformidades entre a prova produzida, que inexistem provas proibidas ou produzidas fora dos procedimentos legais, tendo o tribunal justificado suficientemente na decisão as opções que fez na valoração dos contributos probatórios, atribuindo valor positivo ou negativo às provas de modo racionalmente justificado, de acordo com regras de lógica e de experiência comum e com respeito pelo princípio do in dubio pro reo, resta à Relação confirmar a decisão sobre a matéria de facto e nomeadamente a que diz respeito à questionada pelo recorrente.”
Ou na síntese do acórdão do TRP, de 6/3/2002, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, igualmente disponível em www.dgsi.pt: “Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.”.
[6] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[8] Relatado pelo Desembargador Francisco Caramelo, consultável em www.dgsi.pt.
[9] Pois que é naturalmente exigível que a instituição garanta que os utentes ingerem líquidos nas quantidades necessárias para garantir uma adequada hidratação, devendo ser-lhes fornecidos tais recursos hídricos quando estes não os tomem de todo ou quando tais líquidos ingeridos espontaneamente sejam insuficientes.
[10] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cf. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6).   
[11] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
[12] O artigo 127º do Código Processo Penal, com a epígrafe «livre apreciação da prova», dispõe que, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
[13] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11/7/2007 (www.dgsi.pt), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[14] Cf., expressamente neste sentido, o acórdão deste TRP, datado de 17/2/2016 (Relator: Desembargador Neto de Moura), disponível para consulta em www.dgsi.pt.
Como é assinalado no acórdão do TRG de 21/6/2010 (relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso e disponível para consulta em www.dgsi.pt), o prof. Enrico Altavilla já há muito ensinava que "o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" – Psicologia Judiciária, vol. II, 3º ed. pág. 12.
[15] Recordemos o que ficou assente nos pontos 3) e 4) da matéria de facto provada, com relevo para apreciação da questão que nos ocupa:

3.º

Nos termos do art.º 52.º dos Estatutos do referido lar compete ao Presidente da Direção:
a) Superintender na administração do Lar A... orientando e fiscalizando os respetivos serviços.
4.º

- A Direção Técnica do ERPI compete a um técnico, cujo nome, formação e conteúdo funcional se encontra afixado em lugar visível e a quem cabe a responsabilidade de dirigir o serviço, sendo responsável, perante a Direção, pelo funcionamento geral do mesmo. À Diretora Técnica compete, em geral, dirigir o estabelecimento, assumindo a responsabilidade pela programação de atividades e a coordenação e supervisão de todo o pessoal, atendendo à necessidade de estabelecer o modelo de gestão técnica adequada ao bom funcionamento do estabelecimento e ao garante da qualidade de vida dos residentes. É também responsável pela criação de uma estrutura administrativa para gerir a instituição, colaborando igualmente na verificação e custos e planeamento de utilização de mão-de-obra, equipamento materiais e instalações, controlando os respetivos serviços.

- à Chefe de Serviços Gerais compete organizar e promover o bom funcionamento dos serviços gerais, superintendendo a coordenação geral de todas as chefias de área dos serviços gerais;
- às Encarregadas de Sector (Piso) compete coordenar no seu sector o serviço prestados pelo ERPI através das Auxiliares de Ação Direta aos residentes, colaborar na elaboração das escalas de serviço, controlar e requisitar os serviços indispensáveis ao normal funcionamento dos serviços, zelar pelo cumprimento das regras de segurança e higiene no trabalho e verificar o desempenho das tarefas atribuídas às AAD.
  
[16] É de notar, aliás, que o tribunal a quo considerou provado, no ponto 37), que «A arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia», o que revela que a situação de delegação quase absoluta da responsabilidade por todos os cuidados prestados aos utentes nas AAD precedia o contexto pandémico.
[17] Como é assinalado no acórdão do TRP de 27/1/2021 (disponível em www.dgsi.pt), a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico da pessoa e só a ela se chega através de factos externos ao agente e, assim, através de prova indireta.
[18] Relatado pelo Desembargador Vítor Morgado e disponível em www.dgsi.pt.
[19] Cf., neste sentido, o acórdão do TRL de 23/2/2022, relatado por Cristina Almeida e Sousa, e o acórdão deste TRP, datado de 18/10/2023, da autoria da ora relatora, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e que aqui seguimos de perto.
[20] Cf. o acórdão do TRL de 23/2/2022, já citado.
[21] É de notar que, no período em que ocorreu o estado de desidratação da utente EE, não havia colaboradora que desempenhasse as funções de encarregada geral e encontrava-se ausente do serviço a encarregada do setor (piso 2), por estar infetada com covid 19. Ora, inexistindo funcionário que pudesse supervisionar as atividades da AAD e ocorrendo, para além disso, uma sobrecarga do pessoal de enfermagem, é evidente que se exigia ao presidente da direção e, em particular, à diretora técnica do Lar que tivessem tomado medidas para assegurar a efetiva vigilância dos serviços prestados pelas AAD no piso 2, particularmente aos utentes que, como a ofendida EE, estavam numa situação de especial vulnerabilidade (sendo certo que, para além do seu estado de saúde crónico, ainda estava infetada e doente com covid 19, tornando-se particularmente importante garantir a sua adequada hidratação). 
Também se discorda da posição assumida pelo tribunal de primeira instância, quando pretende atribuir ao contexto pandémico a explicação pelo sucedido. Aliás, o tribunal a quo considerou provado, no ponto 37), que «A arguida DD e a arguida CC não contactaram diretamente com o utente FF, nem lhe ministraram qualquer cuidado de higiene, comida ou de saúde, sendo que a arguida DD enquanto encarregada de piso 3, só em situações excecionais é que prestava tais serviços aos utentes e a arguida CC nunca o fazia», o que revela que a situação de delegação quase absoluta da responsabilidade por todos os cuidados prestados aos utentes nas AAD precedia o contexto pandémico.
Dito isto, se havia restrições no contato direto com os utentes impostas pela DGS, que importava respeitar, tal só podia significar que aqueles que se encontravam em posições hierárquicas superiores às AAD, como as arguidas DD e CC, em primeira linha, mas também os arguidos AA e BB, tinham de implementar procedimentos com vista à adequada supervisão e fiscalização dos cuidados diretamente prestados pelas AAD, mostrando-se incompreensível que não tivessem assegurado que a ingestão de líquidos pelo ofendido FF era suficiente e, por outro lado, não tivessem prontamente atuado perante a evidência resultante dos registos feitos constar da ficha dos cuidados de higiene, a partir do dia 27 de agosto (mostrando-se este aspeto especialmente relevante com relação às arguidas CC e DD, dadas as funções que lhes estavam atribuídas) – o que poderia ter sido contrariado caso tivessem efetivamente supervisionado as tarefas das AAD, atuando proativamente, quer verificando a quantidade de líquidos que estavam a ser ingeridos pelo utente, quer procedendo a uma análise direta da urina existente nas fraldas ou até, simplesmente, dos registos feitos constar pelas AAD, na ficha de cuidados de higiene, comportamentos que nos parece serem particularmente exigíveis naquele contexto de grandes restrições de meios humanos e consequentes constrangimentos na prestação dos cuidados aos utentes.   
[22] Cf., neste sentido, para além do acórdão do TRL de 23/2/2022, já citado, também o acórdão deste TRP de 12/10/2016, relatado pelo Desembargador José Carreto; o acórdão deste TRP datado de 18/10/2023, da autoria da ora relatora; e o acórdão do TRP de 27/11/2024, relatado pelo Desembargador William Themudo Gilman, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[23] Cf., neste sentido, os acórdãos do TRL de 23/2/2022 e do TRP de 12/10/2016 e de 18/10/2023, já citados.
[24] Cf. https://apav.pt/publiproj/images/yootheme/PDF/Titono_PT.pdf
[25] Tal como, em princípio, seriam as AAD que, pessoalmente, prestaram assistência aos ofendidos, caso tivessem sido identificadas e subsequentemente acusadas pelo MP.
[26] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., 2007, p. 1008-1010, e o acórdão do TRP de 27/11/2024.
[27] Cf., neste sentido, também o acórdão deste TRP de 27/11/2024, já citado.
[28] No qual a ora relatora interveio na qualidade de primeira adjunta.
[29] Cf. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2022, 2ª edição, p. 85.
[30] Levando até que autores, como é o caso de Jorge de Figueiredo Dias (in Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª ed., 2007, p. 925-926), defendam que a atenuação especial deveria ser obrigatória para todos os casos de delitos por omissão.
[31] Como é assinalado no acórdão do STJ de 18/2/2016 (relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, in www.dgsi.pt)[31], “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa
No nosso regime penal, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena” (cf. J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Notícias Editorial, pág. 227).
[32] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes.
[33] No acórdão do STJ, de 11.04.2007, disponível em www.dgsi.pt.
[34] Assinala-se, no acórdão do TRL de 23/2/2022 (Cristina Almeida e Sousa, o seguinte: «[…] Somam-se, com carácter agravante, as exigências de prevenção geral, que são muito fortes, em face da enorme proliferação de crimes de natureza idêntica, pelo alarme social que estes crimes provocam, quer em função dos danos irreversíveis que provocam, de que muitas vezes resulta a morte das vítimas, quer em virtude da censurabilidade dos comportamentos que os integram, também do ponto de vista ético, por atentarem contra valores absolutamente fundamentais de coesão social, de solidariedade e respeito aos mais velhos, de dignificação da sua condição e da sua não discriminação em função da sua idade ou condição física e psíquica, que são valores constitucionais inspiradores dos direitos humanos fundamentais e do Estado de Direito Democrático em que vivemos.
A APAV recebeu mais de 10 mil queixas por crimes e violência contra idosos entre 2013 e 2020, tendo atingido em 2020 o número mais alto de processos abertos, maioritariamente por crimes de violência doméstica. De acordo com a informação estatística divulgada pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), a propósito do Dia Internacional da Pessoa Idosa, dos 10.307 processos abertos nesta série estatística sobre crimes e violência contra idosos, 1814 foram abertos em 2020, o número mais elevado num único ano desde 2013, batendo o máximo do ano anterior (2019), em que foram abertos 1615 processos. Daqueles 1814 processos, 579 referem-se a maus tratos físicos e 702 a maus tratos psicológicos, o que diz bem da dimensão preocupante deste fenómeno

(https://apav.pt/apav_v3/images/pdf/Estatisticas_APAV_Relatorio_Anual_2020.pdf)».
[35] Como é salientado no acórdão do STJ de 2/9/2009 (disponível em www.dgsi.pt), “perante concurso de crimes e de penas há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projeção nos crimes praticados, enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes, da verificação ou não da identidade dos bens jurídicos. O que interessa e releva considerar é a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido”.
[36] Tem sido pacífico, designadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que essencial na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, de tal forma que a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares - [cf. acórdão do STJ de 05.07.2012 (proc. n.º 145/06.SPBBRG.S1)] -, o que, contudo, não dispensa o recurso às exigências de prevenção geral e especial, encontrando, também, a pena conjunta o seu limite na medida da culpa.
[37] Relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves e consultável em www.dgsi.pt.
[38] Como refere Anabela Miranda Rodrigues [In "Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português", Separata do B.F.D. - "Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1984, p. 3 e ss.], o Código Penal consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à substituição da pena de prisão.
Deste modo, o juiz deverá substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a aplicação da pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", não seja posto em causa.
[39] Cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/10/2009 (disponível em www.dgsi.pt).
Com efeito, a socialização não pode sobrelevar a prevenção. Embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, [só] na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.
[40] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg.
[41] Na análise do problema em questão seguiremos de perto o estudo de Maria Gabriela Páris Fernandes, intitulado «A compensação dos danos não patrimoniais reflexos nos cinquenta anos de vigência do Código Civil português de 1966», publicado na obra «Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil», coordenação de Elsa Vaz de Sequeira e de Fernando Oliveira e Sá, Universidade Católica Editora, Lisboa 2017.
[42] Assim, e a título de exemplo, no acórdão datado de 14/9/2010, proferido no processo n.º 267/06.0TBVCD.P1, relatado pelo Conselheiro Sousa Leite (consultável no sítio www.dgsi.pt), o STJ arbitrou uma indemnização de 50.000 euros por danos não patrimoniais, consistentes na privação do desenvolvimento das capacidades educacionais e da fruição da sua juventude, a uma jovem de 16 anos que teve de abandonar os estudos para exercer, sozinha, toda a atividade doméstica relacionada com os cuidados diários que se tornava necessário prestar à sua mãe e à sua irmã, então com quatro meses de idade, por força de um acidente que lesou gravemente a integridade física da sua mãe.
[43] Também neste sentido, cf. o acórdão deste TRP, datado de 7/2/2017, relatado pelo Desembargador José Igreja Matos e disponível para consulta em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: «I - O acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 09.01.2014 veio reconhecer o direito
indemnizatório do dano reflexo do cônjuge de vítima sobrevivente. Assim, foi estabelecido nesse aresto jurisprudencial que “os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave.” II - De acordo com o que era já anunciado na fundamentação desse Acórdão Uniformizador, a abrangência indemnizatória em causa não tem de se confinar apenas ao cônjuge de vítima sobrevivente; admite-se que outros possam e devam beneficiar da tutela relativamente a este tipo de danos. III - Deste modo, a tutela indemnizatória em causa deve ser igualmente concedida à mãe de uma menor, vítima de acidente de viação com consequências graves, que com ela habita e é por ela única responsável, e que foi atingida, designadamente em termos psíquicos, pelas circunstâncias decorrentes desse sinistro e da assistência/auxílio que vem prestando à sua filha».
[44] Estudo citado, páginas 414/415.
[45] Do mesmo modo, assinala-se na declaração de voto constante do acórdão do STJ de 28/2/2019 (relatado pelo Conselheiro Nuno Pinto Oliveira, in www.dgsi.pt), que «O art. 493.º-A deverá hoje relacionar-se com o n.º 4 do art. 496.º do Código Civil, a fim de evitar contradições sistemáticas, teleológicas a valorativas, no quadro de um sistema de direito civil cujo fundamento histórico e ideológico é o personalismo ético».
[46] Cf. Menezes Cordeiro, "Direito das Obrigações", 2º vol., p. 281.
[47] Não podemos esquecer o quadro de grave doença e total dependência de terceiros por parte da vítima direta (recorde-se que o ofendido FF, apresentava amputação da perna esquerda, cegueira, hipoacúsia grave, patologia tiroideia, HTA, dislipidemia e falta de mobilidade, dependendo para as atividades de vida diária em exclusivo dos cuidados que a instituição lhe prestava  - banho, apoio, vigilância, incentivo, alimentação, higiene, vestuário, medicação, mudança de fralda, etc), exasperando a ilicitude e culpa dos arguidos e justificando o quadro psicológico de acentuada tristeza e complexo de culpa invocado pela demandante.
Como é assinalado no acórdão do STJ de 15/12/2022, relatado pelo Conselheiro João Cura Mariano (igualmente disponível em www.dgsi.pt), «Na aplicação da doutrina deste acórdão uniformizador, a realizar num campo em que o traçado das margens é ténue e irregular, na determinação do que é “particularmente grave” há que valorar, por um lado, as caraterísticas das lesões sofridas e das suas sequelas, e por outro lado, o grau de sofrimento das pessoas mais próximas do lesado assistirem ao padecimento de um ente querido, além da privação da qualidade do relacionamento com este e ainda o custo existencial do acréscimo das necessidades de acompanhamento».
Neste aresto foi reconhecido o direito de indemnização por danos não patrimoniais próprios causados aos progenitores de menor de dois anos, salientando-se que «se, numa perspetiva de risco de vida ou de défice funcional, as lesões sofridas pela menor de 2 anos que foi atacada por um cão rottwiller, não podem ser qualificadas de particularmente graves, o mesmo já não sucede se considerarmos a potencialidade do seu impacto emocional nos pais da CC, tendo em atenção o tipo de agressão sofrida, a idade da vítima, a zona do corpo atingida (a face), as caraterísticas das lesões mais graves sofridas (esfacelo complexo transmural da hemiface esquerda por mordedura de cão com secção de ramos do nervo fácil e infraorbitário esquerdo; desinserção da componente cartilaginosa da narina esquerda, tendo ficado desfigurada na parte esquerda da sua face, o que obrigou a que a Autora CC, no dia 14-12-2013, fosse submetida a uma intervenção cirúrgica no referido Hospital CUF, que durou cerca de 4/5 horas, onde foi realizado o retalho da hemiface esquerda, reconstrução nasal parcial e vestibuloplastia por quadrante superior esquerdo), e o dano estético acentuado permanente causado».
[48] Cf. acórdão da Relação do Porto, de 7.4.97, publicado na CJ ano XXII, 1997, tomo 2, pp. 204-207.
[49] Como refere Antunes Varela ("Das Obrigações em Geral", 5ª edição, p. 567) e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/6/2011 (disponível em www.dgsi.pt), os critérios de equidade a que o tribunal deverá atender para apurar o quantum indemnizatório devido a título de reparação de danos não patrimoniais serão, designadamente, o grau de culpabilidade do responsável, a sua situação económica e a do lesado, os padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência e as flutuações do valor da moeda.