CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
TRANSITÁRIO
SUBROGAÇÃO
Sumário

(da responsabilidade da relatora - art.º 663º/7 CPC):
I. Entre a A. (empresa transitária) e a 1ª R. CMA CGM. (transportador/armador) foi celebrado um contrato de transporte marítimo internacional.
II. O transitário que assume perante o seu cliente a obrigação de recepcionar a mercadoria, por si ou a seu mando, e de a colocar no destinatário, com autorização para contratar terceiros para realizar os actos materiais de transporte necessários para o efeito, assume obrigações típicas do contrato de transporte e fica sujeito à responsabilidade civil estabelecida por lei para o transportador.
III. nos termos do art.º 15º/1 e 2 do Dec.Lei 255/99 de 7/7, a empresa transitária responde perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso, ficando a sua responsabilidade sujeita aos limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem seja confiada a execução material do transporte.
IV. Tendo a A. procedido ao pagamento à Agpmeat, S.A. (vendedora) da quantia de €62 430,73, correspondente ao valor da perda da mercadoria, ficou aquela subrogada na posição desta (beneficiária da carga segura), nos termos do disposto nos arts 589º e 593º/1 do Código Civil, baseando-se a legitimidade da A. para accionar a 2ª ré seguradora nos arts 48º/1, 2 e 3 e 156º  do D.L. 72/2008, de 16 de Abril (que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro).
V. O valor da indemnização da responsabilidade da ré seguradora não poderá exceder o valor do capital seguro.
VI. Não tendo sido peticionados juros de mora à taxa comercial, deve entender-se que são devidos juros à taxa civil.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
Transitex – Trânsitos de Extremadura, S.A. intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CMA CGM e Victoria – Seguros, S.A., pedindo a condenação solidária das rés no pagamento da quantia de €53.628,28, acrescida de juros de mora e ainda a condenação da Ré Victória no pagamento de €8.802,45 referente ao valor do frete e dos 10% do valor da factura comercial, acrescida de juros desde a citação
até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que:
- A A. é uma sociedade que exerce a actividade transitária;
- A 1ª Ré é uma sociedade comercial que se dedica ao transporte marítimo de mercadorias por conta de outrem;
- A 2ª Ré é uma seguradora;
- Em Julho de 2021 a Autora contratou com a Ré CMA o transporte de mercadorias da ‘Agepmeat’ desde o porto de Setúbal até ao porto de Tianjin Xingang, na China;
- A mercadoria era composta por 930 caixas de carne congelada (carcaça de porco), no valor de USD 52.763,97;
- Tais mercadorias foram consolidadas no contentor TT…-… 18, ao abrigo do conhecimento de embarque com o nº LS … 47, com vistoria prévia da DGAV e com set de temperatura a -18 graus celsius;
- A CMA aceitou o transporte e por instruções da AGEPMEAT, a Autora veio a incluir esta mercadoria no seu seguro de mercadorias pelo valor de €49.303,74;
- O contentor embarcou no navio WEC de HOOGH a 23/08/2021, no porto de Setúbal, tendo iniciado viagem a 24/08/2024;
- A 25/08/2021 a Autora é informada pela CMA que o contentor tinha uma avaria que não podia ser reparada a bordo, pelo que iria descarregar no porto de Leixões;
- A 26/08/2024, a Autora envia reclamação à CMA, com carta de protesto;
- O contentor foi descarregado a 25/08/2021 e parqueado no porto de Leixões à guarda da CMA;
- Como a mercadoria já se encontrava desalfandegada, pronta para exportação e sujeita a controle sanitário, foi necessário obter autorização prévia para se proceder à abertura do contentor, o que só veio a suceder em Setembro de 2021 e a autorização de saída do porto apenas ocorreu em Outubro de 2021;
- Na primeira abertura do contentor, a 17/09/2021, verificou-se que a mesma já não estava em condições de ser comercializada e estava imprópria para consumo, por não se encontrar à temperatura mínima de conservação;
- No dia 20/10/2021 o contentor foi para as instalações da Sicasal onde o mesmo foi aberto, mas não descarregado devido ao odor intenso de carne podre;
- Apurou-se que o contentor tinha a temperatura definida para -18º, mas o equipamento de refrigeração estava a fornecer uma temperatura de -9,7º e a temperatura de retorno era de -7,7º;
- A 27/10/2021 o produto foi novamente inspecionado pela DGAV, a qual classificou a mercadoria como categoria II e determinou a sua destruição, a qual ocorreu a 02/11/2021;
- Apurou-se que as paletes ao lado da maquinaria estavam posicionadas correctamente, não empurrando a placa de deflector e não havia caixas acima da linha vermelha;
- Do relatório do termógrafo nº HK … 8V verificou-se a oscilação da
temperatura a que a carga esteve sujeita, verificando-se que o contentor em 16/08/2021 estava com uma temperatura de -18º, a 18/08/2021 começa a subir, atingindo os 0.0º a 22/08/2021 e mantendo-se assim até 18/10/2021;
- A CMA não facultou à Autora os registos de frio e esta reclamou daquela os prejuízos causados, tendo participado o sinistro à Ré Victória;
- Para além do valor da mercadoria perdida de USD 52.763,97, acresceram ainda €3.729,60 de destruição da mercadoria, €293,06 de custos aduaneiros, €4.784,00 de transporte rodoviário para o Porto, levantamento e entrega, imobilizações, paralisações, carga, descarga e custos de inspecção;
- Foi ainda acordado com a Ré Victória o pagamento do frete de €4.350,00 e 10% a acrescer sobre o valor da factura comercial, no montante de €4.52,48;
- A Autora pagou à cliente a quantia de €62.430,73, encontrando-se sub-rogada nos direitos da sua cliente em relação à Ré Victória.

A Ré CMA apresentou contestação, arguindo a excepção dilatória de incompetência absoluta, por preterição de pacto de jurisdição, sustentando que no conhecimento de embarque foi aposta uma cláusula epigrafada de “JURISDICTION” (cláusula 31), que fixa um pacto atributivo de jurisdição que é
válido e é exclusivo na jurisdição portuguesa e na francesa por força dos termos do Regulamento (CE) nº 1215/2012 do Parlamento e do Conselho de 12/12/2012
relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, sendo tal pacto oponível à autora, por esta estar sub-rogada nos direitos do portador do reconhecimento de embarque. Pugnando pela sua absolvição da instância.

A Ré Victória também contestou, tendo, em suma, dito que:
- Se está perante uma apólice aberta ou flutuante que podia ser utilizada em diversas ocasiões e para diferentes transportes, mediante a emissão de um certificado de seguro para cada transporte;
- Está-se também perante um contrato de seguro em nome e por conta de outrem que foi contratado pela Autora enquanto tomadora do seguro;
- O seguro cobre os riscos relativos ao transporte das mercadorias dos clientes da Autora;
- No caso o tomador do seguro – a Autora – não era a dona da mercadoria
transportada, os segurados é que eram os donos da mercadoria;
- Daí que só os segurados, enquanto donos das mercadorias transportadas são os titulares dos direitos emergentes do contrato de seguro, só eles têm um interesse digno de protecção legal relativamente aos riscos cobertos;
- O segurado é o beneficiário do seguro, por isso só ele tem legitimidade para accionar a seguradora e esta só deve responder perante aquele;
- Importa apurar as circunstâncias de tempo, lugar e modo como ocorreu a avaria das mercadorias;
- É preciso considerar o quadro com as temperaturas dentro do contentor entre 17/08 e 21/08/2021, sendo que a temperatura no interior do contentor não poderia ser superior a -18º;
- A temperatura no interior do contentor deveria ter sido verificada no período compreendido entre 18 a 23 de Agosto, ou seja, ao longo dos 5 dias que decorreram entre o carregamento na Sicasal e o embarque do contentor no navio;
- A ré não pode ser obrigada a pagar qualquer indemnização pela avaria da mercadoria, porque não foram cumpridas as condições de transporte da mesma, ao nível da temperatura no interior do contentor, estamos perante uma situação clara de culpa do lesado.
Conclui pela improcedência da acção.

A Autora pronunciou-se sobre as excepções invocadas.

Por decisão proferida a 20/4/23 foi julgada procedente a excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses em consequência da infracção das regras da competência legal internacional, declarando o Tribunal Marítimo de Lisboa incompetente para a presente causa, relativamente à ré CMA, absolvendo a mesma da instância, determinando o prosseguimento da causa no tocante à ré Victoria, S.A.
Tal decisão veio a ser confirmada por acórdão proferido em 12/9/23 por este Tribunal da Relação, no âmbito do apenso A.
Na referida decisão de 20/4/23, foi a excepção de culpa do lesado relegada para conhecimento a final.

Em sede de audiência prévia, realizada em 14/12/24, foi proferido despacho saneador e identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Após realização de audiência de julgamento, foi proferida sentença em 26/11/24, com o seguinte dispositivo:
“Por todo o exposto, julga-se parcialmente procedente a presente acção e, consequentemente, decide-se:
a) Condenar a Ré Victória Seguros, SA a pagar à Autora o montante de €62.167,34 (sessenta e dois mil, cento e sessenta e sete euros e trinta e quatro cêntimos), acrescida dos juros legais à taxa legal comercial desde a data da citação (28/09/2022) até integral pagamento.
Custas a cargo da Ré e Autora, na proporção de 99% para Ré e 1% para Autora cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Registe e notifique.”

Inconformada com a sentença, veio a ré Victoria – Seguros, S.A. dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
i. Nulidade da sentença
1. A sentença recorrida é nula, nos termos do art.º 615º/1 d) do CPC, na medida em que o tribunal a quo não conheceu, pelo menos, das excepções da culpa do lesado (na parte relativa à omissão da A. de vigilância da temperatura do contentor entre 18 e 23.8.2021), nem da limitação de responsabilidade da R. ao valor do capital seguro.
ii. Impugnação da decisão de facto
· Aditamento aos factos provados do teor da “Cláusula de Riscos Frigoríficos”
2. Os danos que a A. pretende ver indemnizados pela R., advindos do fornecimento pelo contentor refrigerado nº TT …- … 18 de temperaturas superiores à requerida e a consequente descongelação da carne nele acondicionada, só poderão ter enquadramento nas coberturas contratuais ao abrigo da “Cláusula de Riscos Frigoríficos”, mencionada no nº 12 dos factos provados, e junta aos autos por requerimento da R. de 19.12.2023.
3. Assim, a decisão sobre a questão do enquadramento do sinistro nas coberturas contratadas deverá ser proferida à luz dos pressupostos de facto da referida cláusula, cuja importância justifica sua reprodução nos factos provados, com a qual estes ganharão em clareza.
4. Sugere-se o aditamento aos factos provados, a seguir ao nº 12, de um novo ponto (12.1) com a seguinte redacção:
12.1 - A denominada “Cláusula de Riscos Frigoríficos (Mercadoria Refrigerada)”, referida no nº 12, tem o seguinte teor:
“Fica acordado e estabelecido que a Seguradora indemnizará o Tomador do Seguro ou o Segurado pelos danos patrimoniais, resultantes da deterioração dos bens seguros, que sejam consequência directa da paragem do sistema de refrigeração, por avaria nas máquinas frigoríficas, com o respectivo descongelamento, e desde que essa paragem se verifique durante um período mínimo de 24 horas consecutivas, constante do respectivo registo de temperaturas.
Para que esta cobertura produza efeitos, é necessário que os bens, no momento do embarque, se encontrem devidamente acondicionados com boa circulação de ar e transportados em contentores ou câmaras frigoríficas.
Qualquer reclamação, só poderá ser aceite se devidamente acompanhada do registo de temperaturas do contentor ou câmara frigorífica ou de qualquer outro documento oficial.”
· FP 21 e 25 e FNP ii)
5. A opção do tribunal a quo por valorizar exclusivamente, para efeitos de julgamento das questões objecto dos nºs 21 e 25 dos factos provados e nº ii dos factos não provados, o 1º relatório da “Abaco” (datado de 9.12.2021) e o testemunho do seu autor, A …, em detrimento dos relatórios da “Sinicarga” (doc. 2 da contestação da R. apelante) e da “HMAJ Containers” (doc. 7 da contestação da 1ª R.), bem como dos testemunhos dos seus autores, B …, C …, D … e E … respectivamente, não encontra justificação na forma como essas provas foram produzidas.
6. Pelo contrário, a intervenção tardia da testemunha A … no apuramento das circunstâncias e causas do sinistro (só em 20.10.2021, isto é, quase 2 meses depois do desembarque, numa altura em que as mercadorias já tinham sido correctamente reacondicionadas no contentor – p. 4 do relatório da “Abaco” de 9.12.2021 / ficheiro 2024-09-05 12-15-38, passagem da gravação: 00:05:09 – 00:07:02), bem como um episódio que envolveu essa testemunha aquando da prestação do seu depoimento (ficheiro 2024-09-05 14-32-06, passagem da gravação: 00:06:25 – 00:06:33), articulado com o condicionamento de que esta deu mostras (sendo disso exemplo o juízo de valor encerrado na observação que produziu sobre as conclusões da averiguação dos peritos da “HMAJ” e da “Siniscarga” e a recusa da R. apelante de regularização do sinistro – ficheiro 2024-09-05 12-15-38, passagem da gravação: 00:52:19 – 00:52:21), justificariam a atribuição de maior força probatória aos relatórios e aos testemunhos dos peritos da “Siniscarga” e da “HMAJ”, em detrimento do acervo probatório proveniente da intervenção do referido perito da “Abaco” (e, por maioria de razão, da “testemunha” F …, que não teve a mínima intervenção nem conhecimento directo dos factos controvertidos, nunca tendo visto o contentor ou a mercadoria nele acondicionada, e apenas tendo tido conhecimento do sinistro em 2022, quando a A. requereu a sua assessoria no litígio que então se antecipava).
7. A junção aos autos pela A., na sessão de julgamento de 10.9.2024, subsequente àquela em que depôs a testemunha A …, de um segundo relatório da “Abaco”, também subscrito por essa testemunha, com data de 21.2.2022, diferente do relatório de que a mesma se fez acompanhar aquando do seu depoimento e em que fundou muitas das suas respostas, e a cuja existência a referida testemunha nunca aludiu no decurso do seu depoimento, é mais um episódio que não abona a favor do crédito da testemunha A ….
8. Na reapreciação da decisão vertida no nº 25 dos factos provados importará ter presente que a avaria da máquina de frio e o nexo de causalidade entre esta avaria e a deterioração das mercadorias seguras constituem pressupostos de facto da cobertura de riscos frigoríficos, que depende da “paragem do sistema de refrigeração, por avaria nas máquinas frigoríficas”, pelo que competia à A., que formulou uma pretensão indemnizatória potencialmente enquadrável nessa cobertura, fazer prova da avaria da máquina de frio, da descongelação da mercadoria acondicionada no contentor e do nexo de causalidade entre uma e outra (o mesmo é dizer fazer prova de um sinistro enquadrável nas coberturas contratuais), nos termos do art.º 342º/1 do CC, podendo a R. opor contraprova desses mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos, nos termos do art.º 346º do CC.
9. A impugnação dos nºs 21 e 25 dos factos provados e do nº ii) dos factos não provados funda-se nas seguintes provas documental e testemunhal:
a) Relatório da “Siniscarga”, incluindo as suas fotografias nºs 27 a 29, que retratam o deslocamento da baia da base da saída de ar do grupo de frio, a palete a comprimir essa baia e a baia na sua posição normal, respectivamente, bem como as fotografias nºs 30 e 31, que retratam o gelo formado em resultado do estrangulamento da saída de ar frio (doc. 2 da contestação da R. apelante);
b) Relatório da “HMAJ Containers” (doc. 7 da contestação da 1ª R.);
c) Testemunho de B … (ficheiro 2024-09-10 10-00-35, passagens da gravação: 00:03:48 –00:06:25, 00:7:26 – 00:07:29, 00:07:51 – 00:08:33, 00:09:03 – 00:10:31, 00:11:09 – 00:12:57, 00:13:28 – 00:13:39, 00:14:00 – 00:16:03 e 00:16:45 – 00:17:02);
d) Testemunho de C … (ficheiro 2024-09-10 10-23-08, passagens da gravação: 00:02:17 – 00:05:43, 00:06:04 – 00:06:45, 00:07:10 – 00:07:50, 00:09:35 -00:10:19, 00:12:10 – 00:13:14, 00:15:27 – 00:16:17 e 00:18:19 – 00:19:45);
e) Testemunho de E … (ficheiro 2024-09-10 10-45-15, passagens da gravação: 00:01:35 – 00:01:38, 00:05:47 – 00:12:10, 00:15:13 – 00:21:48, 00:23:40 – 00:29:03, 00:31:04 – 00:31:23, 00:34:28 – 00:35:44, 00:36:50 – 00:37:24, 00:37:41 – 00:38:08, 00:38:48 – 00:39:24, 00:41:39 – 00:42:02 e 00:45:24 – 00:45:48);
f) Testemunho de D … (ficheiro 2024-09-10 11-32-01, passagens da gravação: 00:00:29 – 00:00:59, 00:01:33 – 00:01:43, 00:01:47 – 00:02:46, 00:03:03 – 00:03:41, 00:03:50 – 00:05:12 e 00:06:38 – 00:07:15).
10. As quatro testemunhas, B …, C …, E … e D …, depuseram de forma espontânea, sóbria, coerente e credível, com base na concreta intervenção que cada uma teve nos factos controvertidos, não se vislumbrando qualquer motivo para se desconsiderar os seus depoimentos. Pela forma e, sobretudo, pela substância, o depoimento da testemunha E … representa um contributo decisivo para o apuramento da causa da descongelação da mercadoria; essa testemunha, que é técnico de refrigeração e revelou profundos conhecimentos técnicos acerca das questões sobre que incidiu o seu depoimento, e vistoriou o contentor em 17.9 e 19.10.2021, logo suspeitou, com base nas temperaturas de fornecimento de ar muito baixas, sem correspondência nas temperaturas de retorno (reveladas pelos registos de temperatura do contentor), que a causa da descongelação se prendia com a inexistência de circulação de ar dentro do contentor, suspeitas que viria a confirmar na 2ª vistoria, em que verificou, pessoalmente, por um lado, o bom funcionamento da máquina de frio, mediante a realização de um teste tecnicamente adequado a essa verificação, e, por outro, que as paletes localizadas no topo do contentor haviam sido estivadas deficientemente, pois estavam a empurrar e a comprimir a bainha ou placa (apelidada de “L” pela testemunha) e a bloquear a saída de ar frio, assim prejudicando a circulação de ar e provocando gelo, com o consequente aumento da temperatura interior.
11. Da articulação das provas indicadas na conclusão nº 9 é possível extrair, com suficiente segurança, a seguinte factualidade:
i. O contentor nº TT… -…18 foi fabricado em Março de 2021, sendo, por isso, praticamente novo;
ii. Em 19.10.2021, o referido contentor foi sujeito a uma segunda vistoria, no âmbito da qual:
a) se testou a sua máquina de frio e verificou que esta estava a funcionar bem;
b) se verificou que as paletes estivadas no topo do contentor empurravam e comprimiam a bainha que faz de conduta para a circulação de ar frio, estrangulando essa saída e criando blocos de gelo, com prejuízo do rendimento da máquina de frio;
iii. Nessa vistoria, as paletes foram descarregadas do contentor e, de novo, nele estivadas correctamente, sem compressão da manga;
iv. Aquando da 2ª vistoria, o set point estava regulado para – 18º e a temperatura do ar de retorno era de + 11,6º;
v. No dia seguinte, em 20.10.2021, por volta das 14 h, quando o contentor chegou às instalações da “Sicasal”, a temperatura do ar de retorno era de – 7,7º, tendo recuperado cerca de 19 graus desde a rectificação da estiva;
vi. Em 4.11.2021, o contentor foi inspecionado e testado vazio, tendo sido ligado às 09h50m, com o set point regulado para – 18º, e sido obtidos os seguintes resultados (partindo de uma temperatura do ar na caixa de carga de + 5º às 09:55):
10:30: temperatura de retorno: - 9,7º / temperatura de fornecimento: - 13,3º;
10:39: retorno: - 12,7º / fornecimento: - 18,4º;
10:53: retorno: - 15,4º / fornecimento: - 20,1º;
11:05: retorno: - 16,7º / fornecimento: - 21,7º;
11:14: retorno: - 17,9º / fornecimento: - 21,6º;
vii. Findo esse teste, e após a abertura das portas do contentor, a temperatura do ar na caixa de carga era de – 20,6º, sendo os referidos resultados reveladores de que o grupo de frio estava a trabalhar normalmente.
12. A factualidade descrita em vi. da conclusão anterior, além de resultar do relatório da “Siniscarga”, incluindo a sua fotografia nº 35, e do depoimento da testemunha C …, foi confirmada pela testemunha A …, que, tendo presenciado a inspecção realizada em 4.11.2021, a descreveu na pág. 30/66 do seu relatório de 9.12.2021 e, em audiência, confirmou que nessa inspecção a máquina de frio do contentor estava a funcionar bem (ficheiro 2024-09-05 14-32-06, passagem da gravação: 01:03:05 – 01:03:26).
13. Importa assinalar que a testemunha A .., não obstante, ao longo do seu depoimento, ter dado conta da sua convicção de que a descongelação da mercadoria de devia a alguma avaria da máquina, em momento algum conseguiu identificar essa avaria (ficheiro 2024-09-05 14-32-06, passagens da gravação: 00:28:54 – 00:29:06, 00:45:00 – 00:45:03 e 00:48:40 – 00:48:54), sendo que a referida testemunha não presenciou o primeiro teste à máquina de frio do contentor, que teve lugar em 19.10. 2021, na “Agro Mechants”, cujo resultado foi positivo, isto é, no sentido da inexistência de avaria.
14. Importa chamar a atenção que, como demonstram os registos de temperatura do contentor, a partir do dia 20.10.2021, em que o contentor, com a carga correctamente estivada, voltou às instalações da “Sicasal”, onde permaneceu até 2.11.2021 (data da destruição da carne), o mesmo foi sujeito a inúmeros e sucessivos ligamentos (Power up) e desligamentos (“Power down), que impediram a recuperação da temperatura (até aos – 18º), iniciada após a rectificação da estiva (recorde-se que do dia 19 para o dia 20.10.2021 a temperatura recuperou cerca de 19º), recuperação essa que já estava dificultada, à partida, pela temperatura a que a mercadoria se encontrava aquando do seu reacondicionamento no contentor (entre + 1º e 0º).
15. Na opinião da R., as provas indicadas na conclusão nº 9 obrigam à revogação da decisão vertida nos nºs 21 e 25 dos factos provados e nº ii) dos factos não provados.
16. Aliás, no que respeita ao nº 21 dos factos provados, se mais elementos probatórios não houvesse, e há (com destaque para o testemunho do técnico de refrigeração E …, que, pessoalmente, verificou a deficiência da estiva e a rectificou), bastaria visualizar as fotografias nºs 27, 28 e 29 do relatório da “Siniscarga” para logo se perceber que a decisão ali vertida não poderia subsistir.
17. Propõe-se que do nº 21 dos factos provados passe a constar a matéria do art.º 103º da contestação:
As paletes estivadas no topo do contentor empurravam a bainha que faz de conduta para a circulação do ar frio, estrangulando essa saída e criando blocos de gelo, situação que afectou o rendimento da máquina.
18. Em alternativa poderá conferir-se ao impugnado nº 21 dos factos provados uma redacção que tenha por referência o 3º paragrafo do “Malfunction Report”, integrado no relatório da “HMAJ”:
As paletes empurravam a bainha (ou placa) para dentro, estrangulando a saída de ar para o interior do contentor e causando o boqueio do evaporador com gelo, assim impedindo a circulação de ar.
19. A mesma prova não comporta a subsistência na decisão de facto da matéria contida no nº 25 dos factos provados.
20. Desde logo, a sua primeira parte tem natureza conclusiva, e não factual, na medida em que carece da objectividade característica dos factos ou, dizendo de outro modo, não encerra um segmento da realidade apreensível pelos sentidos; com efeito, pela sua vaguidade, não parece que se possa ou deva julgar provado, numa decisão de facto, que “O contentor teve algum problema na máquina de refrigeração. …”, sendo que o uso daquele pronome indefinido deixa perceber a ausência de prova de qualquer concreto problema na máquina de frio.
21. Impõe-se a modificação do nº 25 dos factos provados, para que deste passe a constar o seguinte:
A máquina de frio do contentor foi testada em 19.10.2021 e em 4.11.2021 e não apresentou qualquer avaria.
22. Salvo melhor opinião, caso se entendesse que a prova produzida não era concludente sobre a alegada avaria da máquina de frio, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, o tribunal a quo deveria observar as regras sobre o ónus da prova, contidas nos arts. 342º/1 e 346º do CC, julgando essa questão de facto contra a A. (parte onerada com a prova) e eliminando o nº 25 dos factos provados, com a consequente transposição da matéria nele contida para os factos não provados (mesmo sem consignar o facto inverso nos factos provados).
iii. Do Direito
1. Falta de preenchimento dos pressupostos da subrogação do credor
23. A factualidade provada (nºs 1, 2, 4 a 6, 9, 10, 15 a 20, 24 e 28) revela a celebração de um contrato de expedição ou trânsito entre a “AGPMEAT” e a A. e um contrato de transporte marítimo internacional entre esta e o armador “CMA CGM”.
24. Dessa factualidade resulta que, entre 17.8.2021 (data em que recebeu o contentor para embarque) e 23.8.2021 (data do embarque), o armador “CMA CGM” cumpriu defeituosamente os seus deveres de manutenção, de vigia e de cuidar das mercadorias acondicionadas no contentor, previstos no art.º 3º/2 da CB de 25.8.1924.
25. Ao omitir a diligência a que estava obrigado no cumprimento desses seus deveres, com o consequente embarque do contentor a uma temperatura superior à programada, o armador “CMA CGM” tornou-se responsável pela perda da mercadoria nele acondicionada, advinda da sua descongelação.
26. Nos termos do art.º 15º/1 do DL nº 255/99, de 7.7, a A. respondia, perante a sua cliente “AGPMEAT”, pelo cumprimento defeituoso dos deveres legais do armador “CMA CGM” relativos à mercadoria, nomeadamente de manutenção, guarda e cuidado, do que resulta que a A. indemnizou aquela sua cliente ao abrigo de uma obrigação própria, como, de resto, decorre do recibo de indemnização junto à p.i. sob doc. 23, e a própria A. reconhece no art.º 59º da p.i..
27. A subrogação pelo credor pressupõe que este recebe de terceiro a prestação do devedor ou, dizendo de outro modo, que um terceiro, que não o próprio devedor, efectua o cumprimento da obrigação.
28. Tendo a A., com o pagamento à sua cliente “AGPMEAT” (destinado a ressarci-la de todos os prejuízos sofridos, fixados por ambas em € 62.430,73, e não a pagar-lhe o capital seguro pela R.), cumprido uma obrigação de indemnização própria, a coberto do contrato de expedição ou trânsito e da responsabilidade prevista no art.º 15º/1 do DL nº 255/99, de 7.7, e não uma obrigação da R., para esta resultante do contrato de seguro de transporte, está por preencher um dos pressupostos legais da subrogação pelo credor, previstos no art.º 589º do CC, que é o cumprimento da obrigação do devedor por um terceiro, do que resulta que a A. não foi validamente sub-rogada em quaisquer direitos que pudessem advir para a sua cliente “AGPMEAT” do contrato de seguro de transporte, sendo que a acção se destina ao exercício desses direitos.
2. Culpa da A. (omissão de vigilância da temperatura do contentor)
29. Pela omissão dos deveres de manutenção e vigilância da mercadoria entre 17.8.2021 e 23.8.2021, que obstou à detecção das oscilações de temperatura do contentor e permitiu que este embarcasse quando essas oscilações já se verificavam há 6 dias, com a consequente descongelação e perda da mercadoria, a A. respondia perante a sua cliente “AGPMEAT”, nos termos do art.º 15º/1 do DL 255/9, de 7.7 (assim como o armador “CMA CGM” é responsável perante a A., já que aquela omissão configura um cumprimento defeituoso do contrato de transporte celebrado entre ambos).
30. A A. assumiu essa responsabilidade, indemnizando a sua cliente em € 62.430,73, e ficou com direito de regresso contra o armador “CMA CGM”, nos termos do mesmo art.º 15º/1, in fine, do referido diploma.
31. Se as oscilações de temperatura do contentor e a perda da mercadoria nele acondicionada se tivessem ficado a dever à causa alegada pela A. (avaria da máquina de frio), com o consequente enquadramento do sinistro na cobertura de riscos frigoríficos, o que apenas se admite por mera necessidade de raciocínio, R. teria regularizado o sinistro, mediante o pagamento à segurada “AGPMEAT” do capital seguro, no valor de € 49.303,74.
32. Nessa hipótese, a R. teria ficado sub-rogada nos direitos da segurada “AGPMEAT” contra a A. (responsável pelo sinistro perante aquela), na medida do valor do capital seguro (que teria pagado), nos termos do art.º 136º/1 do RJCS; por seu lado, o direito da segurada “AGPMEAT” sobre a A., quanto à parcela do risco não coberto (isto é, relativamente à diferença entre o valor total dos prejuízos e o valor do capital seguro), subsistiria, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.
33. A subrogação do segurador nos direitos do sub-rogado, prevista no nº 1 do art.º 136º do RJCS, só não ocorre se estiverem preenchidas as excepções contempladas no nº 4 do mesmo artigo, as quais não se verificam no caso sub judice.
34. Encontrando-se a responsabilidade da A. coberta por contrato de seguro, por imperativo legal (art.º 7º do DL nº 255/99, de 7.7), nada justificaria o afastamento da subrogação da R. nos direitos da segurada “AGPMEAT” (contra a A.), prevista no citado nº 1 do art.º 136º do RJCS (note-se que mesmo a excepção prevista na al. b) do nº 4 do art.º 136º do RJCS pressupõe que a responsabilidade dos terceiros aí contemplados não se encontre coberta por contrato de seguro).
35. Salvo melhor opinião, a A. não pode exercer os direitos da “AGPMEAT” contra a R., que, se tivesse regularizado o sinistro, ficaria legalmente sub-rogada nesses mesmos direitos contra ela (A.), responsável pelo sinistro perante aquela segurada.
36. Arrogando-se a A., de algum modo, da qualidade de lesado perante a A., na medida em que indemnizou a “AGPMEAT”, sempre seria de rejeitar a concessão de qualquer indemnização à A., que concorreu para a produção do dano que indemnizou, nos termos do art.º 570º do CC.
3. Falta de preenchimento dos pressupostos da cobertura de riscos frigoríficos
37. A A. não logrou provar dois dos pressupostos da cobertura de riscos frigoríficos.
38. A proceder, como se espera, a impugnação da decisão vertida no nº 25 dos factos provados, esta será modificada e, consequentemente, passará a ficar provado que “A máquina de frio do contentor foi testada em 19.10.2021 e em 4.11.2021 e não apresentou qualquer avaria.” ou, no mínimo, eliminar-se-á o nº 25 dos factos provados, com a consequente transposição da matéria nele contida para os factos não provados, e mesmo sem consignar nestes o facto inverso. De um modo ou de outro, a A. não logrará provar que a desconformidade da temperatura de retorno com a requerida e programada temperatura de fornecimento de ar teve origem numa avaria da máquina de frio, o que, só por si, será suficiente para se concluir que a A. não conseguiu provar a ocorrência de qualquer sinistro enquadrável nas coberturas contratadas, concretamente na cobertura de riscos frigoríficos.
39. Esse não foi o único pressuposto da cobertura de riscos frigoríficos cujo preenchimento a A. não conseguiu demonstrar, pois, a proceder a impugnação da decisão vertida no nº 21 dos factos provados, ficará provado neste ponto da decisão de facto que “As paletes estivadas no topo do contentor empurravam a bainha que faz de conduta para a circulação do ar frio, estrangulando essa saída e criando blocos de gelo, situação que afectou o rendimento da máquina.” ou, em alternativa, que “As paletes empurravam a bainha (ou placa) para dentro, estrangulando a saída de ar para o interior do contentor e causando o boqueio do evaporador com gelo, assim impedindo a circulação de ar.”, sendo certo que, independentemente de se conferir ao nº 21 dos factos provados uma ou outra redacção, não só a A. não logrou provar que, aquando do embarque, a mercadoria segura se encontrava correctamente acondicionada no contentor, como se provou o facto inverso.
40. Não tendo a A. provado o preenchimento de todos os pressupostos da cobertura de riscos frigoríficos, a sua pretensão indemnizatória, potencialmente enquadrável nessa cobertura, não poderá deixar de ser desatendida.
4. Deficiência da estiva e nexo de causalidade entre esta e a descongelação da carga
41. Só por si, o exposto nas conclusões nºs 37 a 40 impede o enquadramento do sinistro na cobertura dos riscos frigoríficos e determina a improcedência da acção.
42. Ainda assim, sempre se dirá que, a proceder a impugnação da decisão vertida no nº 21 dos factos provados, ficará demonstrada a deficiência da estiva das mercadorias no contentor, com o consequente estrangulamento da circulação de ar frio no seu interior, a formação de gelo e o aumento da temperatura dentro do contentor, o que constituirá uma exclusão das coberturas contratuais, nos termos da cl. 6 das CPA (doc. 5 da p.i.) e da cl. 4ª/2 c) das CGA (doc. 1 da contestação).
5. Capital seguro
43.Caso o sinistro estivesse contratualmente coberto e a R. estivesse obrigada a regularizá-lo, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, a indemnização a pagar estaria limitada ao capital seguro, no valor de € 49.303,74 (FP 11 e 12).
44. No caso sub judice, o capital seguro restringiu-se a duas das verbas previstas na cl. 7 das CPA (doc. 5 da p.i.), ou seja, ao valor da factura de venda das mercadorias (USD 52.763,97), mais 10% desse valor (USD 5.276,40), não incluindo, por conseguinte, conforme resulta do nº 12 dos factos provados, uma verba autónoma para as despesas de frete, nem quaisquer outras despesas relacionadas com o transporte, o que, só por si, é impeditivo do recebimento pela A. de uma indemnização superior a USD 58.040,37 ou EUR. 49.303,74, nos termos do art.º 49º/1 e 128º do RJCS.
45. A não inclusão no capital seguro de qualquer verba autónoma para as despesas de frete é compreensível à luz do facto provado nº 7 (“As mercadorias foram vendidas pelo preço de USD 52.763,97 e sob o incoterm CIF.”), sendo que nesse incoterm o pagamento do frete marítimo é um encargo do vendedor (no caso a A.), que incorpora o seu valor no preço das mercadorias vendidas.
6. Condenação no frete em duplicado
46. Em qualquer caso, o valor da condenação nunca poderia incluir o frete, no valor de € 4.350,00, pois, como já se disse, a “AGPMEAT” vendeu as mercadorias pelo preço de USD 52.763,97, sob o incoterm “CIF” (FP 7), o que significa que a entrega das mercadorias ocorreu na origem, com o embarque (“Incoterms 2020”, CCI, “CIF” – A2), e o frete foi pago pela “AGPMEAT” (“Incoterms 2020”, CCI, “CIF” – A9), que o incorporou no referido preço das mercadorias.
47. Tendo as mercadorias sido vendidas pelo preço de USD 52.763,97 (€ 44.821,59), sob o incoterm “CIF”, e estando, por isso, o valor do frete incorporado nesse preço, nunca o valor de uma hipotética condenação da R. poderia incluir esse preço e, concomitantemente, o frete, no valor de € 4.350,00, sob pena de resultar dessa decisão o duplo ressarcimento do mesmo dano.
7. Juros moratórios
48. Salvo melhor opinião, os juros moratórios comerciais, em que a R. foi condenada, não foram peticionados e, independentemente disso, não são devidos.
49. A jurisprudência tem entendido que o pedido de condenação em juros nos termos em que a A. o formulou (peticionando, meramente, “juros de mora vincendos” ou “juros”, sem mais, isto é, sem peticionar expressamente juros comerciais) deve ser entendido no sentido de se referir aos juros legais civis.
50. Assim, a sentença recorrida, na parte em que condenou a R. em juros comerciais, não peticionados pela A., poderá ser considerada nula, nos termos do art.º 615º/1 e) do CPC.
51. Em qualquer caso, na opinião da R., a ser esta condenada nalgum valor, o que apenas se admite por mero dever de cautela e de patrocínio, sobre o mesmo deveriam incidir juros moratórios à taxa civil, e não comercial.
52. A obrigação de juros comerciais está prevista no art.º 102º do Cód. Com., alterado pelo DL nº 62/2013, de 10.5, que, nos termos do art.º 2º/1, se aplica aos pagamentos realizados a título de remuneração de transacções comerciais (não sendo o caso do pagamento indemnizatório em que a R. foi condenada), excluindo-se do seu âmbito de aplicação, nos termos da al. c) do nº 2, os pagamentos de indemnizações por empresas de seguros.
53. Sobre os valores de sinistros regularizados por companhias de seguro ao abrigo dos respectivos contratos de seguro vencem-se juros moratórios à taxa legal civil.
54. A sentença recorrida violou, interpretou indevidamente ou desconsiderou o art.º 615º/1 d) e e) do CPC, o art.º 3º/2 da CB de 25.8.1924, o art.º 7º e 15º/1 do DL nº 255/99, de 7.7, os arts. 342º/1, 346º, 570º e 589º do CC, os arts. 49º/1, 128º e 136º/1, 3 e 4 do RJCS, o art.º 102º do Cód. Com., o art.º 2º/1 e 2 c) do DL nº 62/2013, de 10.5, a “Cláusula de Riscos Frigoríficos”, as cls. 6 e 7 das CPA, a cl. 4ª/2 c) das CGA e as condições “CIF.
Conclui que deve ser revogada a sentença condenatória recorrida, absolvendo-se a R. do pedido. 

A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir das seguintes questões:
- Nulidade decisória;
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Verificação dos pressupostos da responsabilidade civil conducentes à responsabilização da ré/apelante pelo pagamento da indemnização peticionada pela autora/apelada.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Factos
Factos provados
O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos [transcrição]:
1 - A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade transitária.
2 - A CMA é uma sociedade comercial que se dedica ao transporte internacional marítimo de mercadorias, por conta de outrem.
3 - A Ré Vitória Seguros é uma sociedade seguradora.
4 - Em Julho de 2021 a Autora contratou a CMA para efectuar o transporte
Marítimo de um contentor que tem o nº TT…-… 18, contento 930 caixas de carne congelada – 6 peças de carcaça de porco.
5 – O transporte teve origem no porto de Setúbal e tinha por destino final o porto de Tianjin Xingang, na China.
6 – As mercadorias eram exportadas pela ‘Ageapmeat e destinavam-se ao importador chinês Shengchanghong International Trading PTY, LTD.
7 – As mercadorias foram vendidas pelo preço de USD 52.763,97 e sob o icoterm CIF.
8 – Do Draft do Bill of Lading, datado de 23/08/2021, consta como exportador a ‘Agpmeat, SA’, como destinatário a ‘Shengchanghong International Trading PTY LTD’ e como transportadora a CMA CGM.
9 – As peças de carne de carcaça de porco deveriam ser carregadas no contentor refrigerado a -18ºC.
10 – O contentor foi carregado no navio WEC de Hoog a 23/08/2021, no porto de Setúbal.
11 – A Autora incluiu esta mercadoria no seu seguro de mercadorias, através do certificado nº 424 pelo valor segurável de €49.303,74 e daí constando como segurado a ‘Transitex Transitos Extremadura, SA’.
12 – Do certificado referido em 11 consta que o capital seguro é de 52.763,97 USD + 10%=58.040,37 USD, sendo o valor total seguro em euros de €49.303,74, o qual cobre o Risco de armazém a armazém e que foi contratada a Cláusula de Riscos Frigoríficos de 1986+ Cláusula de Atraso.
13 – O referido certificado foi emitido ao abrigo do contrato de seguro celebrado entre Autora e Ré Victória, tendo como segurado o proprietário da mercadoria a segurar de acordo com o contrato de compra/venda celebrado e titulado pela apólice aberta nº … 76 para cobertura dos riscos inerentes à perda ou avaria de mercadorias transportas.
14 – A apólice subjacente ao certificado referido em 11 tinha um período de vigência desde 01/06/2021 a 01/05/2022 com um capital seguro máximo e por viagem limitado a €1.250.000,00 e constando como tomador do Seguro a ‘Transitex Transitos Extremadura, SA’.
15 – O navio WEC de Hoog iniciou a viagem a 24/08/2024 e a 25/08/2024 a CMA informou a Autora de que existia uma avaria no contentor que não podia ser reparada a bordo e que iria descarregar no porto de Leixões.
16 – A 25/08/2021 o contentor foi descarregado no porto de Leixões, tendo ficado à guarda da CMA.
17 – O contentor foi carregado nas instalações da Sicasal a 16/08/2021, encontrando-se programado a -18ºC.
18 – A 17/08/2021 o contentor foi devolvido cheio, fechado e selado à CMA.
19 – A temperatura do contentor em 18/08/2021 atinge os -16,4ºC, quase 22 horas após registar temperatura da carga.
20 – A partir de 18/08/2021 o termógrafo indica que a temperatura começa a subir e descer gradativamente numa curva exponencial, com variação de 3ºC para cima e para baixo, até ao dia 26/08/2021, quando passou de -5,5ºC para +1,8ºC.
21 – As paletes junto à máquina de frio estavam colocadas correctamente, não se encontrando a empurrar a placa defletora junto ao piso para a máquina e não ultrapassando a ‘red line’.
22 - A mercadoria inspecionada apresentava sinais de descongelamento, os ossos de castanho esverdeado, a carne vermelha e cinza, a carcaça do quarto traseiro apresentava fungobolor.
23 – O termógrafo laranja que consta de fls. 18, 19 e 21 do relatório da Abaco destina-se a medir a temperatura do produto.
24 – O contentor forneceu temperatura acima da programada a partir do segundo dia em que foi carregado, tendo a mercadoria ficado acima de 0,0ºC em dois picos e depois durante 15 dias oscilou entre -2,2ºC e +1,5ºC, tendo sido esta a causa do descongelamento.
25 – O contentor teve algum problema na máquina de refrigeração, pois esta não forneceu a temperatura programada.
26 – O facto de o termógrafo começar a medir a temperatura próxima de -18ºC quando foi ligado, apenas indica que a carga estava congelada, com temperatura adequada para o transporte, eliminando a hipótese de que a temperatura da carga pudesse estar alta e com isso forçar o maquinário do contentor.
27 – Mesmo que eventualmente pudesse ter havido uma caixa acima da linha vermelha, tal não causaria dano à mercadoria, pois não seria capaz de obstruir a saída de ar - Cfr. 2º relatório da ABACO a fls. 524, p. 39 de 43.
28 – Do data log report verifica-se que as temperaturas do contentor começaram a oscilar a partir do dia 18/08/2021, nunca mais tendo a temperatura de retorno a temperatura pré-definida de -18º, sendo que desse datalog se pode constatar que quando o contentor foi embarcado a 23/08/2021 a temperatura de retorno já era positiva.
29 – No dia 25/08/2021 a Autora é informada pela CMA que o contentor TT … -… 18 se encontrava com uma avaria e que não podia ser reparado a bordo, pelo que teria de ser descarregado no porto de Leixões.
30 – A 26/08/2021 Autora enviou à CMA uma reclamação com carta de protesto.
31 – O contentor foi descarregado no porto de Leixões a 26/08/2021 por ordem da CMA e ficou ali parqueado, à sua guarda.
32 – Só em Setembro de 2021 é que se logrou abrir o contentor porque para os serviços alfandegários deram a mercadoria como exportada e exigiram uma série de documentos, incluindo um controlo sanitário pela DGAV.
33 – A 1ª abertura do contentor ocorreu a 17/09/2021 na presença da DGAV e a segunda a 2ª a 19/10/2021 na presença da Alfandega.
34 – No dia 20/10/2021 o contentor seguiu para as instalações da Sicasal para ser descarregado, mas não o chegou a ser porque a Sicasal não autorizou atento o mau cheiro que provinha do mesmo.
35 – O contentor apresentava uma temperatura pré-definida de -18ºC, o equipamento de refrigeração fornecia temperatura de -9,7ºC e a temperatura de retorno era de -7,7ºC.
36 – No dia 27/10/2021 o contentor foi aberto na presença da DGAV.
37 – A DGAV classificou as mercadorias como categoria II e determinou a sua destruição.
38 – A mercadoria foi destruída a 02/11/2021.
39 – O valor da mercadoria era de USD 52.763,97.
40 – O custo da destruição da mercadoria foi de €3.729,60.
41 – Com o transporte rodoviário, carga e descarga do contentor, imobilizações, paralisações e custos de inspecção a Autora despendeu a quantia total de €4.784,00.
42 – A Autora pagou ainda o frete de €4.350,00.
43 – A AGPMEAT recebeu da Autora a quantia de €62.430,73 e autorizou esta a exercer o seu direito de reclamação a fim de ser reembolsada da quantia que lhe pagou.
44 – A SHENG CHANG HONG autorizou a AGPMEAT a reclamar as quantias devidas pela não entrega da mercadoria comprada.

Matéria de facto não provada
O tribunal de 1ª instância julgou não provado que:
i) A A. tivesse pago custos 293,06 de custos aduaneiros.
ii) O contentor estivesse mal estivado.
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III.2. Mérito do recurso
III.2.1. Nulidade decisória
Invoca a apelante a nulidade da decisão recorrida, nos termos do art.º 615º d) do Código de Processo Civil (cf. conclusão i. do recurso), alegando que o tribunal a quo não conheceu das excepções da culpa do lesado, nem da limitação da responsabilidade da R. ao valor do capital seguro.
Sob a epígrafe regra da substituição ao tribunal recorrido, dispõe o art.º 665º/1 do Código de Processo Civil que:
«Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação».
Decorre da regra aqui consagrada que, em princípio, é irrelevante, porque inútil, conhecer da nulidade da decisão impugnada, na medida em que se impõe ao tribunal ad quem o suprimento da nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (arts 665.°, n° 1 e 684.°, n.º 1, do CPC) – neste sentido, v. acórdão do TRC de 27/6/2023, P. 2808/22, Henrique Antunes, in www.dgsi.pt.
Sendo invocados vários fundamentos pelo recorrente, entre os quais a nulidade decisória, a apreciação desta revela-se um acto inútil (art.º 130º do Código de Processo Civil), se a decisão sob recurso puder ser confirmada ou revogada com base nos outros fundamentos aduzidos na apelação (v. acórdão do TRP de 25/3/2021, P. 59/21.7T8VCD.P1, www.dgsi.pt.)
Neste conspecto, pode ler-se no acórdão do TRL de 3/12/2024, P. 2844/20.8T8ALM-E.L1, relator Paulo Ramos de Faria, in www.dgsi.pt.: “De todo o modo, sempre se dirá que, logicamente, terão de ser casos em que possa ser afirmada a utilidade das duas pronúncias (em simultâneo), isto é, em que possam conviver com utilidade – o que significa que terão de ser casos em que o conhecimento “do objeto da apelação” não é possível relativamente a todo o objeto da decisão impugnada (tertium non datur)”.
Em face do exposto, conjugando a regra da substituição (art.º 665º/1) com os princípios da limitação dos actos (art.º 130º) e da prevalência da decisão de mérito (art.º 278º/3) e considerando que, no caso vertente, o conhecimento da nulidade invocada não prejudicaria o conhecimento do objecto do recurso, afigura-se inútil o conhecimento da nulidade, pelo que não se aprecia tal questão.

III.2.2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A apelante pretende a alteração da matéria de facto provada sob os pontos 21 e 25 do acervo factual na sentença recorrida, assim como o facto ii) julgado não provado. Além disso, pretende o aditamento da “cláusula de riscos frigoríficos” ao ponto 12 dos factos provados.
Nos termos do disposto no art.º 662º/1 do Cód. Proc. Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Dispõe, por sua vez, o art.º 640º/1 do Cód. Proc. Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Resultando do corpo das alegações de recurso e respectivas conclusões que a recorrente deu cumprimento aos ónus impostos pelo art.º 640º do CPC, importa apreciar a impugnação da matéria de facto, analisando os factos postos em crise conjuntamente, considerando a sua interligação.
A apelante considera incorrectamente julgados os pontos nºs 21 e 25 da matéria de facto provada, alegando que o tribunal a quo valorizou exclusivamente, para efeitos de julgamento das questões objecto dos nºs 21 e 25 dos factos provados e nº ii dos factos não provados, o 1º relatório da “Abaco”
(datado de 9.12.2021) e o testemunho do seu autor, A …, em detrimento dos relatórios da “Sinicarga” (doc. 2 da contestação da R. apelante) e da “HMAJ Containers” (doc. 7 da contestação da 1ª R.) e dos testemunhos dos seus autores, B …, C …, D … e E ….

Os factos provados 21 e 25 têm o seguinte teor:
21 – As paletes junto à máquina de frio estavam colocadas correctamente, não se encontrando a empurrar a placa defletora junto ao piso para a máquina e não ultrapassando a ‘red line’.
25 – O contentor teve algum problema na máquina de refrigeração, pois esta não forneceu a temperatura programada.
O facto não provado ii) têm o seguinte teor:
ii) O contentor estivesse mal estivado.

A recorrente pretende que seja eliminado o facto ii) e que os factos 21 e 25 passem a ter a seguinte redacção:
“21. As paletes estivadas no topo do contentor empurravam a bainha que faz de conduta para a circulação do ar frio, estrangulando essa saída e criando blocos de gelo, situação que afectou o rendimento da máquina.
25. A máquina de frio do contentor foi testada em 19.10.2021 e em 4.11.2021 e não apresentou qualquer avaria. “
 
O tribunal recorrido apresentou a seguinte motivação quanto aos mencionados factos:
- “O facto 21 resultou do teor do relatório da Abbaco junto a fls. 460 (págs. 12, 13 e 17 de 66) e da testemunha A …, o qual com total isenção e conhecimento dos factos, já que esteve presente nas instalações da Sicasal e pôde verificar o contentor em causa e o modo como se encontrava estivado, afirmou que as paletes se encontravam bem acondicionadas, não ultrapassando a ‘red line’, nem estando sobrepostas, o que permitiria a circulação do ar.”
- “O facto 25 resultou provado do teor do relatório da Abbaco junto a fls. 460.”
- “O facto ii) resultou não provado, pois embora as testemunhas da Ré tivessem afirmado que a avaria teria ocorrido pelo esmagamento da manga, o certo é que as declarações tanto de B … como de C …, peritos avaliadores da Ré, não foram suficientemente esclarecedoras para abalarem os depoimentos dos peritos da Abbaco.
É que embora tivessem referido que a avaria ocorreu devido à má estiva da mercadoria, o certo é que as explicações avançadas quanto aos motivos da avaria foram parcas e conclusivas e não colocaram em causa as explicações apresentadas pelos dois peritos da Abbaco, as quais foram muito mais minuciosas, criteriosas e lógicas, tendo ambos demonstrado um elevado conhecimento técnico e tendo deposto com isenção.”

Insurge-se a recorrente seguradora Victoria S.A. contra a valoração que o tribunal de 1ª instância efectuou dos diversos meios probatórios, nomeadamente do relatório de vistoria da Abbaco (junto com a petição inicial) em que se estribou a prova dos factos impugnados.
Entende a recorrente que deveria ter sido atribuída maior força probatória aos relatórios da “Siniscarga” e da “HMAJ” (respectivamente documento nº 2 e 7 juntos com a contestação da ré Victoria), pondo ainda em crise o depoimento das testemunhas A … e F …. Por outra banda, a apelante sustenta a sua impugnação no depoimento das testemunhas B …, C …, D … e E …, considerando que esta última testemunha foi decisiva para o apuramento da causa de descongelação da mercadoria.
Contra argumenta a apelada/autora Transitex, referindo que não existem incongruências no depoimento da testemunha A …, nem entre os dois relatórios da Abbaco, limitando-se o segundo relatório a clarificar e complementar o primeiro.
Este Tribunal ad quem procedeu à audição de toda a prova gravada, registada na plataforma citius.
Começando pela testemunha A …, que subscreveu os mencionados relatórios Abbaco, não vemos razões objectivas para pôr em causa o seu depoimento, que teve por base os sólidos conhecimentos técnicos revelados pela testemunha, enquanto engenheiro e perito de segurança, com formação na área de seguros e experiência de 30 anos em peritagens de embarcações e transportes marítimos (de contentores e cargas).
Segundo a testemunha, que analisou a mercadoria em causa (paletes de carne de porco congelada) nas instalações da Sicasal no dia 20/10/21, a carga estava bem estivada, ou seja, devidamente acondicionada, abaixo da linha vermelha e, portanto, deixando o espaço necessário no topo do contentor (acima da carga) que permitia a normal circulação do ar. Desta forma, afastou a testemunha que o problema das (elevadas) temperaturas no contentor (muito acima dos -18ºC que deveria registar, conforme atestaram os registos do termógrafo), que levou à descongelação da mercadoria e sua consequente deterioração, tivesse como causa a má/deficiente estiva.
Como a testemunha explicou, se a oscilação da temperatura registada no contentor resultasse da má estiva, então o problema deveria ter ocorrido desde o primeiro dia, o que não se verificou (no carregamento da mercadoria não soou qualquer alarme, só mais tarde surgindo a alteração da temperatura). Conclui a mesma testemunha que a causa do sinistro se ficou a dever ao funcionamento deficiente da máquina de refrigeração do contentor. 
Na mesma linha, pronunciou-se a testemunha F …, técnico superior de refrigeração industrial, que trabalha na área da refrigeração há cerca de 30 anos, cujo depoimento foi muito esclarecedor e convincente. Embora apenas tivesse tomado conhecimento do caso em Fevereiro de 2022, foi solicitado o seu parecer, na sequência do que analisou um contentor idêntico àquele que está em causa nos autos. Sobre a apontada hipótese de ter sido a má estiva a impedir a circulação do ar no interior do contentor (como conclui o relatório da Siniscarga – documento 2 junto com a contestação da ré Victoria), a testemunha asseverou que dos elementos que analisou (relatórios, fotografias e registo das temperaturas), verificou que as paletes de carne não ocupavam o espaço superior do contentor (não ultrapassando a linha vermelha) e que na parte inferior do contentor existiam ranhuras que impediam a carga de entrar nos canais de circulação inferiores, observações que atestou em sede de audiência de julgamento com base nas fotografias que lhe foram exibidas (v.g. fotos 6, 22, 25, 27, 34, 35 juntas com o relatório Abacco). Esclareceu ainda que a intervenção das paletes no interior do contentor, caso estivessem a empurrar a bainha ou designada chapa L, poderia, quanto muito, obstruir 4 ou 5 cm de um canal que tem cerca de 35 cm, para além de existirem batentes impedindo que a peça fosse deslocada mais de 4/5 cm. Diversamente, o mau funcionamento do evaporador do contentor existente no contentor leva à formação de gelo, que, isso sim, impede a circulação do ar. Mais referiu que os registos do frio (registados pelo termógrafo) demonstram uma deficiente circulação do ar, com a consequente subida da temperatura, aventando até a hipótese provável, em termos de experiência comum, de ser a mercadoria ainda congelada a manter a temperatura no contentor, com muito pouca contribuição da maquinaria.
As testemunhas indicadas pela apelante não lograram infirmar o afirmado pelas referidas testemunhas A … e F …, não decorrendo sequer do alegado pela recorrente porque razão devem aquelas merecer maior credibilidade do que estas.
Com efeito, da audição do depoimento das testemunhas em que a apelante alicerça a sua impugnação – B …, C …, E … e D … – não extraímos a conclusão pretendida. Nenhuma dessas testemunhas atestou com a mínima consistência que a causa do sinistro se deveu à má estiva.
B … tinha, que à data tinha uma empresa que prestava serviços para seguradoras, incluindo para a ré Victoria, tendo recebido desta um pedido de intervenção, procedeu à vistoria realizada em 17/9/21 no Porto de Leixões, referindo que embora não tivesse estado presente na segunda vistoria (esteve o colega C …), foi ele com quem fez o relatório, concluindo que não foi detectada avaria na máquina e que as paletes teriam dificultado a circulação do ar, podendo ser o motivo para a avaria da carga.
Por seu turno, a testemunha C … (que trabalhava para a Siniscarga) afirmou que as duas últimas paletes estavam muito juntas ao motor do frio, empurrando a bainha do ar frio. Não obstante, questionado sobre o mau funcionamento da máquina, respondeu que não tinha opinião e que não era perito nessa matéria.
Quanto à testemunha E …, técnico de refrigeração, relatou que viu o contentor (já) vazio em 19/10/21, verificando que uma chapa de alumínio (que designou chapa L) estava a estrangular a ventilação, referindo que puxou a chapa para a frente e colocou-a na posição correcta, tendo o contentor depois sido ligado e funcionando bem, o que o levou a concluir que a única explicação possível para a falta de refrigeração seria a dita chapa estar encostada ao estrado do contentor.
Por último, a testemunha D … (director da empresa HMAJ de manutenção e inspecção de contentores), foi nomeado pela CMA para uma inspecção ao contentor que estava em Leixões, referindo que, não sendo ele especialista em frio, nomeou o supra referido E … para analisar a situação. Havendo descongelação do produto, suspeitaram que não haveria circulação de ar dentro do contentor, mas para ter uma conclusão definitiva, teriam de retirar a carga. Para tanto, teve lugar uma segunda vistoria em que esteve presente o E …, que considerou confirmada a suspeita inicial de que a carga teria bloqueado a saída do ar frio. Como o próprio D … disse, limitou-se a fazer o relatório, de acordo com o parecer do E ….
Analisando estes depoimentos, podemos extrair que a má estiva, apontada como causa do sinistro, o foi como mera hipótese ou suspeita, sem qualquer fundamentação sólida que levasse a essa conclusão, sendo de assinalar que, tratando-se de matéria de excepção, competia à ré a sua prova (art.º 342º/2 do Código Civil).
Por conseguinte, não lograram tais depoimentos infirmar as conclusões extraídas, de forma consistente, pelas testemunhas F … e A …, sendo este o autor dos relatórios da Abbaco juntos aos autos. Aliás, ficou provado no facto 27, não impugnado, que: “Mesmo que eventualmente pudesse ter havido uma caixa acima da linha vermelha, tal não causaria dano à mercadoria, pois não seria capaz de obstruir a saída de ar.”, o que só reforça a a falta de sustentação da tese da R. para a causa do sinistro.
Flui do exposto que, não nos merecendo censura a avaliação da prova efectuada pelo tribunal a quo, inexiste fundamento para a pretendida alteração dos factos provados 21 e 25 e consequentemente do facto não provado ii).
             
Pretende ainda a apelante, para clarificação, o aditamento ao facto 12 da “cláusula de riscos frigoríficos”, junta aos autos por requerimento da R. de 19.12.2023 (com a referência 47452399), defendendo que a decisão sobre a cobertura do sinistro deve basear-se em tal cláusula.
Como é referido em sede de contra-alegações, a autora/apelada impugnou o documento em questão junto pela ré após a audiência prévia (cf. requerimento com a refª … 58, de 15.01.2024), sendo certo que na contestação a ré declarou, no art.º 123º, que aceitava as condições particulares (documento nº 5 junto com a petição inicial) e gerais do seguro (documento nº 1 junto com a contestação).
Considerando que os pontos 12, 13 e 14 (não impugnados) do acervo provado contêm os factos essenciais atinentes ao contrato de seguro (de acordo com o alegado pelas partes na fase dos articulados) e sem prejuízo da valoração dos demais documentos cuja junção foi admitida na 1ª instância, deve improceder o requerido aditamento.
 Por todo o exposto, improcede totalmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se a factualidade dada como provada e não provada na sentença.
*
III.2.3. Apreciação jurídica
Com a presente acção pretendeu a autora/ora apelada ser ressarcida pelos danos que lhe foram causados em consequência do cumprimento defeituoso do contrato de transporte internacional de mercadorias celebrado entre a A. Transitex -Trânsitos de Extremadura, S.A. e a empresa CMA CGM (1ª R., que foi absolvida da instância, por via da procedência da excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses em consequência da infracção das regras da competência internacional, por preterição de pacto de jurisdição), fundando a sua pretensão indemnizatória relativamente à R. Victoria Seguros, S.A./ora apelante, além do mais,  no contrato de seguro celebrado entre a A. e esta ré.
A sentença recorrida julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré Victória Seguros, SA a pagar à Autora o montante de €62.167,34, acrescido dos juros à taxa legal comercial desde a data da citação (28/09/2022) até integral pagamento.
Não obstante reconhecer que o armador CMA CGM incumpriu os seus deveres de manutenção da mercadoria acondicionada no respectivo contentor a temperatura não superior -18ºC, tornando-se responsável pela perda da mercadoria, e que a A. era responsável perante a sua cliente “AGPMEAT” pelo cumprimento defeituoso dos deveres legais do armador relativamente à mercadoria, tendo a A. indemnizado a vendedora da mercadoria (“AGPMEAT”) no valor de €62 430,73 (facto provado 43), sustenta a apelante, em síntese, que:
- Não estão verificados os pressupostos da subrogação da A., concluindo que a mesma não foi validamente sub-rogada em quaisquer direitos que pudessem advir para a sua cliente do contrato de seguro de transporte.
- Se as oscilações de temperatura do contentor e a perda da mercadoria nele acondicionada se tivessem ficado a dever à causa alegada pela A. (avaria da máquina de frio), com o consequente enquadramento do sinistro na cobertura de riscos frigoríficos, a R. teria regularizado o sinistro, mediante o pagamento à segurada “AGPMEAT” do capital seguro, no valor de € 49.303,74.
- Nessa hipótese, a R. teria ficado sub-rogada nos direitos da segurada “AGPMEAT” contra a A. (responsável pelo sinistro perante aquela), na medida do valor do capital seguro (que teria pagado), nos termos do art.º 136º/1 do RJCS; por seu lado, o direito da segurada “AGPMEAT” sobre a A., quanto à parcela do risco não coberto (isto é, relativamente à diferença entre o valor total dos prejuízos e o valor do capital seguro), subsistiria, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.
- A A. não logrou provar os pressupostos da cobertura dos riscos frigoríficos.

Resulta quer do corpo das alegações, quer das conclusões do recurso que a apelante faz depender a pretendida revogação da sentença da procedência da alteração da matéria de facto, concluindo que não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade.
Como vimos, a impugnação da matéria de facto foi julgada totalmente improcedente.
A própria recorrente admite a sua responsabilidade “Se as oscilações de temperatura do contentor e a perda da mercadoria nele acondicionada se tivessem ficado a dever à causa alegada pela A. (avaria da máquina de frio), com o consequente enquadramento do sinistro na cobertura de riscos frigoríficos.”
Toda a impugnação recursória assenta no pressuposto de que a causa do sinistro foi a deficiente estiva, imputada à A. pela R., declinando esta a sua responsabilidade neste caso e rejeitando que o sinistro tivesse sido provocado pelo mau funcionamento da maquinaria/refrigerador do contentor.

Conforme resulta da factualidade provada, a CMA CGM, na qualidade de transportadora, foi incumbida pela A. de proceder ao transporte marítimo de mercadorias entre os portos de Setúbal e Tianjin Xingang (na China), tendo sido emitido um conhecimento de embarque (bill of lading), datado de 23/8/21, no qual figuravam como transportadora a CMA CGM, como exportador/expedidor a Agpmeat, S.A. e como destinatário a importadora chinesa Shengchanghong International Trading PTY, Ltd. (factos provados 4, 6 e 8).
Por outras palavras, a Agpmeat, S.A. (vendedora) contratou a A. Transitex (empresa transitária) para organizar um transporte internacional de mercadorias (carne congelada), tendo a A., por sua vez, contratado a CMA CGM (transportador/armador) para efectuar o transporte marítimo desde o porto de Setúbal até ao porto de Tianjin Xingang (na China).
Paralelamente, a A. celebrou com a R. Victoria Seguros S.A. um contrato de seguro que teve como objecto a referida mercadoria, contrato esse titulado pela apólice … 76, nela figurando a A. como tomadora de seguro e a Agpmeat, S.A. como segurada (cf. factos 13 e 14).
Ficou ainda demonstrado que a mercadoria (peças de carne congelada) deveria ser carregada no contentor refrigerado a 18ºC (facto 9), tendo o contentor sido carregado no navio WRC de Hoog, a 23/8/21, no porto de Setúbal (facto 10), iniciando viagem a 24/8/21, sendo que a 25/8/21 a CMA informou a A. de que existia uma avaria no contentor que não podia ser reparada a bordo (facto 15), pelo que o contentor foi descarregado no porto de Leixões, ficando à guarda da CMA (facto 16). O contentor forneceu temperatura acima da programada a partir do segundo dia em que foi carregado, tendo a mercadoria ficado acima de 0,0ºC em dois picos e depois 15 dias oscilou entre -2,2ºC e +1,5ºC, tendo sido essa a causa do descongelamento (facto 24), o que teve origem em problema da máquina de refrigeração, que não forneceu a temperatura programada (facto 25), vindo a mercadoria a ser destruída (facto 36).
 A apelante não contesta a qualificação jurídica dos acordos firmados entre os diversos intervenientes, nos termos em que foi efectuada pelo tribunal recorrido, designadamente:
- contrato de expedição, celebrado entre a A. e a Agpmeat, S.A.
- contrato de transporte marítimo internacional, celebrado entre a A. e a CMA CGM.
A sentença tratou aprofundamente a matéria, distinguindo os contratos em presença, dando-se aqui por reproduzidas essas considerações.
A ora A. dedica-se à actividade transitária (facto 1).
Como é sabido, o transitário tem fundamentalmente a seu cargo uma obrigação de meios. É um intermediário entre o expedidor e o destinatário, um mero prestador de serviços que define a arquitetura dos transportes necessários à operação de colocação dos bens no destinatário, executando os actos e diligências que se imponham, com vista à satisfação do interesse dos seus clientes. Neste sentido, vide acórdãos: do Supremo Tribunal de Justiça de 30/4/2018, P. 613/13.0TVPRT.P1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; acórdão do TRP 27-09-2022, P. 1301/20.7T8PVZ-A.P1, Alexandra Pelayo; e acórdãos do TRL de 1/7/21, P. 28983/18.7T8LSB.L1-2, relatora Inês Moura e de 2/2/21, P. 326/11.8TNLSB.L1-7, relator Carlos Oliveira (www.dgsi.pt), podendo ler-se no sumário deste último aresto, nos pontos IV e V, que:
“IV. O transitário que assume perante o seu cliente a obrigação de rececionar a mercadoria, por si ou a seu mando, e de a colocar no destinatário, com autorização para contratar terceiros para realizar os atos materiais de transporte necessários para o efeito, assume obrigações típicas do contrato de transporte e fica sujeito à responsabilidade civil estabelecida por lei para o transportador.
V. Em todo o caso, nos termos do Art.º 15º n.º 1 e n.º 2 do Dec.Lei 255/99 de 7/7, a empresa transitária responde perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso, ficando a sua responsabilidade sujeita aos limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem seja confiada a execução material do transporte.”
O citado acórdão do TRL de 2/2/21 explicita que “A responsabilidade civil aqui estabelecida para as empresas transitárias é uma responsabilidade objetiva, ao jeito da responsabilidade civil do comitente (v.g. Art.º 500.º do C.C.), na medida em que não tem como requisito explícito a culpa do transitário, pressupondo apenas a responsabilidade da empresa que executou materialmente o transporte, desde que tenham sido contratadas pelo transitário, assegurando-se a este último o direito de regresso relativamente ao autor material do facto danoso que obriga à reparação. Mesmo que assim não se entendesse, poderia sempre sustentar-se que, nos termos do Art.º 15.º do Dec.Lei n.º 255/99 de 7/7, a responsabilidade do transitário tem pelo menos sempre o mesmo âmbito da responsabilidade do transportador que contratou.”

Nesta linha, refere-se na sentença sob recurso que as empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso [cf. artigo 15.º/1 do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho, que estabelece o regime jurídico da actividade transitária: “«1 — As empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso. 2 — À responsabilidade emergente dos contratos celebrados no âmbito deste diploma aplicam-se os limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem seja confiada a execução material do transporte, salvo se outro limite for convencionado pelas partes».]

Consta do ponto 43 do acervo factual provado que a A. pagou a quantia de €62.430,73 à AGPMEAT, tendo esta autorizado aquela a exercer o seu direito de reclamação a fim de ser reembolsada de tal quantia. Por sua vez, a SHENG CHANG HONG autorizou a AGPMEAT a reclamar as quantias devidas pela não entrega da mercadoria comprada (facto 44).

Como se considerou na sentença, a obrigação essencial do transportador marítimo, no caso a CMA, consistia em fornecer um contentor refrigerado a -18º C, que seria enchido pelo carregador com carne congelada, e o dever de  entregar no porto de destino as mercadorias transportadas no mesmo estado em que as recebeu no porto de embarque.
O tribunal a quo entendeu que, não tendo o contentor mantido a temperatura programada, começando esta a subir a partir de 18/8/21, registando oscilações até 26/8/21 (cf. facto provado 20), a transportadora CMA faltou à sua obrigação, presumindo-se a sua culpa (art.º 799º/1 do Código Civil) e verificando-se nexo de causalidade entre o comportamento da CMA (sendo o descongelamento da mercadoria causado pela avaria no maquinário do contentor – facto provado 25) e os danos causados à A., que pagou os custos mencionados nos factos provados 41, 42 e 43.
Sublinhe-se que não está em causa nesta acção e recurso apurar a responsabilidade da 1ª R. CMA CGM (já absolvida da instância), mas apenas a responsabilidade da 2ª R. Victoria Seguros, SA.
Assim, tendo a A. procedido ao pagamento à Agpmeat, S.A. da quantia de €62 430,73, correspondente ao valor da perda da mercadoria, considerou o tribunal a quo que a A. ficou subrogada na posição da Agpmeat, S.A. (beneficiária da carga segura), estribando-se no disposto nos arts 589º e 593º/1 do Código Civil e afirmando a legitimidade da ora A. para accionar a ré seguradora com base nos arts 48º/1, 2 e 3 e 156º da Lei do Contrato de Seguro (D.L. 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro).

Subrogação
A apelante insurge-se contra este entendimento, considerando que não se mostra verificado um dos pressupostos da subrogação.
Não lhe assiste razão.
Os pressupostos específicos da subrogação pelo credor encontram-se previstos no citado art.º 589º do Código Civil e são dois:
- o pressuposto geral de haver um acto de cumprimento por terceiro;
- o pressuposto específico de haver uma declaração negocial do credor mediante a qual subrogue o terceiro nos seus direitos, não carecendo, por isso, de consentimento do devedor, devendo tal declaração, expressa e não sujeita a forma legal (art.º 220º), ser feita até ao momento do cumprimento da obrigação.
Quanto aos efeitos da subrogação, rege o art.º 593º do Código Civil, de onde resulta que o crédito se transmite na medida da sua satisfação pelo autor da prestação, podendo ser total ou parcial. No caso de o crédito ter sido integralmente satisfeito, transmite-se integralmente da esfera do credor satisfeito para o autor do acto de cumprimento (v. Tiago Azevedo Ramalho, Código Civil anotado Ana Prata Coord., 2ª ed., Almedina, pág. 803).
Como se diz no acórdão do TRP de 21/2/2018, P. 613/13.0TVPRT.P1, relator Freitas Vieira, “na subrogação o que se verifica é a substituição do credor (primitivo) pelo terceiro que tenha cumprido em lugar do devedor – art.º 593º, nº 1, do CC – pelo que neste último caso o direito exercido pelo terceiro sub-rogado é o mesmo que pertencia ao primitivo credor.”
Transpondo estas considerações para o caso dos autos, não podemos deixar de acompanhar o tribunal de 1ª instância ao afirmar que, tendo a A. indemnizado a sua cliente, subrogou-se na posição da beneficiária da carga segura, nos termos dos arts 589º e 593º/1 do Código Civil (e não Código de Processo Civil, como certamente por lapso consta da sentença).
Não ocorre, pois, a invocada falta de preenchimento de um dos pressupostos legais da subrogação, que aliás, a recorrente não consegue justificar e que não se coaduna sequer com aquilo que afirmou, desde logo, na contestação acerca do contrato de seguro celebrado (contrato de seguro em nome e por conta de outrem) em que a A. figura como tomador do seguro e a Agpmeat, S.A. como segurada, circunstancialismo que foi dado como provado (cf. factos 13 e 14).
Mostrando-se verificados os pressupostos da subrogação, improcedem as conclusões do recurso em sentido oposto (conclusões 23 a 28).

Culpa da A.
Esgrime ainda a apelante que sempre seria de rejeitar a pretensão indemnizatória da A., dado que esta concorreu para a produção do dano, estribando-se no art.º 570º do Código Civil (conclusão 36).
Tal afirmação não tem a mínima adesão ao acervo factual provado, porquanto dali não resultam factos que permitam sustentar a culpa da A., que como vimos, actuou enquanto empresa transitária e não (também) como transportadora ou armadora, competindo à CMA CGM, no âmbito do contrato de transporte, assegurar as condições de transporte da mercadoria transportada (carne congelada) ao nível da manutenção da temperatura programada (-18ºC) no interior do contentor (factos 4 e 9).
Assim, improcede também este segmento do recurso.

Cobertura de riscos frigoríficos
Mais invoca a apelante a falta de preenchimento dos pressupostos da cobertura de riscos frigoríficos, o que assenta concretamente na pretendida alteração do facto provado 21 (As paletes estivadas no topo do contentor empurravam a bainha que faz de conduta para a circulação do ar frio, estrangulando essa saída e criando blocos de gelo, situação que afectou o rendimento da máquina.) e 25 (A máquina de frio do contentor foi testada em 19.10.2021 e em 4.11.2021 e não apresentou qualquer avaria.).
A improcedência da impugnação de tais factos conduz necessariamente à improcedência deste segmento do recurso, sendo certo que o seguro em causa titulado pela apólice nº … 76 e certificado nº 424 (cf. factos provados 11 a 14), destinado à cobertura de riscos inerentes à perda ou avaria das mercadorias transportadas (facto 13), contem cláusula específica de riscos frigoríficos (facto provado 12), não operando in casu qualquer cláusula de exclusão do contrato.
Aliás, como foi assinalado em sede de contra-alegações, só em sede de recurso veio a recorrente invocar a falta de cobertura do seguro. Ora, tal configura uma questão nova, cuja apreciação sempre estaria vedada a este tribunal ad quem, porquanto sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, não comportam ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cf. art.ºs 627.º/1, 631º/1 e 639.º do CPC).  (art.s 627º/1, 631º/1 e 639.º do CPC).

Capital seguro
Sob a conclusão 43 sustenta a recorrente que caso o sinistro estivesse contratualmente coberto e a R. estivesse obrigada ao pagamento, a indemnização estaria limitada ao capital seguro, no valor de €49 303,74.
Para tanto, alega que o capital seguro restringiu-se a duas das verbas previstas na cl. 7 das CPA (doc. 5 da p.i.), ou seja, ao valor da factura de venda das mercadorias (USD 52.763,97), mais 10% desse valor (USD 5.276,40), não incluindo, por conseguinte, conforme resulta do nº 12 dos factos provados, uma verba autónoma para as despesas de frete, nem quaisquer outras despesas relacionadas com o transporte, o que, só por si, é impeditivo do recebimento pela A. de uma indemnização superior a USD 58.040,37 ou EUR 49.303,74, nos termos do art.º 49º/1 e 128º do RJCS.
Sobre a questão, o tribunal recorrido pronunciou-se nos seguintes termos:
“Tendo ficado também provado que a Autora para além de ter pago à AGPMEAT o valor da mercadoria perdida €49.303,74 (52.763.97 USD), teve como despesas o valor da destruição da mercadoria no montante de €3.729,60, custos com transporte rodoviário, carga e descarga do contentor, imobilizações, paralisações e custos de inspecção no montante de €4.784,00 e de frete o valor de €4.350,00.
Assim sendo, a seguradora Ré Vitória terá de proceder ao pagamento à Autora do montante de €62.167,34.”
Não obstante, o tribunal havia referido, em momento anterior da fundamentação jurídica da sentença, que:
“Mais se menciona no referido certificado de seguro da Ré que o meio de transporte em que seguiu a mercadoria em causa era o acima identificado navio, tendo como data de início da viagem (“Sailing on”) o dia 24 de Agosto de 2021. O valor coberto em caso de dano/sinistro era no montante de 58.040,37 USD, ou seja, incluindo o valor constante da fatura de fls. 11, sendo a margem excedente de 10% para eventuais despesas de recuperação de mercadoria ou do seu valor, sendo que o valor total do seguro em euros foi de €49.303,74.”
(sublinhado e realce nosso)
Da factualidade provada consta, na parte que agora importa atender, que (indicando-se os respectivos factos provados):
“39 – O valor da mercadoria era de USD 52.763,97.
 40 – O custo da destruição da mercadoria foi de €3.729,60.
 41 – Com o transporte rodoviário, carga e descarga do contentor, imobilizações, paralisações e custos de inspecção a Autora despendeu a quantia total de €4.784,00.
 42 – A Autora pagou ainda o frete de €4.350,00.”
Do documento nº 5 junto com a petição inicial (condições particulares da apólice nº … 30) consta da cláusula 7. que:
 “Para efeitos desta apólice, considera-se que o valor a segurar será o valor de fatura das mercadorias acrescido das despesas de frete e/ou outras, relacionadas com o transporte e devidamente justificadas, mais uma percentagem de/até 10% desde que solicitado e indicado pelo Segurado.”
E do certificado de seguro, que constitui o documento nº 4 junto com a petição inicial, consta que o valor seguro é €49 303,73 e no item descrição do objecto, consta “capital seguro: 52 763,97 USD + 10%=58 040,37 USD.”
Da análise do teor dos documentos indicados e da factualidade provada, e tendo em conta o disposto nos arts 49º/1 e 128º do RJCS, afigura-se-nos que:
- os prejuízos indemnizáveis correspondem ao valor da mercadoria (€49 303,74), acrescido do valor do frete (€4350,00, devendo salientar-se que não obstante ter sido estipulada cláusula CIF, que levaria a incluir o valor do frete no preço da mercadoria, o certo é que da apólice consta que as despesas de frete acrescem ao valor da mercadoria, para além de que sempre incumbiria à A., empresa transitária e não vendedora, o pagamento do frete ao armador), o que perfaz o valor total de €53 653,74, não estando cobertas pelo seguro as demais despesas (no montante de €4 784,900) consideradas na sentença, relativas aos custos com transporte rodoviário, carga e descarga do contentor, imobilizações, paralisações e custos de inspecção.
- o valor da indemnização da responsabilidade da ré não poderá exceder o valor do capital seguro, ou seja, o montante de USD 58 040,37, que corresponde a €52 118,88, sendo este o valor da indemnização em cujo pagamento a ré/apelada deve ser condenada.
Donde, procede parcialmente a apelação, devendo ser alterada a sentença na parte em que condenou a ré/apelada no pagamento da quantia de €62 167,34, passando a ré a ser condenada no pagamento da quantia de €52 118,88.

Juros
Entende a ré que, a ser condenada, não serão devidos juros moratórios à taxa comercial, como foi decidido na sentença, mas apenas juros à taxa civil, alegando que não foram peticionados juros comerciais.
Como resulta da petição inicial, a A. pediu a condenação da ré no pagamento do referido valor a título de indemnização, acrescido de juros vencidos e vincendos a contar da data da citação, até efetivo e integral pagamento.
Não tendo sido peticionados juros de mora à taxa comercial, deve entender-se que são devidos juros à taxa civil.
Neste sentido, vejam-se os acórdãos do TRL de 19/3/24, processo, 285/09.0TNLSB-D.L1-7, relator Luís Filipe Pires de Sousa e do TRP de 3/12/2020, P. 128/17.8T8PRT-A.P1, relator Aristides de Almeida, podendo ler-se no ponto II. deste último aresto que: “II - Na prática judiciária, em regra, a referência a juros de mora à taxa legal tem o significado de juros à taxa civil e assim deve ser interpretada a decisão, sobretudo se na petição inicial o credor não usou expressões que indiciassem que o seu pedido era de juros à taxa comercial e esse aspecto nunca foi suscitado, abordado ou apreciado ao longo do processo.”
Flui do exposto que, face ao concreto pedido formulado pela A. quanto aos juros moratórios, não sendo peticionados juros à taxa comercial, deve a R. ser condenada no pagamento de juros à taxa civil, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Concluímos no sentido de que o recurso deve proceder parcialmente.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação parcialmente procedente, alterando a sentença recorrida, que passará a ter o seguinte dispositivo:
a) Julgar a acção parcialmente procedente e consequentemente condenar a Ré Victória Seguros, SA a pagar à Autora Transitex – Trânsitos de Extremadura, S.A. o montante de €52 118,88 (cinquenta e dois mil, cento e dezoito euros e oitenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa civil, desde a data da citação (28/09/2022) até integral pagamento.
Custas da acção e do recurso a cargo das partes, na proporção do respectivo decaimento (artigo 527º/1 e 2 do CPC).
Registe e notifique.
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Lisboa, 26 de Maio de 2025
Ana Mónica Mendonça Pavão
Paulo Ramos de Faria
Micaela Sousa