A INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
INTENÇÃO DE MATAR
FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE
HOMICÍDIO
TENTATIVA
JUIZO DE PROGNOSE
PREVENÇÃO GERAL
DIREITO À VIDA
ALARME SOCIAL
Sumário

1 - A não aceitação pelo recorrente da apreciação da prova levada a cabo pelo tribunal recorrido, não integra o vício a que alude a alínea a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que tem a ver com a matéria de facto em si mesma considerada ser ou não suficiente para a decisão de direito que foi alcançada pelo tribunal recorrido, independentemente da valia desta.
2 - Tendo em consideração o efeito surpresa da ocorrência de que foi vítima a ofendida, o instrumento utilizado (faca) e as zonas do corpo onde foi atingida (cabeça e pescoço), não se vislumbra na atuação do arguido qualquer animus defendendi, mas antes intenção de matar, ainda que não tenham sido apuradas as razões que ditaram o ataque.
3- Fundamentar é justificar, apresentar as razões, de forma coerente e objetiva, que determinaram a decisão naquele sentido e não noutro, ou seja, não significa autonomizar exaustivamente, mas antes de molde a tornar possível sindicar a bondade da decisão recorrida. Dito de outra forma, apenas a absoluta falta de fundamentação constitui nulidade.
4 – Tendo o tribunal a quo individualizado corretamente as diversas circunstâncias relevantes, sendo patente o percurso lógico adotado e os fundamentos que estiveram na base da determinação da medida da pena, não se verifica qualquer nulidade que comprometa o decidido.
5 – Pese embora o arguido não registe antecedentes criminais, não estão reunidos os pressupostos para se formular um juízo de prognose favorável em relação ao seu comportamento futuro, isto porque não só não se lhe identifica qualquer juízo de autocensura, mas também porque se mostram em destaque elevadíssimas exigências de prevenção geral, sendo a vida, além de bem jurídico fundamental do nosso ordenamento jurídico, bem supremo por excelência, e logo o alarme social gerado por crimes desta natureza.

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum coletivo n.º 54/24.4PDAMD do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Sintra – Juiz 4, em que é arguido AA, melhor identificado nos autos, foi proferido acórdão, em 28/01/2025, com o seguinte dispositivo:
A) Julgar a acusação do Ministério Público totalmente procedente por provada e, em consequência:
1. Condenar o arguido AA, pela prática, em concurso efectivo, de:
1.1. Em autoria material de um crime de homicídio, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pelo artºs 22º, nºs 1 e 2, alínea a); 23º e 131º do Código Penal, e artigos 2.º, n.º 1, alínea ab) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pessoa de BB, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
1.2. Em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artºs 86º, nº 1, alínea d); 2º, nº 1, al) m) e 3º, nº 2, alínea ab), da Lei das Armas e art.º 4º do DL nº 48/95, de 15 de março (Decreto Preambular do Código Penal de 1995), na pena de 6 (seis) meses de prisão.
1.3. Em cúmulo jurídico das penas parcelares descritas em 1.1. e 1.2., nos termos do art.º 77º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão.
2. Condenar o arguido em 3 Ucs. de taxa de justiça, nos termos do art.º 8.º, n.º 9, do RCP, em conjugação com a Tabela III anexa a este diploma.
*
B) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo CC, procedente por provado e, em consequência:
a. Condenar o arguido/demandado AA a pagar a título de indemnização por danos patrimoniais, ao ... a quantia de €85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos contados desde a notificação até integral pagamento, à respetiva taxa legal.
b. Condenar o arguido/demandado nas correspondentes custas cíveis.
2. O arguido não se conformou com a sua condenação e dela recorreu, finalizando a motivação do recurso com as conclusões que se transcrevem:
1. O presente recurso vai interposto do acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal de Sintra - Juiz 4 que condena o arguido ora recorrente, como autor material de 1 crime de homicídio na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p.p pelo artº. 22º, nºs 1 e 2, al. a); 23º e 131º do C.P., e artº 2º, nº1, al. ab) e artºs 86º, nº3, da Lei 5/2006, de 23 de Fev., na pessoa de BB, na pena de 4 anos de prisão; um crime de detenção de arma proibida, p.p. pelos artºs 86º/1, al. d); 2º, nº1, al. m) e 3º, nº2, al. ab), da lei das Armas e artº 4º do DL nº 46/95, de 15 de Março, na pena de 6 meses de prisão; em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 4 anos e 3 meses de prisão e ainda no pagamento das custas e de taxa de justiça tudo cfr o acórdão recorrido que aqui se dá por integralmente. Isto porque,
2. salvo a melhor opinião, que se respeita, tais factos não resultaram provados, sendo por essa razão os pontos de 1 a 9 e 11 a 15, não deveriam ter sido considerados como fazendo parte da matéria de factos provados. Na verdade,
3. O arguido, se encontrava em casa quando alguém ligou para o telemóvel da companheira DD na sequência da qual tiveram uma pequena discussão, tendo depois decidido deixar a habitação.
4. Na escada do apartamento se cruzou com um vulto que lhe aparentava estar na posse de um objecto que lhe parecesse uma arma branca, com a qual pretendia agredi-lo, pelo que, uma vez que trazia consigo uma faca, para se defender, desferir um golpe em direcção ao mesmo, sem contudo tenha apercebido tê-lo atingido.
5. Com receio de ser agredido pela pessoa em causa, desceu a escada em direcção a casa de uma familiar, onde acabou detido pela polícia.
6. Na verdade, o recorrente confessou ter desferido uma facada em direcção ao vulto que o tentava agredir, mas não na pessoa de BB, que aliás é sua e amiga da família, com quem jamais havia tido qualquer desentendimento.
7. Pelo que o recorrente nunca teve a mínima intenção de, com o golpe desferido, provocar a morte da ofendida BB, como se refere no acórdão recorrido.
8. De modo a que, o recorrente negou e nega a prática dos factos imputados, pelos quais foi condenado, por os mesmos não corresponderem minimamente á realidade.
9. Sendo certo que é primário, o mesmo é hoje, uma pessoa trabalhadora e inserida socialmente, não devendo em relação a si, vigorar àquela máxima “o condenado é sempre condenado”. Senão vejamos, das provas produzidas em audiência, inquiridos em audiência,
10. a testemunha, BB, na parte perceptível, questionado pela MP, com relevância, responde “... estava no 2º piso... vi alguém com camisola preta... senti uma facada no na boca...pensei que fosse um soco... ele não falou... tentou falar qualquer coisa... voz tipo arrastada. Voz tipo assustado...tentei defender...questionada pela defesa refere: estava escuro... quando me cruzei com ele nãpo sabia que era ele... estava com macacão, ele pensou que era um homem eu ia a casa dele muitas vezes... vou perdoa-lo…porque ele nunca falou mal comigo..gosto muito dele ... ele sabe que gosto muito dele... se calhar... não sei o que aconteceu com ele naquele dia…Perguntado se pretendia desistir da queixa, responde: sim. Não quero indemnização
(com o registo da gravação, entre 12:14 a 12:49, 00:03:09);
11. A testemunha, EE, Agente da PSP nada disse quanto aos factos porque não assistiu com relevância (registo, com o início 15:31 a fim 15:41, 00:00:02).
12. Foi igualmente inquerida a testemunha, FF que nada disse com relevância para os factos dados como provados, (registo entre 15:41 a 15:45, 00:03:09).
13. O recorrente que não domina a língua portuguesa, perguntado respondeu: “estava escuro eu vi uma pessoa, pensei que me ia agredir.... Não queria matar ninguém, eu não fugi fui para casa do meu primo, (registos entre 14:45 a 15:00, 00:09:45).
14. Pelo que, no entender do recorrente, com respeito pela opinião contrária, face ás discrepâncias e contradições, evidentes, entre os depoimentos das testemunhas e os prestado pelo também arguido recorrente, não deverão ser considerados como fazendo parte da matéria provada, os factos constantes dos supra referidos pontos 1 a 9 e 11 a 15, do douto acórdão, os quais foram incorrectamente julgados, verificando-se assim,
15. insuficiência para a decisão da matéria de facto dado como provada, assim como, erro notório na apreciação da prova produzida em audiência (art.º 410º do CPP).
Com efeito,
16. As declarações da testemunha BB e do recorrente são coincidentes, designadamente, quando ambos dizem que quando se cruzaram não se identificaram de imediato.
17. Posto que, dos depoimentos supra transcritos, não se descortina em como se chegou á conclusão a que se chegou pelo acórdão recorrido, de que a recorrente tenha praticado os factos pelos quais foi julgada e condenada, com o arguido neste processo, havendo um desrespeito total pelo princípio da legalidade e de justiça quanto a produção da prova, pelo que se impunha, pois, a prova dos factos que demonstrasse ter o arguido praticado os mesmos factos.
18. Havendo no, mais modesto, entendimento do ora recorrente, um desrespeito total pelo princípio da legalidade e de justiça quanto a produção da prova,
19. Concretizando, em relação á insuficiência para a decisão da matéria de facto dado como provada, pontos que o recorrente considera terem sido mal julgados:
na medida em que, ponto 1, não ficou evidente que o recorrente se encontrava nas escadas e tenha cruzado com a ofendida, após uma discussão com a companheira DD, tendo dado golpes de faca naquela para lhe tirar a vida; ponto 2 que esta foi surpreendido pelo arguido que a aguardava, munido de uma faca: ponto 3, que DD tenha enviado mensagens, uma vez que esta não quis prestar depoimento em audiência; ponto 6, que o arguiu encetou fuga após golpear a ofendida, porque o mesmo refere ter deixado o local em direcção a casão do primo, com receio de ser agredido pelo sujeito que havia avistado; não ficou demonstrado ter o recorrente esfaqueado a ofendida, coma intenção de lhe tirar a vida, ponto 7, ponto 11 que o recorrente tenha desferido vários golpes na pessoa da ofendida porquanto esta afirma ter pensado que tinha sido agredida a soco na cara; ponto 12º não resulta provada que o arguido levava consigo a referida faca para com a mesma agredir a ofendida; ponto 15º usou a arma para se defender de agressão iminente e não para causar lesões mortais á ofendida, como refere o acórdão, o que não foi em momento algum, em audiência de julgamento, contrariada.
20. De modo a que, no entender do recorrente, o douto acórdão viola clamorosamente o disposto no artº 127º do CPP., atento que a livre a apreciação da prova não é redutível a um íntimo convencimento sem probabilidade de justificação objectiva, mas uma liberdade de apreciação no âmbito das operações lógicas probatórias que sustentem um convencimento qualificado pela persuasão racional do juízo e que por isso também externamente possa ser acompanhado no seu processo formativo segundo o princípio da publicidade da actividade probatória.
21. Ainda, quanto a medida da pena, nos termos do art.º 71º 1 CP a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, art.º 71, /2 CP, devendo ser explanados expressamente os fundamentos da medida da pena, artº 71/3 do C.Penal.
22. Ora, no caso dos autos, a razão da medida da pena e da prisão, constam dos pontos, subsequentes, do acórdão, de modo muito pouco fundamentada.
23. Acresce que, a nosso ver, do acórdão não constam quais os fundamentos em que se louvou para condenar o arguido na pena de prisão efectiva, assim como existe uma forte contradição entre os fundamentos apontados e a própria decisão, quando confrontada com os factos provados e não provados relevantes para justificar a condenação do arguido/recorrente ou para não lhe suspender a pena, em violação do disposto no art.º 374º/2 do CPP;
24. É que, em direito e por força da lei, as inferências não chegam, não basta concluir, há que dizer fundadamente, porque razão se decide duma maneira e não de outra, o que não sucede no douto acórdão recorrido. Daí que,
25. a nosso ver, o douto acórdão recorrido tem pois que ser revogado, por nulo, porquanto:
a. não indica os fundamentos em que se louvou para atribuir a condenação do arguido numa pena de 4 anos e 3 meses de prisão efectiva.
b. Por outro lado, as condições pessoais do arguido, deviam ter pesado na determinação da pena.
26. Fazendo uma apreciação correcta das provas produzidas em audiência de julgamento, o Tribunal “a quo”, não podia deixar de absolver o arguido AA, da prática do crime de homicídio na forma tentada, punindo-o eventualmente por outro tipo de crime, o de ofensa a integridade física, por não se encontrar provada, designadamente a intenção do arguido em provocar a morte da ofendida BB.
27. Sendo certo que, sempre com o devido respeito, o recorrente considera a sua condenação em prisão efectiva feita de uma forma injusta, até pelas circunstâncias em que os mesmos foram praticados.
28. Porém, sem conceder, caso V Exas muito doutamente considerar provados os factos pelos quais o recorrente foi condenada em prisão efectiva, entendemos que esta mesma pena devia/deve ser suspensa na sua execução nos termos do art.º 50º do CP. Isto por que
29. não basta a análise do passado criminal do arguido para dele se concluir que a sua personalidade manifestada no facto, revela uma incapacidade para manter uma conduta conforme ao direito e aos valores que este tutela, de forma a impedir um juízo de prognose favorável no sentido de que a ameaça da pena satisfará ainda as finalidades que lhe subjazem, concluindo-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime,
30. Pelo que, foram violadas as seguintes normas jurídicas: os artº s 127º, 374º/2, 428º/1 do CPP, 71º/3, do CP, artº. 50º. CP, 668º/b CPC, 32º da CRP, segundo o qual todos tem direito a defesa (em conformidade) ....
Nestes termos,
deve o presente recurso ser considerado procedente, sendo o arguido recorrente absolvido do crime de pelo qual foi condenado, com as legais consequências.
Porém, sem conceder,
Caso V. Exas, doutamente, assim não entenderem, deve a pena de prisão aplicada á recorrente AA ser suspensa na sua execução nos termos do artº 50º da CP, bem como o inserido no relatório do IRS e por ser primário da prática do crime da mesma natureza, bem como o facto de se encontrar, social, familiar (tem um filho de tenra idade, doc. 2 junto) e laboralmente, fazendo assim a costumada
Justiça!
3. O Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso, no sentido do “acerto do douto acórdão recorrido e, concomitantemente, pela não violação de qualquer dispositivo legal, devendo o recurso improceder in totum”, mas sem formular conclusões.
4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público em 1.ª instância.
Não obstante, sublinhou ser manifesta a improcedência do recurso quanto à matéria de facto, nos termos do art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, devendo neste segmento ser rejeitado, nos termos do art.º 420.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do mesmo diploma legal, ou, caso assim não se entenda, julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra o acórdão recorrido.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
*
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 do mesmo diploma legal.
No caso concreto, conforme as conclusões da respetiva motivação, cumpre apreciar as seguintes questões:
• Dos vícios do art.º 410.º do CPP:
• insuficiência para a decisão da matéria de facto dado como provada;
• erro notório na apreciação da prova produzida em audiência.
• Da impugnação da matéria de facto provada: factos 1 a 9 e 11 a 15.
• Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação da determinação da medida da pena.
• Da decisão de não suspensão da execução da pena de prisão.
2. Do acórdão recorrido
2.1. O tribunal a quo deu como provada e não provada a seguinte factualidade:
Factos provados:
1. No dia ........2024, cerca das 21h00, no interior da sua residência sita na ..., ..., o arguido AA, iniciou uma discussão com a sua companheira, DD, motivada por ciúmes.
2. A dada altura, o arguido muniu-se de uma faca de cozinha, com comprimento de lâmina de 13 cm e saiu de casa.
3. Nesse momento, DD, enviou à sua amiga BB, várias mensagens de voz, através da aplicação Whatsapp, pedindo-lhe que chamasse a polícia.
4. Entretanto, BB deslocou-se a casa do arguido, onde chegou por volta das 22h00, e subiu as escadas até ao segundo andar, sendo surpreendida pelo arguido, que ali a aguardava, munido da referida faca, e lhe desferiu um número não concretamente apurado de golpes, sempre na direção da sua cabeça, que a atingiram no lado esquerdo da face e na cabeça.
5. Enquanto BB se tentava desviar dos golpes, o arguido desferiu-lhe um soco que a atingiu na zona da boca.
6. Após o que o arguido encetou fuga para o exterior do prédio, sem se preocupar com o estado da vítima, nem com a gravidade dos seus ferimentos.
7. O arguido foi localizado por agentes da Polícia de Segurança Pública, instantes após a prática dos factos, sendo detido.
8. Como consequência direta e necessária das facadas desferidas pelo arguido, BB sofreu dores nas zonas atingidas, e foi transportada para o ..., onde deu entrada no Serviço de Urgência, apresentando, nomeadamente: “Ferida incisa temporal esquerda com cerca de 3 cm, com hemorragia ativa e ferida abrasiva parietal direita com perda de substância superficial”.
9. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, resultaram para a ofendida, as seguintes lesões e/ou sequelas:
“- Crânio: crosta seca na região parietal direita, arredondada, com cabelo mais curto sobreposto, com cerca de 0,5cm de diâmetro;
- Face: cicatriz linear, com discreta umbilicação na linha média, oblíqua para baixo e para trás, não aderente, na região temporo-zigomática esquerda, com 5cm de comprimento; uma cicatriz linear, hiprocrómica, ténue, na região frontal esquerda, anterior à previamente descrita, com 2cm de comprimento; duas cicatrizes lineares, eucrómicas, ténues, na região frontal esquerda, posteriores à primeira cicatriz descrita, com cerca de 1,5cm de comprimento, cada”.
10. As referidas lesões determinaram 15 (quinze) dias para a consolidação médico-legal: com afectação da capacidade de trabalho geral (6 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (6 dias).
11. O arguido, ao desferir vários golpes com uma faca de cozinha com um comprimento de lâmina de 13 centímetros, no corpo de BB, concretamente na zona da cabeça e da face, representou e quis agir com o propósito de atingir o corpo da ofendida, bem sabendo que ao actuar como actuou, poderia atingir zonas vitais da ofendida e que tais golpes eram idóneos a produzir o resultado morte, resultado que pelo menos previu e com o mesmo se conformou.
12. O arguido sabia que a faca de cozinha que levou consigo, se destinava a ser usada nas lides domésticas, e levou-a consigo para a escada, onde esperou pela vítima, já com a finalidade da mesma vir a ser usada, por si, como objeto de agressão, tendo escolhido a referida faca, por força do efeito letal que esta possui, com vista a facilitar a execução do crime por si anteriormente projetado, o que quis e logrou conseguir.
13. O arguido conhecia a natureza e as características da faca que detinha, e sabia que estava a efectuar o emprego da mesma, fora dos locais do seu normal emprego e que, nas referidas circunstâncias, não a podia deter.
14. Mais sabia o arguido, que a referida faca, atendendo ao comprimento da lâmina era um meio particularmente perigoso, que encerra excecional poder corto-perfurante e adequabilidade ao acentuado aumento das lesões, diminuindo consideravelmente a capacidade de defesa da ofendida, e ainda assim, não se coibiu de a utilizar.
15. O arguido, agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram todas proibidas e punidas pela lei penal, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Antecedentes Criminais do arguido:
16. Do certificado de registo criminal do arguido não consta qualquer averbamento.
Condições pessoais (relatório social) do arguido:
17. À data dos alegados factos constantes na acusação, AA residia com a companheira na morada identificada nos autos, numa habitação onde arrendou um quarto pelo valor de 350€.
18. Encontrava-se integrado em mercado de trabalho na área da construção civil, com contrato de trabalho, segundo informação veiculada pelo mesmo.
19. AA nasceu na ..., onde viveu com os pais e os quatro irmãos até aos 26 anos de idade. Desenvolveu-se no seio de uma família estruturada, mas com parcos recursos económicos, o que limitou o desenvolvimento em termos de ensino/aprendizagem. O pai já faleceu e a mãe encontra-se na ... juntamente com os restantes irmãos do arguido. Junto da sua família de origem relata um estilo de vida difícil, com muitas dificuldades económicas, alegando ter nascido numa família muito pobre, onde foi necessário trabalhar para ajudar os pais e proporcionar maior rendimento para fazer face às necessidades do agregado familiar.
20. O arguido descreve a educação que os pais lhe deram como adequada e consonante com as regras e normas vigentes na sociedade em que estava inserido, no seu país de origem e revela ainda boa relação familiar entre os vários elementos do agregado familiar.
21. Em termos familiares, AA constituiu o seu agregado familiar juntamente com a mulher, DD, com quem terá contraído matrimónio segundo a tradição …. Não soube precisar com que idade, apenas disse que mantém esta relação há três/quatro anos, através da qual nasceu uma filha, actualmente com cinco meses.
22. Com 26 anos decidiu vir para Portugal, onde já se encontrava a mulher, para se juntar à mesma e progredir nos estudos, no entanto e como não tinha forma de pagar os mesmos integrou mercado de trabalho na área da construção civil.
23. AA concluiu o 9º ano de escolaridade no país de origem e gostava de ter continuado os estudos na área do comércio internacional, situação que não foi possível tendo em conta as dificuldades financeiras evidenciadas.
24. Na ... trabalhou na … e quando em Portugal a sua ocupação laboral é na área da …, emprego que mantinha à data dos factos.
25. Perspectiva, quando em liberdade, continuar em Portugal, voltar para junto da mulher e da filha, retomar o seu emprego para se conseguir organizar financeiramente por forma a tirar um curso, sustentar a família e ajudar a família de origem que está na ....
26. Encontra-se preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ..., desde .../.../2024, registando, até à presente data, duas sanções disciplinares.
27. Da articulação efetuada com os Serviços de Apoio à Execução da Pena do Estabelecimento Prisional de ..., apurou-se que o arguido não se encontra integrado em nenhuma atividade laboral nem formativa em virtude de estar ainda na situação jurídico-penal de preventivo.
28. O arguido recebe visitas de um primo que reside em Portugal e da companheira, que segundo o próprio tem autorização do Tribunal para o visitar juntamente com a filha de ambos.
Pedido de indemnização deduzido pelo demandante CC
29. Em consequência direta dos factos supra descritos a ofendida sofreu vários ferimentos tendo necessitado de receber assistência hospitalar prestada pelo demandante CC, no valor total de 85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos), nas suas instalações e no exercício da sua atividade profissional.
30. A ofendida BB disse que prescindia de receber qualquer indemnização por força das lesões sofridas nos presentes autos, dizendo que perdoava o arguido.
31. E disse igualmente que até então sempre haviam mantido uma relação de amizade com o arguido, sendo este boa pessoa e seu amigo.
Factos não provados
a. Ponto 2 da acusação: “e exibindo-a, aproximou-se de DD, que se encontrava no interior do quarto do casal.”
b. Ponto 3 da acusação: “Ao aperceber-se que o arguido estava munido da referida faca, DD começou a gritar, tendo o arguido saído do quarto e permanecido no corredor.”
c. Ponto 4 da acusação: “Após se ter trancado no interior do quarto” e “e que a fosse buscar à sua residência, porquanto pretendia pernoitar em casa dela”.
d. Ponto 9 da acusação: “e, logo que visualizou os referidos agentes, encetou fuga apeada”.
2.2. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
(…)
As declarações do arguido que, no essencial, assumiu a autoria dos golpes na ofendida, todavia, explicando que os mesmos foram involuntários.
Numa narrativa confusa e destituída de lógica, referiu que quando estava no patamar do corredor do edifício habitacional com a faca na mão, sentado, a ofendida veio na sua direcção e colocou a cabeça junto das suas mãos, cortando-se.
Estas declarações não mereceram credibilidade, pela inverosimilhança das mesmas e pela forma confusa e atrapalhada como foram prestadas.
Sem prejuízo, o arguido admitiu que havia tido uma discussão com a sua mulher, por ciúmes, e que saíra de casa munido de uma faca, alegadamente por ter ficado com a ideia de que a mulher o havia mandado matar, sendo que esta sua ideia não mereceu qualquer confirmação.
Assim, foram essenciais para explicar a dinâmica do ataque as declarações da ofendida BB, que de forma isenta e credível referiu que nesse dia dirigiu-se para casa da amiga DD, mulher do arguido, para lhe levar bolo, pois a mesma estava grávida e gostava muito daquele doce.
Que quando se encontrava no interior do prédio da amiga, no patamar do 2º andar, foi atacada por trás por um indivíduo que veio a perceber, em momento posterior, ser o arguido, o qual lhe desferiu, várias pancadas na zona da cabeça, entre elas um soco na cara. Que não se apercebeu, no momento, que estava a ser atacada com uma faca. Que tentou revidar/parar a agressão até o arguido fugir pelas escadas abaixo.
A conjugar com este depoimento, mereceu avaliação o teor dos ficheiros de som da aplicação Whatsapp a fls. 196, enviadas por DD à ofendida BB, no dia e momento dos factos, num primeiro momento, contando que o arguido lhe havia tirado o telemóvel e se encontrava alterado; de seguida, em visível aflição, suplicando para que chamasse a polícia e não aparecesse lá em casa pois o arguido estava munido de uma faca e saíra de casa.
A depoente BB traduziu e confirmou o teor desta conversação (o que foi subscrito pela Sra. Intérprete presente em audiência de julgamento, porquanto os intervenientes falam em crioulo), explicando que até ao momento do ataque não tinha ouvido o áudio enviado pela amiga, pelo que desconhecia que o arguido estava alterado e se encontrava munido de uma faca.
Por outro lado, foi importante o depoimento dos agentes da PSP EE e FF que procederam à detenção do arguido, momentos depois do ataque, ainda munido da faca ensanguentada, já na via pública, em local próximo, assim confirmando o auto de detenção de fls. 3 e 4 e de apreensão a fls. 8 dos autos. Também, o exame pericial a fls. 207-223, 267-269 e auto de inspecção judiciaria a fls. 145-164.
Outrossim, foram analisados e valorados os exames médicos e periciais realizados à vítima com o descritivo das lesões (a fls. 94-100, 231-233, 319-321), as quais se mostram compatíveis com a dinâmica do ataque descrito pela ofendida, contrariamente à narrativa apresentada pelo arguido sem qualquer suporte probatório nesse sentido.
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Assim, da conjugação de toda a prova acima referida, dúvidas não resultaram a este Colectivo de Juízes de que o arguido actuou nos moldes descritos na factualidade dada por assente.
Também se anotou que a ofendida referiu que até à data do ataque o arguido sempre mantivera com ela uma boa relação, eram amigos e que o perdoava, não pretendendo qualquer indemnização pelos danos sofridos.
Destarte, concluiu o Colectivo de Juízes, que disso ficou absolutamente convencido, atenta a factualidade acima narrada, e ainda que não tenha apurado as razões que ditaram o ataque por parte do arguido à ofendida, que a ofendida era a pessoa visada, até pelo apelo que a DD lançou à amiga, pedindo-lhe que não viesse e atenta as características físicas da ofendida que o arguido bem conhecia e convivia habitualmente.
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Ao nível da valoração dos elementos subjectivos teve este tribunal em consideração o circunstancialismo da agressão e local onde foram desferidos os golpes - o efeito surpresa do ataque e por trás - e o instrumento utilizado e as zonas do corpo onde atingiu a ofendida (na zona da cabeça e pescoço a qual aloja e contem estruturas essenciais à vida), circunstância que o arguido representa tal como qualquer homem médio, assim alcançando que ao actuar dessa forma poderiam os golpes causar a morte da ofendida e com tal resultado se conformando e bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.
De igual modo em relação à faca de cozinha que transportou de casa sabendo ser um objecto proibido que não poderia transportar fora do seu domicílio e menos ainda usá-lo como arma de ataque, o que fez intencionalmente como resulta do teor do áudio enviado pela mulher DD à ofendida. Outrossim, o exame directo e perícia a fls. 91 e 320-321.
Por último, quanto à situação pessoal, económica e familiar do arguido e respectivos antecedentes criminais, tomou-se em consideração, respetivamente, o relatório social elaborado pela D.G.R.S.P., e junto aos autos e o certificado de registo criminal.
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A demais matéria dada por não provada resultou da absoluta inexistência de prova suficiente anotando-se que a testemunha DD, mulher do arguido, recusou-se a prestar declarações.
3. Apreciando
3.1. Do erro de julgamento
Conforme resulta do art.º 428.º, n.º 1, do CPP “as relações conhecem de facto e de direito”.
A decisão sobre a matéria de facto pode ser impugnada por duas vias:
- com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 do CPP (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de revista alargada);
- ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP (impugnação em sentido lato).
O recorrente imputa à decisão recorrida os vícios seguintes:
Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP) – “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão do de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher ” (Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Recursos Penais”, 9.ª ed. 2020, Editora Rei dos Livros, p. 75);
Erro notório na apreciação da prova (alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP) - “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum (…) de onde resulta que o “tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das lege artis” (in op. cit. p. 81).
Sendo de conhecimento oficioso, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a atuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença/acórdão e, não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento (art.º 426.º, n.º 1 do CPP).
Ora, pese embora o recorrente apele à existência do vício a que alude a alínea a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, não encontramos no texto da decisão recorrida qualquer sustentação para sua verificação, concretamente, qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito.
Ao invés, antes se nos afigura que aquilo que o recorrente procura sustentar é que o tribunal não deveria ter dado como assentes os factos que deu, o que confunde com o vício em questão, que tem a ver com a matéria de facto em si mesma considerada ser ou não suficiente para a decisão de direito que foi alcançada pelo tribunal recorrido, independentemente da valia desta.
Melhor dizendo, a não aceitação pelo recorrente da apreciação da prova levada a cabo pelo tribunal recorrido, não integra o apontado vício.
Por outro lado, no que diz respeito ao vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), que o recorrente igualmente invoca, sabemos, como dizem Simas Santos e Leal-Henriques (in “Recursos Penais”, 9.ª ed. 2020, Editora Rei dos Livros, p. 81), que “não poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com preceituado no art.º 127.º”.
Ou seja, antes se nos afigura, à semelhança do consignado pelo Ministério Público em resposta ao recurso, “que o recorrente labora em confusão quando invoca tais vícios, quando o que realmente pretende é impugnar a matéria de facto”, pois que analisando o teor do acórdão recorrido não resulta a ocorrência de nenhum dos vícios contemplados no art.º 410.º, n.º 2 do CPP.
Fundamentalmente, considera o recorrente que foram incorretamente julgados os pontos 1 a 9 e 11 a 15 da matéria de facto, discordando do correspondente juízo probatório positivo.
Pretende, com isso, sindicar a valorização dos meios de prova realizada pelo tribunal a quo, concretamente, o depoimento da ofendida BB e as suas próprias declarações.
Contudo, não dá cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do CPP, na medida em que não indica qualquer prova produzida que tenha a virtualidade de impor, claramente, decisão diversa em relação aos factos que considera incorretamente julgados, limitando-se, nas suas motivações, a indicar segmentos parciais desses depoimentos, sem que aponte quaisquer factos concludentes que permitam contraditar a apreciação efetuada.
Com efeito, não invoca o recorrente em seu apoio meios de prova que não tivessem sido considerados pelo tribunal a quo, mas antes questiona a avaliação que o tribunal fez daqueles, considerando terem sido insuficientes para fundamentar a sua condenação.
Todavia, não atende à globalidade da prova produzida, ignorando que pese embora as suas declarações não tenham merecido credibilidade, na parte respeitante à não voluntariedade dos golpes, admitiu, e isso foi tido em conta pelo tribunal recorrido, “que havia tido uma discussão com a sua mulher, por ciúmes, e que saíra de casa munido de uma faca, alegadamente por ter ficado com a ideia de que a mulher o havia mandado matar, sendo que esta sua ideia não mereceu qualquer confirmação”.
Por outro lado, e tendo o depoimento da ofendida BB sido essencial para explicar a dinâmica do ataque de que foi alvo, certo é que o tribunal a quo ainda o conjugou com “o teor dos ficheiros de som da aplicação Whatsapp a fls. 196, enviadas por DD à ofendida BB, no dia e momento dos factos, num primeiro momento, contando que o arguido lhe havia tirado o telemóvel e se encontrava alterado; de seguida, em visível aflição, suplicando para que chamasse a polícia e não aparecesse lá em casa pois o arguido estava munido de uma faca e saíra de casa”, tendo a ofendida em audiência de discussão e julgamento confirmado o teor desta conversação
Na mesma linha, desatende o recorrente, nos termos que foram analisados e valorados pelo tribunal a quo, “os exames médicos e periciais realizados à vítima com o descritivo das lesões (a fls. 94-100, 231-233, 319-321), as quais se mostram compatíveis com a dinâmica do ataque descrito pela ofendida”.
É que tendo em consideração o efeito surpresa da ocorrência de que foi vítima a ofendida, que foi surpreendida pela presença do arguido, o instrumento utilizado e as zonas do corpo onde foi atingida (na zona da cabeça e pescoço a qual aloja e contem estruturas essenciais à vida), não se vislumbra na atuação do arguido qualquer animus defendendi, mas antes, e claramente, intenção de matar, ainda que não tenham sido apuradas as razões que ditaram o ataque.
Na verdade, aquilo que o arguido procura é introduzir a sua própria narrativa, porém sem qualquer suporte probatório, sendo absolutamente insuficiente para o efeito pretendido a circunstância, também anotada pelo tribunal recorrido, “que a ofendida referiu que até à data do ataque o arguido sempre mantivera com ela uma boa relação, eram amigos e que o perdoava, não pretendendo qualquer indemnização pelos danos sofridos”.
Deveras, não ficou o tribunal recorrido com qualquer dúvida quanto à autoria dos factos pelo arguido, sendo tanto nos moldes descritos na factualidade dada por assente.
E nem se diga, como ainda é aflorado pelo recorrente, que de algum modo foi violado o art.º 127.º do CPP, porquanto a decisão mostra-se fundamentada em termos que permitem compreender as razões pelas quais não atribuiu credibilidade à versão do arguido, segundo critérios lógicos, objetivos e em obediência às regras da experiência comum, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a sua convicção (art.º 374.º, n.º 2 do CPP).
Por conseguinte, o juízo probatório positivo alcançado pelo tribunal recorrido quanto à verificação dos factos que o arguido recorrente pretende ver como não provados é logicamente correto e, como tal, não merece qualquer censura.
Concluindo, improcede totalmente a impugnação da matéria de facto.
2. Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação da determinação da medida da pena
Depreendendo-se que o recorrente considera ser excessiva a pena em que se mostra condenado, sem que sugira em alternativa qualquer outra, temos que o mesmo vai mais além, na medida em que aponta à respetiva decisão falta de fundamentação, alegando, em síntese, que a mesma “não indica os fundamentos em que se louvou para atribuir a condenação do arguido numa pena de 4 anos e 3 meses de prisão efectiva”, bem como que “as condições pessoais do arguido, deviam ter pesado na determinação da pena”.
Vejamos se assim é.
É do seguinte teor a fundamentação posta em crise:
Da medida da pena
O ordenamento jurídico-penal português consagra uma concepção preventivo- ética da pena, ao definir no art.º 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade", desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (“conditio sine qua non”) e de limite da pena”.
É com recurso à disciplina do art.º 71º do Código Penal que se retiram os critérios para a sua determinação, a saber:
■ a culpa do agente (que nos termos do art.º 40, n.º 2 CP é o seu tecto máximo ao definir que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”;
■ as exigências de prevenção (cf. art.º 71, n.º 1 do Código Penal);
■ E todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime, deponham a favor ou contra si (cf. art.º 71, n.º 2 do Código Penal), aqui se atendendo a considerando:
O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
A intensidade do dolo ou da negligência;
Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Assim, e no cumprimento desta tarefa deverá “dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa”. (...) Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.”
E, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, deve o Tribunal dar preferência fundamentada à segunda, sempre que ela satisfaça de forma suficiente e adequada as finalidades da punição - art.º 70º, in fine.
Nesta ponderação há que ter em conta, desde logo, se a pena não detentiva da liberdade se mostra suficiente para que sejam alcançados os efeitos que se pretendem obter com qualquer reacção criminal face as considerações de prevenção geral e especial em face do caso concreto, sendo certo que, optando-se pela pena não preventiva de liberdade, será ainda e sempre, a medida da culpa a fornecer o limite da pena (já que nela reside o suporte desta), aferida em função do próprio ilícito típico, analisado nas suas consequências típicas, que lhe atribuem uma dimensão ou sentido social. Ao nível da prevenção geral situam-se as necessidades de contenção da criminalidade e de defesa das expectativas da sociedade, traduzidas na conservação ou reforço da norma jurídica violada pelo crime, como modelo de orientação do comportamento das pessoas na interação comunitária; de prevenção especial as circunstâncias ligadas à reinserção social do arguido.
In casu, como vimos, o crime de detenção de arma proibida é punível, em alternativa, com penas de prisão ou pena de multa.
Assim, e atendendo ao circunstancialismo que rodeou a prática do crime, mormente, atentando contra a vida de outrem pelo uso de tal arma, também revelador da personalidade do arguido, e não olvidando a respectiva gravidade, mostra-se, no entender do Colectivo de Juízes, afastada a aplicação de uma pena de multa, porquanto insuficiente e inadequada a satisfazer as necessidades de punição.
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Debrucemo-nos sobre a tarefa seguinte de definição da pena de prisão concretamente a aplicar.
No caso presente, são de sopesar as elevadas exigências de prevenção geral, no sentido de repor a confiança dos cidadãos na validade das normas jurídicas violadas com o comportamento lesivo dos bens jurídicos protegidos, na face do sentimento geral de insegurança na sociedade e tendo presente que estamos perante criminalidade gravíssima que cria forte sentimento de insegurança, repúdio e alarme na comunidade e que esta deposita e exige dos tribunais uma efectiva aplicação de penas que defendam e se ajustem aos bens jurídicos em causa, em especial, quanto ao crime de homicídio.
Por outro lado, importa atender ao facto do arguido não ter assumido a prática dos factos (antes referindo ter sido acidental) e, consequentemente, não ter revelado qualquer arrependimento nessa parte, o que enfraquece o juízo de autocensura, pese embora a falta de antecedentes criminais, situando as necessidades de prevenção especial num patamar de mediano-elevado.
Ainda a atender:
- a culpa do arguido que é agente que é elevada.
- O grau de ilicitude dos factos, que é elevado, moldando-se o dolo do arguido no dolo direto no que toca ao crime de detenção de arma proibida e no que toca ao crime de homicídio, eventual.
- O grau de violação do bem jurídico protegido pela norma, bem como as consequências daí resultantes, mormente, as lesões causadas à vítima BB, anotando-se que a mesma disse perdoar o arguido e verbalizar que até então sempre haviam mantido uma relação de amizade, sendo este boa pessoa e seu amigo.
- A inexistência de antecedentes criminais registados pelo arguido.
- As condições económicas, sociais e culturais do arguido, de onde se destaca a fraca escolaridade, o seu desenvolvimento pessoal em condições de pobreza e a situação de inserção social e laboral à data da prática dos factos. (vide factos 17 a 28 provados).
- a postura do arguido em julgamento de negação dos factos (referindo ser acidental os golpes) e a motivação para a prática dos mesmos.
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Por todo o exposto, entende o Colectivo de Juízes adequada a aplicação ao arguido, das seguintes penas:
- um crime de homicídio, na forma tentada, agravado pelo uso de arma, p. e p. pela conjugação dos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º, todos do Código Penal, e artigos 2.º, n.º 1, alínea ab) e 86.º, n.º 3, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pessoa de BB na pena de 4 (quatro) anos de prisão
- pela prática de crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artºs 86º, nº 1, alínea d); 2º, nº 1, al) m) e 3º, nº 2, alínea ab), da Lei das Armas, na pena de 6 (seis) meses de prisão.
Medida da pena única
Encontradas as penas parcelares relativamente a cada um dos ilícitos, cumpre agora proceder à determinação de uma pena única, considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente, nos termos do art.º 77º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
Por via do n.º 2 do mesmo artigo, temos que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
No caso concreto, a pena única a aplicar ao arguido tem como limite mínimo 4 (quatro) anos de prisão e como limite máximo 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Ora, considerando as circunstâncias e gravidade dos factos, a natureza dos crimes cometidos, a personalidade do arguido neles espelhada e a falta de antecedentes criminais, sem esquecer a culpa e as necessidades de prevenção, entende o Tribunal como ajustada a aplicação de uma pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão.
Olhando ao que se deixou transcrito, temos como assente, por força do disposto no art.º 374.º, n.º 2 do CPP, sobre os requisitos da sentença, que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
Na mesma linha, estatui ainda o art.º 71.º, n.º 3 do Código Penal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
Como é sabido, fundamentar é justificar, apresentar as razões, de forma coerente e objetiva, que determinaram a decisão naquele sentido e não noutro. E esta fundamentação abarca quer a decisão incidente sobre os factos quer a solução jurídica encontrada e aplicada.
Em suma, implica tornar possível sindicar a bondade da decisão recorrida.
Porém, fundamentar não significa autonomizar exaustivamente.
Dito de outra forma, apenas a absoluta falta de fundamentação constitui nulidade.
Ora, analisada por nós a fundamentação exarada pela primeira instância afigura- -se-nos não assistir razão ao recorrente, pois que constatamos que o tribunal a quo individualizou corretamente as diversas circunstâncias relevantes, sendo patente o percurso lógico adotado e os fundamentos que estiveram na base da determinação da medida da pena, designadamente, e para além dos demais, as condições pessoais do arguido.
Nessa medida, temos por não verificada qualquer nulidade que comprometa o decidido, improcedendo o recurso nesta matéria.
2. Da decisão de não suspensão da execução da pena de prisão
Considera ainda o arguido que a pena em que se mostra condenado deveria ter sido suspensa na sua execução.
De acordo com o disposto no artigo 50.º n.º 1 do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
E, segundo o n.º 5 da mesma disposição legal, o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
Perante este regime a pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão aplicada ao arguido é de facto suscetível de ser suspensa na sua execução.
Porém, não foi essa a opção tomada pelo tribunal de primeira instância, que, para o que importa, considerou o seguinte:
“(…) atenta a natureza e gravidade do acto praticado (crime de homicídio), a ausência de factores de auto-censura do mesmo por parte do arguido, as necessidade de prevenção geral que se estima elevadas e alarme social que este tipo de ilícito gera na sociedade e a urgência de tutela do bem jurídico protegido – a vida -, considera este Colectivo de Juízes que as finalidade de punição impõem o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada, sendo de afastar a suspensão da sua execução.”
Tudo observado, e não obstante o arguido não registar antecedentes criminais, somos igualmente por concluir no sentido de não estarem reunidos os pressupostos para se formular um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do recorrente.
Com efeito, não só não se lhe identifica qualquer juízo de autocensura, mas também porque não podem ser defraudadas as expectativas comunitárias de reposição da ordem jurídica, da confiança na validade das normas violadas e no cumprimento do direito.
É que se mostram em destaque elevadíssimas exigências de prevenção geral, sendo a vida, além de bem jurídico fundamental do nosso ordenamento jurídico, bem supremo por excelência, e logo o alarme social gerado por crimes desta natureza.
Melhor dizendo, não pode a suspensão ser vista pela comunidade como um perdão judicial, uma vez que assim o impedem fortes razões de reprovação e prevenção deste tipo de crime, que visa essencialmente a proteção da vida humana.
A não suspensão da execução da pena de prisão imposta ao recorrente mostra- -se conforme às exigências do caso e ao direito aplicável, sendo, por isso mesmo, de manter.
Em suma, improcede totalmente o recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Notifique.
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Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.
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Lisboa, 3 de junho de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Rui Poças
Paulo Barreto