RESPONSABILIDADE CIVIL
ADVOGADO
FRANQUIA
Sumário


I – A responsabilidade civil do advogado poderá resultar quer da violação da obrigação principal do contrato de mandato que celebrou com o seu cliente, quer da violação de deveres acessórios e até deontológicos impostos pelo Estatuto da Ordem dos Advogados.
II - Os recursos têm por escopo a reapreciação de decisões já proferidas e não a sindicância de questões novas, exceto, conforme tem vindo a ser entendido, que estas sejam de conhecimento oficioso e o processo tenha todos os elementos necessários para a sua apreciação.
III - No âmbito dos seguros obrigatórios, como sucede no seguro de responsabilidade civil dos advogados, a cláusula de franquia é inoponível aos terceiros lesados.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório (também com base no relatório da decisão recorrida)

 EMP01..., LDª, com sede na Rua ..., ..., ..., em ..., intentou a presente ação declarativa com processo comum contra AA, com domicílio profissional na Rua ..., em ..., e EMP02... COMPANY, SE., sucursal em ..., com sede em ..., - nº4, em ..., pedindo a sua condenação a pagarem solidariamente a quantia de € 81.554,70 (oitenta e um mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e setenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos que foram causados, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde o momento em que a autora entregou ao primeiro réu a quantia que reclama até integral pagamento.

*
A autora alegou, em suma, que constituiu o primeiro réu como seu mandatário, na qualidade de advogado, para a cobrança de uma dívida no valor de € 145.000,00. O primeiro réu intentou a execução nº2083/19.... do Juízo de Execução do Porto (Juiz ...). A executada fez diversos pagamentos à autora no valor total de € 70.000,00. A autora informou o primeiro réu destes pagamentos para que os montantes que haviam sido pagos fossem descontados na dívida. O primeiro réu transmitiu à autora que estes montantes deviam ser transferidos para uma conta bancária aberta em seu nome para que fossem depositados à ordem do processo executivo. A autora procedeu como foi indicado pelo primeiro réu e transferiu para a conta bancária que este indicou a quantia de € 70.000,00. Entretanto, a autora ficou a saber que o processo executivo tinha sido extinto por falta de pagamento da taxa de justiça sem que tivesse sido realizada qualquer diligência para a cobrança da dívida. A autora ficou também a saber que a quantia de € 70.000,00 não tinha sido depositada à ordem deste processo. Acresce que o primeiro réu cobrou à autora a quantia de € 11.554,70 a título de provisão de honorários por serviços que acabou por não prestar. Assim, a autora pretende que o primeiro réu seja condenado a pagar a quantia de € 81.554,70. Pretende também que a ré seguradora seja condenada a pagar esta quantia, solidariamente com o réu, atendendo ao contrato de seguro profissional que foi celebrado pela Ordem dos Advogados.
*
O primeiro réu não contestou.
*
A ré seguradora contestou alegando, em sinopse, que os factos que foram praticados pelo primeiro réu não estão abrangidos pelo contrato de seguro profissional que foi celebrado pela Ordem dos Advogados. O seguro é relativo apenas à responsabilidade civil dos advogados pelo exercício da sua atividade profissional e os factos descritos pela autora não se inserem na atuação do primeiro réu enquanto advogado.
*
Foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, julgando improcedente exceção de ilegitimidade da ré seguradora por si invocada. Foi ainda fixado o objeto do processo e o tema único de prova, sem que tenha havido qualquer reclamação.

Foi designado dia para realização da audiência de discussão e julgamento, após o qual foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
1. Condeno o primeiro réu a pagar à autora aquantia de € 81.554,70 (oitenta e um mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e setenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos que foram causados, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento;
2. Condeno a ré seguradora a pagar à autora aquantia de € 81.554,70 (oitenta e um mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e setenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos que foram causados, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento e devendo ser descontada a franquia de € 5.000,00 (cinco mil euros).”.
*
Inconformada com a sentença, a ré seguradora interpôs recurso e formulou, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões, que se transcrevem sem “negritos” e sublinhados:
[…]
50. Assim, por todo o exposto e salvo o devido respeito, ao decidir do modo como decidiu, violou o Tribunal a quo as normas legais previstas nos ponto 5 das Condições Particulares da apólice, artigos 2.º, n.º 1 das Condições Especiais da apólice, 8.º das Condições Gerais da apólice, 473.º do CC, 1.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto (Actos Próprios de Advogados).
Nessa medida, por tudo quanto se encontra exposto, e ressalvando novamente o devido respeito, que é muito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, sendo a sentença proferida nos autos revogada, absolvendo-se a ora Recorrente do pedido formulado pela A., OU, ainda que assim não se entenda, deverá ser reconhecido o direito de regresso da aqui Recorrente relativamente ao segurado (réu advogado), só assim se fazendo,
VERDADEIRA JUSTIÇA! ”.
*
A autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e apresentou recurso subordinado, rematando com as seguintes conclusões:
“[…]
3. O seguro de responsabilidade civil profissional dos advogados tem natureza obrigatória;
4. Por força dessa natureza obrigatória, é aplicável o disposto no n.º 4 do artigo° 101° do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, estabelecido pelo DL n.º 72/2008, de 16 de abril, do qual resulta a inoponibilidade da franquia à lesada recorrente.
5. Nas condições particulares da apólice ...3..., estabelece-se no ponto 10 a não oponibilidade da franquia a terceiros lesados; também nos artigos 7.º e 13.º, n.º 6 das condições especiais da apólice é estabelecida a inoponibilidade da franquia a terceiros lesados.
6. A sentença a quo violou o n.º 4 do artigo° 101° do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o ponto 10 das condições particulares da apólice e os artigos 7.º e 13.º artigo 13.º das condições especiais da apólice, todas referentes à apólice ...3..., contratada pela ré seguradora com a Ordem dos Advogados.
7. Impõe-se a revogação da sentença recorrida, na parte em que considerou dever na responsabilidade da ré seguradora ser descontada a franquia estabelecida no contrato de seguro, sendo proferido acórdão que condene a seguradora recorrida a pagar à autora/recorrente a quantia de € 81.554,70 (oitenta e um mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e setenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos que foram causados, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento e devendo.
Termos em que, com o douto suprimento de vossas excelências, concedendo provimento ao presente recurso subordinado, deve ser revogada a sentença, na parte em que considerou que na responsabilidade da ré seguradora deve ser descontada a franquia que foi estabelecida no contrato de seguro, sendo proferido acórdão que condene a seguradora recorrida a pagar à autora/recorrente a quantia de € 81.554,70 (oitenta e um mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e setenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos que foram causados, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento. Tudo por ser de lei e de justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações em relação ao recurso subordinado.
*
Os recursos foram admitidos como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em:

1 – Indagar da verificação dos requisitos da responsabilidade civil no exercício da advocacia por parte do réu Advogado e da sua subsunção ao contrato de seguro;
2 – Analisar a abrangência do contrato de seguro celebrado entre a autora e o primeiro ré;
3 – Em caso de improcedência do recurso principal sindicar da aplicabilidade da franquia ao valor indemnizatório atribuído à autora.
*
III. Factos provados na sentença recorrida.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

“1. O primeiro réu é advogado inscrito na Ordem dos Advogados com a cédula profissional ...84...;
2. No dia 29 de Fevereiro de 2012, por documento escrito, a autora acordou com a sociedade EMP03..., Ldª que vendia a esta uma embarcação com o nome Paralelo, registada na Capitania Marítima de ... sob o nº...39..., pelo preço de € 350.000,00;
3. No documento ficou a constar que a autora declarava que o preço tinha sido integralmente pago pela compradora;
4. Esta declaração não correspondia à verdade porque a compradora não tinha pago a totalidade do preço;
5. Por este motivo, a autora intentou contra a compradora a acção correspondente ao processo nº484/13.... do Tribunal Marítimo de Lisboa;
6. Nesta acção a autora pedia a declaração de nulidade do contrato de compra e venda e a condenação da compradora a restituir a embarcação;
7. A compradora deduziu reconvenção em que pedia que fosse declarado que era proprietária da embarcação e que a autora fosse condenada a reconhecer este direito;
8. Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e a reconvenção procedente;
9. A autora interpôs recurso, mas o recurso foi julgado improcedente por acórdão da Relação de Lisboa de 20 de Dezembro de 2018;
10. Porém, foi considerado provado que o preço da embarcação não estava integralmente pago;
11. Na data em que foi proferido o acórdão estava em falta pela compradora a quantia de € 145.000,00;
12. No mês de Janeiro de 2019, no seguimento de contactos encetados pela filha dos sócios e gerentes da autora, foi agendada reunião com o primeiro réu com o intuito de explicar o sucedido e obter aconselhamento quanto às diligencias a serem tomadas relativamente à parte do preço que estava em falta;
13. Nesta reunião os sócios e gerentes da autora apresentaram ao primeiro réu o acórdão que havia sido proferido e referiram que, não obstante o que tinha sido decidido quanto à declaração de nulidade do contrato de compra e venda, ainda ambicionavam retomar a propriedade da embarcação;
14. O primeiro réu comprometeu-se a estudar o assunto e a apresentar uma estratégia com esta finalidade;
15. Passado algum tempo, os sócios e gerentes da autora reuniram-se novamente com o primeiro réu;
16. Nesta reunião o primeiro réu transmitiu que, para que fosse retomada a propriedade da embarcação, devia ser intentada uma execução para cobrança do preço que havia sido acordado no contrato de compra e venda e devia ser indicada para penhora a embarcação;
17. O primeiro réu transmitiu também que, embora a compradora tivesse pago uma parte do preço, a execução devia ser intentada pela totalidade do preço que tinha sido acordada no contrato de compra e venda acrescida de juros de mora e que no final seria feito o acerto das contas;
18. A autora passou procuração forense a favor do primeiro réu e constituiu-o seu mandatário para intentar a execução;
19. O primeiro réu transmitiu à autora que tinha intentado a execução e remeteu-lhe uma cópia do requerimento executivo;
20. Passado algum tempo, a autora informou o primeiro réu que a compradora tinha feito mais alguns pagamentos para que fossem abatidos no montante que estava ser reclamado na execução;
21. O primeiro réu transmitiu à autora que todas as quantias que fossem pagas pela compradora deviam ser transferidas para uma conta bancária em seu nome para que pudessem ser depositadas à ordem da execução;
22. A autora procedeu à transferência das quantias que tinham sido pagas pela compradora para as contas que foram indicadas pelo réu, no valor total de € 70.000,00;
23. As transferências bancárias a que a autora procedeu foram as seguintes:
€ 10.000,00 no dia 17 de setembro de 2019;
€ 10.000,00 no dia 7 de janeiro de 2020;
€ 25.000,00 no dia 31 de dezembro de 2020;
€ 25.000,00 no dia 21 de dezembro de 2020.
24. Na sequência da primeira transferência o primeiro réu facultou à autora uma fotocópia que disse ser de uma página do processo com o comprovativo do depósito do valor à ordem da execução;
25. Posteriormente, no seguimento de uma solicitação feita pelo contabilista da autora, o primeiro réu emitiu e enviou uma declaração a atestar que tinha recebido da autora a quantia total de € 70.000,00 e que esta se destinava à resolução do processo executivo nº2083/19.... do Juízo de Execução do Porto (Juiz ...);
26. Entretanto, o tempo foi passando sem que a autora soubesse de qualquer desenvolvimento da execução;
27. Tendo passado cerca de três anos desde que a execução tinha sido intentada, os sócios e gerentes da autora começaram a ficar preocupados e a sentir desconfiança relativamente à actuação do primeiro réu;
28. Os sócios e gerentes da autora transmitiram ao primeiro réu a sua preocupação e tentaram obter informações sobre o estado da execução;
29. O primeiro réu começou por apresentar uma captura de ecrã que terá sido retirada do portal https://citius.tribunaisnet.mj.pt através da consulta de processos;
30. O primeiro réu disponibilizou também aos sócios e gerentes da autora um requerimento que teria sido submetido no dia 30 de Março de 2022 em que constava que teria requerido que se procedesse imediatamente à devolução do valor depositado pela exequente e do valor penhorado para o NIB já indicado;
31. Neste requerimento era feita menção a que a falha na devolução, assim como a demora na entrega dos valores penhorados, era da exclusiva responsabilidade do Estado;
32. Face à insistência e às dúvidas manifestadas pelos sócios e gerentes da autora, o primeiro réu afirmava que já existiam valores à ordem da execução e justificava que a demora na sua entrega à autora era apenas devida ao Estado e que ponderaria, inclusivamente, avançar com um processo contra o Estado;
33. No mês de Maio de 2022, pressionado a restituir a quantia de € 70.000,00, o primeiro réu facultou à autora dois comprovativos de transferências, cada uma no valor de € 35.000,00, com informação de terem sido realizadas para o IBAN  ...48;
34. Sucede que a autora nunca recebeu estas quantias em qualquer conta bancária;
35. Os sócios e gerentes da autora confrontaram o primeiro réu com este facto;
36. Após várias insistências, o primeiro réu transmitiu que no dia 17 de Junho de 2022 tinha sido realizada uma transferência da quantia de € 572.982,23 para uma conta bancária titulada pela gerente da autora BB, com o IBAN  ...98, e facultou à autora um papel intitulado de resumo de transferência;
37. O primeiro réu justificou que a transferência tinha sido realizada para aquela conta porque a autora tinha dívidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária e não era conveniente que fosse processada para as contas da autora;
38. Acrescentou ainda que o contabilista da autora andava a ocultar a existência destas dívidas;
39. Os sócios e gerentes da autora confrontaram o contabilista com esta suspeita;
40. O contabilista entregou aos sócios e gerentes da autora certidões que comprovavam que não existia qualquer dívida à Segurança Social ou à Autoridade Tributária;
41. Mais uma vez, a autora não recebeu qualquer quantia nas suas contas ou na conta titulada pela gerente BB;
42. Os sócios e gerentes da autora confrontaram o primeiro réu com este facto, tendo este afirmado que a quantia de € 572.982,23 havia sido levantada através de cheque bancário junto do balcão e que apenas através de uma queixa crime seria possível facultar o documento de suporte desse levantamento, tendo, para atestar esta informação, entregue mais um papel que disse que tinha sido emitido pela entidade bancária;
43. Os sócios e gerentes da autora contactaram outro advogado para esclarecerem o que se estava a passar;
44. A autora ficou então a saber que o processo executivo nº2083/19.... do Juízo de Execução do Porto (Juiz ...) não estava pendente e não existia qualquer outra execução intentada contra a compradora;
45. O processo executivo nº2083/19.... do Juízo de Execução do Porto (Juiz ...) tinha efectivamente dado entrada, mas havia sido extinto por falta de pagamento da taxa de justiça;
46. Confrontado com este facto pelos sócios e gerentes da autora, o primeiro réu negou e informou que pretendia cessar a representação da autora atendendo à desconfiança que existia;
47. O primeiro réu fez sua a quantia total de € 70.000,00 que foi transferida pela autora;
48. Por outro lado, recebeu da autora a quantia total de € 11.554,70 a título de provisão para honorários, a qual também fez sua;
49. A ré seguradora celebrou com a Ordem dos Advogados um contrato de seguro relativo à responsabilidade civil dos advogados titulado pela apólice ...3...;
50. Este seguro teve início no dia 18 de Janeiro de 2018 e foi renovado para as anuidades de 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023;
 51. A cobertura do seguro é a seguinte:
- Responsabilidade civil profissional dos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados;
- Garante a cobertura da responsabilidade económica dos advogados emergente de qualquer reclamação de responsabilidade civil de acordo com a legislação vigente, que seja formulada durante o período seguro, pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros por dolo, erro, omissão ou negligência cometidos pelo advogado ou por pessoal pelo qual ele deva legalmente responder no desempenho da sua actividade profissional.
52. O capital seguro é de € 150.000,00 e foi estabelecida uma franquia de € 5.000,00 por sinistro a cargo dos segurados. ”.
*
IV. Do objeto do recurso.

Diga-se, desde já, que se nos afigura que a sentença está recorrida correta no segmento decisório objeto de recurso principal por parte da ré seguradora.
 Como é sabido, o mandato constitui uma das modalidades do contrato de prestação de serviços, e é definido como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra – cfr. arts. 1154.º, 1155.º e 1157.º do Código Civil.
O art.º 1161.º do Código Civil descreve as obrigações do mandatário, dizendo que:
“O mandatário é obrigado:
a) A praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante;
b) A prestar as informações que este lhe peça, relativas ao estado da gestão;
c) A comunicar ao mandante, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão por que assim procedeu;
d) A prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir;
e) A entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato.”.
Também o Estatuto da Ordem dos Advogados, na redação em vigor à data da prática dos factos (Lei n º 145/2015, de 09/09, na redação que lhe foi dada pela Lei n º 79/2021, de 24/11), estabelecia (como estabelece) deveres dos advogados.

O art. 97.º, dispõe que:
“1 - A relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca.
2 - O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas.”.
E o art. 100.º, rege que:
“1 - Nas relações com o cliente, são ainda deveres do advogado:
a) Dar a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca, assim como prestar, sempre que lhe for solicitado, informação sobre o andamento das questões que lhe forem confiadas, sobre os critérios que utiliza na fixação dos seus honorários, indicando, sempre que possível, o seu montante total aproximado, e ainda sobre a possibilidade e a forma de obter apoio judiciário;
 b) Estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade;
c) Aconselhar toda a composição que ache justa e equitativa;
d) Não celebrar, em proveito próprio, contratos sobre o objeto das questões confiadas;
 e) Não cessar, sem motivo justificado, o patrocínio das questões que lhe estão cometidas.”.
Estabelecia ainda à data dos factos e estabelece também atualmente o art. 101.º, nº 1 do Estatuto da ordem dos Advogados que:
“O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado.”.
A responsabilidade civil do advogado poderá resultar quer da violação da obrigação principal do contrato de mandato que celebrou com o seu cliente, quer da violação de deveres acessórios e até deontológicos, designadamente os supra transcritos os que lhe são impostos pelo Estatuto da Ordem dos Advogados.
 Com efeito, quer a doutrina (cfr., Moitinho de Almeida, “Responsabilidade civil dos advogados, págs. 8 e 15 e seguintes; António Arnaut, Iniciação à advocacia, pág. 170; José Lebre de Freitas, Estudos sobre direito civil e processo civil, vol. II, pág. 694), quer a jurisprudência (cfr. v.g., os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/06/2006, processo n.º 06A2773, de 29/04/2010, processo n.º 2622/07.0TBPNF.P1.S1 e de 28/09/2010, processo n.º 171/2002.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt), admitem que a violação de normas deontológicas representa um facto ilícito, pelo que, desde que verificados os demais requisitos da responsabilidade civil, o advogado constitui-se na obrigação de indemnizar os seus patrocinados, sendo os seus pressupostos a conduta ilícita do réu-advogado (a qual consistirá, em geral, na inexecução ou execução defeituosa do mandato), a culpa do mesmo (que se presume nos termos do art.º 799º do CC), a existência de danos e o nexo de causalidade adequada entre estes e tal ação/omissão ilícita, sendo, por regra de natureza contratual. (cfr. neste sentido os recentes Acórdãos desta Relação de 16/1/2025, processo n.º 273/19.5T8BGC.G1 e de 2/4/2025, processo n.º 2658/23.3T8VRL e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/2012 e 14/03/2013, consultáveis em www.dgsi.pt).
 Volvendo ao caso vertente, não vemos como não qualificar a atuação do primeiro réu como subsumível ao instituo da responsabilidade civil contratual, uma vez que se verificam todos os requisitos supra enunciados, pois que o mesmo violou não só deveres legais decorrentes da execução do contrato de mandato mas igualmente deveres deontológicos previstos no Estatuto da Ordem dos Advogados, inclusivamente merecedores de censura disciplinar e mesmo criminal.
 No âmbito do contrato de mandato forense que celebrou com a autora, solicitou-lhe indevidamente a importância de € 70.000,00 que alegadamente, mas falsamente deveria depositar à ordem de processo executivo, tendo feito sua essa importância, sendo que utilizou dos artifícios que constam dos factos assentes para encobrir o ato ilícito por si praticado. A que acresce que a execução para a qual foi mandatado, tendo dado entrada em juízo, foi declarada extinta por falta de pagamento da taxa de justiça, tendo recebido a título de provisão para o efeito a quantia de € 11.544,70, que também fez sua para em rigor nada fazer.
Estão, pois, reunidos todos os requisitos necessários para a existência de responsabilidade contratual pois que temos factos ilícitos consubstanciados na violação do contrato de mandato (cfr. o transcrito art. 1161.º, que violou na sua íntegra, para além da violação das regras estatutárias, maxime dos arts. 97.º, 100.º e 101.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados).
E a atuação dolosa do réu foi evidentemente causa adequada à ocorrência do prejuízo de € 81.544,70, de que a autora se viu despojada, sendo que em relação aos € 70.000,00 que lhe entregou foi burlada e no que concerne aos € 11.544,70 foi a provisão de um serviço que não foi de todo prestado.
Defende a recorrente seguradora, que se aplicaria aqui o instituto do enriquecimento sem causa e que por isso não haveria lugar a qualquer indemnização, uma vez que o seguro apenas tutela os casos de responsabilidade civil.
Como vimos, estamos perante um flagrante caso de responsabilidade civil contratual, como supra se deixou explanado, o que desde logo afasta a possibilidade de aplicação do instituto de enriquecimento sem causa, que tem um cariz subsidiário, conforme resulta do art. 474.º do Código Civil:
“Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos à restituição.”.
E tal responsabilidade civil contratual é decorrente do exercício da advocacia, embora de uma forma fraudatória e criminosa e que por isso merece censura disciplinar e criminal, sendo por isso subsumível ao contrato de seguro obrigatório celebrado entre os réus (cfr. o art. 104.º do Estatuto da Ordem dos Advogados).
O argumento da recorrente seguradora que a atuação do réu extrapola o risco coberto pelo contrato de seguro, olvida que o contrato em causa também cobre atuações dolosas no exercício do mandato, sendo a ilicitude um requisito da responsabilidade civil que tem de estar verificado para que haja o dever de indemnizar pelos danos causados, sendo que a entender-se como a ré, no limite, não haveria danos indemnizáveis pelo seguro, porque os atos seriam ilícitos e contrários ao exercício da advocacia. Salvo o devido respeito, este argumento não tem sentido.
O risco em causa, a apropriação de importâncias do cliente no âmbito de um contrato de mandato por parte do advogado é um dos riscos que o contrato de seguro visa cobrir, conferindo assim uma a proteção acrescida (e obrigatória) a quem contrata com um advogado
Refere ainda a ré apelante que o réu advogado deu entrada  com a execução sendo que a mesma não teve andamento pelo facto de não ter sido paga a taxa de justiça e nada ficou provado relativamente à entrega pela autora ao réu  do valor devido a título de taxa de justiça, pelo que não se pode dizer que não cumpriu o ato para o qual foi mandatado.
Salvo o devido respeito, como é evidente, não assiste qualquer razão à ré recorrente, inculcando até que haveria responsabilidade da autora em relação ao não andamento da ação, pelo que, se bem entendemos, não lhe assistiria direito a ser ressarcida do montante de € 11.544,70, que entregou a título provisão ao primeiro réu, uma vez que este propôs a ação executiva.
Ora, não cumpre o mandato que lhe foi confiado quem propõe uma ação sem que complementarmente adote os procedimentos necessários para que a mesma possa ser recebida, o que sucedeu no caso vertente, pois que devia ter informado a autora que deveria liquidar a taxa de justiça, dando-lhe as necessárias indicações para o efeito, ou próprio liquidar essa mesma taxa de justiça para o processo ter andamento, o que não fez conforme deflui designadamente dos itens 19, 24 26, 27, 28, 29, 30 a 32 e 44 a 46, violando assim o referido art. 100.º, nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, maxime as als. a) e b) e as als. a) a d) do referido art. 1161.º do Código Civil.
  Como consta do sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 06/02/2024 (disponível em www.dgsi.pt):
“I. O mandato forense não se esgota na prática de atos jurídicos em juízo, sendo um instrumento de uma prestação de serviços que não se exaure na prática de atos jurídicos pelo mandante”.
A este propósito diz João Lopes dos Reis, em Representação Forense e Arbitragem, pág. 43, que:
 “Não pode, no entanto, perder-se de vista que, em regra, o advogado não é um simples mandatário: o cliente não lhe pede que, em nome dele, apresente uma petição, ou faça um requerimento: pede-lhe que pratique os atos necessários para obter um determinado resultado. E por isso o mandato forense é ele próprio, as mais das vezes, um instrumento de uma prestação de serviços que não se esgota na prática de atos jurídicos pelo mandante.”.
Estão assim, reunidos os pressupostos para que a ré seguradora indemnize a autora pelos prejuízos sofridos reclamados nos presentes autos, improcedendo, assim, nesta parte, o recurso da apelante seguradora.
Suscita, porém, a recorrente uma questão nova, ou seja, não debatida nos articulados e não abordada na sentença recorrida e que se consubstancia na pretensão da condenação do primeiro réu a reconhecer que a segunda ré tem sobre si direito de regresso da quantia em que foi condenada.
 Os recursos têm por escopo a reapreciação de decisões já proferidas e não a sindicância de questões novas, exceto, conforme tem vindo a ser entendido, que estas sejam de conhecimento oficioso e, claro está, o processo tenha todos os elementos necessários para a sua apreciação.
A diferença de graus de jurisdição leva a que, por via de regra, os Tribunais de recurso apenas devam ser confrontados com questões que as partes tiveram oportunidade de apresentar e discutir nos momentos apropriados, sendo que tal apreciação equivaleria a suprimir um ou mais órgão de jurisdição - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2024, págs. 160, 161, 164 a 166 e a vasta jurisprudência aí recenseada.
 Assim, sendo uma questão nova, com uma inerente nova pretensão, não há que tomar conhecimento da mesma, sem prejuízo de se dizer que ainda que a pretensão em apreço fosse deduzida tempestivamente deveria ser indeferida liminarmente, uma vez que não se prevê na nossa lei adjetiva que um réu possa dirigir um pedido contra outro réu, carecendo, por isso, a pretensão em causa de qualquer base legal.
 Passemos a apreciar o recurso subordinado.
A autora insurge-se contra o facto de na sentença recorrida ter sido descontada a franquia no montante de € 5.000,00, uma vez que no seu entendimento não lhe é oponível, por virtude do disposto no art. 101º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e por virtude do ponto 10 das condições particulares da apólice e dos artigos 7.º e 13.º das condições especiais da apólice, todas referentes à apólice ...3..., contratada pela ré seguradora com a Ordem dos Advogados.
Na sentença recorrida, a este propósito, diz-se apenas que:
“Na responsabilidade da ré seguradora deve ser descontada a franquia que foi estabelecida no contrato de seguro.”.
Ficou provado, a este respeito, que:
“49. A ré seguradora celebrou com a Ordem dos Advogados um contrato de seguro relativo à responsabilidade civil dos advogados titulado pela apólice ...3...;
50. Este seguro teve início no dia 18 de Janeiro de 2018 e foi renovado para as anuidades de 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023;
 51. A cobertura do seguro é a seguinte:
- Responsabilidade civil profissional dos advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados;
- Garante a cobertura da responsabilidade económica dos advogados emergente de qualquer reclamação de responsabilidade civil de acordo com a legislação vigente, que seja formulada durante o período seguro, pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros por dolo, erro, omissão ou negligência cometidos pelo advogado ou por pessoal pelo qual ele deva legalmente responder no desempenho da sua actividade profissional.
52. O capital seguro é de € 150.000,00 e foi estabelecida uma franquia de € 5.000,00 por sinistro a cargo dos segurados.”.
Apreciemos.
Quanto ao invocado art. 101.º, conforme resulta do mesmo, não tem nada a ver com caso vertente, regulando as situações de falta de participação do sinistro.
Porém, a inoponibilidade da franquia em relação a terceiros, resulta dos arts. 138.º, n º 2 e 146.º, n º 2, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, como vem sendo entendido pela jurisprudência – cfr. os acórdãos da Relação do Porto de 11/10/2017, da Relação de Lisboa de 12/05/2022 e do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2019 e 17/11/2020 (consultáveis em www. dgsi.pt), assim como na doutrina Romano Martinez e outros, na Lei do Contrato de Seguro Anotada, 3ª ed., pag. 254.
Há ainda que ter presente o expressamente clausulado nas condições especiais dos seguros em apreço e a natureza obrigatória destes seguros, o que convoca a aplicação dos referidos arts. 146.º, n.º 2, e 138.º, n.º 2, preceitos que, como vimos, a jurisprudência vem interpretando no sentido da inoponibilidade de franquia a terceiros lesados.
Nos factos provados quedou assente e bem que foi estabelecida uma franquia por sinistro a cargo dos segurados, mas não já a cargo de terceiros.
De toda a forma, as condições contratuais são claras a este respeito, observando o regime imperativo estabelecido a este propósito no Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
Do ponto 10 das condições particulares da apólice de seguro em causa junta com a contestação resulta expressamente que:
“Estabelece-se uma franquia de 5.000,00 € por sinistro, não oponível a terceiros lesados.”
Por seu turno, o art. 7.º das condições especiais da apólice diz que:
“Os limites e condições das indemnizações e franquias são os constantes das Condições Particulares, não sendo, em caso de sinistro, a franquia oponível a terceiros lesados.”.
Para concluir, o art. 13.º, n.º 6 das mesmas condições especiais da apólice reza que:
“Em caso de sinistro, fica a cargo do segurado a franquia estipulada nas Condições Particulares, não sendo esta oponível a terceiros lesados.”.
Procede, assim, o recurso subordinado, revogando-se nesta parte a sentença recorrida.
As custas do recurso principal serão suportadas pela ré seguradora, as do recurso subordinado serão suportadas por ambos os réus e as da ação também serão suportadas integralmente por ambos os réus, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
*
V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes da Terceira Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso principal e procedente o recurso subordinado, revogando, em consequência, a decisão recorrida na parte em que se disse no seu ponto “2” “e devendo ser descontada a franquia de € 5.000,00 (cinco mil euros)”, passando a decisão a ser a seguinte:
Condeno os réus a pagarem à autora a quantia de € 81.554,70 (oitenta e um mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e setenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos que foram causados, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a citação até integral pagamento.
  As custas da apelação da ré seguradora serão suportadas por esta, as da apelação da autora serão suportadas também pela ré seguradora e as da ação serão suportadas integralmente por ambos os réus.
*
Guimarães, 22 de maio de 2025

Relator: Luís Miguel Martins
Primeira Adjunta: Maria Amália Santos
Segundo Adjunto: José Manuel Flores