COMPRA E VENDA
DESCONFORMIDADE
VENDA EM LEILÃO
Sumário


I. A diferença de quilómetros, para quase o dobro, no veículo, tratando-se de carro usado, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi feita pelo vendedor quando foi publicitada a venda on line pela leiloeira e descrição constante dos documentos e painel, estando, assim, afetado de defeito, para efeitos do disposto no artigo 913.º do Código Civil;
II. Subsiste a presunção da culpa do mesmo nos termos do art. 799º do CC, quando não são alegados e provados factos que pudessem ilidir a culpa, a qual não é ilidida pelo simples facto de não se ter provado o dolo.
III. Um dos meios de tutela do comprador é o direito de resolver o contrato (cfr. Art. art. 798º, 799º, 874º, 913º do CC): consegue reaver o preço que pagou pela coisa e, ao mesmo tempo, fica libertado de ter de suportar a não conformidade daquela com o seu interesse; bem como tem direito às consequentes indemnizações respetivas.
III. À Seguradora nenhuma responsabilidade contratual pode lhe ser assacada, primeiro por não ter sido parte no contrato de compra e venda do veículo em causa, e em segundo lugar, e ainda que tivesse atuado ( enquanto seguradora em virtude do contrato de seguro celebrado com o segurador) no âmbito do processo de regularização do sinistro para obtenção de propostas de venda e tivesse fornecido à leiloeira ( Ré) as informações constantes do relatório de peritagem, o qual reflete o que ressumava quer dos documentos, quer visivelmente do painel do veículo, na verdade nada mais sendo alegado e provado a respeito da atuação da mesma, nem sequer se atuou no âmbito de um mandato com ou sem representação, nunca poderia ser responsabilizada civilmente.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

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I. Relatório:

Nos presentes autos AA, NIF ...99, com domicílio profissional na Rua ..., freguesia ..., ..., concelho ..., intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “EMP01..., LDA”, NIPC ...50, com sede no Edifício ..., ..., Rua ..., Lugar ..., ... ..., pedindo a condenação no seguinte:

A) Reconhecer-se o direito de o autor resolver o contrato celebrado com a ré;
B) Ser a ré condenada a restituir ao autor a quantia de 4 172,80 Euros (quatro mil cento e setenta e dois euros e oitenta cêntimos) devida pela aquisição do veículo;
C) Ser a ré condenada a pagar ao autor a quantia de 6 271,32 Euros (seis mil, duzentos e setenta e um euros e trinta e dois cêntimos) devida pela reparação do veículo;
D) Ser a ré condenada a pagar ao autor a quantia de 2 056,18 Euros (dois mil e cinquenta e seis euros e dezoito cêntimos) correspondente ao lucro que o autor deixou de auferir na pretendida revenda do veículo;
E) Ser a ré condenada a pagar ao autor juros de mora à taxa legal desde a data da comunicação da denúncia e resolução de contrato até integral e efetivo pagamento.
Para tanto o Autor alegou, em síntese, que, face ao alegado incumprimento contratual por parte da Ré, sofreu prejuízos patrimoniais cujo valor ora peticiona.
Mais alega que, apesar da comunicação da denúncia e resolução de contrato, a Ré não procedeu ao pagamento da quantia alegadamente em dívida.
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A Ré “EMP01..., LDA”, deduziu Contestação e impugnou os factos alegados pelo autor, nomeadamente refutou a alegada compra do veículo pelo autor à ré, pois a ré é leiloeira e como tal atua com mandato  e por conta dos clientes, e nessa medida limitou-se a intermediar o leilão de um veículo salvado; nada sabia da adulteração da quilometragem e nada teria a ganhar com tal adulteração; impugnou o alegado lucro que o autor teria se vendesse o veículo por 12.500 euros, porquanto independentemente da  quilometragem estamos perante um salvado o que por si só o deprecia consideravelmente, sendo que na venda de salvados os quilómetros não influenciam o preço de forma preponderante, pois muitas vezes os veículos ou o que resta deles são aproveitados para venda de peças e componentes.. Por outro lado, o autor só tem de culpar-se a si próprio por não ter sido zeloso e ter aceitado transacionar um veículo sem aferir o seu histórico.

Ainda deduziu as seguintes exceções:

a) a exceção dilatória de incompetência deste Tribunal, nos termos do disposto nos artigos 102º, 103º e 577º todos do Código de Processo Civil, com a consequente remessa dos autos ao Tribunal da Comarca de Lisboa Norte;
b) a exceção perentória de ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 576º e do artigo 186º ambos do Código de Processo Civil, com a consequente absolvição da Ré do pedido;
c) a exceção perentória de caducidade, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 576º do Código de Processo Civil, com a consequente absolvição da Ré do pedido.
O Autor apresentou Resposta às exceções invocadas pela Ré.
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Foi proferido despacho saneador, nos termos do qual foram conhecidas em concreto a exceção de incompetência territorial e ineptidão da petição inicial e julgadas improcedentes.
Foi relegado para Sentença o conhecimento da alegada exceção de caducidade.
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No início da audiência final, o Autor apresentou Requerimento a pedir “a intervenção da EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a notificar no Largo ..., ... ... e de BB, a notificar na Rua ..., ..., ... ..., passando os Chamados a fazer parte da relação material controvertida.”
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Por Despacho sob a Refª ...72, ao abrigo do disposto no artigo 316.º do Código de Processo Civil, foi proferido o seguinte: “admito o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelo autor e, consequentemente, foi determinada a citação da companhia de seguros EMP02... - Companhia de Seguros, S.A. e de BB”.
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A companhia de seguros chamada ou interveniente principal EMP02... - Companhia de Seguros, S.A. deduziu Contestação, alegando que nunca esteve na posse ou em contacto com o veículo e o seu interesse é que este tivesse muitos quilómetros, pois a EMP03... avaliou o veículo em 10.000,00€ tendo por base os 185.855 Km, mas se tivesse a informação que o veículo percorreu 575.215 Km, o valor venal daquele encontrar-se-ia entre os 7.000,00 e os 8.000,00€, o que origina um prejuízo de 2.500,00 € à Chamada. Mais declarou que, como lesada, a Chamada reclama uma indemnização de 2.500,00 € ao seu segurado pelo presente incidente de intervenção principal.
Enviou ao segurado a carta de 16-07-2019 a informar da melhor proposta para a compra do salvado, apresentada pela Ré, tinha o valor de 3.730 e era válida até 31-08-2019 e como salvado estava na sua posse, o proprietário podia negociar diretamente com aquela entidade e se o fizesse a ré era responsável pelo cancelamento da matrícula ou transferência da propriedade e salientou que era importante decidir o destino que pretendia dar ao veículo e notando que o proprietário é o responsável pelo pagamento do IUC; enviou ainda carta em 16-07-2019 à oficina informando do desinteresse no salvado e que qualquer assunto sobre o veículo deverá ser tratado com o proprietário.

Por sua vez, o chamado ou interveniente principal BB também deduziu contestação, dando por reproduzido todo o articulado da Contestação oferecido nestes autos pela Ré “EMP01..., LDA.”, como estipula e consagra o disposto no artigo 312º do Código de Processo Civil, e concluindo como na Contestação da Ré.
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Através de requerimento de 18/04/2020, com referência ...97, peticionou o A, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 2, do art.º 265º do CPC, a ampliação do pedido nos seguintes termos:
“F) Ser declarado nulo junto da Conservatória de Registo Automóvel, o registo de propriedade automóvel que recai sobre o veículo com a matrícula ..-JQ-.., da marca ..., modelo ..., com o n.º ...09, de 20/09/2019”.
Tal requerimento foi admitido por despacho de 29/09/2020, com referência ...46.
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Através de requerimento de 26/10/2022, com referência ...52, peticionou o A, nos termos e para os efeitos dos nrs. 1 e 2 do art.º 265º do CPC, a ampliação do pedido nos seguintes termos:
“G) Ser a ré condenada a pagar ao autor a quantia de 720,50 Euros [setecentos e vinte euros e cinquenta cêntimos], correspondente ao IUC devido e pago e relativo aos anos de
2020, 2021 e 2022, e bem assim, o IUC que, entretanto, se venha a vencer até ao desfecho da presente lide”.
Tal requerimento foi admitido por despacho de 29/11/2022, com referência ...16.
Em consequência, por despacho de 25/01/2023, com referência ...67, decidiu o Tribunal fixar o valor da causa em 13.220,50 Euros.
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Ainda, por requerimento com referência ...33, de 26/09/2023, o A expôs e requereu aos autos que em 24/08/2023 liquidou o IUC devido pelo veículo objeto destes autos e relativo ao ano de 2023, no quantitativo de 251,46 Euros, termos em que requereu que o pagamento efetuado integrasse o quantitativo a que alude a alínea G) do pedido, porquanto se trata de pagamento de IUC que, entretanto, se venceu.
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Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

“Nos termos e pelos fundamentos supra-expostos, decide-se julgar a presente Ação parcialmente Procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:
A) Declara-se a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre o Autor AA e o ora Chamado ou Interveniente Principal BB, com a intermediação da Ré e também com intervenção direta da Chamada e ora Interveniente Principal “EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”;
B) Condena-se o Interveniente Principal BB, a título solidário com a Interveniente Principal “EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, a restituir ao Autor AA a quantia de 4.172,80 € (quatro mil e cento e setenta e dois euros, e oitenta cêntimos) devida pela aquisição do veículo;
C) Condena-se o Interveniente Principal BB, a título solidário com a Interveniente Principal “EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, a pagar ao Autor AA a quantia de 6.271,32 € (seis mil e duzentos e setenta e um euros, e trinta e dois cêntimos) devida pela reparação do veículo;
D) Condena-se o Interveniente Principal BB, a título solidário com a Interveniente Principal “EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, a pagar ao Autor AA a quantia de 2.055,88 Euros (dois mil e cinquenta e cinco euros, e oitenta e oito cêntimos) correspondente ao lucro que o Autor deixou de auferir na pretendida revenda do veículo;
E) Condena-se o Interveniente Principal BB, a título solidário com a Interveniente Principal “EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, a pagar ao Autor AA juros de mora à(s) respetiva(s) taxa(s) legal(ais) anual(ais) desde a data da respetiva citação até integral e efetivo pagamento;
F) Condena-se o Interveniente Principal BB a pagar à Chamada ou Interveniente Principal “EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” uma indemnização de 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros) a título de danos patrimoniais derivados da adulteração, por parte do Interveniente, da quilometragem do veículo de matrícula ..-JQ-..;
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G) Estando o Autor disponível para proceder à entrega do veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ... e do modelo ..., este Tribunal determina ao Autor AA que proceda a tal entrega ao Interveniente Principal BB no prazo de 5 (cinco) dias a contar do pagamento efetivo e integral das quantias supra-aludidas em B), C), D) e E);
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H) –Absolve-se a Ré “EMP01..., LDA.” do peticionado pelo Autor;
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I) Fixa-se Custas a cargo do Autor AA e dos Chamados ou Intervenientes Principais BB e “EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, na proporção dos respetivos decaimentos, fixando-se 3/10 a cargo do Autor e 7/10 a cargo dos Chamados ou Intervenientes Principais, estes últimos a título solidário, e fixa-se a taxa de justiça nos termos tabelares do Regulamento das Custas Processuais (artigos 527º/1,1ªparte,2,3, 528º/1, 529º/2, 530º/4 e 607º/6 todos do Código de Processo Civil – CPC).
Notifique e Registe (artigo 153º/4 do CPC).
Ordena-se a imediata extração de Certidão integral do processado dos presentes autos e o seu envio aos Serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes, face à manifesta indiciação de conduta criminalmente punível (adulteração de quilometragem de veículo automóvel) e eventual necessidade de instauração do competente procedimento criminal.”
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Inconformado com esta decisão, vieram os intervenientes interpor recurso.
A seguradora EMP02..., SA interpôs recurso e formula as seguintes conclusões (que se transcrevem):
[…]
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O Interveniente BB interpôs recurso e formula as seguintes conclusões (que se transcrevem):
[…]
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O A apresentou recurso concluindo pela nulidade da sentença por omissão de pronúncia, com impugnação da matéria de facto e recurso da decisão quanto a custas, porquanto não decaiu em nenhum dos pedidos.
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O A apresentou contra-alegações aos recursos dos intervenientes e pugnou pela manutenção da decisão recorrida quanto à condenação de cada um deles.
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Em 29-06-2024 foi proferido o designado “ despacho complementar e parte integrante da sentença” nos seguintes termos:
“ No que concerne à alegada nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, com impugnação da matéria de facto, desde já se consigna que assiste razão ao Autor recorrente, AA.
Através de requerimento de 18/04/2020, com referência ...97, peticionou o recorrente, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 2, do art.º 265º do CPC, a ampliação do pedido nos seguintes termos:
“F) Ser declarado nulo junto da Conservatória de Registo Automóvel, o registo de
propriedade automóvel que recai sobre o veículo com a matrícula ..-JQ-.., da marca ..., modelo ..., com o n.º ...09, de 20/09/2019”.
Tal requerimento foi admitido por despacho de 29/09/2020, com referência ...46.
Compulsada a Sentença proferida, constata-se que este Tribunal recorrido deixou de se pronunciar sobre o dito pedido.
Em consequência, apreciando tal pedido, declara-se a nulidade do registo de propriedade automóvel que recai sobre o veículo com a matrícula ..-JQ-.., da marca ..., modelo ..., com o n.º ...09, de 20/09/2019, junto da Conservatória de Registo Automóvel. Após trânsito em julgado da Sentença, Comunique-se à CRA. D.n..
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Por outro lado, através de requerimento de 26/10/2022, com referência ...52, peticionou o ora recorrente, nos termos e para os efeitos dos nrs. 1 e 2 do art.º 265º do CPC, a ampliação do pedido nos seguintes termos:
“G) Ser a ré condenada a pagar ao autor a quantia de 720,50 Euros [setecentos e vinte euros e cinquenta cêntimos], correspondente ao IUC devido e pago e relativo aos anos de2020, 2021 e 2022, e bem assim, o IUC que, entretanto, se venha a vencer até ao desfecho da presente lide”.
Tal requerimento foi admitido por despacho de 29/11/2022, com referência ...16.
Em consequência, por despacho de 25/01/2023, com referência ...67, decidiu este Tribunal fixar o valor da causa em 13.220,50 Euros.
Por seu turno, por requerimento com referência ...33, de 26/09/2023, o recorrente expôs e requereu aos autos que em 24/08/2023 liquidou o IUC devido pelo veículo objeto destes autos e relativo ao ano de 2023, no quantitativo de 251,46 Euros, termos em que requereu que o pagamento efetuado integrasse o quantitativo a que alude a alínea G) do pedido, porquanto se trata de pagamento de IUC que, entretanto, se venceu.
Devidamente compulsado o teor da Sentença, verifica-se que este Tribunal recorrido deixou de se pronunciar sobre a referida factualidade, bem como sobre o referido pedido.
O recorrente alegou e provou documentalmente nos autos o pagamento dos IUC relativos aos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023, no montante de global de 971,96 Euros [novecentos e setenta e um euros e noventa e seis cêntimos].
O recorrente fê-lo através da apresentação de nota de liquidação e comprovativos de pagamento juntos aos autos com os requerimentos de 26/10/2022, com referência ...52, e de 26/09/2023, com referência ...33 - cfr. art.ºs 362.º do CC e 5.º, n.º 1, 423.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Tal factualidade não foi impugnada e reveste-se de essencialidade, uma vez que consta do pedido formulado nos autos pelo ora recorrente.
Atentos os factos em presença, para responder à matéria de facto essencial alegada nesta sede pelo ora recorrente, este Tribunal recorrido conclui, face à prova produzida em audiência final, pelo pagamento, pelo ora recorrente, do IUC relativo aos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023.
Face ao ora exposto, considera-se MATÉRIA DE FACTO PROVADA o seguinte:
“O Autor pagou o IUC relativo aos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023, no montante
de 971,96 Euros”.
Por conseguinte, Decide-se condenar os ora Recorridos a pagar ao Autor ora recorrente a quantia de 971,96 Euros (novecentos e setenta e um euros e noventa e seis cêntimos) correspondente ao IUC devido e pago e relativo aos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023, bem como condená-los a pagar ao Autor ora recorrente o IUC que, entretanto, se venha a vencer até ao desfecho da presente lide.”
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Os três recursos foram admitidos como de apelação, a subirem imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:
A- Do recurso da interveniente Seguradora “ EMP02..., SA”:
1. Da impugnação da matéria de facto (nomeadamente da utilidade do seu conhecimento).
2. Da reapreciação da matéria de direito.
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B- Do recurso do interveniente BB:
1. Da impugnação da matéria de facto;
2. Da reapreciação da matéria de direito.
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C- Do recurso do A:
1. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
2. Da reapreciação da matéria de direito, nomeadamente quanto à condenação do autor em custas.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados e não provados na sentença sob recurso são os seguintes:

A) Factos PROVADOS
Da PETIÇÃO INICIAL do Autor AA
1. O Autor é um empresário em nome individual que se dedica, com intuito lucrativo, às atividades comerciais de reparação e manutenção de veículos automóveis, e ao comércio de veículos automóveis ligeiros.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica, com intuito lucrativo, à atividade comercial de aquisição e/ou revenda de veículos, designadamente através de leilões efetuados física ou eletronicamente.
 3. Em Agosto de 2019, no seu estabelecimento comercial sito na Rua ..., freguesia ..., ..., concelho ..., e no exercício da sua atividade comercial, o Autor consultou a plataforma informática da Ré com a designação “...” (cujo acesso é exclusivo a comerciantes automóveis) e aí tomou conhecimento de que se encontrava à venda o salvado do veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ...” e do modelo ....
4. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, consultado o link da Ré do designado “2010 ... Avensis sw 126CV”, verificável através do endereço ... 21703/EMP01..., o autor tomou conhecimento, por a Ré ter procedido à sua publicitação, de diversas características do veículo em crise, designadamente “Quadrante” (quilometragem) 185.855 km, “Combustível” Gasóleo, “..., “Data de registo” ..-JQ-.., “CC” (cilindrada) 1.998 cm3, entre outros.
5. Foi então que, face às enunciadas características e estado do veículo, o Autor decidiu, através da plataforma informática da Ré, licitar o salvado do veículo em crise pelo preço de 3.730,00 Euros (três mil e setecentos e trinta euros).
6. Em consequência, em 26 de Agosto de 2019, o Interveniente Principal BB, com intermediação da Ré, procedeu à adjudicação ao Autor do dito veículo.
7. Na sequência da adjudicação, a Ré que intermediou a compra ao Interveniente Principal BB, debitou ainda ao Autor taxa de aquisição no valor de 280,00 Euros (mais IVA), e serviços de documentação no valor de 80,00 Euros (mais IVA).
8. e 9. Em 27 de Agosto de 2019, no seu estabelecimento comercial e através da plataforma de homebanking, o Autor pagou à Ré que intermediou a compra ao Interveniente Principal BB, o referido salvado pelo preço licitado de 3.730,00 Euros (três mil e setecentos e trinta euros), e também o valor da dita taxa de aquisição e dos ditos serviços de documentação, no valor total de 4.172,00 Euros (quatro mil e cento e setenta e dois euros).
10. Atenta a informação da plataforma da Ré, consultável através do suprarreferido link, e aquando da licitação pelo Autor, o salvado do veículo em causa apresentava 185.855 Km de rodagem.
11. A informação da dita quilometragem de 185.855 Km foi ainda verificada pelo Autor, por observação do conta-quilómetros do veículo, quando este lhe foi entregue.
12. Em 26 de Agosto de 2019, o Autor comprou ao Interveniente Principal BB, com intermediação da Ré, no exercício da atividade comercial de Autor e Ré, o veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.. da marca ...” e do modelo ..., com a quilometragem inscrita de 185.855 KM, pelo preço de 3.730,00 Euros (três mil e setecentos e trinta euros).
13. e 14. Na sequência da dita compra e venda, o Autor também pagou à Ré que intermediou a compra ao Interveniente Principal BB,  o custo de 280,00 Euros (duzentos e oitenta euros), a que acresceu IVA à taxa legal em vigor, cobrado a título de taxa de aquisição, e ainda o custo de 80,00 Euros (oitenta euros), a que acresceu IVA à taxa legal em vigor, cobrado a título de custo de serviço de documentação.
15. Em 27 de Agosto de 2019, o Autor pagou à Ré que intermediou a compra ao Interveniente Principal BB, o preço total de 4.172,80 Euros (quatro mil e cento e setenta e dois euros, e oitenta cêntimos), sendo que a Ré recebeu essa quantia, ao passo que o salvado veículo automóvel foi entregue ao Autor.
16. Com o pagamento do preço acordado, foram também entregues ao Autor as chaves do veículo, o certificado de matrícula e o requerimento de registo automóvel já assinado.
17. O Autor procedeu ao registo do veículo a seu favor junto da competente conservatória.
18. O Autor procedeu à reparação integral do dito veículo.
19. Para efetuar a reparação, o Autor procedeu à colocação das seguintes peças: a) 1 pára-choques, no valor de 150,00 Euros (cento e cinquenta euros); b) 2 faróis, no valor de 252,22 Euros (duzentos e cinquenta e dois euros, e vinte e dois cêntimos); c) 1 guarda-lamas frontal, no valor de 330,20 Euros (trezentos e trinta euros, e vinte cêntimos); d) 1 conjunto de tablier, no valor de 100,00 Euros (cem euros); e) 1 conjunto de cintos de segurança, no valor de 250,00 Euros (duzentos e cinquenta euros); f) 1 caixa de direção, no valor de 125,00 Euros (cento e vinte e cinco euros); g) 1 braço de suspensão esquerdo, no valor de 102,13 Euros (cento e dois euros, e treze cêntimos); h) 2 pneus, no valor de 202,00 Euros (duzentos e dois euros); quantias essas a que acresce IVA à taxa legal de 23%.
20. Para efetuar a reparação, o Autor procedeu ainda à realização dos seguintes serviços: a) Reparação de central de airbag, no valor de 100,00 Euros (cem euros); b) Alinhamento, no valor de 25,00 Euros (vinte e cinco euros); c) Reparação de jantes, no valor de 300,00 Euros (trezentos euros); d) Serviço de reboque, no valor de 159,90 Euros (cento e cinquenta e nove euros, e noventa cêntimos); e) Pintura geral, no valor de 1.200,00 Euros (mil e duzentos euros); i) Chaparia e mecânica (mão-de-obra), no valor de 800,00 Euros (oitocentos euros); quantias essas a que acresce IVA à taxa legal de 23%.
21. O valor final de reparação do veículo ascendeu a 6.271,32 Euros (seis mil e duzentos e setenta e um euros, e trinta e dois cêntimos).
22. Em inícios de Janeiro de 2020, depois de proceder à reparação integral, o Autor decidiu colocar o veículo à venda.
23. Um cliente do Autor interessou-se em adquirir o dito veículo.
24. Tendo em vista a compra do veículo, esse cliente do Autor efetuou ao veículo todas as verificações que teve por convenientes.
25. Em 30 de Janeiro de 2020, o mesmo cliente do Autor informou que, por consulta ao Instituto de Mobilidade e dos Transportes IP, descobrira que o veículo tinha a sua quilometragem completamente adulterada.
26. Em inspeção periódica de: a) 10 de Junho de 2012, o veículo apresentava 207.858Km de rodagem; b) 08 de Junho de 2013, o veículo apresentava 321.389 Km de rodagem; c) 01 de Junho de 2014, o veículo apresentava 433.007 Km de rodagem; d) 23 de Junho de 2015, o veículo apresentava 546.834 Km de rodagem; e) 24 de Agosto de 2016, o veículo apresentava 575.215 Km de rodagem; f) 27 de Junho de 2017, o veículo apresentava 158.143 Km de rodagem; j) 24 de Agosto de 2018, o veículo apresentava 175.714 Km de rodagem.
27. O veículo em causa foi vendido pelo Interveniente Principal BB, com intermediação da Ré, ao Autor como tendo 185.855 km.
28. e 29. Na realidade, o dito veículo tinha pelo menos 592.786 Km, ou seja, o veículo tinha na realidade 406.931 km a mais do que aquilo que era suposto.
30. O Interveniente Principal BB bem sabia da quilometragem real do veículo.
31. O mesmo Interveniente Principal BB bem sabia que o veículo em causa tinha, na verdade, 592.786 Km e não os anunciados ao Autor.
32. O Interveniente Principal BB quis e conseguiu induzir e manter o Autor em erro.
33. O Interveniente Principal BB sabia que se o Autor soubesse que se tratava de um veículo com a quilometragem adulterada (com mais do triplo dos quilómetros do que aqueles que constavam do conta-quilómetros), este não teria realizado o negócio.
34. A quilometragem, a par com a data de registo do veículo (idade), são fatores essenciais que, conjugados, permitem aos comerciantes anteciparem o valor de mercado do veículo depois de devidamente reparado.
35. O mesmo Interveniente Principal BB sabia que, não fosse a quilometragem fictícia de cerca de 185.000 km, não seria expectável ao Autor que o veículo, depois de reparado, permitisse ser (re)vendido com margem de lucro.
36. O Autor desconhecia, porque tal lhe fora ocultado pelo Interveniente Principal BB, que a quilometragem real do veículo era de 592.786 Km e não de 185.855 km.
37. O veículo automóvel comprado pelo Autor ao Interveniente Principal BB, com intermediação da Ré, não estava conforme a descrição que dele foi feita pelo vendedor, pois não possuía as qualidades que o Interveniente Principal apresentou ao Autor.
38. Os quilómetros que um automóvel apresenta são uma característica importante e que dita a compra ou não compra do mesmo.
39. Os quilómetros que um automóvel apresenta influenciam muitos outros fatores como, por exemplo, o preço da viatura.
40. O Autor aceitou efetuar o negócio pelo preço de 3.730,00 Euros (três mil e setecentos e trinta euros), por supor que o veículo teria alegadamente 185.855 km e não os 592.786 Km reais.
41. Tendo em conta o circunstancialismo supra-exposto, o Autor comprou um veículo que, à data de 26/08/2019, já tinha 592.786 Km, pelo valor que seria justo pagar por um veículo com muito menos quilómetros.
42. Os valores de manutenção que exige um veículo com os quilómetros que o veículo em causa apresentava na realidade, são consideravelmente mais elevados do que os que teria se tivesse os quilómetros que o Interveniente Principal BB informou que tinha.
43. O Interveniente Principal BB procedeu, com a intermediação da Ré, à venda de um veículo indicando intencionalmente que o mesmo tinha 185.855 km, ao invés de proceder à indicação dos quilómetros que o veículo efetivamente tinha.
44. O Interveniente Principal BB alterou intencionalmente a quilometragem da viatura, de modo a que o Autor aceitasse celebrar o contrato de compra e venda.
45. O Autor foi induzido e mantido em erro pelo Interveniente Principal BB.
46. Se o Autor tivesse sido esclarecido ou tivesse tido conhecimento do verdadeiro número de quilómetros que a viatura possuía, aquele não teria realizado o negócio.
47. Só as características que o veículo apresentava no seu conjunto – mormente o preço e a quilometragem fictícia – garantiriam lucro ao Autor na pretendida reparação e revenda.
48. À data da aquisição do veículo e atento o estado em que o mesmo se encontrava, o Autor já podia prever, como previa, que a reparação do mesmo orçasse em cerca de 6.000,00 Euros.
49. Consultados sites da especialidade, verifica-se que, por comparação, um veículo com cerca de 600.000 km nunca será comercializado por valor superior a 5.000,00 Euros (cinco mil euros).
50. Perante a informação da verdadeira quilometragem do veículo, em 6 de Fevereiro de 2020, o Autor comunicou à Ré que a quilometragem do veículo que o Interveniente Principal BB lhe vendera, com a intermediação da Ré, estava adulterada para mais do triplo, conforme documento nº 11 junto com a PI e cujo teor se transcreve:
“AA, Rua ... ... EMP04..., LDA., Edifício ..., ..., Rua ..., Lugar ..., ... ... com AR Assunto: denúncia de defeitos e resolução de contrato de compra e venda do veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ..., modelo .... Exmos. Senhores, Os meus melhores cumprimentos. No dia 30 de janeiro de 2020, tomei conhecimento que o veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ..., modelo ..., adquirido ao V/Exas no dia 26 de agosto de 2019, não tinha, ao contrário do publicitado, a quilometragem de 185.855 km, mas cerca de 592.786 km [575.215 + (175.714 – 158.143)], conforme resulta da certidão emitida pelo IMT, IP. A verificada desconformidade da quilometragem, para mais do triplo, constitui uma desconformidade grave da coisa vendida, posto que, como é sabido, a quilometragem é questão essencial à celebração de contrato de compra e venda de veículo usado, em especial, entre comerciantes. Pelo que, tendo justificadamente perdido o interesse na manutenção do contrato, venho pela presente resolver o contrato de compra e venda do veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ..., modelo ..., celebrado com V/Exas. Em consequência, reclamo o pagamento das seguintes quantias: a) A quantia de 4.172,80 Euros (quatro mil e cento e setenta e dois euros, e oitenta cêntimos) devidos pela aquisição do veículo; b) A quantia de 6.271,32 Euros (seis mil e duzentos e setenta e um euros, e trinta e dois cêntimos) devida pela reparação do veículo; e c) A quantia de 2.056,18 Euros (dois mil e cinquenta e seis euros, e dezoito cêntimos) correspondente ao lucro que deixei de auferir na pretendida revenda do veículo. O pagamento deverá ser efetuado para a conta com o IBAN  ...63, de que sou titular, no prazo máximo de 8 dias findos os quais darei entrada da competente ação judicial. Efetuado o pagamento das quantias reclamadas ficará o veículo, bem como a competente documentação, à vossa disposição para levantamento no meu estabelecimento comercial. Atentamente, e ao dispor para qualquer esclarecimento adicional”.
51. e 52. Na missiva endereçada à Ré, o Autor informou que a desconformidade da quilometragem, para mais do triplo, constitui desconformidade grave da coisa vendida, motivo pelo qual o Autor perdeu o interesse na manutenção do contrato, procedendo à sua resolução, o que se requer seja reconhecida para todos os efeitos legais.
53. e 54. O Autor informou ainda a Ré de que procedera à reparação do dito veículo, despendendo para tanto o quantitativo de 6.271,32 Euros (seis mil e duzentos e setenta e um euros, e trinta e dois cêntimos) e de que tinha a intenção de o vender pelo quantitativo de 12 500,00 Euros (doze mil e quinhentos euros).
55. O Autor peticionou à Ré que esta procedesse ao pagamento das seguintes quantias: a) A quantia de 4.172,80 Euros (quatro mil e cento e setenta e dois euros, e oitenta cêntimos) devidos pela aquisição do veículo; b) A quantia de 6.271,32 Euros (seis mil e duzentos e setenta e um euros, e trinta e dois cêntimos) devida pela reparação do veículo; e c) A quantia de 2.056,18 Euros (dois mil e cinquenta e seis euros, e dezoito cêntimos) correspondente ao lucro que deixei de auferir na pretendida revenda do veículo.
56. Por missiva do seu mandatário de 10 de Fevereiro de 2020, a Ré respondeu que não aceitava a denúncia do contrato nem o demais peticionado, conforme documento nº 13 junto com a PI e cujo teor se transcreve:
“Exmo. Senhor AA Rua ... ... ...
...67... ..., 10 de Fevereiro de 2020. Assunto: v/ missiva sob o assunto "denúncia de defeitos e resolução de contrato de compra e venda do veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ..., modelo ....
Exmo. Senhor,
Apresento-lhe os meus melhores cumprimentos.
Na sequência do seu contacto com a EMP01... Lda, para denúncia e resolução de contrato de compra e venda do veículo ..-JQ-.., encarrega-nos a N/ cliente de lhe prestar alguns esclarecimentos.
A EMP01... Lda é uma sociedade que tem por escopo a aquisição e/ou a revenda de veículos, designadamente através de leilões efetuados física ou eletronicamente, tendo por base na sua relação com os seus parceiros valores de confiança, rigor e transparência que contribuem para que seja líder de segmento a nível mundial.
Assim, cumpre desde já assinalar, que foi com estupefação que a N/ cliente recebeu a informação de Vexa, porquanto desconhecia sem obrigação de conhecer que o veículo em questão tinha a quilometragem adulterada, o que não pode deixar de lamentar.
Na prossecução do seu objeto, e para salvaguarda de todos os intervenientes nos leilões, a EMP01... exige aos seus clientes como condição para admissão de veículos a transacionar, seja em leilão seja em bolsa de salvados, o preenchimento de uma ficha de admissão, informação essa que é preenchida pelo proponente e depois anunciada aos interessados antes da licitação, como sucedeu no caso do veículo ..-JQ-...
A EMP01... Lda, pressupõe que as informações que lhe são apresentadas se encontram corretas, pois o anunciante obriga-se entre outros a declarar na ficha de inscrição do veículo, o verdadeiro valor da sua quilometragem garantindo a fundamental inviolabilidade desta.
No caso do veículo ..-JQ-.., o mesmo constou da bolsa de salvados, que funciona com veículos propostos por seguradoras, as quais lavram relatório de peritagem contendo informações que a EMP01... faz anunciar, tais como Cor, Data de Registo, Combustível, Quadrante, Cilindrada, entre outros.
Foi perante estas condições que a M/ cliente intermediou a venda do veículo.
Cumpre ainda deslindar, que de acordo com as "Condições Gerais dos Leilões On-Line da EMP01... Lda” e "Condições Específicas dos Leilões EMP01... Salvado”' - que saliente-se, deveriam ser conhecidas por Vexa, 1) é o vendedor o responsável por todos os prejuízos resultantes de falsas informações na ficha de inscrição do veículo, 2) o licitador deve informar até 24h após o levantamento do Salvado quaisquer falhas, delapidações, falta de peças, imprecisões de informação ou erros, preenchendo para o efeito a folha de Reclamação onde deve indicar as falhas e o valor das falhas.
Ora, assim sendo, V.exa. enquanto interessado poderia ter recolhido por si as informações que entendesse necessárias, nomeadamente junto do IMT, ISP e CRA, para confirmar as informações prestadas e eventualmente anular o negócio dentro do prazo previsto nos aludidos Termos e Condições.
A EMP01... Lda., pugna sempre pela implementação de boas práticas, não podendo contudo, substituir-se às informações prestadas por terceiros, as quais naturalmente presume de boa-fé.
Neste sentido, e por se tratar de um crime se Vexa não o fizer, reportará a EMP01... Lda., como é sua obrigação e dever a situação às instâncias judiciais competentes, pois não pode a N/ cliente permitir que o seu good will seja afetado por situações de adulteração de características dos veículos.
Nesta conformidade, em face exposto supra, somos a transmitir que a EMP01... Lda., não só não aceita a denúncia do contrato, como refuta o demais peticionado.
Sem mais de momento, subscrevo-me atentamente”.
57. O Autor desconhece, sem dever de conhecer, quem preenche a informação de quilometragem publicitada no site da Ré, nem quem é a pessoa responsável por dar a informação.
58. O contrato de compra e venda, em causa nestes autos, foi celebrado entre o Autor e o Interveniente Principal BB, com intermediação da Ré.
59. A desconformidade da quilometragem apresentada e a quilometragem real constituiu um vício não aparente, sendo que o Autor procedeu à sua denúncia no prazo legal de 8 (oito) dias após o seu conhecimento.
60. A Ré aceita que havia desconformidade entre a quilometragem que o veículo apresentava e a quilometragem real/verdadeira.
61. A Ré aceita que a informação de quilometragem é uma característica essencial dos contratos celebrados entre a R, na posição de intermediária, e os seus clientes, nos quais se inclui o aqui Autor.
68. A desconformidade da quilometragem do veículo não é reparável.
69. O veículo em causa não é substituível.
70. A redução do preço não é suficiente.
72. Na missiva que dirigiu à Ré, o Autor procedeu à resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ..., modelo ..., pelo preço de 3.730,00 Euros (três mil e setecentos e trinta euros), contrato esse que o Autor celebrou com o Interveniente Principal BB, figurando a Ré na posição de intermediária.
78. O Autor está disponível para proceder à entrega do veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ... e do modelo ..., à Ré ou ao Interveniente Principal BB, no prazo que lhe vier a ser fixado pelo Tribunal.
83. e 84. Com a compra e a posterior reparação do veículo em causa, o Autor ambicionava proceder à revenda do mesmo pelo preço de 12.500,00 Euros (doze mil e quinhentos euros) e, em consequência, obter o lucro de 2.055,88 Euros (dois mil e cinquenta e cinco euros e oitenta e oito cêntimos).
85. O Autor obteria esse lucro se não fosse a desconformidade da quilometragem apresentada pelo veículo automóvel de matrícula ..-JQ-.., da marca ... e do modelo ..., que o Interveniente Principal BB, com a intermediação da Ré, vendeu ao mesmo Autor.
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Da CONTESTAÇÃO da Ré “EMP01..., LDA” e Da CONTESTAÇÃO do Interveniente Principal BB
31º
A Ré é uma sociedade que tem por escopo a aquisição e/ou revenda de veículos, designadamente através de leilões efetuados física ou eletronicamente, sendo que nesse âmbito procede à venda de veículos salvados.
32º
Para salvaguarda de todos os intervenientes nos leilões, a Ré exige aos seus clientes como condição para admissão de veículos a transacionar, seja em leilão seja como in casu em bolsa de salvados, a aceitação dos seus “Termos e Condições” e o preenchimento de uma ficha de admissão, informação essa que é preenchida pelo proponente e depois anunciada aos interessados antes da licitação (cfr. .../ ).
33º e 34º
Do teor desses “Termos e Condições”, designadamente da cláusula 1ª consta o seguinte: “- Definições - a Ré é uma sociedade comercial por quotas EMP01..., Lda., de direito português, que se dedica à atividade de realização e organização de leilões de veículos automóveis, “Vendedor” é o legítimo proprietário do veículo, ou seu mandatário que inscreva o mesmo para o leilão.
Da cláusula 2ª – “Partes no Contrato de Compra e Venda” - as partes no contrato de compra e venda de um veículo leiloado são o comprador e o vendedor.
35º
O veículo ..-JQ-.. entrou em “bolsa de salvados” proposto pela companhia de seguros “EMP02... Companhia de Seguros, S.A.”, titular do NIF ...80, sendo que as informações transmitidas aos licitantes eram as constantes de um relatório de peritagem efetuado pela Companhia de Seguros, enquanto “vendedor”.
36º
Conforme Certidão do IMT, IP, a alteração da quilometragem foi efetuada entre ../../2016 – nessa data o veículo apresentava 575.215 Km de rodagem - e 27 de Junho de 2017 – nessa data o veículo apresentava 158.143 Km de rodagem.
37º
A Ré não foi parte do contrato de compra e venda, pois apenas atuou enquanto mandatária do vendedor.
38º
O veículo em causa nunca esteve nas instalações da Ré; no próprio anúncio é referido que o veículo se encontra localizado em ....
*
44º
O Autor, enquanto licitador do veículo salvado de matrícula ..-JQ-.., declarou aceitar as “Condições Gerais dos Leilões On-Line da EMP01... Lda.” e “Condições Específicas dos Leilões EMP01... Salvados”.
*
54º
Em 26 de Agosto de 2019, o Autor comprou o veículo automóvel de matrícula ..-JQ-...
55º
A Ré é uma empresa que que se dedica ao leilão de veículos por mandato e conta de cliente.
56º
Foi, assim, nesse âmbito que o veículo supra-identificado foi colocado na “Bolsa de Salvados” da Ré.
57º e 58º
Essa “Bolsa de Salvados” funciona com veículos propostos pelas diversas Companhias Seguradoras com as quais a Ré estabelece parcerias, sendo que a companhia de seguros envia as fotografias e os relatórios de peritagem, preenche as informações e depois é disponibilizado o anúncio na plataforma online da Ré.
59º
O processo é tratado diretamente com o proprietário e/ou responsável pelo salvado, o qual, por sua vez, recebe uma comunicação por parte da Companhia de Seguros a informar que o veículo esteve em bolsa e que obteve propostas de determinado valor.
60º
Na presente situação concreta, foi a companhia de seguros “EMP02...”, enquanto responsável pelo veículo Salvado após acidente, que forneceu as informações anunciadas aos pretendentes, nas quais se inseria a informação quanto à quilometragem constante do quadrante do veículo.
62º
À Ré estava reservada apenas uma atuação enquanto mera prestadora de serviços, fazendo a conexão entre Vendedor e Comprador.
63º
Para afastar qualquer dúvida quanto à qualidade da sua intervenção, a Ré fez questão de esclarecer nos seus “Termos e Condições” de que não era parte do contrato de compra e venda, nem se responsabilizava pelo seu incumprimento temporário ou definitivo, ou cumprimento defeituoso, atuando, enquanto mandatária do Vendedor, sujeita aos termos e condições do mandato que lhe era conferido por este na ficha de inscrição do veículo ou em qualquer outro documento válido para o mesmo efeito.
64º
Na adjudicação de veículos salvados, é recorrente os veículos (ou o que resta deles) ficarem em oficinas, pelo que jamais os veículos salvados são conduzidos às instalações da Ré.
65º
No caso em apreço, o veículo encontrava-se no distrito ..., tal como publicado no anúncio de leilão, e foi aí que o veículo ficou até ser levantado pelo Autor, limitando-se a Ré a autorizar o levantamento após ter sido pago o preço.
70º
A Ré não sabia nem podia suspeitar que o veículo em causa tinha mais de 185.855 km, uma vez que (i) a informação constante do quadrante foi preenchida pelo vendedor aquando da submissão da ficha de admissão, (ii) o veículo foi exaustivamente peritado pela seguradora antes de ser anunciado a leilão, (iii) e jamais o veículo esteve nas instalações da Ré ou foi inspecionado por qualquer funcionário desta.
71º
A Ré é uma empresa que tem por base, na sua relação com os seus parceiros, valores de confiança, rigor e transparência, pelo que não arriscou, nesta situação concreta, que a sua “goodwill” ou reputação fosse afetada por uma adulteração de quilometragem.
72º
O Autor já adjudicou outros veículos através da Ré e bem sabe os padrões pelos quais esta se pauta.
73º
O valor/preço pelo qual o veículo salvado foi vendido não foi sequer estipulado pela Ré, mas sim pela Companhia de Seguros “EMP02...”, pelo que a Ré não tinha qualquer interesse na adulteração da quilometragem do veículo.
74º
A Ré não iria ter um incremento patrimonial por via disso, porquanto a Taxa de Aquisição de Salvados está tabelada: Valor Licitação Salvados – Online: Viaturas de 0€ a 499€ - 75,00 €; Viaturas de 500€ a 999€ - 130,00 €; Viaturas de 1.000€ a 1.999€ - 180,00 €; Viaturas de 2.000 € a 4.999 € - 280,00 €; Viaturas Superiores a 5.000€ - 380,00 € .
75º
Tendo por ponto de partida as taxas de aquisição de salvados, a Ré pouco ou nada teria a ganhar com a adulteração da quilometragem, mas teria muito a perder pois tal constituía (e constitui) conduta criminalmente punível.
76º
Não sendo a Ré a estipular o preço de adjudicação e face a uma redução do mesmo em função da real maior quilometragem do veículo, a margem poderia continuar balizada dentro da taxa paga pelo Autor ou quanto muito reduzir-se em € 100,00.
80º
A Ré limitou-se a intermediar um leilão de um veículo salvado, por mandato e conta de cliente.
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Da CONTESTAÇÃO da Interveniente Principal “EMP02... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”
1.º
O veículo ..-JQ-.. ... esteve seguro na Chamada desde ../../2017 até ../../2019, através do contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice n.º ...37.
2.º
Nos termos de tal contrato de seguro de responsabilidade civil, a Chamada assumiu indemnizar terceiros pelos danos causados com a circulação do veículo ..-JQ-.. ....
3.º
Além da cobertura obrigatória de responsabilidade civil, o contrato ainda incluía coberturas facultativas, nomeadamente assistência em viagem, ocupantes de viatura, proteção ao condutor, proteção jurídica e quebra isolada de vidros.
8.º
A Chamada celebrou o contrato de seguro do veículo ..-JQ-.. ... em ../../2017.
9.º
Em 19-06-2019, o veículo ..-JQ-.. ... foi interveniente num acidente com o veículo ..-..-KC ..., seguro na “EMP05...”.
10.º
O sinistro atrás referido foi participado à Chamada, conforme Declaração Amigável de Acidente de Automóvel, doc.º 2, de 2 págs, junto com a contestação da Interveniente.
11.º
Face às circunstâncias do acidente, ou seja, visto que o condutor do veículo ... (seguro na “EMP05...”) não respeitou o sinal de cedência de passagem B2, vulgo STOP, o mesmo foi o responsável pelo dito sinistro.
12.º
Tendo enquadramento na IDS (Indemnização Direta ao Segurado), após autorização da “EMP05...” (seguradora responsável pelo acidente), a Chamada mandou a EMP03... (Gestão de Peritagens) proceder à peritagem do veículo ..-JQ-.. ....
13.º
Conforme relatório de peritagem (doc.º3 junto com a contestação da Interveniente), o perito avaliador da EMP03... entendeu que, face ao valor estimado do orçamento e aos danos no veículo, este deveria ser considerado “perda total”.
14.º
Consequentemente, em 16-07-2019, a Chamada informou o então proprietário (ora Interveniente Principal) do veículo ..-JQ-.. ... de que na sequência da peritagem feita pelos serviços técnicos da empresa EMP03... fora apurado o valor dos danos da viatura (13.903,87 €), o que resultava numa “perda total”.
15.º
O então proprietário (ora Interveniente Principal) do veículo foi informado de que a melhor proposta para compra do seu salvado, apresentada pelo Autor na plataforma eletrónica da Ré “EMP01..., Lda.”, com morada em Estrada ..., 115-5º-Edf. ... ... ..., tinha o valor de 3.730,00 € e era válida até 31-08-2019.
16.º
Dado que o salvado ficou na sua posse, o então proprietário (ora Interveniente Principal BB) poderia negociar diretamente com o proponente.
17.º
O então proprietário (ora Interveniente Principal BB) teria direito, de acordo com a posição da Chamada, a uma indemnização de 6.270,00 €, valor correspondente à diferença entre o valor venal do veículo (10.000,00 €) e o valor do salvado (3.730,00 €).
18.º
Na carta de 16-07-2019 enviada pela Chamada ao então proprietário (ora Interveniente Principal BB), a Chamada ainda informou do que precisava para pagar a indemnização, avisou de que estava legalmente obrigada a comunicar a perda total do veículo, salientando que era importante que aquele decidisse rapidamente que destino pretendia dar ao veículo, abordou a aplicação do Código do IVA, notou que o então proprietário do veículo era responsável pelo pagamento do imposto único de circulação (IUC) e informou do momento em que deixaria de ter de pagar esse imposto.
19.º
Em 16/07/2019, a Chamada enviou uma carta à oficina cujo assunto era o “desinteresse no salvado”, conforme teor do doc.º 5 junto com a contestação da Interveniente Principal.
20.º
Na carta aludida em 19º, a Chamada agradeceu a colaboração e a disponibilidade para a realização da peritagem à viatura ..-JQ-.. ..., informou de que não tinha interesse no salvado e que qualquer assunto relacionado com a viatura deveria ser tratado com o respetivo e então proprietário, o Interveniente Principal BB.
23.º
O valor pago pela Chamada ao seu segurado e ora também Chamado ou Interveniente Principal BB, no montante de 6.270,00€ (seis mil e duzentos e setenta euros), conforme consta no relatório de “perda total”, foi estipulado tendo em consideração a procura da viatura no mercado, o valor venal atribuído pela EMP03..., o mercado em função da quilometragem e o estado de conservação da viatura.
24.º
Sem a adulteração da quilometragem de 575.215 Km para 185.855 Km, o valor venal do veículo, antes do sinistro, não seria de 10.000,00 € mas sim de 7.000,00 ou 8.000,00 €, pelo que a Chamada teria pago menos 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros) ao seu segurado e ora também Chamado ou Interveniente Principal.
25.º
O Autor AA requereu a intervenção da “EMP02... – Companhia de Seguros, S.A.” depois de ter sido notificado do Relatório de peritagem – Perda Total Principal.
26.º
O Relatório de Perda Total Principal foi elaborado pela Empresa “EMP03... – Gestão de Peritagens”, nomeadamente pelo perito avaliador CC, na oficina “EMP06... Lda.”.
27.º
A EMP03... avaliou o veículo em 10.000,00 € tendo por base 185.855 Km de rodagem, mas se a base fosse 575.215 Km o valor venal daquele encontrar-se-ia entre os 7.000,00 e os 8.000,00 €, pelo que a avaliação do veículo em 10.000,00 € originou um prejuízo de 2.500,00 € à Chamada relativamente ao seu então segurado, o ora também Chamado ou Interveniente Principal BB.
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Da RESPOSTA do Autor AA

16.º
Para completar o processo de compra e venda online, a Ré apenas exige aos seus clientes, como condição para admissão de veículos a transacionar, a aceitação dos seus “Termos e Condições” e o preenchimento de uma ficha de admissão.
17.º
O Autor consultou a plataforma informática da Ré, o que lhe permitiu tomar conhecimento de que o salvado do veículo (e respetivas características) se encontrava para venda.
18.º
O respetivo preço, e as demais despesas, foi pago à Ré, a qual o aceitou.
19.º
Todo o procedimento de compra e venda foi realizado online, sem a presença de qualquer responsável da Ré.
20.º
O Autor não se dirigiu às instalações da Ré (ou a outras), sendo que nenhum representante desta o contactou para o efeito em apreço.
21.º
O Autor não assinou qualquer documento.
22.º
Ao Autor não foi dado conhecimento algum, de fundo ou de forma, acerca do conteúdo e do alcance de tais “Termos e Condições”.
23.º
O Autor “aceitou” os ditos “Termos e Condições” através de um click num botão virtual de aceitação.
24.º
Os “Termos e Condições” foram aceites e o contrato foi celebrado nas condições propostas pela Ré, não podendo sofrer alterações por sugestão do Autor.
25.º
Os “Termos e Condições” foram subscritos imediatamente antes da conclusão do contrato de compra e venda em causa nestes autos.
26.º
Os “Termos e Condições” não eram passíveis de impressão.
27.º
O Autor, ao ler e verificar os ditos “Termos e Condições”, não foi capaz de, com clareza e eficácia, apreender as informações prestadas.
28.º
O descrito em 27º aconteceu porque o enunciado contratual é muito extenso e de difícil leitura, as cláusulas são redigidas em carateres minúsculos, a linguagem utilizada é complexa, tem 9 páginas, e ainda porque o Autor sentiu que não tinha capacidade para discutir o conteúdo das cláusulas.
29.º
A subscrição dos ditos “Termos e Condições” não se mostrava coadjuvada com qualquer chat ou contacto telefónico que se destinasse a esclarecer o respetivo conteúdo.
30.º
A “aceitação” pelo Autor não evidenciou a presença de cláusulas que lhe pudessem ser desfavoráveis – como a cláusula a que a Ré alude no artigo 45º da sua contestação.
31.º
Não foi destacada qualquer informação.
32.º
O Autor aceitou formar o contrato e os respetivos “Termos e Condições” perfeitamente convencido de que tal “aceitação” era condição essencial para a celebração do negócio com a Ré.
33.º
O contrato a que alude o documento n.º 2 junto à contestação da Ré é um contrato de adesão, uma vez que foi pré-determinado por uma das partes, in casu a Ré, sem prévia negociação, através da inclusão de cláusulas prévia e unilateralmente redigidas, de forma abstrata e generalizada, destinadas a um número indeterminado de contratos a celebrar no futuro.
56.º
O veículo em causa foi adjudicado ao Autor em 26 de Agosto de 2019, em 30 de Janeiro de 2020 o Autor tomou conhecimento dos defeitos do dito veículo, e em 6 de Fevereiro de 2020 o Autor procedeu à denúncia, à Ré, dos defeitos do mesmo veículo, por ser a Ré quem o Autor configurou, por erro que não tinha obrigação de conhecer, como vendedora do veículo.
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B) Factos NÃO provados

Da PETIÇÃO INICIAL do Autor AA
30. A Ré (sempre na pessoa dos seus responsáveis, trabalhadores e vendedores) bem sabia da quilometragem real do veículo.
31. A Ré (sempre na pessoa dos seus responsáveis, trabalhadores e vendedores) bem sabia que o mesmo veículo tinha na verdade 592.786 Km e não os anunciados ao Autor.
32. A Ré quis e conseguiu induzir e manter o Autor em erro.
33. A Ré sabia que se o Autor soubesse que se tratava de um veículo com a quilometragem adulterada (com mais do triplo dos quilómetros do que aqueles que constavam do conta-quilómetros), este não teria realizado o negócio.
35. A Ré sabia que, não fosse a quilometragem de cerca de 185.000 km, não seria expectável ao Autor que o veículo, depois de reparado, permitisse ser (re)vendido com margem de lucro.
36. Porque tal lhe fora ocultado pela Ré, o Autor desconhecia que a quilometragem real do veículo era de 592.786 Km e não de 185.855 km.
37. O veículo automóvel comprado pelo Autor à Ré não estava conforme a descrição que dele foi feita pela vendedora, pois não possuía as qualidades que a Ré apresentou ao Autor.
43. A Ré procedeu à venda de um veículo indicando intencionalmente que o mesmo tinha 185.855 km, ao invés de proceder à indicação dos quilómetros que o veículo efetivamente tinha.
44. A Ré alterou intencionalmente a quilometragem da viatura, por forma a que o Autor aceitasse celebrar o contrato de compra e venda.
45. O Autor foi induzido e mantido em erro pela Ré.
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Da CONTESTAÇÃO da Ré “EMP01..., LDA” e Da CONTESTAÇÃO do Interveniente Principal BB
45º
O Autor deveria, até 24 horas após o levantamento do Salvado, ter contactado a Ré e informado a mesma de quaisquer falhas, delapidações, falta de peças, imprecisões de informação ou erros, preenchendo para o efeito a folha de Reclamação onde deveria indicar as falhas e o valor das falhas.
66º
O registo do veículo em causa foi efetuado pelos serviços da Ré, a qual, nas notas públicas do anúncio do veículo, já publicitava que o averbamento seria obrigatoriamente feito pela Ré de modo a salvaguardar a necessária segurança jurídica, uma vez que não poderia ficar pendente da eventualidade de terceiros efetuarem ou não efetuarem a apresentação do registo automóvel.
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- Com interesse para a decisão da causa, não foram dados como provados quaisquer outros factos que estejam em oposição com os que que foram supradados como provados, nem quaisquer outros factos que não tenham ficado, desde logo, prejudicados pelos que foram acima dados como provados.”
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IV. Do objeto do recurso.

Do recurso do interveniente seguradora “EMP02..., SA” quanto à impugnação da matéria de facto

1. Da impugnação da matéria de facto ( a seguradora “ EMP02..., SA” apenas impugnou os factos nº 60,70 e 73º da contestação da Ré “EMP01...” e dados como provados e que pretende que sejam dados como não provados).
Tem vindo a ser entendido de forma maioritária pelos Tribunais Superiores[1] que, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal da Relação não deve reapreciar a matéria de facto quando os factos objeto da impugnação não forem suscetíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, terem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (arts. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).
Nessa medida, e seguindo esse entendimento, temos que, no caso em concreto, entendemos que não se mostra necessária a reapreciação da matéria de facto impugnada, pois que, o presente recurso, ainda que não apreciada tal questão, será sempre de proceder no que respeita à seguradora/recorrente.
De facto, e quanto à matéria que a interveniente/recorrente pretende que seja alterada, a mesma não relevará para a decisão a proferir, como a seguir veremos, porquanto em face da restante matéria de facto dada como provada a respeito e não posta em causa por qualquer das partes, o enquadramento jurídico da atuação da seguradora jamais se poderá fazer conforme consta da sentença e que, no rigor, não se alcança como se chegou a tal raciocínio.
Desde logo, o fundamento invocado na sentença para condenar a seguradora reconduz-se apenas a uma frase: “ teve intervenção direta no contrato de compra e venda”.
Mas, que intervenção é esta?
A sentença não qualifica a intervenção em causa, quiçá porque nem sequer foi alegado o fundamento para a intervenção de terceiros requerida, diga-se de forma intempestiva- na audiência de julgamento (!), mas admitida por despacho transitado em julgado. Repare-se no requerimento efetuado pelo autor, em ata da audiência de julgamento, e os seus termos lacónicos: “ dada a notificação do relatório de peritagem junto aos autos, requereu-se a intervenção da seguradora e de BB (…) passando os chamados a fazer parte da relação material controvertida”.
Ora, a relação material controvertida e respeitante à causa de pedir invocada na petição inicial respeita a um contrato de compra e venda de veículo, cujo reconhecimento da resolução é peticionado, bem como a restituição do que foi prestado ( preço pago) e indemnização respetiva pelos prejuízos que teve, porquanto foi vendido ao autor um veículo com quilometragem adulterada.
E foi vendido por quem? Pelo proprietário registado e respetivo, ou seja, BB, como veremos.
A sentença fala na intermediação da ré “ EMP01..., Lda” no âmbito do contrato de compra e venda em causa para concluir pela sua absolvição dos pedidos e, nesta parte já transitou em julgado, uma vez que não se discute a responsabilidade da Ré.
E qual a intervenção da interveniente seguradora?
A intervenção da seguradora é alegada no articulado da ré ( contestação), como ocorrendo no âmbito da relação que decorre do contrato de seguro ( celebrado entre a EMP02... e BB) e legislação aplicável, a qual obriga a seguradora a proceder e diligenciar no âmbito do processo de regularização do sinistro em causa.
Diga-se ainda que não foi alegado sequer que a seguradora “EMP02..., SA” tivesse assumido a obrigação de praticar atos jurídicos por conta do BB, tendo resultado tão-só provado o que a lei dos seguros prevê em termos de atuação da seguradora com autorização do proprietário e assim atribuiu poderes representativos para realizar atos jurídicos, recolher propostas e informar o mesmo de tais propostas, aliás como consta da carta enviada em 16-07-2019 para o segurado ( cfr. O Capítulo III do SORCA (DL 291/2007, de 21/08, incluindo o seu art. 41º, é relativo à fase do procedimento pré judicial de regularização do sinistro automóvel, que se consubstancia na apresentação, ao lesado, de Proposta Razoável de indemnização pela empresa de seguros, proposta essa que pode ser rejeitada pelo lesado e, por conseguinte, no caso de litígio, referente a perda total do veículo, e que, no caso vertente, teve a anuência do lesado, porquanto este transferiu a propriedade para o ora autor).
Veja-se o que consta dos termos e condições dos leilões on line da ré a respeito dos leilões de salvados ( cfr. fls. 48 e ssgs) “ 3. Partes no Contrato de Compra e Venda
As partes no contrato de compra e venda de um Lote de Salvados cuja venda seja adjudicada num Leilão EMP01... Salvados são o Comprador e o Segurado. A EMP01... atua na qualidade de mandatária, sem representação, do Segurado nos termos e condições do mandato que lhe é conferido pela Seguradora, por conta do Segurado, e confirmado pelo Segurado, mediante subscrição da Declaração de Venda.”
Em suma, ainda que a seguradora pudesse ter tido intervenção na mediação do contrato de compra e venda, nomeadamente para apresentação da proposta razoável ao vendedor/proprietário, nada mais foi alegado e provado ( se se tratou de mandato com ou sem representação).
Assim sendo, a alegação da má informação no anúncio de venda e prestada por parte da seguradora à leiloeira repercutir-se-ia sempre na base da responsabilidade contratual e quanto ao proprietário/vendedor e nas relações deste com o comprador ( e/ou nas relações do segurado com a seguradora), mas jamais nas relações entre autor/comprador e a seguradora, tal como configurada a presente ação, na base da responsabilidade contratual entre comprador/vendedor, a qual não se verifica de todo em todo entre autor e seguradora, pelo simples facto desta ter diligenciado, tal como a lei lhe exige, pela recolha de propostas de venda dos salvados do veículo do autor na fase do procedimento pré judicial de regularização do sinistro automóvel, e que se consubstancia na apresentação, ao lesado, de Proposta Razoável de indemnização pela empresa de seguros.
Esta sua intervenção não se traduz em qualquer responsabilidade contratual para com o autor comprador.
Por outro lado, eventual responsabilidade de adulteração da quilometragem por parte da seguradora seria sempre na base da responsabilidade extracontratual, mas que não foi sequer alegada.
Reafirma-se que os pedidos do autor, tal como assinalado na sentença recorrida, movem-se no domínio da responsabilidade contratual e emergem do contrato de compra e venda do veículo em causa e vendido com quilometragem adulterada, factos que não se discutem e têm-se por assentes por não terem sido impugnados.
Por tudo o exposto, por se tratar de ato inútil, não se reapreciaria a matéria de facto impugnada no âmbito do recurso da seguradora EMP02..., SA.
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Do recurso do interveniente BB quanto à impugnação da matéria de facto:

O apelante impugnou os seguintes factos provados: nos artigos 6.º a 9.º, 12.º a 15.º, 27.º, 30.ºa 33.º, 35.º a 37.º, 42.º a 45.º, 50.º, 58.º, 72.º e 85.º e pretende que sejam dados como não provados.
Desde já se dirá o seguinte: a ré “ EMP01..., Lda” foi absolvida dos pedidos e tal decisão já transitou em julgado porquanto não foi alvo de recurso, pelo que todos os factos impugnados e que respeitem à atuação da mesma, seja por referência ao BB, seja por referência à seguradora EMP02..., SA, tornam-se inúteis de ser apreciados por não terem relevância jurídica para o desfecho da ação a respeito dos intervenientes, o que ocorre com os seguintes factos impugnados: 6º a 9º, 12 a 15º e 27º e 58º da petição inicial ( na sentença optou-se pela enumeração dos factos provados e não provados com referência aos artigos dos articulados respetivos).
É bem certo que nesses mesmos factos é mencionada a “ compra”, “ adjudicação” e “venda” feitas por parte do interveniente BB, proprietário registado do veículo em causa, e nessa medida, já a impugnação de facto poderia ter interesse.
Sem embargo, a respeito, e no que toca ao que o apelante designa de “ 1ª razão” ( de discórdia da sentença)- e para concluir que nunca foi celebrado qualquer contrato de compra e venda entre o autor e BB apenas invoca que o apelante nunca contactou o autor. Ora, como é consabido não se torna necessário haver contactos físicos para que se realize um contrato de compra e venda. Mais a mais, no caso sub judicio, estamos perante uma venda através de leilão eletrónico e on line e, para que o autor se tornasse proprietário registado, sempre teria de o anterior proprietário registado- interveniente BB- transferir a propriedade e tal apenas é possível mediante subscrição de declaração da venda, não sendo necessário haver qualquer contacto físico entre as partes, nomeadamente quando há intermediários a tratar dos trâmites.
Por tudo o exposto, o Impugnante não aduz nenhum elemento válido que possa colocar em crise a convicção do tribunal recorrido a respeito, pelo que vai desatendida a pretendida impugnação.
Acresce dizer que assente ter sido realizado um contrato de compra e venda entre autor e interveniente BB, a averiguação do alegado mandato da ré pelo BB para vender o seu veículo, igualmente torna-se inútil, nomeadamente quando nem sequer é alegado se se tratou de mandato com ou sem representação, tudo para além da ré ter sido absolvida do pedido e, nesta parte, a sentença já transitou.
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O apelante designa de “ 3ª razão” ( de discórdia da sentença)- e para concluir que não sabia da adulteração dos quilómetros na viatura vendida e não foi o autor de tal adulteração e que contende com a impugnação dos factos provados nº 30º a 33º, 35, 36º, 43º a 45º.
Para o efeito, convoca as datas em que adquiriu a propriedade do veículo- em 15/12-2016 e os registos das quilometragens nas últimas inspeções: Conforme Certidão do IMT, IP, a alteração da quilometragem foi efetuada entre ../../2016 – nessa data o veículo apresentava 575.215 Km de rodagem - e 27 de Junho de 2017 – nessa data o veículo apresentava 158.143 Km de rodagem.
Ainda invoca as declarações do interveniente BB e corroboradas pelo seu filho DD, quando afirmam que comprou o veículo também como salvado e acidentado e não circulava; tinha nessa data 158.143Km; que o anterior proprietário não lhe deu o comprovativo da inspeção e esteve parado até ser reparado e após foi fazer a inspeção: em 27-06-2017.
Daqui conclui que nada mais tendo sido provado e podendo ter ocorrido a hipótese de a adulteração ter sucedido entre ../../2016 e a data da aquisição pelo interveniente BB da propriedade do veículo- em ../../2016, não se poderão retirar, sem mais e tal como fez a sentença, aquelas conclusões da autoria da adulteração ter sido feita pelo BB pelo simples facto de ter estado na posse do veículo num período em que a adulteração poderia ocorrer.
Com efeito, resta sempre uma outra hipótese: de a adulteração ter ocorrido anteriormente ( entre ../../2016 e ../../2016), pelo que e sem mais qualquer prova, na dúvida, o non liquet sobre a atuação dolosa do interveniente BB reverte contra quem teria o ónus de provar: o autor.
Assim sendo, aquela matéria de facto terá de ter resposta negativa e transitar para os factos não provados: factos nº 30º a 33º, 35, 36º, 43º a 45º da petição inicial
Coisa diferente e como veremos mais à frente é a presunção de culpa pelo incumprimento e decorrente do art. 799º do CC, e que ocorre no caso em virtude da simples prova da venda da viatura com a quilometragem alterada e desconforme quer ao anúncio quer ao que constava no painel da viatura e documentos respetivos.
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Quanto aos factos provados em 37º e 42º da p.i. e apesar de conterem juízos conclusivos, ainda assim, e uma vez que não se discute que a quilometragem do veículo comprado não correspondia ao anunciado e aos quilómetros do painel, mantém-se a sua redação, sendo certo que ditam as regras da experiência comum o que consta do ponto 42º.
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O facto 50º e o facto 72º, ambos da p.i., foram impugnados sem qualquer invocação de fundamentos concretos, ou seja, o Impugnante não aduz nenhum elemento válido que possa colocar em crise esta convicção do tribunal recorrido, pelo que vai desatendida esta pretensão, sendo certo que os factos se baseiam em prova documental e que foi ponderada na sentença.
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O facto 85ºda p.i., foi impugnado sem qualquer invocação de fundamentos concretos, ou seja, o Impugnante não aduz nenhum elemento válido que possa colocar em crise esta convicção do tribunal recorrido, pelo que vai desatendida esta pretensão, sendo certo que a sentença a respeito fundou-se na conjugação da prova documental e testemunhal descrita na fundamentação e, por outro lado, acresce ser conclusão que se retira dos factos provados e não impugnados nº 83º e 84º.
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IV
 Considera-se a alteração introduzida na decisão relativa à matéria de facto, pelo que a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III, com exceção dos pontos nº 30º a 33º, 35, 36º, 43º a 45º da petição inicial, considerados não provados.
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V. Reapreciação de direito.

Perante a alteração dos factos dados como provados e não provados, cumpre apreciar e decidir se deve ser revogada a sentença proferida em 1.ª Instância, em conformidade com o defendido pelos recorrentes.
No que respeita à interveniente seguradora “ EMP02... SA” , como já referimos, a recorrente entende que, no caso vertente, estando em causa a responsabilidade contratual pelo incumprimento ocorrido no âmbito de uma venda de coisas defeituosas celebrada entre comprador e vendedor respetivos, atenta a matéria de facto dada como provada, nunca teve a interveniente qualquer intervenção nesse contrato de compra e venda, nunca esteve na posse ou propriedade do veículo, nem nunca foi responsável pelos salvados, sendo certo que quando fez o contrato de seguro já os quilómetros poderiam estar alterados.
A sentença entendeu, sem mais, que a seguradora teve “ intervenção direta” no contrato de compra e venda de veículo cuja quilometragem foi alterada e declarando a resolução do contrato de compra e venda do veículo, condenou a seguradora, solidariamente com o anterior proprietário, nas consequências da resolução do contrato, como seja, a restituição do preço e nos prejuízos provados.
Em relação ao interveniente BB, a sentença condenou-o nos pedidos formulados e com base no incumprimento contratual do contrato de compra e venda do veículo, e ainda deu como provado a sua atuação com dolo, o que, conforme procedência da impugnação ora analisada por este Tribunal ad quem, não se provou.
Vejamos.
É pacífico que no caso sub judicio estamos perante um contrato de compra e venda, que a lei qualifica como sendo aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, nos termos do estipulado pelo artigo 874º, do Código Civil (CC).
A questão fundamental em discussão, no presente recurso, traduz-se em saber se existe responsabilidade contratual e quem são os responsáveis no âmbito dessa responsabilidade contratual.
Desde já, diremos ser inequívoco estarmos perante um contrato de compra e venda de coisa móvel que, conforme os factos provados, padece de defeito.
O A. pese embora tenha formulado o pedido na base do incumprimento do contrato, na verdade nas contra-alegações juntas em recurso, já faz apelo ao erro-vício quando menciona “ erro sobre o objeto do negócio”.
Porém, e não olvidando o debate aceso na doutrina sobre a distinção da problemática do erro e incumprimento do contrato, sempre diremos, em jeito de súmula, que entendemos que “o erro sobre o objeto não se confunde com os vícios que afetem uma determinada coisa, atenta a existência de ónus, limitações ou defeitos, inviabilizando ou frustrando a utilização a que se destinaria o objeto: o regime mais adequado é, respetivamente, o da venda de bens onerados ( art. 905º-912ºcc) e o do cumprimento defeituoso da prestação ( cfr. Arts. 913- 922º do CC e Dl 67/2003, de 08.04 ( quando estamos prante um consumidor)…o que vem dito não exclui a hipótese de cumulação de vários regimes jurídicos, verificados os pressupostos de cada uma das figuras…deve entender-se que o regime do incumprimento tem aplicação, prejudicando o do erro-vício sempre que as características ou qualidades do objeto do negócio sejam assumidas no próprio negócio, assumindo uma das partes a responsabilidade pela respetiva verificação”.[2]
Como refere Joana Campos de Carvalho “ quando as características pretendidas integram o contrato, quer expressamente, quer atendendo à função habitual de determinado contrato, e o devedor entrega um bem que não corresponde a essas características, não há qualquer desvio ente a vontade declarada do comprador e a sua vontade real, ou seja, não há erro, mas sim um problema de incumprimento, uma vez que o devedor não entregou o que estava obrigado a entregar…”[3]
Na jurisprudência a questão da viciação dos quilómetros nos veículos vendidos não é nova e são vários os arestos em que em situações similares à dos presentes autos subsumem o seu enquadramento no regime da venda de coisas defeituosas: por ex: Ac da RP de 14.02.2005, 29.09.2015, 10.02.2016; Ac RL de 17.03.2012; AC RG de 23-02-2017;Ac. STJ de 24.03.2011 e AC. RC de 17.1.2009.

No caso sub judicio:
Não oferece dúvidas de que a diferença de quilómetros, seguramente para mais do dobro, no veículo, tratando-se de carro usado, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi publicitado no leilão on line e com base na informação constante dos documentos fornecidos pelo vendedor, proprietário registado, ainda que constassem também do relatório de peritagem feito a pedido da seguradora e enviado para a leiloeira a afim de se apurar a melhor oferta para que o proprietário estivesse informado da mesma e a aceitasse ou não, tudo no âmbito do processo de regularização do sinistro e previsto na lei.
Está, assim, afetado de defeito, para efeitos do disposto no artigo 913.º do Código Civil, o veículo automóvel que, ao invés do que dele consta visualmente ( no painel e nos documentos respetivos e fornecidos pelo proprietário registado), tinha mais do dobro da quilometragem.
Um dos meios de tutela do comprador é o direito de resolver o contrato ( cfr. 798º, 799º, 874º e art. 913º do CC): consegue reaver o preço que pagou pela coisa e, ao mesmo tempo, fica libertado de ter de suportar a não conformidade daquela com o seu interesse.
No caso vertente, não foi provado qualquer conduta consubstanciadora de dolo.
Acresce que ainda que se entenda que atenta a factualidade dada como provada se trata de um caso em que cumulativamente estaríamos perante vários regimes, a verdade é que enquadrado no art. 913º do CC, em que o regime de incumprimento tem aplicação, então ficaria sempre prejudicado o erro-vício, tudo porque as características ou qualidades do objeto do negócio foram assumidas no próprio negócio, quando os quilómetros foram anunciados e com base no que constava no painel do veículo e que se fez constar nos documento fornecidos pelo designado “vendedor” ( e que, em última análise, é o proprietário registado e que assinou a declaração de venda, o que implicou a assunção da sua parte da responsabilidade pela sua verificação) e pesaram na decisão de contratar pelo comprador.
Por conseguinte, enquadrado o caso no art. 913º do CC e não havendo dolo, o comprador tem várias hipóteses ao seu alcance: tem o direito de anular o contrato, no caso de erro ou dolo; tem o direito de pedir a reparação ou substituição da coisa; a redução do preço, resolução do contrato e até indemnização pelos prejuízos que lhe foram causados, nos termos gerais da responsabilidade civil( no caso de o contrato não ter sido anulado).
Diz a lei ainda que o vendedor não tem, contudo, o dever de indemnizar, nos termos do art. 915º CC ( ou de reparar) se desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que ela padecia, sendo certo que incumbe ao mesmo alegar e provar o desconhecimento do vício ou defeito da coisa.
“Á primeira vista, por força do art. 915º do CC, afastava-se a hipótese de responsabilidade objectiva do art. 909º. Porém, este “ desconhecimento sem culpa” por parte do vendedor, deverá ser interpretado de forma restritiva. O vendedor profissional deve considerar-se sempre onerado com o dever de conhecer os vícios da coisa vendida. Por duas razões: primeiro, porque sendo um profissional na venda daquele outro produto, tem a obrigação de se aperceber dos vícios de que a coisa padece; segundo, porque só assim se protegem cabalmente os interesses do consumidor”( in “ A garantia contra os vícios da coisa na compra e venda e empreitada”, Comentário de Menezes Cordeiro ao Ac. Do STJ de 23.02.88, in Tribuna da Justiça, nº4 e 5 ( Junho/Set. De 1993, p. 187).
Tudo isto, pese embora, não se olvidar que o vendedor por vezes é um mero intermediário na circulação dos bens, um simples elo da cadeia de distribuição, pelo que os defeitos materiais do bem lhe podem passar despercebidos.
Contudo, no caso sub judicio, não foi alegado sequer tal factualidade e a mesma não se verifica, ainda que não se tenha provado o dolo, na verdade, subsistiu a presunção da culpa do mesmo nos termos do art. 799º do CC, a qual não foi ilidida pelo simples facto de não se ter provado o dolo.
Mais a mais, conforme referido pelo próprio e filho DD, o interveniente BB comprou o veículo em causa também e já em situação de sinistrado e mandou reparar para revender, ou seja, tal e qual verdadeiro vendedor profissional ( tal como o autor), pelo que devendo considerar-se sempre onerado com o dever de conhecer os vícios da coisa vendida, na verdade, não resultaram alegados nem provados factos que pudessem ilidir a presunção de culpa do art. 799º do CC.
Assim sendo, atenta a matéria dada como provada apenas poderá ser assacada a responsabilidade contratual do interveniente BB, anterior proprietário registado e que transferiu a propriedade do veículo para o autor, pelo que verificando-se o incumprimento ( definitivo) do contrato de compra e venda do veículo e celebrado entre autor e BB, por virtude da adulteração da quilometragem do veículo, tem direito o autor à resolução do contrato, o que foi declarado e consequentes indemnizações respetivas que foram pedidas e em que foi condenado, por provadas ( cfr. arts. 874º, 879º, 798 e 799º, 913º e 915º todos do CC).
Já o mesmo não se poderá dizer da interveniente Seguradora EMP02... SA porquanto, atenta a matéria de facto dada como provada, nenhuma responsabilidade contratual pode lhe ser assacada, primeiro por não ter sido parte no contrato em causa, e em segundo lugar, e ainda que tivesse atuado ( enquanto seguradora em virtude do contrato de seguro celebrado com BB) no âmbito do processo de regularização do sinistro para obtenção de propostas de venda e tivesse fornecido à leiloeira ( Ré “ EMP01..., Lda”) as informações constantes do relatório de peritagem, o qual reflete o que ressumava quer dos documentos, quer visivelmente do painel do veículo, na verdade nada mais sendo alegado e provado a respeito da atuação da mesma, nem sequer se atuou no âmbito de um mandato com ou sem representação, nunca poderia ser responsabilizada civilmente, pelo que apenas restaria absolve-la dos pedidos.
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Em contra-alegações de recurso, o autor/recorrido invoca a questão nova da figura do abuso de direito quer da interveniente seguradora, quer do interveniente BB, alegando, em suma, que não procederam à verificação da eventual adulteração de quilometragem do veículo, demitindo-se dessa função.
Ora, atenta a absolvição dos pedidos da seguradora e condenação do interveniente BB, não se vislumbra sequer qual a utilidade na apreciação de tal questão, pelo que nada mais há a apreciar, neste particular.
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Das custas da ação e dos recursos:
Nos termos do art. 527º do CPC, as custas da ação e do recurso ficarão a cargo do autor e interveniente BB, na proporção do decaimento, fixando-se em 1/3 a cargo do autor e 2/3 a cargo do interveniente BB, porquanto o autor decaiu nos pedidos formulados contra a ré e interveniente seguradora.
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C-Do recurso do autor:
Apenas resta analisar a condenação em custas, porquanto no demais peticionado, nomeadamente a respeito da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, a qual foi alvo de despacho de pronúncia sobre todas as invocadas omissões e nada mais tendo sido dito, e verificando-se a pronúncia acerca das mesmas, aliás em conformidade com o alegado e peticionado, nada mais há a apreciar, nesse particular, ficando, assim, confirmada a sentença nessa parte, apenas a respeito da condenação do interveniente BB, ainda que com fundamentação diferente, atenta a absolvição dos pedidos da interveniente Seguradora EMP02..., SA, conforme supra.

- quanto à condenação do autor em custas: O recorrente entende que obteve vencimento total em todos os pedidos por si formulados, não tendo, por conseguinte, decaído na ação.
O tribunal recorrido fixou as custas a cargo do recorrente e dos intervenientes principais BB e EMP02..., na proporção dos respetivos decaimentos, fixando 3/10 a cargo do autor e 7/10 a cargo dos Intervenientes, estes últimos a título solidário.
Este tribunal ad quem, como supra se analisou, alterou a condenação em custas e fixou as custas na ação e no recurso, em conformidade com o decaimento das partes na ação e no recurso, sendo certo que em relação ao autor o mesmo decaiu nos pedidos formulados contra a ré e interveniente seguradora.
Assim sendo, neste particular, sempre improcederia o recurso do autor.
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VI. Decisão.

Por tudo o exposto, acordam as Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar:
- procedente a apelação da interveniente Seguradora EMP02..., SA, e consequentemente revogar a decisão recorrida, absolvendo-se a interveniente Seguradora “ EMP02..., SA” dos pedidos contra si formulados.
- improcedente o recurso do interveniente BB, confirmando-se a sentença no demais, mas com fundamentação diferente;
- - improcedente o recurso quanto a custas do autor, confirmando-se no demais a sentença, e despacho complementar da mesma, apenas quanto à condenação do interveniente BB.
- Nos termos do art. 527º do CPC, as custas da ação e do recurso ficarão a cargo do autor e interveniente BB, na proporção do decaimento, fixando-se em 1/3 a cargo do autor e 2/3 a cargo do interveniente BB, porquanto o autor decaiu nos pedidos formulados contra a ré e interveniente seguradora.
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Guimarães, 22 de maio de 2025

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira
Fernanda Proença Fernandes
Elisabete Coelho de Moura Alves


[1] Vide, por todos, o AC do STJ de 17-05-2017, in dgsi.
[2] In Comentário ao CC-Parte Geral- UCP, p. 596,597, Ana Filipa Morais Antunes.
[3] Citada In CC Anotado, coord. Ana Prata, comentário de Jorge Morais Carvalho, Vol I, 2ed,l p. 1161.