AÇÃO UT UNIVERSI MOVIDA POR SOCIEDADE
EX-ADMINISTADORES SOCIAIS
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZOS DE COMÉRCIO
Sumário

I - A competência em razão da matéria (ou jurisdição) afere-se em função da relação material controvertida configurada pelo autor. É, portanto, a partir da análise da forma como o litígio se mostra estruturado na petição que poderemos encontrar as bases para responder à questão de saber qual é o tribunal (ou a jurisdição) competente para a apreciação do mesmo.
II - O conceito de direitos sociais, para efeitos da alínea c) do art.128º da LOSJ., não se reduz aos direitos específicos dos sócios, mas tem-se exigido que os direitos a exercer respeitem a matéria especificamente regida pelo direito societário, tendo em consideração o pedido e a causa de pedir formulados, competindo assim aos juízos do comércio, além do mais, a apreciação das ações relativas ao “exercício de direito sociais”, isto é, ao exercício de direitos que emergem especificamente do regime jurídico das sociedades comerciais.
III - Quando a sociedade se apresenta, ela própria, a demandar os seus ex-gerentes ou ex-administradores, responsabilizando-os pelo desprezo a que votaram os seus deveres de cuidado e lealdade, não é só em nome próprio que age mas, igualmente, está ela a acautelar, mesmo que reflexamente, o particularizado interesse dos sócios, o fim último de todo o exercício da sua atividade comercial.
IV - Dessa forma, é da competência dos Juízos de Comércio a apreciação da ação social ut universi de responsabilidade civil movida contra os ex-administradores de sociedades comerciais, proposta pelas sociedades lesadas, nos termos e para os efeitos do artigo 72.º e 75.º do CSC, com fundamento na violação dos deveres de lealdade e de cuidado a que os administradores se encontram vinculados, nos termos do artigo 64.º do CSC.

Texto Integral

Processo: 1302/16.0T8VNG.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto -Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1

Juíza Desembargadora Relatora:

Alexandra Pelayo

Juízas Desembargadoras Adjuntas

Maria da Luz Seabra

Maria Eiró

SUMÁRIO:

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Acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO:

As sociedades A..., S.A., pessoa coletiva n.º ...,, com sede na Rua ..., ... ..., Vila Nova de Gaia, Porto; B..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Avenida ..., ... – ..., ... ..., Vila Nova de Famalicão, Braga; C..., S.A., sociedade de Direito Espanhol, pessoa coletiva n.º ..., com sede em ... - Calle ..., ..., ..., Espanha e; D..., S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Avenida ..., ... – ..., ... ..., Vila Nova de Famalicão, Braga intentaram ação declarativa de condenação com processo comum, que identificaram como ACÇÃO SOCIAL DE RESPONSABILIDADE DE EX-MEMBROS DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO, contra os Réus AA e BB, melhor identificados nos autos, junto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto -Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia.

Formularam os seguintes pedidos:

“(a) Ser a acção declarada procedente, por provada, e, em consequência, serem os Réus condenados, solidariamente, a liquidar, a título de indemnização, as quantias de:

i. € 5.472.818,50 à Autora A...;

ii. € 1.111.276,00 à Autora B...;

iii. € 289.790,46 à Autora E...;

iv. € 183.968,64 à Autora D...;

(b) Mais se requer a condenação dos Réus no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos a contar da data da citação à taxa supletiva legal até efetivo e integral pagamento.”

Para tanto e em suma, alegaram na causa de pedir que, as Autoras pertencem ao grupo económico com sede em ..., Vila Nova de Gaia, dedicado à indústria de cabos e que, por facilidade, designado de “Grupo A...”. Durante o período compreendido entre 7 de Janeiro de 2007 e Março de 2013, o Réu AA – inicialmente, através da sociedade F..., S.A. (“F...”) e, posteriormente, através da sociedade G..., SGPS, S.A. (“G...”) –, deteve uma influência dominante na atividade do Grupo A..., mediante a detenção da maioria do capital social das sociedades holdings do Grupo A..., sendo que durante o período mencionado, o referido Réu foi ainda membro do Conselho de Administração das Autoras.

Por sua vez o 2º réu, foi também Administrador das sociedades Autoras durante o período supra mencionado, detendo ainda uma participação muito residual no capital social da Autora B... durante o referido período.

Que no âmbito das suas funções de Administrador das sociedades Autoras, o Réu AA causou, dolosamente, na esfera jurídica das Autoras, danos pela prática de atos em preterição dos seus deveres legais e contratuais, em seu exclusivo benefício económico.

Dos referidos atos resultou a alocação e distribuição de bens sociais das Autoras em benefício e no exclusivo interesse, direto ou indireto, do Administrador e Réu AA, e, naturalmente, prejuízo das Autoras, que, na presente data, se apura em pelo menos € € 7.139.203,60, valor reclamado nesta ação.

Por sua vez, o Réu BB atuou como executor material dos atos supra descritos, praticados, como se disse, em benefício exclusivo do Réu AA.

Alegam em suma as Autoras que, aqueles seus ex-Administradores, praticaram naquele período temporal, atos lesivos do interesse das Autoras, que beneficiaram o 1º Réu, geradores de responsabilidade perante as Autoras, no âmbito dos seguintes contratos:

- Contrato de Arrendamento Urbano entre a A... e a H...;

- Contrato-Promessa de Sublocação entre a A... e a H... (Edifício ...);

- Contrato de Compra e Venda entre a H... e a B...:

-Contratos de prestação de serviços celebrados entre Autoras e a G... (Contrato de Fees de Gestão de 1 de Janeiro de 2009 e Contratos de Fees de Gestão de 1 de Outubro de 2011).

- Remunerações diretas e indiretas do Réu AA.

Citados os Réus, vieram contestar.

Pediram a suspensão da presente instância até ser proferida decisão transitada em julgado na causa já proposta que, sob o nº 617/16.1T8VNG, corre termos na 2ª Secção de Comércio, J3, deste mesmo Tribunal.

Mais se defenderam por impugnação, pedindo que a ação seja julgada improcedente e não provada.

Pedem ainda a procedência do pedido reconvencional e, consequentemente a condenação das autoras a pagar ao réu AA a quantia de 50.000,00€ (cinquenta mil euros) cada uma, no total de 200.000,00€ (duzentos mil euros), acrescida dos juros legais de mora desde a citação até efetivo pagamento;

E a condenação das autoras em multa condigna e cada uma em indemnização de 50.000,00 euros à G..., a título de reembolso de despesas e honorários dos mandatários da G..., no montante global de 200.000,00 Euros, nos termos do disposto nos arts. 542º e 543º do CPC.

As Autoras responderam à reconvenção concluindo como na p.i.

O R. AA em 19.05.2023 veio informar que no proc. n.º 617/16.1T8VNG-J4 foi proferida sentença em 25.10.2022 na qual os RR foram absolvidos da instancia por se considerar verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal.

Entende o R. haver ligação entre este processo e aquele, no que respeita às causas de pedir, pelo que, veio defender que, também nestes autos deve ser declarada a incompetência material do tribunal.

Cumprido o contraditório, em 10.1.2025, foi proferido despacho, mediante o qual o Tribunal decidiu: “decide-se julgar este Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a presente acção, absolvendo os RR. da instância.

Custas pelas AA. – art. 527º do Código de Processo Civil.”

Inconformadas, as Autoras, A..., S.A. e C..., S.A., em que são Réus, ora Recorridos, AA (“AA”) e BB (“BB”) vieram interpor o presente RECURSO, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:

“A. O presente recurso tem por objeto a Sentença Recorrida, nos termos do qual o Tribunal a quo decidiu julgar-se incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolveu os Recorridos da instância.

B. A Sentença Recorrida, ao enquadrar incorretamente a essência do litígio, considerou que o Juízo de Comércio não é materialmente competente para dirimir o litígio objeto dos presentes autos na medida em que este não se inclui no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, uma vez que para se chegar ao pedido de indemnização há que “apreciar e decidir questões/direitos que surgem independentemente da sua qualidade de acionistas, com base nos mencionados contratos celebrados e que não são da competência deste tribunal [do Juízo de Comércio], mas da Instância Central Civel”.

C. Ora, a presente lide é uma ação de responsabilidade social ut universi, proposta pela sociedade contra os administradores, cuja instauração foi devidamente aprovada por unanimidade por deliberação dos acionistas em assembleia geral realizada no dia 18.12.2015, nos termos e para os efeitos do artigo 75.º do CSC, constituindo um tipo de ação que a jurisprudência e a doutrina enquadram de forma unânime na competência dos juízos de comércio à luz do artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ.

D. O pedido e a causa de pedir da presente ação encontram-se sujeitos à apreciação do regime do Código das Sociedades Comerciais, constituindo matéria da competência dos Juízos de Comércio, à luz do artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ.

E. As Recorrentes são empresas operacionais que integravam o Grupo A..., o qual durante o período compreendido entre 07.01.2007 e março de 2013, dominado pelo Recorrido AA, inicialmente, através da sociedade F..., S.A. e, posteriormente, através da sociedade G..., detendo uma influência dominante na atividade do Grupo A..., tendo os Recorridos AA e BB sido ambos membros do conselho de administração das Recorrentes no período compreendido entre os anos de 2008 e 2013.

F. Em 2012, devido a dificuldades financeiras, o Grupo A... foi objeto de uma reestruturação financeira e de uma reorganização societária, nomeadamente através da entrada do ... para a estrutura societária do Grupo A... mediante a conversão de créditos bancários em capital.

G. Na sequência da reorganização societária, foram detetados vários atos executados pelos Recorridos, enquanto administradores das Recorrentes, em violação dos seus deveres fiduciários de administradores das sociedades comerciais (artigo 64.º do CSC), causando avultados danos às Recorrentes.

H. Conforme resulta da Petição Inicial das Recorrentes, a responsabilidade dos Recorridos decorre da prática de um conjunto de atos lesivos do interesse social das Recorrentes, praticados pelos Recorridos na qualidade de administradores das Recorrentes em violação dos seus deveres legais fiduciários, em particular: (i) o contrato de arrendamento urbano entre a A... e a H...; (ii) o contrato-promessa de sublocação entre a A... e a H... (Edifício ...); (iii) o contrato de compra e venda entre a H... e a B...; (iv) os contratos de prestação de serviços celebrados entre as Recorrentes e a G... em benefício do Recorrido AA; e (v) o excesso das remunerações dos membros do conselho de administração em face das funções desempenhadas.

I. As Recorrentes, mediante a aprovação por deliberações tomadas por unanimidade nas assembleias gerais de 18.12.2015, decidiram instaurar a presente ação social ut universi de responsabilidade civil contra os administradores das sociedades (comerciais), nos termos dos artigos 72.º e 75.º do CSC.

J. Na análise da responsabilidade dos Recorridos pela violação dos seus deveres fiduciários (artigo 64.º do CSC), o Tribunal a quo deverá apreciar os atos lesivos que revestiram a forma de contratos, apreciando, embora não a título principal e em alguns casos, a validade de tais contratos, mas no essencial o que está em causa saber é se tais atos foram ou não lesivos do interesse social das Recorrentes e se traduziram na violação de deveres fiduciários dos Recorridos enquanto administradores das Recorrentes, sendo que não são os contratos mas antes os comportamentos dos Recorridos que deverão ser apreciados, designadamente à luz do regime jurídico do direito das sociedades comerciais, em concreto dos artigos 32.º, 297.º e 397.º do CSC.

K. A causa de pedir das Recorrentes respeita à verificação do cumprimento dos deveres de lealdade e de cuidado que era exigido aos administradores das sociedades comerciais por parte dos Recorridos, nomeadamente se os mesmos executaram estes atos segundo a diligência de um gestor criterioso e ordenado e tendo em vista o interesse social das Recorrentes e dos seus stakeholders ou se foram movidos por interesses próprios ou de terceiros (artigo 64.º do CSC).

L. A responsabilidade civil dos Recorridos tem por fundamento a violação de deveres de lealdade e de cuidado pelos Recorridos, tendo os atos lesivos sido consubstanciados na celebração de negócios em representação da sociedade em conflito de interesses (artigo 397.º do CSC) e que concretizam distribuições de dividendos em violação das regras injuntivas da lei das sociedades comerciais (artigo 32.º e 297.º do CSC), em benefício do Recorrido AA.

M. A Sentença Recorrida sustentou a incompetência material com base no impacto das decisões do Tribunal da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça sobre a competência material do Juízo de Comércio para conhecer a Ação de Nulidade, cujo objeto e partes são manifestamente diferentes face à presente lide.

N. Com toda a lisura e transparência, na sua Petição Inicial (cfr. 500.º a 503.º) e na sua Réplica (artigos 9.º a 59.º), as Recorrentes alegaram e demonstraram as diferenças entre a presente lide e a Ação de Nulidade, não se verificando uma coincidência entre o objeto do processo em ambas as ações, na medida em que o objeto da Ação de Nulidade diz respeito a apenas uma parte da causa de pedir da presente ação (a nulidade dos Contratos de Fees de Gestão) e, se houvesse essa identidade, o Tribunal a quo teria de equacionar –o que não fez -, uma exceção de litispendência ou de prejudicialidade entre ambas as ações.

O. Enquanto na Ação de Nulidade o enquadramento jurídico da ação se sustenta no artigo 240.º do CC, o enquadramento que sustenta a responsabilidade dos Recorridos é a prática de um conjunto de atos lesivos do interesse social, de entre eles, a lesão provocada pelos Contratos de Fees de Gestão, designadamente por terem sido celebrados em conflito de interesses pelos Recorridos, sem a deliberação prévia do conselho de administração e o parecer do fiscal único das Recorrentes, consubstanciando um contrato celebrado entre a sociedade e o administrador por interposta pessoa (artigo 397.º, n.º 2 do CSC) e em violação dos seus deveres fiduciários de lealdade e de cuidado (artigo 64.º do CSC), provocando danos avultados às Recorrentes.

P. Neste sentido, a Ação de Nulidade, que visa essencialmente apreciar a nulidade por simulação dos Contratos de Fees de Gestão, não pode ser uma referência para apreciação do objeto da presente lide, pois a presente ação foi configurada de forma diversa pelas Recorrentes, incidindo sobre os comportamentos que são imputados aos Recorridos em violação dos seus deveres fiduciários, matéria que se revela iminentemente societária.

Q. As Recorrentes configuraram a presente ação, nos termos do disposto do art. 72.º do CSC, identificada no cabeçalho da Petição Inicial como uma “ACÇÃO SOCIAL DE RESPONSABILIDADE CIVIL DE EX-MEMBROS DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO”, sendo esta configuração reafirmada (cfr. artigos 426.º, 431.º e 451.º da Petição Inicial).

R. O pedido formulado pelas Recorrentes tem por fundamento a violação pelos Recorridos dos seus deveres de lealdade e de cuidado no exercício das funções de administradores das Recorrentes, nos termos do artigo 64.º do CSC (cfr. artigos 428.º, 449.º e 450.º da Petição Inicial) e os factos sobre os quais incide a matéria relevante para efeitos de responsabilidade dos Recorridos é também regida pelo direito das sociedades comerciais (cfr. artigos 66.º a 422.º da Petição Inicial).

S. Sendo sintomático que nas contestações apresentadas pelos Recorridos e na Réplica apresentada pelas Recorrentes, apenas é invocada matéria que respeita exclusivamente a questões do direito das sociedades comerciais, a título de exceções e outras com vista a exoneração de responsabilidades dos Recorridos.

T. Assim, a causa de pedir da presente lide é complexa, pois respeita a um conjunto de atos de gestão praticados pelos Recorridos enquanto administradores das Recorrentes, que se encontram também sintetizados na proposta de temas de prova apresentado pelas Recorrentes no requerimento de 08.04.2024 (Ref.ª Citius 38687665), donde decorre que a matéria objeto de prova visa demonstrar que os Recorridos violaram os seus deveres de lealdade e cuidado no exercício das suas funções de administração, sendo que também o projeto de temas de prova apresentado pelo Recorrido BB no dia 08.04.2024 (Ref.ª Citius 38693770) incide sobre questões que têm subjacente a aplicação do regime do direito societário.

U. A causa de pedir invocada na Petição Inicial reside no conjunto de factos lesivos praticados pelos Recorridos em violação dos seus deveres enquanto administradores de sociedades comerciais, sendo a decisão de fundo a tomar pelo Tribunal a quo a de saber se os atos praticados pelos Recorridos violaram os seus deveres legais enquanto administradores das sociedades comerciais, devendo, em consequência, ser responsabilizados pelos danos causados nos termos do artigo 72.º do CSC.

V. Nos presentes autos haverá que discernir se foram prosseguidos os interesses sociais das Recorrentes ou se, ao contrário, foram prosseguidos propósitos e interesses pessoais, nomeadamente concretizados na captação e desvio de fundos das Recorrentes em proveito pessoal, no caso do Recorrido AA, por interposição da holding pessoal G..., tendo o Recorrido BB assumido um papel preponderante no auxílio e execução material de tais atos.

W. A determinação da competência em razão da matéria dos Tribunais judiciais é feita tendo por referência a matéria que constitui o objeto do processo, consubstanciado no pedido e na causa de pedir (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.05.2013, proferido no âmbito do processo n.º 5737/09.6TVLSB.L1-S1).

X. O objeto do processo é constituído por dois elementos: o pedido e a causa de pedir, pelo que será por referência a estes conceitos que devemos aferir a competência material dos Tribunais judiciais.

Y. O pedido e a causa de pedir deduzida pelas Recorrentes na Petição Inicial, encontram-se sujeitos à apreciação do regime do direito das sociedades comerciais.

Z. Os pedidos deduzidos são de condenação dos Recorridos a indemnizar as Recorrentes, com fundamento num conjunto de atos praticados enquanto administradores das Recorrentes (artigo 72.º do CSC), tendo a ação sido configurada como uma ação social ut universi proposta pela sociedade lesada, contra os seus ex-administradores, aprovada por unanimidade pelos sócios em sede de assembleia geral (artigo 75.º do CSC).

AA. A causa de pedir que fundamenta o dever de indemnizar é a violação, pelos Recorridos, dos seus deveres de lealdade e de cuidado enquanto administradores das Recorrentes (artigo 64.º do CSC), decorrendo a responsabilidade dos Recorridos de um conjunto de comportamentos que lhes são imputáveis e que, na perspetiva das Recorrentes, constituem a violação dos seus deveres fiduciários de administradores de sociedades comerciais, causando avultados danos às Recorrentes.

BB. A montante da apreciação dos atos de gestão que sustentam a responsabilidade dos Recorridos está também a apreciação da validade de determinados contratos celebrados elos Recorridos em representação das Recorrentes com entidades relacionadas com o Recorrido AA, mas tal apreciação também se encontra sujeita ao regime do direito das sociedades comerciais, por se tratarem de negócios celebrados entre sociedade e administrador em conflito de interesses (artigo 397.º, n.º 2 do CSC) ou de distribuição ilícita de dividendos (artigo 32.º e 297.º do CSC).

CC. Os Juízos de Comércio correspondem a juízos de competência especializada, encontrando-se a sua competência material prevista no artigo 128.º da LOSJ, dispondo o artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ que “Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: (…) As ações relativas ao exercício dos direitos sociais”.

DD. A jurisprudência tem vindo a sustentar que o conceito de “direitos sociais”, presente no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, não deve ser objeto de uma interpretação redutora, mas antes abranger os direitos cuja matriz se funde diretamente na lei societária e/ou no contrato de sociedade, dos quais podem ser titulares a sociedade, os sócios, os credores sociais e administradores, justificando-se a competência do juízo de comércio por razões relacionadas com a aplicação de legislação específica do Código das Sociedades Comerciais (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2022, proferido no âmbito do processo n.º 1044/21.4T8LRA-C1.S1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 26.10.2022, proferido no âmbito do processo 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 21.05.2024, proferido no âmbito do processo 20106/23.7T8SNT.L1-1), sendo este entendimento também adotado pela doutrina nacional, nomeadamente Coutinho de Abreu, Maria Elisabete Ramos, José Ferreira Gomes e Joaquim da Fonseca.

EE. As Recorrentes aceitam (e não é objeto do presente recurso) a interpretação da Sentença Recorrida na parte em que reconhece que o conceito de “direitos sociais” não equivale ou corresponde aos direitos dos sócios, bem como quando admite que no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ “se está a pensar e a referir às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, ações em que estão em causa e são invocados direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais, quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais, quer mesmo terceiros.”

FF. Todavia, com o devido respeito, não se compreende, nem se aceita, a razão pela qual a Sentença Recorrida na parte final da sua decisão vem sustentar que a presente lide não corresponde a uma ação relativa ao exercício de direitos sociais por considerar que para apreciar o pedido de indemnização das Recorrentes “há que apreciar e decidir questões/direitos que surgem independentemente da sua qualidade de acionistas”, pois esta argumentação acaba por contrariar o entendimento amplo do conceito de “direitos sociais” sustentado anteriormente.

GG. A Sentença Recorrida desconsiderou totalmente a natureza da presente lide como ação social ut universi de responsabilidade civil contra administradores de sociedades comerciais (os Recorridos) proposta pelas sociedades lesadas (as Recorrentes), nos termos e para os efeitos do artigo 72.º e 75.º do CSC e com fundamento na violação dos deveres de lealdade e de cuidado a que os administradores se encontram vinculados, nos termos do artigo 64.ºdo CSC.

HH. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem aliás vindo a sustentar sistematicamente que, para o julgamento das ações de responsabilidade civil contra administradores propostas pela sociedade comercial, o Tribunal competente é o Juízo de Comércio (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.06.2024, proferido no âmbito do processo n.º 10009/19.5T8LSB-H.L1-A.S1).

II. A jurisprudência tem vindo a reconhecer que as ações de responsabilidade civil ut universi (artigo 75.º do CSC) como é o caso dos presentes autos, corresponde ao exercício de um direito social (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.05.2013, proferido no âmbito do processo n.º 5737/09.6TVLSB.L1-S1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.09.2009, proferido no âmbito do processo n.º 94/07.8TYLSB.L1.S1)

JJ. A jurisprudência tem ainda esclarecido que, além da configuração do exercício do direito da sociedade na ação ut universi constituir um direito social da sociedade, as próprias especificidades do regime jurídico-societário da responsabilidade civil pela administração de sociedades comerciais exigem a intervenção de uma jurisdição de competência especializada – a jurisdição dos Juízos de Comércio (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, proferido no âmbito do processo n.º 08B3907, proferido ao abrigo da lei anterior, mas sujeito ao mesmo elemento literal do atual artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ).

KK. No mesmo sentido, também a doutrina tem perfilhado este entendimento quanto à competência do Juízo de Comércio para julgar as ações ut universi de responsabilidade civil dos administradores propostas pela sociedade, em particular, Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos.

LL. Pelo exposto, e face à correta configuração da presente lide e considerando a submissão do pedido e da causa de pedir ao regime jurídico do Direito das Sociedades Comerciais e à configuração da presente ação como uma ação social ut universi de responsabilidade dos Recorridos enquanto ex-administradores das Recorrentes, aprovada por unanimidade em deliberação dos sócios das Recorrentes, entendem as Recorrentes que a presente ação constitui um exercício de um direito social, nos termos e para os efeitos do artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, sendo, consequentemente, matéria da competência do Juízo de Comércio.

Devendo os Tribunais Superiores adotar um critério uniforme de interpretação do artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, sob pena de persistir a atual insegurança jurídica quanto à determinação da competência em razão da matéria dos Juízos de Comércio e dos Juízos Cíveis, prejudicando a efetiva tutela jurisdicional do direito societário.

MM. Em conclusão e com o devido respeito, deverá a Sentença Recorrida ser revogada por violação do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, devendo ser substituída por outra que declare o Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia como o Tribunal competente para conhecer a presente ação social ut universi de responsabilidade civil proposta contra os aqui Recorridos, seus ex-administradores.

Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exa. Doutamente suprirão, devera ser dado provimento ao presente Recurso de Apelação e, em consequência, ser a Sentença Recorrida revogada e substituída por outra que julgue o Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia competente quanto à matéria para conhecer da presente ação.”

Não foram juntas contra-alegações.

Foi proferido despacho que admitiu o recurso como apelação, com subida imediata e nos próprios autos (cf. artigo 627.º, nº2, do CPC ), efeito devolutivo (cf. artigo 14.º, nº5, do CIRE).

Foi ainda atribuído ao recurso o valor de €7.057.853,60.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso

A questão decidenda é a de saber se os Juízos de Comércio são ou não competentes, em razão da matéria, para conhecer da presente ação, face ao disposto no o artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ.

III-FUNDAMENTAÇÃO:

Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais mencionados supra no relatório.

IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:

No âmbito da competência interna dos tribunais portugueses, o poder jurisdicional divide-se por diferentes categorias de tribunais, de acordo com a natureza da matéria das causas. Assim, e em primeiro lugar, distinguem-se os tribunais judiciais e os tribunais especiais.

Os tribunais judiciais, dentro da organização judiciária, constituem a regra e daí que gozem de competência não discriminada, como consta do art. 40º, n.º 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto - LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO, a seguir LOSJ ao estabelecer que “os tribunais judiciais tem competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.”

De acordo com o art. 80º nº 2 da LOSJ os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada.

Os Juízos de Comércio correspondem a juízos de competência especializada, nos termos do artigo 81.º, n.º 3, al. i) da LOSJ, encontrando-se a sua competência material prevista no artigo 128.º da LOSJ.

Como é referido no Acórdão do STJ de 5.7.2018[1] a criação dos juízos do comércio cuja implantação no território nacional foi alargada com a atual LOSJ foi orientada pelo objetivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial ou do direito das sociedades comerciais. Nesta e noutras áreas, a criação de juízos com competência especializada leva necessariamente a que essa especialização se estenda aos juízes que têm que apreciar os correspondentes conflitos ou proceder à composição dos interesses, contribuindo para uma mais correta aplicação da lei.

Ao mesmo tempo, é suposto que a referida especialização crie sinergias que permitam uma resolução mais célere dos processos, objetivo que historicamente tem orientado o legislador na adoção de medidas substantivas e na criação de instrumentos processuais que visam especificamente as empresas comerciais.

Isto posto, dispõe o artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ que “Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: (…) As ações relativas ao exercício dos direitos sociais”.

A questão que importa solucionar neste recurso respeita à verificação da competência material para a apreciação do mérito da presente ação, ou seja, aferir se a competência cabe ao tribunal do comércio, por se tratar de uma ação que visa o exercício de direitos sociais, nos termos e para efeitos do art. 128°, al. c), da LOSJ, ou se cai na malha da competência residual atribuída aos Juízos cíveis, como entendeu o tribunal recorrido.

Para o efeito parte-se do pressuposto de que a competência do tribunal em razão da matéria se afere pelo pedido, em conjugação com a causa de pedir.

É hoje pacífico, com efeito, o entendimento segundo o qual a competência em razão da matéria se afere pela natureza jurídica da relação, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, pelo pedido e pela causa de pedir.

Começando a sentença recorrida por reconhecer que o conceito de “direitos sociais” mencionado no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, não equivale ou corresponde aos direitos dos sócios, acaba por afastar a aplicação desta norma, por entender que, “para fundamentar o pedido de indemnização, as AA. invocam a ocorrência de vícios nos alegados contratos em causa nos autos, designadamente, os contratos de fees de gestão e eventual responsabilidade civil dos RR. pela celebração de tais contratos, cujas regras aplicáveis são de âmbito civil, isto é, estão em causa questões de direito civil e não exclusivamente de direito societário.”

Afirma que, “os factos em discussão vão muito além da liquidação dos danos eventualmente causados às AA. pelos RR., em virtude de contratos celebrados, designadamente, os contratos de fees de gestão, cuja nulidade foi invocada no proc. n.º 617/16.1T8VNG-J4 e no qual este tribunal foi declarado incompetente em razão da matéria por não estarem em causa o exercício de direitos sociais, cfr. artº 128º, n.º 1, al. c) da LOSJ.”

E ainda que, “O facto de o conflito apresentado pelas AA. se desenvolver no âmbito da vida interna de várias sociedades, tendo por isso uma origem societária em sentido amplo, podendo ter subjacente a violação de normas de direito societário, não significa que a causa de pedir e pedido tenham natureza dominantemente societária podendo ter natureza diversa e o tribunal de comercio não ser competente para apreciar tal tipo de conflitos. Do mesmo modo que, quando o resultado pretendido pelo A. convoca quadros jurídicos de direito civil, sendo adequada a intervenção da competência genérica.”

Não concordamos com estas afirmações feitas na sentença, desde logo porque a causa de pedir, em que se estriba o pedido indemnizatório das Autoras prima pela clareza, quer na exposição dos factos invocados como constitutivos do direito invocado pelas autores, quer do direito aplicável e considerando-se ainda o pedido formulado, podemos com segurança concluir que, estamos perante uma ação social ut universi de responsabilidade civil movida contra os ex-administradores de sociedades comerciais, proposta pelas sociedades lesadas, nos termos e para os efeitos do artigo 72.º e 75.º do CSC, com fundamento na violação dos deveres de lealdade e de cuidado a que os administradores se encontram vinculados, nos termos do artigo 64.º do CSC.

Não podemos concordar com a conclusão da sentença recorrida nos sentido em que “Para fundamentar o pedido de indemnização, as AA. invocam a ocorrência de vícios nos alegados contratos em causa nos autos”, para concluir que “o resultado pretendido pelo A. convoca quadros jurídicos de direito civil, sendo adequada a intervenção da competência genérica.”

A existência de um conflito subjacente entre as partes relativo a eventuais vícios de que padeçam alguns dos contratos celebrados, cuja celebração é apontada como causadora de prejuízos às sociedades autoras, (que estará a ser dirimido na ação sob o nº 617/16.1T8VNG, que corria termos na 2ª Secção de Comércio, J3), não constitui o conflito principal trazido a juízo nesta ação, onde está verdadeiramente em causa o exercício de um direito social.

Com efeito, esta ação intentada pelas autoras contra os Réus, não tem como finalidade, (pelo menos a título principal), a avaliação da (in) validade dos contratos mencionados.

A causa de pedir funda-se na invocação de factos conducentes a demonstrar a violação, pelos réus dos deveres estabelecidos no Código das Sociedades Comerciais, enquanto administradores daquelas sociedades, na celebração e/ou execução dos seguintes contratos:

- Contrato de Arrendamento Urbano entre a A... e a H...;

- Contrato-Promessa de Sublocação entre a A... e a H... (Edifício ...);

- Contrato de Compra e Venda entre a H... e a B...:

-Contratos de prestação de serviços celebrados entre Autoras e a G... (Contrato de Fees de Gestão de 1 de Janeiro de 2009 e Contratos de Fees de Gestão de 1 de Outubro de 2011).

- Remunerações diretas e indiretas do Réu AA.

Conforme dispõe a al. b) do nº. 1 do art. 64º do Código das Sociedades Comerciais, os gerentes ou administradores da sociedade devem observar os deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.

No direito das sociedades, a lealdade exprime o conjunto dos valores básicos do sistema que, em cada situação concreta, devam ser acatados pelos diversos intervenientes.

Defendem as autoras que no âmbito das suas funções de Administrador das sociedades Autoras, o Réu AA causou, dolosamente, na esfera jurídica das Autoras, danos pela prática de atos em preterição dos seus deveres legais e contratuais, em seu exclusivo benefício económico.

Dos referidos atos resultou a alocação e distribuição de bens sociais das Autoras em benefício e no exclusivo interesse, direto ou indireto, do Administrador e Réu AA, e, naturalmente, prejuízo das Autoras, que, na presente data, se apura em pelo menos € 7.139.203,60, valor reclamado nesta ação.

Estamos assim claramente, tal como delinearam as Autoras na petição inicial, no âmbito duma ação social ut universi de responsabilidade civil contra administradores de sociedades comerciais (os Recorridos) proposta pelas sociedades lesadas (as Recorrentes), nos termos e para os efeitos do artigo 72.º e 75.º do CSC e com fundamento na violação dos deveres de lealdade e de cuidado a que os administradores se encontram vinculados, nos termos do artigo 64.º do CSC.

Se aos contratos celebrados são aplicáveis normas de direito civil, na apreciação da pretensão indemnizatória não estão em causa questões de direito civil, como se afirma na sentença recorrida, mas questões de direito societário.

Entendemos, na esteira da jurisprudência e da doutrina mais atuais que, tal como defendem as Apelantes, o conceito de “direitos sociais”, presente no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, não deve ser objeto de uma interpretação redutora, mas antes abranger os direitos cuja matriz se funde diretamente na lei societária e/ou no contrato de sociedade, dos quais podem ser titulares a sociedade, os sócios, os credores sociais e administradores, justificando-se a competência do juízo de comércio por razões relacionadas com a aplicação de legislação específica do Código das Sociedades Comerciais.

Como refere Coutinho de Abreu,[2] «Para determinar a competência material importa ter em linha de conta, além do mais, a estrutura do objeto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na ação. Ora, na ação social ut universi a causa de pedir é consubstanciada pelos factos que integram os pressupostos jurídico-societários da responsabilidade perante a sociedade. Além disso, a expressão, direitos sociais, não impede uma interpretação de modo a abranger também, o exercício de direitos da sociedade contra os seus administradores, cabendo a competência aos juízos de comércio».

Também Rodrigo Uria[3] afirma: “A ação de responsabilidade contra os administradores tem carácter de ação social, enquanto está dirigida à proteção e defesa do património ou dos interesses sociais em geral, mediante o ressarcimento do dano sofrido. Por isso, se atribui, em primeiro termo, à sociedade, subsidiariamente aos acionistas como titulares de um interesse indireto na defesa do património social, e, em última linha, aos credores sociais que, contando com o património social como garantia dos seus créditos, se prejudicam com a diminuição daquele”.

Os direitos sociais não são apenas os direitos de que são titulares os sócios: a sociedade, os sócios, os credores sociais e terceiros (cfr. arts. 78º e 79º CSC), podem ser titulares de direitos sociais, porque expressamente conferidos pela lei societária (se o não forem pelo contrato de sociedade).

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2022, proferido no âmbito do processo n.º 1044/21.4T8LRA-C1.S, [4] pode ler-se:

“A expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais. (…) Para determinar se os tribunais de comércio são os competentes para julgar esta ação, há, pois, que apurar se o pedido deduzido e a causa de pedir respeitam a matéria especificamente regida pelo direito societário.”

Necessário é pois que a concreta ação interposta emerja da aplicação de normas que regem especificamente as sociedades comerciais.

Este entendimento é acolhido de forma unânime na jurisprudência atual:

- Ac. do STJ. de 24-2-2022, in www.dgsi.pt. Onde se escreveu «A expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais».

- Ac. do STJ. de 29-3-2022, in www.dgsi.pt.«Os direitos sociais nos termos e para os efeitos da norma atributiva de competência material das secções do comércio - art. 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ - são os direitos cuja matriz, direta e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade».

- Acórdão de STJ, de 26.10.2022, in www.dgsi.pt. «A expressão “direitos sociais” (constante da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ) não equivale ou corresponde a “direitos dos sócios”, devendo entender-se que, quando em tal alínea se fala em “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, se está a pensar e a referir às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, se está a pensar e a referir às ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros».

- Ac. do STJ. de 16-11-2023, in www.dgsi.pt. «Os direitos sociais nos termos e para os efeitos da norma atributiva de competência material das secções do comércio - art. 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ - são os direitos cuja matriz, direta e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade».

Relativamente à ações de responsabilidade civil ut universi (artigo 75.º do CSC) como é o caso dos presentes autos, a mesma corresponde ao exercício de um direito social, tal como entendeu recentemente o STJ, no acórdão do STJ de Justiça de 25.06.2024,[5] onde pode ler-se: (…)

“III- O conceito de direitos sociais, para efeitos da alínea c) do art.128º da LOSJ., não se reduz aos direitos específicos dos sócios, mas tem-se exigido que os direitos a exercer respeitem a matéria especificamente regida pelo direito societário, tendo em consideração o pedido e a causa de pedir formulados.

IV- Tendo sido intentada providência cautelar comum, com base na al. b) do nº. 1 do art. 64º. e nº. 1 do art. 72º, ambos do CSC., o Tribunal de Comércio é o competente em razão da matéria, para conhecer do litígio.”

Afirma-se aí de forma esclarecedora, o seguinte:

(…) Na verdade, quando a sociedade se apresenta, ela própria, a demandar os seus ex-gerentes ou ex-administradores, responsabilizando-os pelo desprezo a que votaram os seus deveres de cuidado e lealdade, não é só em nome próprio que age mas, igualmente, está ela a acautelar, mesmo que reflexamente, o particularizado interesse dos sócios, o fim último de todo o exercício da sua atividade comercial».

Ora, a providência dos autos foi intentada com base na al. b) do nº. 1 do art.64º. e nº. 1 do art. 72º, ambos do CSC., nada tendo a ver com domínio ou registo de marca, mas antes, baseada na violação dos deveres de lealdade do ex-administrador das ora recorridas, para efeitos de proteção dos seus interesses sociais, com o objetivo formulado de obstar a que materializem danos, prosseguindo as recorridas a sua atividade.

O juízo de comércio que decidiu a providência cautelar, também será o competente para conhecer da oposição deduzida, enquadrando-se a matéria no âmbito da al. c) do art. 128º da LOSJ.

Destarte, o Tribunal de Comércio será competente em razão da matéria para conhecer do litígio, não merecendo censura o acórdão recorrido.”

Em face do exposto, entende-se que, para o julgamento desta ação em que está em causa o exercício de direitos sociais, nos termos previstos na alínea c) do art.128º da LOSJ., é competente o Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, impondo-se por isso a revogação da sentença recorrida.

V-DECISÃO:

Pelo exposto e em conclusão, acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, e em consequência declara-se que o Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1 tem competência em razão da matéria para julgar esta ação.

Custas a atender a final.


Porto, 27 de maio de 2025.
Alexandra Pelayo
Maria da Luz Seabra
Maria Eiró
______________
[1] Proferido no P .11411/16.0T8LSB.L1, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, 2ª. ed., Almedina, pág. 941
[3] Derecho Mercantil, 27ª ed., 2000, p. 343.
[4] Relatado pelo Juiz Conselheiro JOÃO CURA MARIANO e disponível in www.dgsi.pt.
[5] Proferido no P 10009/19.5T8LSB-H.L1-A.S1, sendo Relatora a Juíza conselheira ROSÁRIO GONÇALVES, citado pelos apelantes.