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PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PERICULUM IN MORA
CESSÃO DE QUOTA
REGISTO COMERCIAL POR DEPÓSITO
EFEITOS
Sumário
(i) Para que a cessão de uma quota social produza efeitos perante a sociedade – que é considerada terceira em relação ao negócio –, é necessário que, além do seu consentimento (exceto nos casos dispensados por lei ou contrato), lhe seja solicitada a promoção do respetivo registo. (ii) A partir desse momento, o cessionário, como novo titular da quota, passa a ser o único sujeito legitimado a exercer perante a sociedade os direitos sociais decorrentes dessa titularidade. (iii) Neste enquadramento, carece de qualquer efeito útil o decretamento de providência cautelar de suspensão dos efeitos do registo da cessão da quota de um sócio a outro que foi requerida como forma de permitir que o cedente continue a poder exercer os referidos direitos durante a pendência da ação que, com fundamento na inexistência do título, pretende intentar para a declaração de nulidade daquele registo. (iv) A possibilidade de convolar semelhante providência para uma outra efetivamente adequada a esconjurar o perigo que o cedente pretende evitar – o não reconhecimento da sua qualidade de sócio pela sociedade – deve ser excluída se tal perigo tiver sido alegado de forma meramente genérica e abstrata e que não permita suportar um juízo no sentido de a sua concretização redundar numa lesão grave e dificilmente reparável do direito que se pretende tutelar. (v) Os factos relativos à quota, incluindo, portanto, a cessão, pertencem ao rol daqueles cujo registo é feito por depósito, consistindo este no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo, sem qualquer controlo da legalidade por parte do conservador. (vi) Daqui decorre que tal registo não padecerá de nulidade, é sempre definitivo e não oferece presunção da verdade, ficando os seus efeitos reduzidos à oponibilidade do facto perante terceiros e à prioridade que dele decorre.
Texto Integral
I.
1). AA intentou, no dia 29 de outubro de 2024, procedimento cautelar comum contra BB e EMP01..., Lda., pedindo que, na procedência, seja decretada, sem contraditório prévio dos requeridos, a providência de “suspensão dos efeitos do registo por depósito[,] seja perante a sociedade como perante terceiros, e mais concretamente pelo reconhecimento ao Requerente dos direitos sociais inerentes à titularidade da quota de que é proprietário.” (sic)
Alegou, em síntese, que: o capital social da 2.ª Requerida está dividido em duas quotas, cada uma delas no valor de € 600 000,00; uma dessas quotas pertence ao Requerente e outra ao 1.º Requerido; com o objetivo de pôr termo a desavenças surgidas entre ambos acerca da gestão da 2.ª Requerida e de uma outra sociedade em que ambos têm participação, o Requerente e o 1.º Requerido celebraram um acordo escrito pelo qual aquele se obrigou a ceder a este, ou a pessoa que para esse efeito lhe fosse indicada, a quota de que é titular no capital social da 2.ª Requerida; nesse acordo previu-se, complementarmente, ademais das contrapartidas pela cedência, que o pagamento seria feito no prazo de dez anos, em prestações mensais, na forma, local e modo a acordar ulteriormente; Requerente e 1.º Requerido declaram também atribuir eficácia real e carácter irrevogável ao referido acordo; já depois de ter resolvido esse acordo, com fundamento em incumprimento imputável ao 1.º Requerido, este solicitou à 2.ª Requerida que, com base no acordo, promovesse o registo por depósito de uma suposta cessão da quota do Requerente a seu favor, o que aquela veio a fazer sem que tivesse verificado a regularidade ou a suficiência do respetivo título; o 1.º Requerido passou, assim, a constar do registo como titular das duas quotas no capital social da 2.ª Requerida; deste modo, o registo retrata um facto (cessão da quota do Requerente ao 1.º Requerido) que nunca ocorreu e que, de resto, nunca obteve o consentimento da 2.ª Requerida; esse registo habilita o 1.º Requerido a exercer, perante a 2.ª Requerida, todos os direitos inerentes à qualidade de sócio, designadamente o direito de voto e o direito de receber, “por sua exclusiva deliberação” (sic), os dividendos da sociedade; por outro lado, impede o Requerente de obter qualquer tipo de informação sobre a sociedade e de promover qualquer inquérito relativo a ela; habilita ainda o requerido a vender a terceiro a quota do Requerente; acresce que o Requerente é, solidariamente com o 1.º Requerido, fiador e/ou avalista de títulos de crédito assinados em branco para garantia de financiamentos feitos à 2.ª Requerida, cujo montante total é de € 1 422 722,92; o 1.º Requerido tem vindo a alienar o seu património, “desconhecendo” (sic) o Requerente se o faz com algum propósito; “a normal pendência de qualquer ação pode vir a colocar em risco o feito útil da pretensão do Requerente anular o registo promovido pelo 1.º Requerido com a declaração de inexistência de qualquer acordo de cessão da quota”, pelo que se justifica a suspensão dos efeitos do registo por depósito realizado “até à decisão definitiva de ação” que se pronuncie sobre a “suficiência e regularidade” do título apresentado em suporte do registo por depósito e “correspondente anulação do mesmo” (sic).
Indeferido o pedido de dispensa de contraditório prévio, os Requeridos apresentaram oposição, na qual alegaram, também em síntese, que: ao contrário do alegado pelo Requerente, pelo referido acordo operou-se uma cessão da quota; como quer que seja, o registo limita-se a dar publicidade ao ato, não produzindo quaisquer efeitos, pelo que a providência requerida constitui uma impossibilidade; não é também possível suspender uma realidade registal, mas apenas determinar o seu cancelamento em resultado da procedência de ação que declare a invalidade do negócio que lhe serviu de suporte; não houve qualquer incumprimento das obrigações assumidas pelo 1.º Requerido no acordo de cessão da quota, pelo que a sua resolução pelo Requerente é ilícita; em qualquer caso, a quota já não existe como tal, uma vez que, em 20 de fevereiro de 2025, foi dividida em duas, uma com o valor nominal de € 296 000,00 e outra com o valor nominal de € 6 000,00; a primeira foi doada, em comum e em partes iguais, aos filhos do 1.º Requerido; a segunda foi unificada com a quota que já era titulada por este, gerando uma quota única com o valor nominal de € 306 000,00; sendo esta a realidade registal, a pretensão do Requerente está prejudicada ou impedida, o que deve determinar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
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2). Por despacho datado de 19 de março de 2025, foi decidido o indeferimento “liminar” (sic) da “presente providência cautelar” (sic), com a seguinte fundamentação (transcrição):
“No caso em apreço o requerente pretende suspender os efeitos do registo por depósito da aquisição da participação social do Rqte. pelo Rqdo. na sociedade EMP01..., Lda.
Ora se registo da cessão das quotas foi lavrado por depósito - artigo 53.º-A do Código de Registo Comercial, do registo por depósito não decorre a presunção da existência da situação jurídica registada – artigo 11.º do Código de Registo Comercial.
Prescreve o artigo 53.º-A do CRComercial: “1 - Os registos são efetuados por transcrição ou depósito. 2 - O registo por transcrição consiste na extractação dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo constantes dos documentos apresentados. 3 - Sem prejuízo dos regimes especiais de depósito da prestação de contas, o registo por depósito consiste no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo. (…)”
Como decorre deste n.º 2, no registo por transcrição existe um controlo, o qual é efetuado pelo conservador que promove o mesmo e que deverá diligenciar nos moldes previstos pelo artigo 47.º do mesmo código.
Já o registo por depósito consiste no mero arquivamento dos documentos, pelo que não está o mesmo sujeito a qualquer controlo da legalidade por parte do conservador – este último apenas deverá rejeitar o registo nos casos previstos no artigo 46.º do CRComercial (ou seja, com base em fundamentos meramente formais).
Como resulta do citado artigo 11.º do CRComercial, apenas goza de presunção registral (presunção da existência e veracidade da situação jurídica) o registo comercial por transcrição definitiva.
O registo por depósito já não beneficia dessa presunção, tratando-se de um registo de publicidade em que se dá notícia de determinado facto (não gozando, pois, de presunção de verdade, até porque, em face da ausência de controlo do documento levado a registo, em última escala, o mesmo até poderá conter inexatidões, erros ou mesmo falsidades).
Ora, se o registo da cessão de quotas in casu foi lavrado por depósito, a mesma não beneficia da presunção legal de titularidade da mesma (reitera-se que apenas goza desse valor presuntivo o registo por transcrição definitivo).
Por outra via, tendo as providências cautelares como única finalidade obviar ao perigo da demora de um determinado processo, o não nascimento deste ou a sua extinção provocam o seu fim.
E sendo a sua existência justificada pela urgência não é possível seguir uma tramitação que permita apurar com certeza da existência do direito cuja tutela se pretende assegurar, a qual apenas é possível apurar no processo principal. É suficiente para alcançar uma decisão cautelar provisória, uma prova informatória, um fumus boni iuris.
Este juízo de probabilidade séria deve recair não só sobre a existência dos factos constitutivos do direito ameaçado, mas também sobre a verificação dos pressupostos jurídicos da existência do direito. O juízo de probabilidade é aplicável quer às questões de facto, quer às questões de direito, colocadas ao juiz nos procedimentos cautelares. O juiz não tem que se convencer da veracidade dos factos que integram a causa de pedir, nem de que o direito invocado existe perante a prova desses factos, bastando que a existência dos factos seja provável, tal como a existência do direito.
Seguindo-se que não tendo o registo em causa o alcance que a requerente pretende discutir, a presente providência cautelar não deve ser admitida, desde logo por não se mostrar que se possa provar a grave ameaça de lesão grave do direito, nem a mesma se justifica em termos de necessidade de tutela nem sob o ponto de vista do princípio da proporcionalidade.”
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3). Inconformado com o assim decidido, o Requerente (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, sendo estas do seguinte teor (transcrição):
“1. Por muito respeito que mereça o vertido na decisão a quo, com a mesma não se pode de modo algum concordar, sendo que a presente decisão veio surpreender sobremaneira o aqui Recorrente, pois que, tendo indeferido liminarmente a providência, o Tribunal Recorrido não julgou corretamente.
2. Com tal decisão, o Mmo. Juiz a quo violou e fez errada aplicação e interpretação do disposto nos artigos 214.º, 217.º e 247.º do Código das Sociedades Comerciais; 11.º do Código do Registo Comercial; e 368.º do Código de Processo Civil.
3. Antes de nos debruçarmos sobre o efeito do registo propriamente dito, sempre teremos de concluir que a decisão sindicada padece de grave erro de julgamento, ao ignorar não só a finalidade preventiva da tutela cautelar, como também a realidade prática e jurídica das sociedades comerciais.
4. A natureza cautelar e instrumental da providência de suspensão impõe ao julgador a adoção de uma perspetiva preventiva e prudencial, e não uma exigência probatória que se aproximaria indevidamente dos critérios da ação principal.
5. Adicionalmente, ao recusar a suspensão dos efeitos do registo por depósito com base na alegada inexistência de prejuízo, o Tribunal a quo sacrifica, quanto a nós, desproporcionalmente os direitos do Requerente, sem qualquer ponderação efetiva entre os interesses em presença, violando, quanto ao mais, o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
6. O periculum in mora não exige um dano consumado ou plenamente concretizado. Basta, como decorre do artigo 368.º do Código de Processo Civil, a verificação de um fundado receio de que a demora na obtenção da tutela definitiva torne impossível ou muito difícil a reparação do direito lesado.
7. Tal requisito assume natureza eminentemente prospetiva e destina-se a prevenir que a morosidade da justiça comprometa o efeito útil da decisão final. O que é, manifestamente, patente nos presentes autos.
8. O registo da cessão de quotas em causa encontra-se manifestamente executado através do respetivo depósito junto do registo comercial, o que é facilmente aferível através de certidão permanente da sociedade, sendo certo que daí, e de per si, resultam diversas consequências graves!
9. Desde logo, confere aparência de legalidade e eficácia à cessão assim registada (tal qual no registo por transcrição, com a simples diferença da menção no respetivo averbamento), criando expectativas legítimas em terceiros de boa-fé com que a sociedade se possa relacionar.
10. Depois, fragiliza a posição jurídica e societária do Recorrente, em especial quando este resolveu, válida e atempadamente (o que é o mesmo que dizer que a resolução foi muito anterior ao registo por depósito) o negócio que, aparentemente, dá substância ao respetivo registo.
11. Por fim, e mais importante ainda, o Recorrente perde, ou pelo menos coarta, os seus direitos patrimoniais e societários! O mero registo por depósito, ainda que não tenha a dita presunção de titularidade defendida pela decisão recorrida, tem o condão de, ao menos, beliscar vários direitos do sócio (v.g. direito à informação – artigo 214.º do CSC; direito ao voto nas deliberações – artigo 247.º do CSC; direito à distribuição de lucros – artigo 217.º do CSC, entre outros…), o que levará à sua perda de controlo societário, influência nas decisões ou exclusão de lucros futuros.
12. Em suma, perante o registo já efetuado da cessão de quotas contestada, o periculum in mora assume expressão clara, atual e intensa, não podendo ser ignorado sob pena de a providência cautelar perder a sua razão de ser. O registo alterou a estrutura societária e coartou direitos ao Recorrente de forma imediata. A reversão desses efeitos, caso não seja evitada preventivamente, tornar-se-á extraordinariamente complexa e certamente subtrairá muitos mais recursos com litígios (como a impugnação sucessiva de deliberações tomadas, entre outros).”
Concluiu que, na procedência do recurso, o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que decrete a providência cautelar requerida.
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4). Os Requeridos (daqui em diante, Recorridos) responderam, pugnando pela improcedência do recurso. Acrescentaram que se assim não for entendido, o Tribunal da Relação deve declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. Em qualquer caso, não poderá ser decretada a providência uma vez que os factos que substanciam o fumus boni iuris foram impugnados, havendo que produzir prova sobre eles.
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5). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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6). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
Tendo isto presente, a questão que se coloca no presente recurso pode ser sintetizada nos seguintes termos: a decisão de indeferir “liminarmente” a “presente providência cautelar” (sic), com os fundamentos indicados pelo Tribunal a quo, assenta num erro de direito, mais concretamente num erro de “aplicação e interpretação do disposto nos artigos 214.º, 217.º e 247.º do Código das Sociedades Comerciais; 11.º do Código do Registo Comercial; e 368.º do Código de Processo Civil”?
Em caso de resposta afirmativa, haverá que aferir das consequências processuais da revogação da decisão recorrida à luz do contencioso de plena jurisdição que enforma o nosso sistema recursal.
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III.
1). Na resposta à questão enunciada há que considerar os factos relativos ao iter processual descritos no ponto 1). do Relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
Há que considerar também os seguintes factos:
1. A constituição da sociedade comercial 2.ª Requerida foi inscrita no registo comercial através da apresentação n.º 15, de 29 de novembro de 1983, nos seguintes termos: “Firma: EMP01..., Lda. (…) Natureza jurídica: sociedade por quotas (…) Objeto: indústria de estamparia de tecidos; Capital: € 600 000,00; Sócios e quotas: Quota: € 300 000,00 – Titular: BB (…) Quota: € 300 000,00 – Titular: AA (…)”, conforme certidão permanente com o código de acesso n.º ...14, apresentada como documento 1 com o requerimento inicial, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
2. Por escrito datado de 2 de outubro de 2023, o Requerente, como 2.º outorgante, e o 1.º Requerido, como 1.º outorgante, declararam que: “Considerandos: A) São sócios na proporção de 50% do capital, bem como gerentes, das seguintes sociedade: EMP01..., Lda., (…); / EMP02..., Lda. (…) / EMP03..., Lda. (…) B) Os outorgantes não pretendem continuar sócios e gerentes das aludidas sociedades (…), pelo que chegaram ao seguinte acordo que consubstanciam neste documento, nos termos das cláusulas seguintes: 1.ª Os 1.ºs outorgantes cedem aos 2.ºs outorgantes ou às pessoas singulares ou coletivas que estes venham a indicar as quotas que detêm nas sociedades acima identificadas e que por brevidade se designam de EMP02... e EMP03..., com todos os direitos e obrigações, designadamente, suprimentos, prestações suplementares e responsabilidades pessoais; / 2.ª Os 2.ºs outorgantes cedem aos 1.ºs outorgantes ou às pessoas singulares ou coletivas que estes venham a indicar a quota que detêm na sociedade acima identificada e que por brevidade se designa de EMP01..., com todos os direitos e obrigações, designadamente, suprimentos, prestações suplementares e responsabilidades pessoais; / 3.ª Como os valores das cedências das quotas referidas nas cláusulas imediatamente anteriores das cedências de quotas não são iguais, em pagamento da diferença, os 2.ºs outorgantes obrigam-se a pagar aos 1.ºs a quantia global de € 5 000 000,00 e a ceder sem haver contrapartida de pagamento de preço, do edifício da EMP02... (…) a parte correspondente ao espaço atualmente ocupado pela EMP01...; / 4.ª O pagamento referido na cláusula imediatamente anterior será efetuado no prazo de 10 anos a contar da presente data, em prestações mensais, na forma, local e modo a acordar em documentos a serem celebrados e que os outorgantes, desde já, se obrigam a assinar quando for efetuada a sua redação; / 5.ª A escritura a titular a cedência do imóvel referida na cláusula 3.ª será celebrada quando estiver constituída a propriedade horizontal que fracione autonomamente o aludido edifício em duas frações autónomas, haja as respetivas licenças e nos termos, condições, prazo e modo que forem acordados entre os outorgantes a ser determinado no documento a redigir já referido na cláusula anterior; 6.ª Os documentos referidos na cláusula 4.ª serão celebrados no prazo em que estiverem reunidas todas as condições para o efeito, designadamente junto das repartições públicas com os respetivos licenciamentos e bancos com as exonerações das responsabilidades pessoais; (…) 11.ª Em relação à gerência das referidas sociedades, aceitam em alterá-las no sentido de em relação à EMP02... e EMP03... ser designado único gerente, com todos os poderes de gerência o 2.º outorgante (…) e quanto à EMP01... ser designado único gerente o 1.º outorgante (…), nos mesmos termos, pelo que no prazo de 15 dias a contar da presente data, obrigam-se a realizar assembleias e deliberarem nestes termos, assinando as respetivas atas; / 12.ª A partir da referida data da nomeação referida na cláusula imediatamente anterior as responsabilidades de gerente e da gerência das referidas sociedades é única e exclusivamente daqueles, tanto em termos sociais como pessoais e para todos os efeitos contratuais e legais; / 13.ª As responsabilidades pessoais existentes À presente data e respeitantes a cada uma das referidas sociedades, são assumidas única e pessoal pelos 1.ºs outorgantes relativamente à EMP01... e pelos 2.ºs outorgantes quanto à EMP02... e EMP03..., que durante o prazo a acordar com os bancos e de acordo com estes, outorgarão os respetivos documentos das desonerações, obrigando-se cada um deles a assinar os documentos que para o efeito sejam necessários e exigidos por aqueles; / 14.ª Os outorgantes atribuem ao presente acordo eficácia real e carácter irrevogável, pelo que se obrigam ao seu cumprimento definitivo, sob pena de os outorgantes não faltosos poderem recorrer a juízo pedindo a condenação do faltoso no seu cumprimento, bem como uma indemnização para os compensar de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que, porventura, venham a suportar devido ao incumprimento (…)”, conforme documento apresentado sob o n.º 5 com o requerimento inicial, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
3. Por escrito datado de 17 de abril de 2024, dirigido ao 1.º Requerido, o Requerente declarou que: “a) à data da assinatura de tal documento, o mercado têxtil apresentava-se em queda ligeira, em linha com a economia global, tendo em consideração as circunstâncias históricas que têm vindo a causar a retração da procura, como o aumento da inflação, aumento de taxa de juros e aumento dos custos de produção. b) Os valores adiantados naquela data tiveram em consideração um normal comportamento do mercado naquela linha, e assim seriam considerados valores altos, mas ainda assim aceitáveis. c) Todavia, de lá para cá, como é do seu conhecimento, o mercado têxtil tem caído de forma abrupta e muito acima do expectável, d) De tal forma, que a rentabilidade do negócio apresenta quebras na ordem de, pelo menos, 30%, o que hoje é público e notório, e) Por outro lado, a sua verificação ocorreu essencialmente no último trimestre de 2023, em momento posterior ao das conversações que estiveram na base do referido documento. f) Esta circunstância é de tal forma relevante que implica uma alteração superveniente das circunstâncias e dos pressupostos de proposta de valor de aquisição de 50% da EMP02.... g) Sucede que, exatamente em face dessa conhecida alteração das circunstâncias apresentei já propostas de valor adequado às alterações de condições de mercado que se verificam efetivamente, sempre tendo obtido uma recusa perentória da parte de V. Exa., sem qualquer tipo de abertura em negociar, h) Não obstante a intenção manifestada de reduzir o valor da prestação prevista naquele acordo de intenções, no sentido de poder prosseguir a concretização de todo o seu restante conteúdo, a verdade é que em face da sua recusa em aceitar as propostas revistas, não me é exigível que arque de forma unilateral com o agravamento tão relevante e abrupto das condições de mercado e que apenas se revelariam em meu desfavor, tornando-se por isso inexigível a manutenção do acordo, que deve, nos termos do disposto no artº 437 do Código Civil ser considerado resolvido, principalmente pela sua recusa em modificar os termos das intenções originais ali vertidas. Acresce que, e não fosse essa circunstância suficiente, i) Tive conhecimento que V. Exa. convocou, por meio de advogada ou pessoalmente, clientes e fornecedores para reunir, vindo a reunir com pelo menos dois deles, que nos relataram que essa reunião, sob um pretexto de consideração pessoal visou expor a sua desconfiança para com a gestão da EMP02... e invocar factos absolutamente difamatórios, por falsos, mas ainda pior manifestar as suas intenções disruptivas na relação societária, nomeadamente a intenção de realização de uma auditoria e, pasme-se, do sentido de voto quanto a contas que nem sequer foram ainda apresentadas... j) Esta conduta, além de violar a mais elementar boa-fé e lealdade entre dois sócios, e ser ofensiva para a minha pessoa e meus filhos que comigo gerem a empresa, tem vindo a causar, como pretendido, uma desconfiança crescente de clientes e parceiros, tendo a EMP02... sentido perdas de 12% no primeiro trimestre de 2024, e de 28% concretamente em fevereiro e março, este valor diretamente como causa de tais considerações que achou por bem fazer sobre as relações internas entre sócios! k) Naturalmente, esta circunstância cria um obstáculo acrescido à normal atividade da empresa, com uma óbvia diminuição de vendas e rentabilidade, a acrescer àquela que acima referi, e que dificulta ainda mais o cumprimento de qualquer prestação que se entenda a que eu esteja obrigado. l) De facto, pela sua conduta, mesmo que entendesse ser de cumprir os estritos termos do documento assinado a 2 de outubro passado, torna-se hoje inexigível cumprir a prestação de valor ali prevista, pura e simplesmente porque V. Exa. parece ter passado a dedicar-se a boicotar a atividade e bom nome da EMP02... e da sua gestão. Dito isto, Além de considerar qualquer eventual acordo, cuja existência não admito, resolvido por alteração das circunstâncias, mais considero que o comportamento de V. Exa. ainda dificulta o respetivo cumprimento a um ponto que o torna impossível, considerando-me desobrigado de o cumprir”, conforme documento apresentado sob o n.º 8 com o requerimento inicial, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
4. Esse escrito foi enviado ao 1.º Requerido, por carta, no dia 18 de abril, e por ele recebido no dia seguinte;
5. No dia 19 de setembro de 2024 foi feito o registo (Dep. 3400) da transmissão da quota do Requente para o 1.º Requerido, conforme certidão permanente com o código de acesso n.º ...74, apresentado como documento 3 com a oposição, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido.
6. Esse registo foi promovido pela 2.ª Requerida através do depósito do escrito do ponto 2, conforme documento apresentado sob o n.º 6 com o requerimento inicial, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
7. Por escrito datado de 20 de fevereiro de 2025, denominado de “Divisão , doação e unificação de quotas, o 1.º Requerido e o respetivo cônjuge, CC, como 1.ºs outorgantes, DD, como 2.º outorgante, EE, como 3.º outorgante, e FF, como 4.ª outorgante, declararam que: “Considerando que: A) os 1.ºs outorgantes adquiriram de AA, em 2/19.2013, uma quota com o valor nominal de € 300 000,00, representativa de 50% do capital social da sociedade comercial por quotas que gira sob a firma EMP01..., Lda. (…) B) Os 1.ºs outorgantes, anteriormente à cessão de quota mencionada no considerando antecedente, eram já titulares de uma quota com o valor nominal de € 300,00, representativa dos restantes 50% do capital social da sociedade (…) é celebrado o presente contrato de divisão, doação e unificação de quotas que se vaio reger pelo clausulado seguinte: 1.ª (Da divisão): Os 1.ºs outorgantes dividem em duas a quota adquirida pela cessão referida no considerando A), da seguinte forma: uma quota com o valor nominal de € 6 000,00 e outra quota com o valor nominal de € 294 000,00; / 2.ª (da doação): 1. Os 1.ºs outorgantes doam a quota ora criada com o valor nominal de € 294 000,00, em comum e em partes iguais, aos segundo, terceiro e quarto outorgantes, seus filhos, por conta da legítima, atribuindo à doação o valor nominal da quota doada (…) / 3.ª (Da unificação): Os 1.ºs outorgantes unificam a quota que detinham originalmente no capital da sociedade, com o valor nominal de € 300 000,00, e a quota ora criada, com o valor nominal de € 6 000,00, gerando uma quota única de € 306 000,00, dela passando a ser titular inscrito o 1.º outorgante”, conforme documento apresentado sob o n.º 2 com a oposição, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
8. O presente procedimento cautelar foi inscrito no registo predial por depósito (Dep. ...00/2024), no dia 28 de novembro de 2024, conforme certidão permanente com o código de acesso n.º ...74, apresentada como documento 3 com a oposição, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido.
9. A transmissão e a unificação de quotas referidas no ponto anterior foram registadas por depósito (Dep.’s 70/2025 e 71/2025), no dia 17 de março de 2025, conforme certidão permanente com o código de acesso n.º ...74, apresentada como documento 3 com a oposição, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido.
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2). Os factos dos pontos 1., 5., 6., 8. e 9. estão provados através de documento autêntico; os dos pontos 2., 3. e 7. decorrem de documentos particulares indicados a propósito de cada um deles, cuja autoria e conteúdo material não foram impugnados[1]; o do ponto 4., alegado pelo Requerente, não foi impugnado pelos Requeridos.
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IV.
1). Expostos os factos a considerar, vejamos a resposta a dar à questão enunciada, começando por fazer uma precisão terminológica: ao contrário do que nele foi escrito, o despacho recorrido não indeferiu a pretensão do Recorrente liminarmente. Indeferiu-a subsequentemente (à oposição dos Requeridos). Trata-se, no fundo, de uma decisão que, dispensando a produção de prova, antecipou o conhecimento do mérito do procedimento cautelar, à semelhança do que sucede, no processo declarativo comum, com o despacho saneador-sentença – id est, com o despacho saneador em que o juiz, sem necessidade de mais provas, procede à apreciação do pedido formulado ou de alguma exceção perentória (cf. art. 595/1, a), do CPC) –, o que se apresenta como processualmente admissível, não obstante a falta de uma norma que expressamente o preveja. Neste sentido, escreve António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, III, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 186) que “se o juiz já tiver elementos [findo o prazo da oposição] para conhecer, com segurança, a questão de fundo, nada obsta a que proceda à emissão da correspondente decisão, de modo semelhante ao que ocorre no âmbito do processo declarativo e independentemente de a decisão ser favorável ao requerente ou ao requerido.” Esta leitura encontra arrimo no disposto no art. 367/1 do CPC vigente, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06 (= art. 386/1 do CPC de 1961, aprovado pelo DL n.º 44129, de 28.12, na redação do DL n.º 329-A/95, de 12.12).
A qualificação de “despacho liminar” – e a de “indeferimento liminar”, que é uma das suas possibilidades – deve ser reservada para o despacho que ao juiz cabe proferir quando a petição inicial lhe seja apresentada, ut art. 590/1 do CPC, antes da citação do requerido.
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2). Feita esta precisão, acrescentamos, que, como é próprio do procedimento cautelar comum, o decretamento da providência pretendida pelo Recorrente – a suspensão dos efeitos do registo da transmissão da quota de que era (é?) titular no capital social da 2.ª Recorrida para o 1.º Recorrido – tem como pressupostos: (i) a aparência de existência de um direito; (ii) um fundado receio de que outrem cause uma lesão nesse direito durante a natural demora na resolução definitiva do litigio (periculum in mora); (iii) a gravidade dessa lesão; iv) A natureza dificilmente reparável dessa mesma lesão; (iv) a concreta adequação da providência cautelar para assegurar a efetividade do direito em causa; (v) o prejuízo resultante para o requerido da providência cautelar em causa não exceder consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (art. 368/1 e 2 do CPC).
Dizendo de outra forma, a função instrumental da tutela cautelar implica necessariamente a limitação das medidas decretadas às situações de carência de tutela jurisdicional de um direito ou de uma posição juridicamente protegida. Pressupõe-se, assim, para o decretamento de uma providência, a existência, sumariamente analisada, de um direito subjetivo na esfera jurídica do requerente no momento em que a pretensão é deduzida, tudo levando a crer que a ação definitiva será procedente. A referida análise sumária, consequência da natureza urgente do procedimento, significa que basta um juízo de verosimilhança, a dita summaria cognitio, que não se compadece com as exigências probatórias próprias do processo principal.
Não basta esse fumus boni iuris; o decretamento da providência pressupõe, também, o fundado receio de que a demora na ação principal cause uma lesão grave e dificilmente reparável ao direito de que o requerente é titular. Aqui exige-se a formação de um juízo de certeza semelhante, pelo menos, ao pressuposto por qualquer demonstração probatória feita em juízo. Por outro lado, não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte; exige-se que esteja em causa uma lesão grave e dificilmente reparável. A análise deste requisito deve ser especialmente cuidadosa quanto estejam em causa direitos de natureza patrimonial. Nestas devem ser ponderadas as condições económicas de requerente e requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados (cf. António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil cit., pp. 84-85).
O perigo dessa lesão ocorrer deve ser aferido objetivamente, com apoio em factos que permitam afirmar a seriedade e atualidade da ameaça, e não à luz de estados subjetivos, dúvidas ou conjeturas do requerente, o que é imposto pelo adjetivo fundado.
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3). Se bem percebemos a decisão recorrida, o indeferimento da pretensão do Recorrente fundou-se na inexistência, face ao alegado no requerimento inicial, de uma situação em que, numa lógica de proporcionalidade, a natural demora na decisão da ação definitiva constitua “ameaça de lesão grave do direito” que o Recorrente visa tutelar. Quid inde?
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3).1. Começamos por lembrar que o Recorrente, alegando a sua qualidade de titular de uma quota no capital social da 2.ª Recorrida, uma sociedade comercial por quotas, pretende que sejam suspensos os efeitos da inscrição no registo comercial de um ato, de natureza negocial, de transmissão dessa quota para o património do 2.º Recorrido. Alega, para tanto, que o ato inscrito não importou a transmissão da quota, que assim permanece no seu património. De qualquer modo, uma eventual transmissão da quota, a ter existido, sempre teria ficado sem efeito (ex tunc) por via da resolução do ato com base no qual foi lavrado o registo. Alega, finalmente, a um tempo, que até à decisão da “ação de anulação do registo” – que, assim, configura como a ação definitiva –, está impedido de exercer os seus direitos sociais e, a outro, que o 1.º Requerido está “habilitado” a retransmitir a quota a um terceiro.
Daqui resulta que o Recorrente visa tutelar, por um lado, o seu direito sobre a referida quota, enquanto objeto jurídico, e, por outro, os direitos subjetivos que ela lhe confere no contexto da sociedade e que são inerentes ao status socii.
Explicando esta afirmação diremos que, como é sabido, no direito português, todas as sociedades comerciais têm personalidade jurídica. Por esta razão, os sócios não têm um direito sobre o património nem sobre o estabelecimento da sociedade. Se não tivesse personalidade jurídica, a participação social incidiria sobre esse património e sobre esse estabelecimento. Atenta a personalidade de todas as sociedades comerciais, a participação dos sócios nessas sociedades incide sobre a parte social. A propósito, vide Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, p. 370.
Nos vários tipos legais de sociedades comerciais, a parte social assume designações diversas. Na sociedade por quotas as respetivas partes sociais são denominadas quotas.
O objeto da participação social é a parte social, é sobre ela que incide o direito do sócio. Só nas sociedades unipessoais a parte social corresponde à totalidade da sociedade; nas sociedades pluripessoais, corresponde a uma parte dela, e daí a sua designação.
O entendimento da parte social como objeto da participação social enfrenta uma dificuldade dogmática. Se a sociedade é pessoa jurídica, então não poderia ser objeto, porque é sujeito.
Como salienta Pedro Pais de Vasconcelos (A Participação cit., p. 371), a objeção só aparentemente é relevante. Costuma ser invocada contra a construção do direito subjetivo de personalidade como um jus in se ipsum: o direito subjetivo de personalidade não pode ter como objeto a própria pessoa do seu titular porque, enquanto pessoa, não pode ser objeto de um direito subjetivo. Porém, ao ser transposto para as pessoas coletivas o argumento perde quase toda a sua força, porque só as pessoas singulares são dotadas de uma dignidade e de um estatuto no Direito que não permite que possam ser objeto de direitos. As pessoas coletivas, diferentemente das pessoas singulares, não têm, no Direito, nem a dignidade das pessoas singulares, nem o seu estatuto ético-ontologicamente fundante. A personalidade coletiva é uma ficto iuris, uma técnica jurídica de regulação de interesses humanos, institucionalizados ou coletivos. Responde a uma necessidade técnico-jurídica de facilitar a autonomização entre o sócio e a sociedade, no aspeto pessoal (imputação de situações jurídicas) e patrimonial (principalmente a limitação da responsabilidade), e ainda de titularidade e transmissão, circulação e oneração da participação social.
Nesta perspetiva de eficiência e de praticabilidade no exercício jurídico, há que distinguir entre as sociedades com personalidade e aquelas que a não têm. Na sociedade sem personalidade, a participação social incide sobre a comunhão, o fundo comum e, por isso, no direito alemão é designada como sociedade de mão comum (Gesamthand). Na sociedade personalizada, a participação social não incide sobre o fundo comum, nem sobre o património, nem sobre o estabelecimento da sociedade, que são dela, sociedade, mas sim sobre a parte social, sobre a quota ou sobre as ações, consoante o respetivo tipo legal (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, II, Coimbra, 1968, p. 84; Alexandre Soveral Martins, “Da personalidade e capacidade jurídicas das sociedades comerciais”, Estudos de Direito das Sociedades, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, p. 102).
Esta conclusão resulta do regime de titularidade, transmissão e oneração da parte social, que está construído de tal modo que a parte social nele é tratado como objeto: as partes sociais, as quotas e as ações são objeto de transmissão (cessão de quotas, compra e venda de ações), sucessão por morte (legado) e também de oneração (usufruto, penhor, penhora). No regime jurídico das entradas, há uma transmissão do respetivo objeto da titularidade do sócio para a da sociedade. Mesmo no direito fiscal, a participação social é tratada como património do sócio.
No seu regime técnico-jurídico, a parte social é tratada como objeto de direitos. Este objeto não tem de ser uma coisa, embora possa sê-lo, como no caso das ações tituladas que são coisas móveis. Já as quotas não estão juridicamente coisificadas como as ações e mantêm-se como direitos que são transmitidos por cessão. Como decorrência, não suscita dúvida que as ações tituladas, enquanto coisas, são suscetíveis de posse e de usucapião, ao contrário do que sucede com as quotas, que não são coisas. É, aliás, significativo notar que o CSC não fala em direito de propriedade sobre a quota, mas de titularidade (exemplificativamente, arts. 222, 233 e 269), o que se conjuga com o disposto no art. 1302 do Código Civil, onde se diz que só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto do direito de propriedade.
Mas a participação social, além de ser objeto de direitos, confere ao seu titular um conjunto de direitos – os ditos poderes do sócio – que tanto assumem natureza patrimonial – o direito de obter a quota parte nos lucros , como natureza administrativa – a participação nos órgãos da sociedade, a obtenção de informações, a participação no processo de formação da vontade da sociedade, através da apresentação, discussão e voto de propostas, a impugnação de deliberações e mesmo a exoneração da sociedade.
Tais direitos “encontram com facilidade a unidade funcional imprescindível para que possam ser unificados num único direito subjetivo”, visto que todos eles contribuem, isolada ou conjuntamente, “para que obtenha êxito a afetação jurídica do sócio ao bem patrimonial que para ele representa a participação social, para a realização do seu fim: obter lucro do seu investimento na sociedade” (Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social cit., p. 491). Isto permite “enquadrar e unificar num único direito subjetivo – o direito social – a componente ativa da participação social” (idem, ibidem).
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3).2. Do que antecede, resulta que a quota pode ser objeto de negócios jurídicos, designadamente translativos – isto é, que têm como efeito prático-jurídico a transmissão da respetiva titularidade.
A transmissão da titularidade da quota – que, quando feita de forma voluntária e inter vivos, se denomina cessão (Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, I. 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 577; J. M. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 366), conceito utilizado no art. 228 do CSC e que abrange várias situações, como a compra e venda, a doação, a dação pro soluto e outros negócios, típicos e atípicos (Alexandre de Soveral Martins, Cessão de Quotas, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, pp. 15-16; Pedro de Albuquerque, “Art. 228.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 797) –, implica que o transmitente (cedente)deixa de ser o titular do apontado direito subjetivo unitário, o qual passa para a esfera jurídica do transmissário (cessionário). Compreende-se, por isto, que se afirme que, a partir do momento em que transmissão se torna eficaz perante a sociedade, esta “conhece – e só conhece – o transmissário como titular da quota” (Raúl Ventura, Sociedades por Quotas cit., p. 592).
Encontra-se sujeita ao regime da cessão de direitos (cf. arts. 425, 578/1 e 588 do Código Civil), atenta a natureza do seu objeto – a titularidade de direitos ou de um direito subjetivo unitário –, donde resulta que é enformada pelos princípios da causalidade e da consensualidade. Com efeito, pressupõe a existência e validade de um contrato-título como sua causa. A invalidade de tal contrato conduz, inexoravelmente, à invalidade dos negócios subsequentes (cessante causa cessat effectus), por efeito do disposto no art. 289/1 do Código Civil, onde se afirma a eficácia retroativa real da nulidade e da anulabilidade dos negócios jurídicos, por falta de legitimidade do cedente – não titular. Por outro lado, opera solo consensu, ou seja, por mero efeito do acordo de vontade das partes (art. 408/1 do Código Civil), substancial e formalmente válido, sem necessidade de um ato que atribua efetivamente ao cessionário a titularidade da quota, como sucederia se dependesse da traditio ou da inscrição no registo (que então se assumiria como constitutivo e, portanto, necessário à transmissão do direito, e não, como sucede, meramente declarativo e mera condição de oponibilidade a terceiros). Assim, Jorge Simões Cortez, “As formalidades da transmissão de quotas e ações no direito português: dos princípios à prática”, AAVV, Maria de Fátima Ribeiro / Fábio Ulhoa Coelho (coord.), Questões de Direito Societário em Portugal e no Brasil, Coimbra: Almedina, 2012, pp. 313-342); Margarida da Costa Andrade, “Art. 242.º-A”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, III, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2023, p. 653.
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3).3. Já perante a sociedade, que estando dotada de personalidade jurídica diversa dos seus sócios, é terceiro relativamente ao ato translativo (cf. art. 406/2 do Código Civil), os efeitos da cessão, condição para que o transmissário passe a ser tratado como o titular da quota, não se produzem ipso facto com a celebração do contrato, que deve revestir forma escrita, cf. resulta do art. 228/1 do CSC, na redação do DL n.º 76-A/2006, de 29.03, que eliminou a anterior exigência de escritura pública, assim revogando o art. 80/2, i), do Código do Notariado.
Tais efeitos estão, na verdade, dependentes de vários atos, o primeiro dos quais – o consentimento da sociedade – pode ser anterior ou ulterior à cessão.
Neste sentido, diz o art. 228/2, 1.ª parte, do CSC que “[a] cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta.” O consentimento constitui um ato jurídico unilateral, a prestar mediante deliberação dos sócios (art. 246/1, b), do CSC), que não carece de maioria qualificada. (cf. Alexandre de Soveral Martins, “Sobre o consentimento da sociedade”, BFDUC, Volume Comemorativo - 75 anos, 2002, pp. 573-688). Pode ser prestado de forma expressa ou tácita.
Compreende-se esta exigência, sem o cumprimento da qual a cessão é ineficaz em relação à sociedade (STJ 7.02.2017, 153/04.9TYLSB.L1.S1, Alexandre Reis): como escreve Raúl Ventura (Sociedades por Quotas cit., pp. 583-584), “[a] cessão duma quota traz à superfície um possível conflito de interesses. O sócio titular da quota tem interesse na realização imediata e fácil do valor pecuniário da quota, que consegue como meio de saída da sociedade. Os outros sócios podem ter interesse em que o seu sócio não seja substituído por um terceiro – ou por um certo terceiro ou por nenhum terceiro, isto é, podem querer evitar que na sociedade entre alguma pessoa indesejável sob qualquer aspeto ou podem ter interesse em que na sociedade se mantenha o sócio em questão.”
Deste modo, enquanto a cessão não for consentida, a sociedade pode ignorá-la, tudo se passando como se ela não tivesse existido. Continuará a ser o cedente, e não o cessionário, o titular da legitimidade para exercer os direitos sociais. Isto sem prejuízo do efeito ex tunc do consentimento superveniente, defendido na doutrina por Pedro de Albuquerque (loc. cit., p. 798) e negado em STJ 8.07.2003 (Rev. 1938/03-2.ª Secção), Ferreira de Almeida (Sumários de Acórdãos do STJ, 2003, pp. 349-350[2]).
Sendo esta a razão subjacente à exigência do consentimento da sociedade enquanto condição de eficácia em relação a si da cessão de quotas, compreende-se também que se prescinda dele quando este negócio seja celebrado entre sócios, conforme resulta da parte final do referido art. 228/2 do CSC. À luz deste segmento normativo, é inócuo a alegação feita pelo Recorrente no sentido de o suposto ato de cessão não ter sido consentido pela 2.ª Requerida: tanto ele (cedente), como o 2.º Requerido (cessionário), eram, ao tempo, sócios da sociedade, pelo que o ato se impunha a esta, independentemente do consentimento.
Para além do consentimento, quando não dispensado pela lei ou pelo contrato de sociedade (art. 229/2 e 3 do CSC), existem outras duas condições de eficácia da cessão relativamente ao ente societário: (i) a comunicação da cessão, feita por escrito, ou o seu reconhecimento, expresso ou tácito (art. 228/3 do CSC); e (ii) a solicitação da promoção do registo (cf. art. 242-A do CSC, na redação do art. 11.º do DL n.º 8/2007, de 17.01).
Os dois atos não se confundem, muito embora se possa questionar se o primeiro (comunicação da cessão) torna dispensável o segundo (solicitação do registo) e, bem assim, se constitui, per se, a sociedade no dever de promover o registo.
A propósito da primeira destas dúvidas – a única que releva para a questão decidenda –, diremos que é razoável uma resposta afirmativa. Neste sentido, J. M. Coutinho de Abreu (Curso cit., p. 369) escreve que “deve entender-se que a (documentada) solicitação à sociedade para que promova o registo da cessão de quota, feita pelo cedente e/ou pelo cessionário, vale também como comunicação à sociedade dessa cessão”, entendimento que é também expresso por Alexandre de Soveral Martins (Cessão de Quotas cit., p. 95), que acrescenta que “[n]ão há qualquer exigência de que a comunicação da cessão seja realizada mediante a utilização de uma fórmula, pelo que a solicitação da promoção do registo de uma cessão de quota realizada vale como comunicação dessa mesma cessão.” Defendendo igual solução, vide Maria Miguel Carvalho, “Algumas questões relacionadas com a deliberação de amortização compulsiva na sequência de uma cessão de quota não consentida pela sociedade”, AAVV, III Congresso Direito das Sociedades em Revista, Coimbra: Almedina, 2014, pp. 201-223.
Iremos ver, mais à frente, como se processa o registo da cessão de quotas. Por agora importa apenas ter presente, para melhor compreensão do que acabámos de escrever, que o ato deve ser registado, o que cabe à sociedade promover. Com efeito, resulta do art. 3.º/1, c), do Código do Registo Comercial (CRC) que a transmissão de quotas de sociedades por quotas está sujeita a registo obrigatório (art. 15 do CRC). Esse registo é feito por depósito (art. 53-A/5, a), do CRC, na redação da Lei n.º 8/2007, de 17.01). De acordo com o n.º 5 do art. 29 do CRC, “[s]alvo no que respeita ao registo de ações e outras providências judiciais, para pedir o registo de atos a efetuar por depósito apenas tem legitimidade a entidade sujeita a registo”, o que se conjuga com o disposto no art. 248-B/1 do CSC, também na redação do DL n.º 8/2007, onde se diz que “[a] sociedade promove os registos relativos a factos em que, de alguma forma, tenha tido intervenção ou mediante solicitação de quem tenha legitimidade, nos termos do número seguinte” (n.º 1) e que “[t]êm legitimidade para solicitar à sociedade a promoção do registo: a) O transmissário, o transmitente e o sócio exonerado; b) O usufrutuário e o credor pignoratício.”
Do exposto resulta que, ademais da comunicação do ato de cessão, apenas a solicitação da promoção do registo constitui requisito de eficácia perante a sociedade.[3] Dito de outra forma, nem a promoção nem a realização do registo, atos logicamente situados a montante da sua solicitação, constituem requisitos de que dependa a eficácia da cessão perante a sociedade, o que, diga-se, se conjuga com o disposto no art. 170 do CSC, onde se pode ler que “[a] eficácia para com a sociedade de atos que, nos termos da lei, devam ser-lhe notificados ou comunicados não depende de registo ou de publicação.” Assim, Alexandre de Soveral Martins (Cessão de Quotas cit., pp. 24-25). Também Margarida Costa Andrade (“Art. 242.º-A cit., p. 654, e “Art. 170.º”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, II, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 867) sufraga este entendimento, notando que “[n]ão teria sentido que a eficácia perante a sociedade aguardasse um registo que vai ser promovido e controlado por ela própria. Ou porque a promoção lhe foi requerida pelos intervenientes, ou porque ela interveio no facto.” Contra, defendendo que “enquanto não for registada a cessão, ela não produz efeitos perante a sociedade”, Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 458, entendimento que nos parece não ter suporte legal nem se justifica quando se pondere a natureza específica do terceiro em relação ao ato que é a sociedade. A propósito, Sofia Henriques (“Art. 170.º”, AAVV”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 682), escreve mesmo que “quando se verifique o dever de notificar ou de comunicar, a sociedade não funciona como terceiro.”
Estas breves considerações desvelam-nos que a providência cujo decretamento é pretendido pelo Recorrente se apresenta, afinal, absolutamente inócua para esconjurar o perigo decorrente de se ver excluído do exercício dos direitos sociais decorrentes da titularidade da quota cuja cessão foi objeto do registo. A ter ocorrido a cessão, os seus efeitos, no confronto com a sociedade, produziram-se no momento que o ato foi comunicado a esta, o que aconteceu, pelo menos, quando recebeu a solicitação para a promoção do registo.
Decretar a providência seria, nesta dimensão, um ato carecido de qualquer sentido.
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3).4. O que antecede não basta, porém, para que a pretensão do Recorrente seja negada nesta dimensão. É que, como resulta do disposto no art. 376/3, 1.ª parte, do CPC, “[o] tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida.”
De acordo com Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, pp. 84-85), esta norma, “maleabilizando um pouco o princípio do dispositivo”, permite que o juiz decrete “a providência mais adequada, desde que contida nos limites do objeto da ação principal e não incompatível com a vontade manifestada no procedimento cautelar”, consagrando orientação semelhante à do § 938 I da ZPO alemão, que permite ao juiz determinar, segundo o seu prudente arbítrio, as providência cautelares necessárias ao fim pretendido, desde que estejam em conformidade com o requerido. Os autores acrescentam que trata-se de “um poder judicial de adequação material, de algum modo paralelo ao exercido quando o juiz profere despacho de aperfeiçoamento dum articulado deficiente (art. 590/2, b), mas agora substituindo-se o tribunal à parte, tida em conta a urgência do procedimento cautelar” e que “[r]equisito para que possa ser exercido é que a inadequação da providência concretamente requerida seja total, devendo, não fora a adequação judicial, levar à improcedência do pedido cautelar.”
É este também o entendimento expresso por António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma cit., pp. 308-311) face à norma semelhante constante do art. 392/3 do revogado CPC de 1961, na redação do DL n.º 329-A/95, de 12.12, que conclui a sua exposição escrevendo que assim se “confere ao juiz maior liberdade de adaptação da medida cautelar adequada à situação de facto carecida de tal tipo de tutela provisória, de modo que, diversamente do que está previsto para as ações com cariz definitivo (…), o juiz não está vinculado a conceder ou a recusar a medida solicitada, devendo decretar aquele que concretamente for adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado, desde que a matéria de facto alegada e provada permita tal convolação.” Ainda no mesmo sentido, Carlos Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 1999, p. 288), que escreve que, em sede do procedimento cautelar comum, “assiste ao juiz a possibilidade de, ouvido o requerente, por força do princípio do contraditório, convolar do tipo de medida concretamente requerida para a que considere mais eficaz e adequada à tutela do direito invocado e à prevenção do periculum in mora concretamente verificado.”
Contra, considerando que a norma “concede ao juiz um poder de correção da errada qualificação da providência, mas não lhe atribui qualquer poder discricionário quanto à providência a decretar (ao contrário do que se estabelece no § 938 ZPO)”, Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online, CPC: art. 362.º a 409.º Versão de 2024/07, pp. 48-49). Também João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa; AAFDL, 2022, pp. 609-610), que escrevem que “[t]rata-se, no entanto, de corrigir o errado pedido do requerente em função da respetiva fundamentação; não se trata de permitir nem que o requerente formule um pedido indeterminado, nem que o tribunal conceda um aliud ou um plus do que o requerente, atendendo àquela fundamentação, deveria ter pedido.”
Sem entrar nesta discussão, diremos apenas que, no caso, ainda que fosse de cogitar a possibilidade de convolar a providência requerida para uma outra adequada a permitir que o Recorrente exerça os seus direitos sociais até à decisão da ação definitiva, partindo, para tanto, do pressuposto de que a sua intenção é a de eliminar o efeito jurídico da cessão da quota – ou, na sua tese, da putativa cessão da quota – perante a sociedade, sempre o procedimento estaria condenado ao insucesso. E por uma singela razão que, a nosso ver, é a que com maior evidência ressalta da leitura do requerimento inicial: a total falta de alegação de factos caracterizadores do periculum in mora.
Concretizando, lembramos que o Recorrente alegou, no requerimento inicial, que por via do registo do ato de cessão da quota, o 1.º Requerido ficou habilitado a exercer, perante a 2.ª Requerida, todos os direitos inerentes à qualidade de sócio, designadamente o direito de voto e o direito de receber, “por sua exclusiva deliberação” (sic), os dividendos da sociedade” e que, por outro lado, o Requerente ficou impedido de obter qualquer tipo de informação sobre a sociedade e de promover qualquer inquérito relativo a ela.
Isto mais não é que a afirmação genérica dos efeitos do negócio de cessão da quota. Não contém a afirmação de um potencial prejuízo concreto e, muito menos, a afirmação, necessariamente substanciada, da sua gravidade e difícil reparação.
Por outro lado, relembrando que o fundamento de toda a pretensão do Recorrente assenta na inexistência ontológicado ato de cessão da quota que foi objeto do registo, temos de acrescentar que, a ser assim, então pura e simplesmente não há quaisquer efeitos, sequer aparentes, que careçam de ser suspensos. Sem entrarmos aqui na discussão sobre se a inexistência constitui uma espécie autónoma da invalidade do negócio jurídico (a propósito, Carlos Ferreira de Almeida, “Invalidade, inexistência e ineficácia”, Católica Law Review, I, n.º 2, maio 2017, pp. 9-33), apenas diremos que as situação que a ela se reconduzem não são produtoras de quaisquer efeitos, ao contrário do que sucede nos casos de nulidade do negócio jurídico em que existe, por um lado, uma aparência da produção dos efeitos do negócio e, por outro, a produção efetiva de alguns efeitos residuais, ainda que não despiciendos, de que António Menezes Cordeiro (“Nulidade e Anulabilidade do negócio jurídico”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, p. 840) dá nota: “(…) a pessoa que, na base de um, negócio nulo, receba o controlo material de uma coisa, pode, em certos casos, beneficiar de uma posse que se presume de boa fé (art. 1259/1 e 1260/2); o possuidor de boa fé, por seu turno, faz seus os frutos da coisa (art. 1270/1) até que seja informado da nulidade.”
Deste modo, o Recorrente continua, de acordo com a sua tese, a poder exercer os direitos que, no confronto com a 2.ª Recorrida, lhe advêm da titularidade da quota. Se algum deles lhe for negado, poderá recorrer à via judicial, inclusive de natureza cautelar. A título de exemplo, se não convocado para uma assembleia geral, poderá pedir a declaração de nulidade das deliberações ali tomadas (art. 56/1, a), do CSC) e mesmo a suspensão da sua eficácia, “justificando a sua qualidade de sócio” e mostrando que a execução da deliberação lhe “pode causar dano apreciável.” Se privado do direito à informação, poderá, invocando a qualidade de sócio, requerer ao tribunal inquérito à sociedade (art. 216 do CPC). O que não parece curial é, antecipando a oposição ao exercício de tais direitos, procure salvaguardá-los em bloco sem invocar um concreto perigo de lesão de todos eles, mas apenas um perigo genérico e abstrato.
Deste modo, sem entrarmos na questão de saber se estamos, na verdade, perante uma inexistência ontológica do negócio jurídico registado – a qual se relaciona com o fumus boni iuris e cuja resposta depende da interpretação das declarações de vontade das partes corporizadas no escrito de 2 de outubro de 2023 –, podemos concluir que, face ao alegado no requerimento inicial, o procedimento cautelar é, nesta dimensão, manifestamente improcedente.
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4).1. Vejamos agora a 2.ª dimensão do perigo que o Recorrente pretende esconjurar – o perigo de perda da titularidade da quota.
Recapitulando, o Requerente sustenta, a este propósito, que o registo da cessão da quota, tornando o ato eficaz perante terceiros, permite que o 1.º Recorrido a revenda– ou, dizendo de uma forma mais ampla, a transmita a terceiro.
Vimos já que, por aplicação do art. 15 do CRC, os factos relativos a quotas elencados no art. 3.º do CRC estão sujeitos a registo obrigatório, o qual, acrescentamos agora, deve ser pedido no prazo de 2 meses a contar da data em que tais atos tiverem sido titulados (n.ºs 1 e 2).
Desde o já citado DL n.º 76-A/2006, os factos relativos à quota, incluindo, portanto, a cessão, pertencem ao rol daqueles cujo registo é feito por depósito (art. 53-A/5, a) e g), do CRC). Este consiste, nas palavras do legislador (art. 53-A/3 do CRC), “no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo.”
O depósito de documentos que titulem factos sujeitos a registo relativos a quotas é mencionado na ficha de registo (art. 14/1 do Regulamento do Registo Comercial, aprovado pela Portaria n.º 657-A/2006, de 29.06), com indicação dos documentos constantes dos arts. 14 e 15/2 do Regulamento do Registo Comercial, que serão recolhidos no pedido de registo, entre os quais não se inclui o documento que titula o facto registando. Este não é, portanto, verificado pelo conservador. O registo é feito pelos oficiais de registo (art. 55-A/2, h), do CRC), que lhe atribuem a data do respetivo pedido (art. 55/5 do CRC).
Da não intervenção do conservador, enquanto garante da legalidade, decorre um conjunto de consequências para o registo por depósito.
Em primeiro lugar, esse registo não padecerá de nulidade (art. 22 do CRC, que restringe as causas de nulidade do registo ao registo por transcrição) e, coerentemente, nem o pedido nem o registo podem ser recusados com fundamento na nulidade (arts. 46 e 48 do CRC, respetivamente). Apenas pode ser rejeitado nos casos descritos no art. 46/2 do CRC, ou seja, quando o requerimento não respeitar o modelo aprovado, quando não forem pagas as quantias que se mostrem devidas, quando a entidade objeto de registo não tiver número de identificação de pessoa coletiva atribuído, se o requerente não tiver legitimidade para requerer o registo, quanto não se mostre efetuado o primeiro registo da entidade e quanto o facto não estiver sujeito a registo. Depois, só para o registo por transcrição, que é o registo tradicional, em que os factos estão sujeitos à qualificação do conservador, que fiscaliza a validade formal e material dos documentos, se prevê a recusa com fundamento na nulidade do ato (art. 48 do CRC).
Em segundo lugar, esse registo é sempre definitivo.
Em terceiro lugar, mais relevante, o registo por depósito não oferece presunção da verdade, ficando os seus efeitos reduzidos à oponibilidade do facto perante terceiros (art. 14 do CRC) e à prioridade (art. 12 do CRC).
Considerando estas características, é duvidoso que se esteja perante um registo no sentido próprio do termo. Relembrando a já clássica lição de Carlos Ferreira de Almeida (Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra: Almedina, 1966, p. 97), “registo público é o assento efetuado por um oficial público e constante de livros públicos, do livre conhecimento, direto ou indireto, por todos os interessados, no qual se atestam factos jurídicos conformes com a lei e respeitantes a uma pessoa ou a uma coisa, factos entre si conectados pela referência a um assento considerado principal, de modo a assegurar o conhecimento por terceiros da respetiva situação jurídica e do qual a lei faz derivar, como efeitos mínimos, a presunção do seu conhecimento e a capacidade probatória.”
Assim, Jorge de Seabra Lopes (Direito dos Registo e do Notariado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 211) escreve que “chamar registo ao mero arquivamento de documentos, sem qualificação pelo conservador, representa um manifesto abuso da linguagem jurídico-registal.”
De igual modo, Maria Madalena Rodrigues Teixeira, em declaração de voto ao Parecer do Conselho Consultivo do IRN, aprovado a 16 de setembro de 2020 (Pº R.Co.4/2020 STJSR-CC[4]), escreve que “[a] despeito do nomen de “registo” que se lhe quis atribuir, os registos por depósito não correspondem, pois, a uma manifestação positiva de publicidade de factos jurídicos, que os serviços de registo possam afiançar como titulados nos documentos depositados; antes se traduzem numa mera referência ao depósito de um documento, que pode ou não titular o facto jurídico, e a um facto jurídico que, por seu turno, pode ou não ter sido titulado nos termos indicados pelo requerente no pedido e, assim, levados para a ficha de registo.” E acrescenta: “Daí que tais registos não beneficiem da fé pública, que só o crivo da qualificação jurídica e uma intervenção fundada no princípio da legalidade poderiam justificar, e tenham sido excluídos do âmbito do art. 11.º do CRCom (que, agora, apenas se refere aos registos por transcrição, por serem os únicos que, de acordo com a definição dada no art. 53.º-A/2 do CRCom, representam a situação jurídica da entidade sujeito a registo comercial), e daí também não figurarem no elenco do art. 22.º/1 do CRCom, referente à nulidade dos registos, justamente porque sobre eles não recai, em geral, qualquer sindicância formal ou substantiva por parte do serviço de registo, qualquer atuação pública que lhes confira a aparência de legalidade ou de conformidade com a realidade substantiva, capaz de outorgar o valor de confiança adicional para terceiros que sempre caraterizou a informação registal”; “Faltando-lhe esta conexão com os registos por transcrição e um controlo sistemático de legalidade por parte serviço de registo, ao registo por depósito faltará, também, a natureza de um registo público em sentido técnico-jurídico, ou seja, de um ato realizado pelo oficial público no qual se ateste um facto jurídico conforme com a lei e que, em conexão com os demais factos jurídicos inscritos, possa, assim, assegurar o conhecimento por terceiros da situação jurídica da entidade ou exercer uma “função legitimadora”, assente na presunção de que o seu conteúdo é verdadeiro ou exato e de que os direitos que dele resultam existem e pertencem ao titular inscrito”; “(…) o registo por depósito é, portanto, um meio de publicidade com regras e princípios específicos, que não se articula, nem se funde, com o registo por transcrição, e que apenas partilha do mesmo suporte de divulgação, ou seja, a ficha de registo, pelo que, quando, no art. 47.º do CRCom, se estabelecem os parâmetros da qualificação registal e se manda atender aos registos anteriores, é aos registos por transcrição que a lei se refere, porque só estes constituem um extrato dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo; porque só estes foram objeto do controlo público de legalidade; e só destes se extrai uma presunção de verdade e de exatidão.”
A esta luz, pode afirmar-se que o principal fim que o legislador atribui ao registo – a segurança no comércio jurídico – não é cumprido, o que leva a doutrina a questionar a bondade da solução legislativa.
É o caso de Pedro Maia (“Registo e cessão de quotas”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (coord.), “Reformas do Código das Sociedades, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 164-176), para quem “o novo regime de registo de quotas afigura-se altamente criticável e, até, em parte, inútil: se não resulta nenhum controlo de legalidade, se não estabelece nenhuma presunção de legalidade, então de que serve o registo? Como mecanismo para publicitar factos, independentemente da sua legalidade e até mesmo da sua existência?”
É também o caso de J. A. Mouteira Guerreiro (“O registo por depósito da cessão de quotas o antes, o depois… e agora?” Temas de Registos e Notariado, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 535-546), que, também em tom crítico, refere que “tais depósitos não se podem considerar registos e serão mesmo injustificáveis à luz do nosso sistema jurídico – salvo, é claro, o caso das contas que já anteriormente eram feitas por depósito, precisamente porque, neste caso (neste único caso, recorde-se) ao registo incumbe apenas (… ) publicitar que foram depositadas, cabendo a respetiva análise e controlo (aliás um apurado controlo técnico) aos Serviços Fiscais.”
É, finalmente, o caso de António Menezes Cordeiro (“Do registo de quotas: as reformas de 2006, de 2007 e de 2008”, Revista de Direito das Sociedades, I, 2009, t. 2, pp. 293-326[5]), que escreve: “o registo dos factos relativos a quotas deixou de ter fé pública. É evidente que o mero depósito de atos relativos a quotas, feitos, para mais, por escrito, não dá quaisquer garantias de correção ou, sequer, de seriedade. Não se pode, pois, descobrir nem um efeito presuntivo, nem manifestações de publicidade positiva ou negativa, em torno da transmissão de quotas.”
Perante estas considerações, podemos concluir que, nesta dimensão, o registo cujos efeitos o Recorrente pretende ver suspensos é, afinal, absolutamente irrelevante. Ele não atribui ao respetivo sujeito ativo a titularidade da quota. Não funciona sequer como uma presunção dessa titularidade.
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4).3. Ao escrevermos isto não estamos a ignorar a hipótese de o 1.º Requerido [re]transmitir a quota a terceiro, que registe o ato.
Simplesmente, tendo presente a tese do Recorrente – no sentido da inexistência ontológica da cessão da quota ao 1.º Recorrido –, esse registo será inócuo, ainda que o ato revista natureza onerosa e haja boa fé do adquirente.
Com efeito, não existindo o direito transmitido na esfera jurídica do transmitente, a aquisição apenas seria possível no quadro do art. 291 do Código Civil.
A aplicação deste, apenas cogitável para quem entenda que a quota é uma coisa ou para quem faça uma interpretação ampla do conceito de coisa usado na norma, de modo a abranger os direitos, o que se apresenta como duvidoso (a propósito, Jorge Simões Cortez, loc. cit., p. 330), é, porém, de excluir liminarmente, visto que o facto registado não passa de uma aquisição a non domino, ineficaz relativamente ao Recorrente e, como ensina Maria Clara Sottomayor (“Art. 291.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 897), o regime em causa pressupõe que[,] “na origem da cadeia de negócios inválidos, esteja o verdadeiro proprietário ou titular do direito.” De tal modo assim é que, acrescenta a autora, “[s]e um sujeito, obtendo um registo de aquisição com base em documentos falsos, vende a terceiro de boa fé que regista imediatamente a sua aquisição, não estão reunidos os requisitos do art. 291.º nem do art. 17, n.º 2, do CRP, pois o sujeito que deu origem à cadeia de negócios (ou de registos) inválidos nunca foi proprietário do bem, sendo as alienações sucessivas, a partir do sujeito que obtém o registo falso, res inter alios acta ou totalmente ineficazes em relação ao verdadeiro proprietário ou titular do direito.”
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4).4. O que antecede permite-nos concluir que, nesta segunda dimensão, não há qualquer perigo que importe acautelar, o que vale por dizer que a providência requerida – ou qualquer outra em que ela pudesse ser convolada – se apresenta como desnecessária. Consequentemente, a resposta à questão enunciada é negativa. A decisão recorrida, apesar das suas aporias expositivas, apresenta-se como correta.
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4).5. Ao mesmo resultado chegaríamos se partíssemos da causa de pedir subsidiariamente invocada pelo Recorrente – a resolução do acordo que deu origem ao registo.
Não haveria então qualquer desconformidade entre o registo e a realidade que é suposto ser por ele retratada, pelo que seria de excluir a possibilidade de suspensão dos efeitos daquele.
Colocar-se-ia, nessa hipótese, a possibilidade da efetivação dos efeitos da resolução, seja perante a sociedade, seja perante terceiros.
Perante a sociedade, valeriam as considerações feitas em 3).5. a propósito da não alegação de uma situação de periculum in mora.
Perante terceiros, temos que, operada a resolução, os seus efeitos retroativos, tendencialmente equiparados aos efeitos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico (cf. art. 433 e 434 do Código Civil), implicariam que a titularidade da quota retornasse à esfera jurídica do Requerente. Com efeito, conforme ensina J. C. Brandão Proença (A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 167), “a resolução faz ressurgir automaticamente (tratando-se da propriedade ou de outro direito real) a situação precedente aos efeitos reais causados pelo contrato, funcionando as obrigações legais de restituição (…) ou de indemnização (pelos danos derivados de uma entrega tardia, da perda ou deterioração do objeto a restituir ou da oneração do direito real do titular) como atos acessórios ou auxiliares do regresso das partes à posição antecontratual.”
Deste modo, um eventual ato de transmissão da quota pelo 1.º Requerido a terceiro, em momento ulterior à resolução – ou, dito com mais rigor, ao momento em que a declaração resolutória foi por ele recebida –, sempre teria de ser considerada a non domino e, logo, ineficaz no confronto com o Recorrente. Valeriam então as considerações feitas em 4).3., evidenciando-se, assim, que também nesta hipótese a providência seria desnecessária.[6]
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5). Improcedendo o recurso, as custas respetivas devem ser suportadas pelo Recorrente: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 22 de maio de 2025
Os juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
2.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
[1] Estabelecido que um documento particular é da autoria daquele a quem é atribuído, as declarações deste, indiscutíveis na sua materialidade, têm a eficácia que lhes competir segundo outras normas de direito material alheias ao instituto do documento: se revestirem a natureza de declarações de ciência, terão, se desfavoráveis, eficácia como confissão (arts. 376/2 e 358); se forem declarações de vontade, há que ver se por si constituem ou integram um negócio jurídico. Na verdade, como ensina Lebre de Freitas (A Falsidade no Direito Probatório, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, pp. 55-56), “a força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nele constam como feitas pelo respetivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém duma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito. «Com esse âmbito não tem a ver o problema da eficácia da declaração de ciência constante do documento, enquanto meio de confissão dos factos que dele são objeto. A norma do art. 376 /2 é uma aplicação dos princípios que regem a confissão e, embora tradicionalmente inserta no capítulo da força probatória dos documentos particulares, encontra-se aí deslocada – até porque, por maioria de razão, vale também para os documentos autênticos.” [2](Microsoft Word - ...) [3] De forma diversa, J. M. Coutinho de Abreu (Curso cit., p. 369) defende que a comunicação da cessão de quotas à sociedade ou o seu reconhecimento são suficientes para que o ato se torne eficaz perante a sociedade, o que não merece a aceitação de Alexandre de Soveral Martins (Cessão de Quotas cit., p. 95), uma vez que o art. 242 -A é ulterior ao art. 228/3, “e por isso ambas as exigências devem ser respeitadas para que a cessão de quotas seja eficaz para com a sociedade.” [4]Pareceres do Conselho Consultivo | IRN.Justica.gov.pt [5]RDS Ano I (2009), Número 2 [6] Note-se que não estão aqui em causa eventuais atos de transmissão praticados antes da resolução. Quanto a estes, haveria que considerar o disposto no art. 435 do Código Civil, em cujo n.º 1, ao dizer-se que “[a] resolução, ainda que expressamente convencionada, não prejudica os direitos adquiridos por terceiros”, se consagra um desvio à regra da eficácia retroativa da resolução e à regra da equipação dos efeitos da resolução aos efeitos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico (cf. art. 433 e 434 do Código Civil). Ao contrário do que acontece no art. 291 do Código Civil, a lei não distingue entre terceiros de boa fé ou má fé. Também não distingue entre direitos adquiridos a título gratuito ou a título oneroso. Compreende-se que assim seja como forma de evitar que os terceiros fiquem à mercê dos comportamentos dos contraentes de um contrato a que são totalmente alheios. Neste sentido, António Menezes Cordeiro (“Art. 435.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, II, Das Obrigações em Geral, Coimbra: Almedina, 2021, p. 264), que ressalva, porém, que a norma deve ser interpretada restritivamente, em conjugação com a do art. 291 do Código Civil, cuja aplicação é convocada pela do art. 433 do mesmo diploma, de modo a abranger na sua previsão apenas os terceiros de boa fé. Em tais hipóteses, a obrigação de restituição depara-se com um obstáculo jurídico, tendo de ser substituída pelo valor equivalente.