Os actos de arrolamento e posterior confisco a favor do Estado dos bens pertencentes a organizações religiosas católicas, sem direito a qualquer indemnização, praticados no início do sec. XX, por aplicação das leis da 1.ª República que o determinavam para execução do projecto politico de laicização da sociedade, não são passíveis de declaração de nulidade por aplicação dos princípios constitucionais actualmente vigentes, dada a vocação não retroactiva destes.
Recorrente: Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, autora
Recorridas: Estado Português, réu
I.1
Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, autora, apresentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 23 de Maio de 2024 que julgou improcedente o recurso de apelação e, em consequência, confirmou a decisão proferida pelo Juiz ... do Juízo Central Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa que julgou improcedente, por não provada, a reconvenção, e, em consequência, absolveu o autor do pedido reconvencional, tendo para esse efeito apresentado as seguintes conclusões:
A. Foi proferida nestes autos decisão no sentido de julgar improcedente o Recurso da RECORRENTE, que pugna pelo seu direito a ver reconhecida a sua propriedade, com os demais intervenientes, sobre o imóvel descrito com o nº ..88 de 19980413 da freguesia de ..., com fundamento em que o mesmo foi adquirido por AA, com recurso a meios próprios, sendo de sua propriedade, quando foi confiscado em 1910 por meio de arrolamento.
B. Por via sucessória/testamentária, o mencionado imóvel encontra-se inscrito a favor da RECORRENTE, Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, ora RECORRENTE, e dos intervenientes, atento o que consta das inscrições vertidas no Registo predial e que se encontram em vigor, conforme consta dos factos dados como provados e vertidos nos pontos 1. A 29. Da Fundamentação da matéria de facto vertida no douto Acórdão recorrido.
C. É sobre este imóvel que o ESTADO PORTUGUÊS, aqui Recorrido, vem arrogar-se proprietário, por via do acto de arrolamento de 8-10-1910, apesar de ter logrado registar, sob uma nova descrição, nove anos volvidos desde a instauração da presente acção e na sua pendência, o mesmo imóvel, tal como invoca, e que veio dar lugar à necessidade de sanação da duplicação registal.
D. Decidiu o douto Acórdão recorrido invocar o que se encontra estabelecido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que se transcreve: “verificando-se a dupla descrição total ou parcial do mesmo prédio, nenhum dos dois titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do Artº 7º do Código de Registo Predial.”, remetendo assim a resolução do conflito para as regras e princípios do direito substantivo, mormente as regras do Registo Predial.
E. Está em causa o princípio da prioridade do registo, (Cfr. Artº 6º, nº 1 do Código de Registo Predial) que estabelece: “1 - O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes.
F. O prédio descrito sob o nº ..88 de freguesia de ... tem a seguinte composição e confrontações: “Quinta com palácio, páteo de entrada, capelas, casas de caseiro e de administrador, abegoaria, palheiro, cavalariças, cocheiras, casa da guarda e outra próxima, oficinas, jardim com seus lagos e cascatas, pomar, árvores de sombra águas de poços com engenho real, dita corrente tanto no palácio como na parte rústica, proveniente de minas e nascentes nas terras denominadas C..... Após a expropriação para a linha férrea de Sintra ficou dividido em dois prédios, sendo um a poente que confronta a norte com acercado Convento de ...; sul e poente com Estrada Pública e nascente com linha férrea, tendo sido construída uma casa junto ao antigo palácio, dentro da quinta, de rés-do-chão e 3 andares, com entrada independente e com o valor venal de 9 000$00, e outra no Largo de ..., à entrada do páteo do palácio, com frente para o Largo e para a quinta para onde tem serventia, de rés-do-chão e 1º andar e com o valor venal de 6 000$00; outro a nascente que confronta do norte com propriedade de BB, sul e nascente Estradas Públicas, poente linha férrea.(Transcrição do nº 5 004, fls.129v do B-23 da 2ª Conservatória).” - “Com aquisição inscrita pela ap.1 de 1877/06/04 a favor de AA, por compra a CC”
G. Da análise do trato sucessivo, após o óbito de AA, em .../.../1916, constatamos que os herdeiros testamentários da titular inscrita, outorgaram testamento a favor da Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de São Domingos, actualmente designada por Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, com excepção dos intervenientes: Herdeiros de DD e Herdeiros de EE.
H. O imóvel que o ESTADO PORTUGUÊS veio a registar deu origem à descrição nº ..54 de 2009/05/29, com a indicação de ter sido destacado do prédio descrito sob o nº ..92, inscrito na matriz predial sob o artigo .00 da mesma freguesia, com a seguinte composição e confrontações: “NASCENTE: ...; NORTE: Dr. FF; SUL: Travessa de ... e POENTE: Estrada Pública que vai da Travessa de ... para a Rua de .... (Foi destacado do descrito sob o nº ..92, fls. 158 v, do Livro B-18”) Constando desta descrição a aquisição a favor do Estado Português por Arrolamento, sendo o sujeito passivo: “Congregações Religiosas” e datando a aquisição do ano de 1940.
I. Dos relatórios periciais veio a ser dado como provado que o imóvel reivindicado pela RECORRENTE corresponde ao que foi adquirido por AA, constando omisso na matriz, mas que corresponde ao artigo .00 da matriz predial urbana, concluindo-se por uma dupla descrição predial, ainda que parcial.
J. No presente Recurso, tal como na presente acção, para a RECORRENTE está, primordialmente, em causa, o direito fundamental de propriedade, consagrado no Artº 17º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e que aqui se transcreve: “Ninguém pode ser privado da sua propriedade, excepto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respectiva perda, em tempo útil. (…)”
K. No Art. 62.º da Constituição da República Portuguesa encontra-se consagrado o regime central e genérico de protecção ao direito de propriedade privada, conforme se transcreve: “1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição. 2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.”
L. O Decreto de 28-05-1834, veio determinar que: “Ficam desde já extintos em Portugal, Algarve, ilhas adjacentes e domínios portugueses todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as Ordens Regulares, seja qual for a sua denominação, instituto ou regra; […] os bens ficam incorporados nos Próprios da Fazenda Nacional;”.
M. O Decreto de 8-10-2010, com força de Lei, estabelece no seu artigo 3º o seguinte: “Continua também a vigorar com força de lei na República Portuguesa o decreto de 28 de Maio de 1834, promulgado sob o regime monárquico representativo, o qual extinguiu em Portugal, Algarve, ilhas adjacentes e domínios portugueses, todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens regulares, fosse qual fosse a sua denominação, instituto ou regra”.
N. O ESTADO PORTUGUÊS, ora Recorrido, ao proceder ao arrolamento do imóvel, propriedade de AA, adquirido por esta em 1977, fê-lo à revelia da sua proprietária, e sem qualquer suporte legal, não lhe podendo ser aplicado o Decreto de 28-05-1834, dado a aquisição ser em nome individual e em data posterior à entrada em vigor do mencionado Decreto.
O. Deste modo, também o Decreto de 08-10-1910 não podia ser invocado para justificar tal arrolamento, pois não era aplicável ao caso em apreço, pelo que aquele acto de “arrolamento” foi praticado no total desrespeito pelo direito de propriedade de AA, pois o imóvel ocupado pelo Estado não era propriedade de uma Congregação Religiosa, nem a sua legítima proprietária possuía o imóvel em nome de qualquer Congregação, caindo também a alegação da “propriedade por “interpostas pessoas”.
P. No caso em concreto, atenta a invocada nulidade do acto de arrolamento, não estamos perante uma expropriação, não se tratou de uma nacionalização, mas sim de um acto de confisco, uma espoliação cujos fins políticos não podem hoje encontrar acolhimento na nossa ordem constitucional nem nos valores prosseguidos pela ordem jurídica da Comunidade Europeia e pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950.Esperava a ora RECORRENTE que o Estado Português, sendo um Estado de Direito, iria emendar a cruel injustiça perpetrada contra AA, prestando contas de um passado que não o engrandece nem exalta, reconhecendo que a ocupação sobre o imóvel foi ilegal e sem suporte que a legitime, com o consequente reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, a favor da RECORRENTE, o que não se verificou.
Q. Assim, o acto de “expropriação” praticado pelo Estado, traduzido na ocupação e expulsão da sua proprietária, AA, e demais pessoas que, com ela trabalhavam, é ilegal, não conferindo ao Estado o direito a que se arroga, por ser nulo, acarretando ineficácia e, consequentemente, confere às legítimas sucessoras de AA, por via testamentária, o direito a reivindicar a sua propriedade e ver reconhecido o seu legítimo direito, por violação do direito, consagrado constitucionalmente, à propriedade privada. (cf. artigo 62.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
R. Se é certo que o direito à propriedade privada é susceptível de compressão, sempre que se regista a necessidade de recurso à expropriação por utilidade pública, mesmo a expropriação por utilidade pública restringe-se, por imperativo constitucional, vertido no n.º 2 do preceito invocado supra, aos casos previstos na lei e mediante o pagamento de “justa indemnização”.
S. Princípio constitucional que é também acolhido na legislação ordinária, estatuindo o artigo 1310.º do Código Civil que havendo expropriação é sempre devida a “indemnização adequada” ao proprietário e aos titulares de outros direitos reais por ela afectados, o que não se verificou no caso em apreço.
T. Conforme supra alegado, o imóvel, ilegitimamente arrolado, não cabia no âmbito do Decreto de 8-10-1910, pelo que a não interposição de acção por AA não poderia determinar a perda do seu direito, logo a consequência não poderia ser a “consolidação do direito do Estado sobre o imóvel”, por, na génese do arrolamento estar um acto sem enquadramento legal, logo ineficaz porque ferido de nulidade.
U. Em face do supra alegado, não se conforma a RECORRENTE com o douto Acórdão recorrido quando decide que, em face da improcedência da reclamação graciosa de AA, caducou o direito de fazer valer a restituição do imóvel, em clara violação da norma contida no Artº 1311º do Código Civil.
V. Pugna a ora RECORRENTE pela improcedência da excepção de caducidade do direito de AA, pois esta, quer quando apresentou reclamação, quer quando elaborou e outorgou o seu testamento, quer à data da sua morte, AA era proprietária do imóvel, cabendo-lhe, por força da titularidade de tal direito, exercer sobre o mesmo quaisquer actos de disposição, o que fez através de testamento.
W. O acto de arrolamento praticado pelo Estado em 1910, por se tratar de um acto ilegal, encontra-se ferido de nulidade e ofende os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa e na Convenção dos Direitos do Homem.
X. Atento o conceito de nulidade previsto no Código Civil: “Nulidade é a sanção imposta pela lei aos actos e negócios jurídicos realizados sem a observância dos requisitos essenciais, impedindo-se de produzir os efeitos que lhes são próprios”, o acto de arrolamento praticado pelo Estado, ora Recorrido, é nulo e ineficaz “erga omnes”.
Y. A RECORRENTE, por diversas vezes reivindicou junto do Estado a propriedade do imóvel, na firme convicção de que o imóvel lhe pertence, pelas razões supra invocadas, como se encontra provado, pelo que, consequentemente, mantém, a par dos Intervenientes, como sucessores de AA, o direito em ver judicialmente reconhecido o seu direito de propriedade, por transmissão sucessória, o que fizeram por via do pedido reconvencional apresentado na presente acção.
Z. Há obrigações, que o direito classifica de “obrigações naturais” (cf. Artº402º do Código Civil) cujo cumprimento, embora possa não ser judicialmente exigível, corresponde a um dever de Justiça, pelo que deve proceder o presente Recurso de Revista Excepcional.
Em face das Alegações e Conclusões apresentadas pela RECORRENTE, nos termos do preceituado no artigo 672.°, n.° 2, alíneas a) e b), do CPC, que deve ser admitido o presente RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL, considerando que o objecto do litígio que se mantém deveras actual, que continua a suscitar conflitos entre o Estado e os cidadãos ou instituições espoliadas, questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, torna o presente recurso claramente necessário para uma melhor aplicação do direito, atenta a relevância dos interesses em causa.
O recorrido apresentou contra-alegações concluindo do seguinte modo:
A. A relevância jurídica da questão – art.º 672.º, n.º 1, al. a), do CPC –, pressuposto de admissibilidade de recurso de revista excepcional, há-de aferir-se pelo debate doutrinal e jurisprudencial acerca da mesma, que aconselha a prolação reiterada de decisões judiciais em ordem a uma melhor aplicação da justiça.
B. A verificação de interesses de particular relevância social – ar.º 672, n.º 1 al. B), do CPC -, pressuposto de admissibilidade de recurso de revista excepcional, tem subjacente a aplicação de preceito ou instituto a que os factos sejam subsumidos e que possa interferir com a tranquilidade, a segurança ou a paz social, em termos de haver possibilidade de descredibilizar as instituições ou a aplicação do direito.
C. Cabe ao recorrente o ónus de indicar as razões concretas pelas quais a apreciação da questão pelo STJ é necessária para uma melhor aplicação do direito ou as razões pelas quais os interesses assumem particular relevância social, sob pena de, não o fazendo, o recurso ser rejeitado, sendo que não cumpre esse ónus quem se limita a tecer considerações genéricas sobre as razões que motivam o recurso extraordinário de revisão (ver, entre outros, Acórdão do STJ de 3.11.2023, proferido no âmbito do processo n.º 25211/20.9T8LSB.L1.S2, Acórdão do STJ de 27.09.2023, proferido no âmbito do processo n.º 835/15.0T8LRA.C4.S2, Acórdão do STJ de 11.05.2023, proferido no âmbito do processo n.º 1924/17.1T8PNF.P1.S2, Acórdão do STJ de 10.11.2016, proferido no âmbito do processo n.º 501/14.3T8PVZ.E1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt).
D. No caso em apreço, a questão relacionada com a dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, sobre a qual o Tribunal da Relação se pronunciou, foi objecto de orientação jurisprudencial fixada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2017, o que afasta a necessidade de intervenção extraordinária do STJ.
E. A Recorrente também não invocou qualquer razão actual, concreta e objectiva reveladora da existência de debate ou controvérsia jurisprudencial relacionadas com a interpretação do Decreto de 28.05.1834 e com o arrolamento de bens efectuado a coberto de tal regime jurídico para justificar a intervenção e a apreciação excepcional pelo STJ, limitando-se a produzir considerações vagas e genéricas relativas a uma questão que qualifica de juridicamente relevante.
F. Assim, não deve o recurso de revista extraordinário de revista ser admitido por falta de verificação dos pressupostos previstos no artigo 672, n.ºs 1 e 2, do CPC, e pelo facto de a Recorrente não ter logrado cumprir o ónus que sobre ele impendia previsto no artigo 672.º, n.º 2.
G. Resultando provado nas instâncias, seja na sentença proferida na 1ª instância, seja no Acórdão recorrido, que o imóvel descrito Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..88/19980413, sito em ..., Estrada de ..., omisso à matriz, com aquisição inscrita pela ap. 1 de 1877/06/04 em nome de AA por compra a CC, e o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º..54/20090529,correspondente ao art.º .00 da Freguesia de ... (antigo art.º..05 da Freguesia de ...), com aquisição inscrita em nome do Estado Português por arrolamento a Congregações Religiosas pela AP.5 de 1940/08/05, são o mesmo imóvel, o conflito entre as partes deve ser resolvido, não com base nos princípios da presunção e prioridade dos registos opostos, mas através da análise e avaliação do modo como o Estado Português e a Recorrente obtiveram o respectivo direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, tal como determina o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2017.
H. O Estado Português procedeu ao arrolamento do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..88 da freguesia de ..., com fundamento no facto de tal imóvel ter sido adquirido em nome individual por AA em 1877, com recurso a meios próprios, para de seguida estabelecer um colégio feminino–o Colégio de São José–que foi efectivamente fundado e instalado, e cuja gestão ficou a cargo das Terceiras Irmãs Dominicanas, da qual foi fundadora e que existia informalmente, mantendo a propriedade em nome próprio, com a finalidade de evitar uma possível apropriação dos respectivos bens – entre os quais este imóvel – pelo Estado Português.
I. Resultando demonstrado que o imóvel era efectivamente ocupado por uma congregação religiosa fundada pela sua proprietária, podia o mesmo ser objecto de arrolamento a favor do Estado Português à luz do regime jurídico vigente, do Decreto de 8.10.1910, que remete para o Decreto de 28.05.1834, e do § único do artº 5º do Decreto de 31.12.1910.
J. AA peticionou o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel que havia sido arrolado pelo Estado, tendo instaurado a competente reclamação graciosa ao abrigo do disposto no artigo 8.º do Decreto de 31.12.1910, que foi indeferida.
K. AA tinha ainda o ónus de instaurar uma nova acção de reivindicação prevista nos artigos 18.º e 19.º do Decreto de 31.12.1910, na sequência do indeferimento da sua reclamação graciosa, o que não fez, e nem a Recorrente logrou fazer tal prova, fazendo com que se consolidasse na esfera jurídica do Estado Português o direito de propriedade sobre o imóvel arrolado.
L. Uma vez que AA já não era proprietária do imóvel, não podia a mesma deixar em testamento a propriedade do mesmo, o que inviabiliza que esse direito fosse adquirido pela Recorrente por via sucessória, como pretende.
M. O Acórdão recorrido fez uma correcta interpretação e aplicação dos factos e das normas jurídicas ao abrigo das quais foi realizado o arrolamento do imóvel a favor do Estado Português e posteriormente consolidado esse direito de propriedade sobre o imóvel arrolado, a coberto do Decreto de 31.12.1910.
N. Termos em que deverá ser julgado improcedente o recurso de revista extraordinária.
Em face ao exposto, e nos demais de Direito que V. Exas doutamente suprirão:
a) deverá o recurso de revista extraordinária interposto pela Recorrente ser rejeitado. Caso assim não se entenda:
b) deverá ser-lhe negado provimento, mantendo-se na íntegra o decidido no acórdão recorrido, com o que se fará JUSTIÇA!
*
I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso
Recurso foi admitido pela Formação a que se refere o art.º 672.º do Código de Processo Civil.
*
I.3 – O objecto do recurso
Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:
1. Direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado
2. Usucapião
3. Presunção derivada do registo
4. Aplicação do direito actualmente em vigor
5. Obrigação natural
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I.4 - Os factos
O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. Encontra-se descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..88/19980413, o prédio urbano, sito em ..., Estrada de ..., omisso à matriz – cfr. doc. de fls. 143 a 144. [A]
2. O prédio identificado em 1) encontra-se com aquisição inscrita pela ap. 1 de 1877/06/04 em nome de AA por compra a CC – cfr. doc. de fls. 143 a 144. [B]
3. AA faleceu em .../.../1916 – cfr. doc. de fls. 226. [C]
4. Tendo outorgado o testamento junto aos autos a fls. 220 a 225, em que designou como sua única e universal herdeira de todos os seus bens GG – cfr. doc. de fls. 220 a 225. [D]
5. GG faleceu em .../.../1930 – cfr. doc. de fls. 233 a 235. [E]
6. Tendo outorgado o testamento de fls.229 a 232 em que institui como suas universais e únicas herdeiras dos seus bens, direitos e acções HH, II e JJ –cfr. doc.de fls. 229 a 232. [F]
7. HH faleceu em .../.../1948 –cfr. doc. de fls. 241. [G]
8. Tendo outorgado o testamento de fls. 236 a 239, em que instituiu como suas únicas e universais herdeiras KK, LL e II – cfr. doc. de fls. 236 a 239. [H]
9. KK faleceu em .../.../1972 – cfr. doc. de fls. 249. [I]
10. Tendo outorgado o testamento de fls. 245 a 247, em que designou como sua única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena, da Ordem Terceira de S. Domingos, aqui Ré – cfr. doc. de fls. 245 a 247. [J]
11. LL faleceu em .../.../1938 – cfr. doc. de fls. 254 a 256. [K]
12. Tendo outorgado o testamento de fls. 251 a 253, onde institui como sua única e universal herdeira EE, ou, na sua falta, MM – cfr. doc.de fls. 251 a 253. [L]
13. II faleceu em .../.../1941 – cfr. doc. de fls. 261 a 263. [M]
14. Tendo outorgado o testamento de fls. 257 a 260, tendo instituído como suas únicas e universais herdeiras NN, OO e PP – cf. doc. de fls. 257 a 260. [N]
15. NN faleceu em .../.../1973 – cfr. doc. de fls. 268 a 269. [O]
16. Tendo outorgado o testamento de fls. 264 a 267, em que institui como sua única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de S. Domingos, ora Ré – cfr. doc. de fls. 264 a 267. [P]
17. OO faleceu em .../.../1985 – cfr. doc. de fls. 275 a 277. [Q]
18. Tendo outorgado o testamento de fls. 271 a 274, onde institui como sua única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de S. Domingos, ora Ré – cfr. doc. de fls. 271 a 274. [R]
19. PP faleceu em .../.../1987 – cfr. doc. de fls.280 a 282. [S]
20. Tendo outorgado o testamento de fls. 278 a 279, em que institui como sua única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena da ordem Terceira de S. Domingos, ora Ré – cfr. doc. de fls. 278 a 279. [T]
21. JJ faleceu em .../.../1936 – cfr. doc. de fls. 287 a 288. [U]
22. Tendo outorgado o testamento de fls. 283 a 286, em que institui como suas únicas e universais herdeiras QQ e RR – cfr. doc. de fls. 283 a 286. [V]
23. QQ faleceu em .../.../1939 – cfr. doc. de fls. 296 a 298. [W]
24. Tendo outorgado o testamento de fls. 290 a 295, em que instituiu como suas únicas e universais herdeiras NN identificada em O) e DD – cfr. doc. de fls. 290 a 295. [Y]
25. RR faleceu em .../.../1980 – cfr. doc. de fls. 302 a 304 [X]
26. Tendo outorgado o testamento de fls. 299 a 301, em que institui como sua única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem de S. Domingos, ora Ré – cfr. doc. de fls. 299 a 301. [Z]
27. Por escritura pública de 27/02/1970 foram celebradas as habilitações de herdeiros de GG, JJ, II, HH, QQ e DD – cfr. doc. de fls.305 a 315. [AA]
28. AA apresentou a reclamação que se encontra junta aos autos a fls. 350 a 391. [AB]
29. No registo do prédio (urbano, sito em ..., Estrada de ..., omisso à matriz) referido em 1., realizado na 5ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..88/19980413, a respectiva descrição consiste no seguinte:
“COMPOSIÇÃO E CONFRONTAÇÕES:
- Quinta com palácio, páteo de entrada, capelas, casas de caseiro e de administrador, abegoaria, palheiro, cavalariças, cocheiras, casa da guarda e outra próxima, oficinas, jardim com seus lagos e cascatas, pomar, árvores de sombra, águas de poços com engenho real, dita corrente tanto no palácio como na parte rústica, proveniente de minas e nas terras denominadas C.....
Após a expropriação para a linha férrea de Sintra ficou dividido em dois prédios, sendo um a poente que confronta a norte com a cerca do Convento de S. Domingos de Benfica; sul e poente com Estrada Pública e nascente com linha férrea, tendo sido construída uma casa junto ao antigo palácio, dentro da quinta, de rés-do-chão e três andares, com entrada independente e com o valor venal de 9000$00, e outra no Largo de ..., à entrada do Páteo do Palácio, com frente para o Largo e para quinta para onde tem serventia, de rés-do-chão e 1º andar e com o valor venal de 6000$00; outro a nascente que confronta do norte com propriedade de BB, sul e nascente Estradas Públicas, poente linha férrea. (conforme transcrição do nº5004, fls. 129v. do B-23 da 2ª Conservatória)
30. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º..54/20090529; correspondente ao art.º .00 da Freguesia de ... (antigo art.º..05 da Freguesia de ...), prédio misto, situado na Quinta de ..., Travessa de ..., com as seguintes confrontações: Nascente: ...; Norte: FF; Sul: Travessa de ... Poente: Estrada pública que vai da Travessa de ... para a Rua de ...; mais constando que foi destacado do descrito sob o n.º..92, fls. 158v, do Livro B-18.
31. No prédio n.º..54/20090529 foi registada, pela Ap. 5 de 1940/08/05 a aquisição pelo Estado a Congregações Religiosas, por arrolamento.
32. O Prédio referido em 1), 29) e 30) dos factos localiza-se na freguesia de ..., apresentando uma Área Total de 19967,20m2. Destes, 15638,85 são Área Descoberta, e 4438,35 são Área Coberta que se divide por 12 edifícios apresentando entre 1 a 3 pisos, tais como capela, átrios, salas, quartos, casas de banho, refeitórios e tereno de logradouro que inclui construções devolutas, pomar e lago, delimitado na envolvente por muro de alvenaria ou gradeamento. Pode-se aceder ao prédio através de dois portões que dão directamente para o Largo de ..., ou três outros portões com acessos para a Rua de ... Travessa de ... e Rua ....
Norte: Rua ... e Instituto Militar ...
Sul: Rua de ...
Nascente: Rua ... e Rua de ...
Poente: Instituto Militar ..., Largo de ... e Travessa de ....
33. O imóvel foi adquirido por AA para aí estabelecer um colégio feminino, que foi efectivamente fundado e instalado, e cuja administração seria, como foi entregue à Congregação, por si fundada.
34. Enquanto proprietária do imóvel, AA efectuou obras no mesmo.
35. AA pagou o seguro do imóvel relativo às anuidades de Agosto de 1915 a Agosto de 1916, e válido até final do ano de 1917.
36. Às datas de 5 e 8 de Outubro de 1910, funcionava no imóvel o colégio feminino.
37. Em data que não se pode precisar, mas posterior a 8 de Outubro de 1910 e anterior a 31 de Dezembro de 1910, o imóvel foi ocupado pelo Estado português, mais concretamente, por forças militares, dali sendo retirados os então ocupantes.
38. Por Decreto de 20 de Julho de 1912, o Estado, através da Comissão Jurisdicional dos Bens das Extintas Congregações Religiosas, cedeu o imóvel, a título precário, à Escola Central de Reforma.
39. Em 16 de Novembro de 1926, por Decreto nº.12.686, o imóvel foi destinado à instalação do Reformatório de Lisboa – sexo feminino – onde ainda se encontrava instalado em 10 de Maio de 1950.
40. Em 1950, por Decreto nº37.813, de 10 de Maio, foram cedidos, a título definitivo, à Câmara Municipal de Lisboa, cerca de 5.850m2 de terreno do mesmo prédio.
41. Na sequência do protocolo celebrado em 84/05/18 foram cedidas, a título definitivo, ao Gabinete do Nó Ferroviário de Lisboa, três parcelas de terreno, com a área aproximada de 1.100 m2.
42. A ré Congregação já por várias vezes apresentou reclamações, reivindicando a propriedade do imóvel, mas as suas pretensões foram sempre indeferidas.
43. Mediante acordo celebrado entre a Direcção Geral dos Serviços Tutelares de Menores e a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de S. Domingos, ora ré, homologado por despacho do ministro da Justiça de 04.09.1989 e da Secretária de Estado do Orçamento de 18.10.1990, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, foi estipulado, para além do mais:
Cláusula 1.ª: “É entregue à congregação a administração do Lar de São Domingos de Benfica, estabelecimento polivalente do sexo feminino, (…)”;
Cláusula 7.ª/1: “Fica igualmente a cargo da Congregação a administração e funcionamento da creche instalada no primeiro andar da chamada “residência do capelão”, (…)”;
Cláusula 8.ª/1: “Em contrapartida de acção e encargos assumidos pela congregação, a direcção Geral assume os compromissos a seguir discriminados e que são de duas ordens:
- Cedência do uso de instalações;
- Prestações pecuniárias.”
Cláusula 8.ª/4: “A Congregação fica autorizada a proceder, a suas expensas, à restituição do edifício à traça primitiva, incluindo a capela e respectivo coro, realizando para tanto as obras que se mostrarem necessárias.”
Cláusula 8.ª/5: “A Direcção Geral assume o compromisso do pagamento dos seguintes subsídios: (…)”.
Cláusula 8.ª/6: “A Direcção Geral contribuirá, sempre que se mostre necessário e justificado, com subsídios eventuais para obras de conservação ou adaptação das instalações do Lar e da creche, bem como para complemento dos respectivos equipamentos.”
44. Desde a data referida em 38., e à excepção da parte ocupada em função do Acordo referido em 43., o imóvel vem sendo utilizado pelos serviços tutelares de menores, entretanto denominado Instituto de São Domingos, Casa da Infanta e, actualmente, Casa do Lago.
45. O Estado ocupa o imóvel na convicção de que é o respectivo proprietário.
46. AA manteve a propriedade em nome próprio, com a finalidade de evitar uma possível dissolução da congregação e apropriação dos respectivos bens – entre os quais este imóvel – pelo Estado.
47. Desde que passou a ocupar parte do imóvel, no âmbito do acordo referido em 43., a Congregação realizou e custeou extensas obras nos espaços referidos na Cláusula 8.ª/4.
48. Em data que se desconhece, mas anterior a 30 de Março de 1911, AA peticionou, nos termos do art.º 8º e seguintes do Decreto de 31 de Dezembro de 1910, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel, arrolado pelo Estado, e por si adquirido em 28 de Abril de 1877, conforme documento de fls. 355.
49. Por ofício datado de 30 de Março de 1911, subscrito pelo Delegado do Procurador da República e remetido ao Secretário da Comissão nomeada pela Portaria de 27.12.1910, foi reenviada a petição de AA, ao abrigo do art.º 10º do Decreto de 31 de Dezembro de 1910, com a informação de que não possui elementos convincentes para emitir informação segura, mas que é de parecer ser aplicável a doutrina dos artigos 4º, 5º, e 6º do Decreto de 31 de Dezembro de 1910.
50. Em declaração datada de 27 de Julho de 1911, ficou a constar que “Acordam os da Comissão Jurisdicional dos Bens das Congregações Religiosas, pelos fundamentos das primeira, terceira e quarta moções que fizeram vencimento, em julgar improcedente a reclamação de D.ª AA”.
51. Mediante despacho do Delegado do Procurador da República, datado de 12 de Agosto de 1908, foi decidido: “Vistos estes autos de reclamação graciosa, nos termos do Dec. de 31-12-1910, em que D. AA pede a entrega do palácio e quinta de S. Domingos de Benfica em que esteve instalado o Colégio congregacionista de S. José; e tendo em consideração o lúcido parecer que antecede da Comissão Jurisdicional com o qual me conformo e cujas razões dou como reproduzidas aqui; - julgo improcedente a sobredita reclamação. Intime e em seguida entregue-me o processo.”
52. Em 20.04.1911 o prédio identificado em 1) era ocupado pelo Estado, com fundamento no disposto no Decreto de 31 de Dezembro de 1910.
53. Em 19.01.1955 foi formalmente e de direito constituída a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de São Domingos, que passou a ter a denominação de Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena desde 12.12.2000.
54. A referida congregação, todavia, já se encontrava informalmente constituída desde 1866-1868.
Factos não provados
- Artigo 18º PI e decisão judicial junta: não se refere ao imóvel em causa nestes autos nem a AA, adquirente do mesmo.
- Artigos 176º, 177º da contestação, na parte relativa às intenções de AA em não transmitir o imóvel, por via sucessória, à Congregação; ou instruções que tenha transmitido à sua sucessora.
- Artigo 181º da contestação, no que se refere à convicção com que a Ré Congregação vem ocupando parte do imóvel, dado o alegado ser contraditório com o teor do acordo por si subscrito.
- Artigos 114º a 116º da réplica, por não se encontrar documentado este acordo.
- Que AA tenha reagido judicialmente contra a decisão referida em 51.
II – Fundamentação
1 – Direito de propriedade da ré/reconvinte sobre o prédio reivindicado
Em 2001 a Magistrada do Ministério Público, em representação do Estado Português instaurou acção declarativa de simples apreciação positiva contra a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de S. Domingos, em Portugal, requerendo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel descrito com o nº ..88 de 19980413 da freguesia de ..., por via do mecanismo da sanação registal, ou, em alternativa por via da usucapião.
Na contestação foi deduzida reconvenção onde é requerido o reconhecimento do direito de propriedade sobre o mesmo prédio, inscrito na 5.ª Conservatória do Registo Predial a favor de AA, condenando-se o réu a restituí-lo, e indemnizando a ré quanto às parcelas em que tal restituição não seja possível, em montante a liquidar em execução de sentença.
Por decisão proferida em 20 de Abril de 2007 pela ... Vara Cível da Comarca de Lisboa foi julgada inadmissível a reconvenção e a ré foi absolvida da instância com fundamento em preterição do litisconsórcio necessário passivo.
Apenas a ré apresentou recurso de agravo desta decisão, na parte em que julgou a reconvenção inadmissível.
Por acórdão da Relação de Lisboa datado de 2009 foi concedido provimento ao agravo, revogada a decisão recorrida, e, determinado o prosseguimento dos termos processuais para apreciação do pedido reconvencional.
Em 16 de Setembro de 2022 foi proferida decisão que julgou improcedente o pedido reconvencional e dele absolveu o Estado Português.
A Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena apresentou recurso de apelação, que veio a ser julgado improcedente, com confirmação da decisão recorrida, pelo acórdão recorrido, proferido em 23 de Maio de 2024.
Como resulta da matéria provada está em causa o direito de propriedade sobre o imóvel, o prédio urbano, descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..88/19980413, sito em ..., Estrada de ..., omisso à matriz e cuja – cfr. doc. de fls. 143 a 144 cuja aquisição se encontra inscrita pela apresentação 1 de 1877/06/04 em nome de AA por compra a CC.
O imóvel foi adquirido por AA para aí estabelecer um colégio feminino, que foi efectivamente fundado e instalado, e cuja administração seria, como foi, entregue à Congregação, por si fundada. Enquanto proprietária do imóvel, AA efectuou obras no mesmo, pagou o seguro do imóvel relativo às anuidades de Agosto de 1915 a Agosto de 1916 que se manteve válido até final do ano de 1917.
Às datas de 5 e 8 de Outubro de 1910, funcionava no imóvel o colégio feminino.
AA faleceu em .../.../1916, tendo outorgado o testamento em que designou como sua única e universal herdeira de todos os seus bens GG.
GG faleceu em .../.../1930, tendo outorgado testamento em que institui como universais e únicas herdeiras dos seus bens, direitos e acções HH, II e JJ.
HH faleceu em .../.../1948, tendo outorgado testamento em que instituiu como únicas e universais herdeiras KK, LL e II.
KK faleceu em .../.../1972 tendo outorgado testamento em que designou como única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena, da Ordem Terceira de S. Domingos, aqui Ré.
LL faleceu em .../.../1938 tendo outorgado testamento onde institui como única e universal herdeira EE, ou, na sua falta, MM.
II faleceu em .../.../1941 tendo outorgado testamento onde instituí como únicas e universais herdeiras NN, OO e PP.
NN faleceu em .../.../1973 tendo outorgado testamento em que institui como única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de S. Domingos, ora Ré.
OO faleceu em .../.../1985 tendo outorgado testamento onde institui como única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de S. Domingos, ora Ré.
PP faleceu em .../.../1987 tendo outorgado testamento em que institui como única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena da ordem Terceira de S. Domingos, ora Ré.
JJ faleceu em .../.../1936 tendo outorgado testamento em que institui como únicas e universais herdeiras QQ e RR. QQ faleceu em .../.../1939 tendo outorgado testamento em que instituiu como únicas e universais herdeiras NN identificada em O) e DD.
RR faleceu em .../.../1980 tendo outorgado testamento em que institui como única e universal herdeira a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem de S. Domingos, ora Ré.
Destes factos provados podemos concluir que o imóvel reivindicado na reconvenção foi adquirido por contrato de compra e venda por AA em 1877, que sobre ele exerceu actos de posse correspondentes ao direito de propriedade, levou nesse ano ao registo predial o seu direito de propriedade, e, o dito imóvel se pertencia ao património daquela adquirente na data da sua morte, por sucessivos testamentos acabaria por, actualmente, pertencer à ré.
Mostra-se provado que a Ré Congregação, desde 2001, vem ocupando o imóvel reivindicado com a convicção de lhe pertencer, por sucessão testamentária.
A questão que se coloca é se à morte de AA ocorrida em .../.../1916 aquele bem integrava o seu acervo hereditário.
Sabemos que o imóvel foi adquirido por AA para aí estabelecer um colégio feminino, que foi efectivamente fundado e instalado, e cuja administração seria, como foi entregue à Congregação, por si fundada. Enquanto proprietária do imóvel, AA efectuou obras no mesmo, pagou o seguro do imóvel relativo às anuidades de Agosto de 1915 a Agosto de 1916 que se manteve válido até final do ano de 1917, e, ainda que, AA manteve a propriedade em nome próprio, com a finalidade de evitar uma possível apropriação dos respectivos bens – entre os quais este imóvel – pelo Estado.
Em 19 de Janeiro de 1955 foi formalmente, e, de direito constituída a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de São Domingos, que, desde 12 de Dezembro de 2000, passou a ter a denominação de Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, mas desde 1866-1868 já se encontrava informalmente constituída.
A ré pretende que o seu direito seja reconhecido à luz da actual Constituição da República Portuguesa, princípios da Comunidade Europeia, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A Constituição da República Portuguesa foi aprovada por decreto de 10 de Abril de 1976.
O Tratado de Roma de 1957 que criou a Comunidade Económica Europeia (CEE), entrou em vigor em 1958, tendo Portugal a ela aderido 12 de Junho de 1985.
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos foi adoptada pelo Conselho da Europa, em 4 de Novembro de 1950, e, entrou em vigor em 1953, e foi aprovada para ratificação em Portugal pela Lei n.º 65/78 de 13 de Outubro.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia adoptada pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão foi proclamada em Nice, em 7 de Dezembro de 2000, apenas como um compromisso político, e, sem efeito jurídico vinculativo, que só obteve com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 1 de Dezembro de 2009.
Todos eles são instrumentos normativos criados e entrados em vigor muito posteriormente à data da morte de AA ocorrida em .../.../1916, por definição, sem efeitos retroactivos, pelo que sempre serão imprestáveis para definir se o dito imóvel integrava o acervo hereditário daquela, o que apenas pode ser determinado tendo em conta as leis em vigor na data desse evento, e as leis que, posteriormente possam ter vindo regular relações jurídicas com efeitos sobre esse património. Em nenhum destes diplomas normativos se inscreve qualquer norma de reparação dos danos causados por procedimentos anteriores que, em si mesmos, sejam contrários aos princípios que os integram.
O imóvel foi adquirido no fim do século XIX e, com o que conhecemos do seu contexto histórico, político e jurídico, bem como do desenvolvimento que conheceu até aos nossos dias, poderemos entender e definir a sucessão de efeitos jurídicos, com reflexos na dominialidade sobre o imóvel, certos de que a regra principal é que a lei não tem efeitos retroactivos exceptuo se essa for a declarada intenção do legislador.
Para os princípios que regem o nosso estado de direito actual logo ressaltam dois factos provados que merecem algum esclarecimento:
1. AA manteve a propriedade em nome próprio, com a finalidade de evitar uma possível apropriação dos respectivos bens – entre os quais este imóvel – pelo Estado.
2. Em 19.01.1955 foi formalmente e de direito constituída a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de São Domingos, que passou a ter a denominação de Congregação das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena desde 12.12.2000, mas desde 1866-1868 já se encontrava informalmente constituída.
Porquê?
- Qual o receio de apropriação dos bens pelo Estado?
- Qual a razão de demorar mais de meio século a formalização da constituição da ordem religiosa?
Cremos que não esteve em causa qualquer personalidade particularmente afectada por mania da perseguição, ou actuação de grave índice de procrastinação, mas apenas uma actuação racional de quem viveu um tempo de perseguição e desrespeito pela direito de liberdade religiosa, como se tornará claro pelo percurso por alguns dos diplomas legislativos da 1.ª República.
Em 8 de Outubro de 1910
«o Governo Provisório da República Portuguesa faz saber que em nome da República se decretou para valer como lei o seguinte:
Art.º1.º Continua a vigorar como lei da República Portuguesa a de 3 de Setembro de 1759 promulgada sob o regime absoluto, e pela qual os jesuítas foram havidos por desnaturalizados e proscritos e se mandou que efectivamente fossem expulsos de todo o país (…)
Art.º 3. Continua também a vigorar como lei da República Portuguesa o de 28 de Maio de 1834, promulgado sob o regime monárquico representativo, o qual extinguiu em Portugal, Algarve, ilhas adjacentes e domínios portugueses, todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaesquer casas religiosas de religiosos de todas as ordens regulares, fosse qual fosse a sua denominação instituto ou regra.
Art.º 4. É declarado nulo, por ser contrário à letra e ao espírito dos mencionados diplomas o decreto de 18 de Abril de 1901, que disfarçadamente autorizou a Constituição de congregações religiosas no país, quando pretendessem dedicar-se exclusivamente à instrução ou beneficência, ou à propagação da fé e civilização no ultramar.
Art.º 4. Em consequência, e de harmonia com o disposto no art.º 1 a 3.º e nos diplomas ali referidos serão expulsos do território da República todos os membros da chamada companhia de Jesus (…)
Art.º 6. Os Membros das demais companhias, congregações, conventos, colégios, associações, missões ou outras casas de religiosos pertencentes a ordens regulares serão também expulsos do território da República se forem estrangeiros ou naturalizados e se forem portugueses serão compelidos a viver a vida secular ou pelo menos a não viver em comunidade religiosa.
§1.º Para o efeito da disposição d’este artigo, entende-se que vivem em comunidade os religiosos, pertencentes a quaesquer ordens regulares, que residam ou se ajuntem habitualmente na mesma casa, ou sucessiva ou alternadamente em diversas casas, em número excedente a três.
§2.º As pessoas referidas no parágrafo anterior são obrigadas a participar ao Governo, pelo Ministério da justiça, por offício registado numa estação postal, a localidade do território da República em que estabelecem o seu domicílio.
Art.º 7. Os indivíduos compreendidos neste decreto que infringirem qualquer as suas disposições, ou deixarem de cumprir imediatamente, ou no prazo que lhes for marcado, as determinações legítimas da autoridade competente, incorrerão na pena de desobediência qualificada sem prejuízo da responsabilidade que porventura lhes caiba por constituírem associações ilícitas, nos termos do artigo 282.º do Código Penal, ou associações de malfeitores, nos termos dos artigos 263.º do mesmo código.
Art.º 8. Os bens das associações ou casas religiosas serão arrolados e avaliados precedendo, imposição de selos e os das casas ocupadas pelos jesuítas tanto móveis como imóveis serão desde logo declarados pertença do Estado.
§único. Aos bens de outras casas religiosas dar-se-á proximamente destino no decreto orgânico sobre as relações do Estado com a Igreja ou em regulamento do presente decreto. (…)
Art.º 10. O Presente diploma com força de lei entrará imediatamente em vigor (…)»
A forma como AA adquiriu o imóvel e o manteve cuidadosamente no seu património pessoal, e, a tardia formalização da constituição da Congregação ré, são apenas formas de resistência aos diplomas antes referenciados.
A perseguição dos Jesuítas desde o tempo do Marquês de Pombal e os constrangimentos que, desde então, foram sofrendo as Ordens Religiosas em Portugal, são a razão histórica destes procedimentos, e, sobre eles se abaterão as consequências jurídicas plasmadas na lei.
No dia 1 de Janeiro de 1911 é publicado um outro diploma que densifica o regime estabelecido pelo decreto de 8 de Outubro de 1910 estabelecendo ainda que:
Art.1º.Continuam confiados a guarda, conservação e posse do Estado ou entrarão ainda nesse regime meramente tutelar, todos os bens mobiliários ou imobiliários que por virtude do decreto de 8 de Outubro de 1910 teem sido e forem arrolados pelas autoridades administrativas e judiciaes, por terem sido ou serem ocupados, detidos ou usados, sob qualquer título, pelos jesuítas, ou por quaisquer congregações, companhias, conventos, colégios, hospícios, associações, missões e quaesquer casas de religiosos de ordens regulares, fosse qual fosse a sua denominação, instituto ou regra.
§único. Os bens, que porventura estiverem ainda ocupados, no momento da publicação d´este decreto, por qualquer dos institutos mencionados neste artigo, ou por membros d’ele, ou por terceiras pessoas d’ele representantes ou com eles relacionadas por qualquer título, considerar-se-ão possuídos em nome do Estado para todos os efeitos legais.
Art.2º.O estado poderá sem prejuízo de quaisquer efeitos que venham a ser reconhecido quaisquer direitos que venham a ser reconhecidos a terceiros, e como legítimo possuidor de boa-fé dos bens mencionados no artigo anterior, dar-lhes desde já a aplicação de utilidade pública que entender conveniente e que melhor se conformar com a natureza dos mesmos bens.
Art.3º. É permitido a quaisquer terceiras pessoas, que a isso se julguem com direito, reivindicar os referidos bens, ou fazer valer quaesquer direitos que, quanto a eles, se arroguem, mas somente nos termos d’este decreto.(…)
§único. São insuperavelmente nullos todos os processos empregados, que não sejam aqui estabelecidos e regulados. (…)
Art.5º. Presume-se que pertenciam às respectivas casas ou associações religiosas todos os bens que por ellas, sob qualquer título, fossem occupados detidos ou usados.
§único. Esta presunção subsiste, embora se mostre estarem esses bens em nome de interpostas pessoas, e como taes se consideram para os effeitos do Código Civil e d’este decreto, salvo a prova em contrário: 1.º. Os indivíduos que sejam ou tenham sido membros, empregados ou assalariados, temporários ou permanentes, da respectiva casa ou associação religiosa, ou de qualquer outra existente em Portugal ou no estrangeiro, e os seus ascendentes descendentes e irmãos, compreendendo os afins e os herdeiros legítimos ou testamentários de todos eles;
2.º. Os indivíduos, embora não compreendidos no número anterior, que, desde a data em que adquiriram os referidos bens, lhes tenham dado outro uso ou aplicação. (…)
4.º. Os que se apresentarem como donos dos immóveis onde hajam funcionado associações religiosas com clausura, práticas de noviciado, profissões ou votos, salvo se provarem que por completo ignoravam esses factos
Art.6º. Aos bens que pertenciam às associações ou casas religiosas, é aplicável o disposto no artigo 2.º do decreto, em vigor, de 28 de Maio de 1834, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal que cabe aos membros das associações ou casas em que se prova ter havido clausura, práticas noviciado, profissões ou votos.
Art.7º. Nenhuma acção execução relativa a allguns bens poderá ser intentada contra o Estado ou contra terceira pessoa sem que a preceda o processo de reclamação Graciosa regulado nos artigos seguintes.».
O artigo 2.º do decreto, em vigor, de 28 de Maio de 1834, estabelecia que: «(…) os bens dos Conventos, Mosteiros, Collegios, Hospicios, e quaisquer Casas de Religiosos das Ordens Regulares, ficam incorporados nos próprios da Fazenda Nacional (…)».
Bem certo, que não está provado que AA tenha procedido à entrega da gestão/administração à Congregação, constituída de facto e informalmente, e que teria a sua sede no palácio / casa principal, porém, está provado que:
- Em data que se desconhece, mas anterior a 30 de Março de 1911, AA peticionou, nos termos do art.º 8º e seguintes do Decreto de 31 de Dezembro de 1910, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel, arrolado pelo Estado, e por si adquirido em 28 de Abril de 1877.
- Por ofício datado de 30 de Março de 1911, subscrito pelo Delegado do Procurador da República e remetido ao Secretário da Comissão nomeada pela Portaria de 27.12.1910, foi reenviada a petição de AA, ao abrigo do art.º 10º do Decreto de 31 de Dezembro de 1910, com a informação de que não possui elementos convincentes para emitir informação segura, mas que é de parecer ser aplicável a doutrina dos artigos 4º, 5º, e 6º do Decreto de 31 de Dezembro de 1910.
- Em declaração datada de 27 de Julho de 1911, ficou a constar que “Acordam os da Comissão Jurisdicional dos Bens das Congregações Religiosas, pelos fundamentos das primeira, terceira e quarta moções que fizeram vencimento, em julgar improcedente a reclamação de D.ª AA”.
- Mediante despacho do Delegado do Procurador da República, datado de 12 de Agosto de 1911, foi decidido: “Vistos estes autos de reclamação graciosa, nos termos do Dec. de 31-12-1910, em que D. AA pede a entrega do palácio e quinta de S. Domingos de Benfica em que esteve instalado o collegio congregacionista de S. José; e tendo em consideração o lúcido parecer que antecede da Comissão Jurisdicional com o qual me conformo e cujas razões dou como reproduzidas aqui; - julgo improcedente a sobredita reclamação. Intime e em seguida entregue-me o processo.”
- Em 20.04.1911 o prédio identificado em 1) era ocupado pelo Estado, com fundamento no disposto no Decreto de 31 de Dezembro de 1910.
Resultou não provado que AA tenha reagido judicialmente contra o indeferimento da reclamação o que nos termos da lei então vigente - decreto de 3 de Janeiro de 1911 – determinava que o imóvel era «definitivamente incorporado na Fazenda Nacional» art.º 19.º e §único do seu art.º 18.º.
A decisão do Delegado do Procurador da República, está datada de 12 de Agosto de 1911 e não de 12 de Agosto de 1908, como, por lapso se fez constar da matéria de facto. Com efeito, tal facto provado emerge do documento junto a fls. 384 (numeração inicial) e também 889 que tem o seguinte formato:
Não foi uma decisão proferida em 1908, antes da entrada em vigor da legislação em referência.
Tendo em conta que o imóvel foi ocupado pelo estado em 20 de Abril de 1911, sempre teria de ter sido apresentada uma reclamação graciosa até 30 de Junho de 1911, sob pena de os bens ficarem «definitivamente incorporado na Fazenda Nacional», e, tê-lo-á sido muito antes.
A ré alega que por o imóvel ser pertença de AA o seu arrolamento e ocupação violava a lei então vigente, sendo nulo e ineficaz erga omnes. Mas não pode aceitar-se tal conclusão tendo em conta os preceitos antes transcritos, pois estava legalmente estabelecida a presunção de « (…) que pertenciam ás respectivas casas ou associações religiosas todos os bens que por ellas, sob qualquer titulo, fossem ocupados, detidos ou usados», ainda que "(...) se mostre estarem esses bens em nome de interpostas pessoas (…)», considerando interpostas pessoas, designadamente, "(…) os indivíduos que sejam ou tenham sido membros, empregados ou assalariados, temporários ou permanentes, da respectiva casa ou associação religiosa, ou de qualquer outra existente em Portugal ou no estrangeiro, e os seus ascendentes, descendentes e irmãos, compreendendo os affins, e os herdeiros legítimos ou testamentarios de todos eles (…)» (n.º 1) e "(…) os indivíduos, embora não compreendidos no numero anterior, que, desde a data em que adquiriram os referidos bens, lhes não tenham dado outro uso ou applicação (…)» - art.º 5.º do Decreto de 31 de Dezembro de 1910.
Assim, a circunstância de ser AA a proprietária do imóvel não é determinante para a nulidade do acto de arrolamento, como demonstra o indeferimento da reclamação que apresentou nesse sentido, como também a circunstância de a Congregação só ter sido formalmente constituída muitos anos depois, não impedia o arrolamento, tendo em conta a referida presunção legal.
Os textos legais referidos, interpretados, tendo em conta os elementos histórico, teleológico, e sobretudo literal, a que se refere, sob o conceito de "espírito da lei", o artigo 16.º do Código Civil de Seabra, compreendiam indubitavelmente quer os bens das Associações e Instituições religiosas, quer aqueles que pertencessem a terceiros mas fossem por elas utilizados, fossem as Associações e Instituições religiosas entes jurídicos ou apenas actuassem como tal.
A reforçar este interpretação destacamos, o Decreto de 8 de Outubro de 1910 quando declara contrário à letra e ao espírito, designadamente, do Decreto de 28 de Maio de 1834, que extinguiu "(...) todos os conventos, mosteiros, colégios, hospicios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens regulares, fosse qual fosse a sua denominação, instituto ou regra», o decreto de 18 de Abril de 1901, que "(...) autorizou a constituição de congregações religiosas no país, quando pretendessem dedicar-se exclusivamente á instrucção ou beneficência (...)".
A intenção do legislador da 1.ª República foi, sem margem para dúvidas, a extinção de organizações religiosas como a fundada por AA – o Colégio Congregacionista de S. José –, ainda que tivessem finalidades relacionadas com o ensino, como esta tinha, desde 1877. Estas regras são, como foram, aplicáveis à Congregação fundada por AA, informalmente constituída entre 1866-1868, sem que delas decorra de modo algum que o arrolamento ou ocupação do imóvel assentou num erro jurídico em desconformidade com a lei então vigente. Ao invés, estes actos revelam uma escrupulosa aplicação daquelas leis.
Os diplomas antes analisados, emanados do Governo provisório que estabeleceram, como deles consta, um domínio meramente tutelar de guarda, conservação e posse do Estado do imóvel arrolado e ocupado que, então, pertencia a AA - artigo 1.º do Decreto de 31 de Dezembro de 1910 - viram o regime legal neles instituído consolidado com a Lei da separação do Estado das Igrejas de 21 de Abril de 1911 tendo em conta que o seu art.º 62.º estabelece:
«Todas as catedraes, igrejas e capellas, bens immobiliarios e mobiliários, que teem sido ou se destinavam a ser applicados ao culto publico da religião catholica e á sustentação dos ministros d'essa religião e de outros funcionários, empregados e serventuários d'ella, incluindo as respectivas bemfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos, são declarados, salvo o caso de propriedade bem determinada de uma pessoa particular ou de uma corporação com individualidade jurídica, pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como taes, arrolados e inventariados (...)".
O acto de arrolamento praticado pelo Estado, ora Recorrido, não padece de qualquer vício legal, nomeadamente nulidade ou ineficácia decorrendo da implementação de um projecto social e político que conformou todo o regime jurídico de então.
Assim, concluiu-se que em 1911, pelo menos a partir de 30 de Junho de 1911, AA perdeu a propriedade do imóvel que foi alvo de confisco pelo Estado. Quando faleceu em .../.../1916 o imóvel não integrava o seu património e, por essa razão também não integrou o seu acervo hereditário nem o da sua herdeira, nem o dos sucessivos herdeiros, antes referenciados, pelo que nunca chegou a integrar, por via sucessória, o património da ré.
Em seguida, como consta da matéria provada,
- Por Decreto de 20 de Julho de 1912, o Estado, através da Comissão Jurisdicional dos Bens das Extintas Congregações Religiosas, cedeu o imóvel, a título precário, à Escola Central de Reforma.
- Em 16 de Novembro de 1926, por Decreto nº.12.686, o imóvel foi destinado à instalação do Reformatório de Lisboa – sexo feminino – onde ainda se encontrava instalado em 10 de Maio de 1950.
- Em 1950, por Decreto nº 37.813, de 10 de Maio, foram cedidos, a título definitivo, à Câmara Municipal de Lisboa, cerca de 5.850m2 de terreno do mesmo prédio.
- Na sequência do protocolo celebrado em 18 de Maio de 1984 foram cedidas, a título definitivo, ao Gabinete do Nó Ferroviário de Lisboa, três parcelas de terreno, com a área aproximada de 1.100 m2.
- A ré Congregação já por várias vezes apresentou reclamações, reivindicando a propriedade do imóvel, mas as suas pretensões foram sempre indeferidas.
- Mediante acordo celebrado entre a Direcção Geral dos Serviços Tutelares de Menores e a Congregação de Santa Catarina de Sena da Ordem Terceira de S. Domingos, ora ré, homologado por despacho do ministro da Justiça de 04.09.1989 e da Secretária de Estado do Orçamento de 18.10.1990, foi estipulado, para além do mais:
Cláusula 1.ª: “É entregue à congregação a administração do Lar de São Domingos de Benfica, estabelecimento polivalente do sexo feminino, (…)”;
Cláusula 7.ª/1: “Fica igualmente a cargo da Congregação a administração e funcionamento da creche instalada no primeiro andar da chamada “residência do capelão”, (…)”;
Cláusula 8.ª/1: “Em contrapartida de acção e encargos assumidos pela congregação, a direcção Geral assume os compromissos a seguir discriminados e que são de duas ordens: - Cedência do uso de instalações; - Prestações pecuniárias (…).
A Comissão Jurisdicional dos Bens das Extintas Congregações Religiosas, tutelada pelo Ministério da Justiça geriu, administrou, vendeu, deu de arrendamento ou cedeu a título precários os bens das igrejas e das extintas congregações religiosas mandados arrolar pela Lei da Separação do Estado das Igrejas (Lei de 20 de Abril de 1911), que tivessem sido julgados definitivamente propriedade da Fazenda Nacional, e, a que o Governo não tivesse dado diversa aplicação, até 30 de Outubro de 1926, quando o Decreto n.º 12:587, a substituiu pela Comissão Jurisdicional dos Bens Cultuais que veio a ser extinta em 25 de Julho de 1940 pelo artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 30 615.
Este último referido Decreto reconhece à Igreja Católica em Portugal a propriedade dos bens que à data de 1 de Outubro de 1910 lhe pertenciam, e estavam ainda na posse do Estado, salvo os que se encontrassem, nessa data, aplicados a serviços públicos ou classificados como monumentos nacionais ou como imóveis de interesse público, extinguindo a comissão jurisdicional dos bens culturais.
Houve uma alteração legislativa relevante para a titularidade do direito de propriedade dos bens da Igreja Católica que, à data de 1 de Outubro de 1910, lhe pertenciam e estavam ainda na posse do Estado em 25 de Julho de 1940 com a assinatura da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, como refere o acórdão recorrido, ainda que não acompanhemos a sua análise jurídica.
Sendo certo que no art.º 41.º do Decreto Lei nº 30 615 de 25 de Julho de 1940 se refira aos bens da Igreja Católica em Portugal, e se faça deles uma enumeração meramente exemplificativa indicando tratar-se, entre outros de «(…) templos, paços episcopais e residências paroquiais com os seus passais, seminários com suas cêrcas, casas de institutos religiosos, paramentos, alfaias e outros objectos afectos ao culto da religião católica,(…)» desde logo se mencionam as casas de institutos religiosos onde, necessariamente estarão incluídos os bens das Congregações Religiosas. O art.º 43.º do mesmo diploma estabelece que:
«Que os bens que cuja propriedade é reconhecida a igreja serão entregues, mediante prévio requerimento, mas sem dependência da organização do processo às associações e organizações a que se referem os artigos terceiro e quarto da concordata». Ora os artigos III e IV da Concordata referem que:
«III
A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir por essa forma associações ou organizações a que o estado reconhece personalidade jurídica.
O reconhecimento por parte do Estado da personalidade jurídica das associações corporações ou institutos religiosos canonicamente erectos resulta da simples participação escrita à autoridade competente feita pelo bispo da diocese onde tiverem a sua sede ou por seu legítimo representante. (…)
IV
As associações ou organizações a que se refere o número artigo anterior podem adquirir bens e dispor dêles nos mesmos termos por que o podem fazer segundo a legislação vigente as outras pessoas morais perpétuas e administram se livremente sobre a vigilância fiscalização da competente autoridade eclesiástica.(…)».
Efectivamente, muitos dos bens da Igreja Católica haviam já «sido entregues em uso e administração» às corporações encarregadas do culto e, relativamente a estes bens considerou o art.º 44.º do referido diploma que se considerariam entregues nos termos do artigo 43.º, isto é já restituída a propriedade à Igreja Católica às concretas entidades que tinham o seu uso e administração. Pelo menos uma parte substancial dos bens a entregar pelo Estado à Igreja, na decorrência da Concordata, seriam os das associações ou organizações erectas à luz do direito canónico que servem de organização à Igreja Católica e que haviam sido desapossadas pelo Estado da 1.ª República.
Mas a ré não tinha nesse momento condições para beneficiar ou sequer exigir essa entrega por duas ordens de razões:
1 - Não era àquela data, nem nos dois anos posteriores, relevantes nos termos do art.º 46.º daquele decreto, uma associação erecta à luz do direito canónico, ou, pelo menos não logrou provar sê-lo, na medida em que se diz só formalmente constituída em 19 de Janeiro de 1955.
2 – O imóvel reivindicado caía na excepção aceite pela Santa Sé a essa entrega, por se encontrar, então afecto ao serviço público - Reformatório de Lisboa – sexo feminino que ali funcionou até 1950, e, nessa medida passarão a estar definitivamente na posse e propriedade do Estado e «encorporados no património do Estado» – art.º 42.º do Decreto Lei nº 30 615 de 25 de Julho de 1940.
Improcede, pois o recurso no que concerne a interpretação e aplicação do disposto nos Decretos de 8 de Outubro e 31 de Dezembro de 1910, da Lei da Separação do Estado das Igrejas, de 20 de Abril de 1911 e do Decreto-Lei n.º 30:615, de 25 de Julho.
2. Usucapião
A ré, como vimos, não adquiriu o imóvel por sucessão testamentária, não há qualquer ilegalidade que invalide o arrolamento e ocupação dos bens, à luz da lei vigente na data em que ocorreram os factos, mas, ainda que sem grande argumentação, requer o reconhecimento de ter adquirido o direito de propriedade por usucapião.
Na falta de evidenciação nas alegações de qual o erro de direito de que enferma o acórdão recorrido, a este propósito, limitamo-nos a indicar, em complemento do já analisado pelo acórdão recorrido, que aqui reafirmamos, que, segundo a matéria de facto provada apenas se constata que, para além da sua convicção de ser dona do imóvel, por disposição testamentária, que como analisamos não tem suporte jurídico, desde 1989 que ocupam o referido imóvel, por cedência da Direcção Geral dos Serviços Tutelares de Menores e em cooperação com ela para prosseguirem os fins da sua Congregação, o que não releva como exercício de posse em termos de exercício de poderes de facto sobre o bem como se seus proprietários fossem e, nessa medida, conducente à aquisição originária do direito de propriedade.
A ré reconvinte não adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel, de forma originária ou derivada, mas encontra-se a usá-lo por força do acordo que estabeleceu, e, essa ligação ao imóvel terá «O valor simbólico e moral que tem a sua presença naquele espaço e naquele ambiente, concretizando, de algum modo e nos limites do agora possível, o antigo desejo de voltar a um local a que a fundação da congregação se encontra indelevelmente ligada».
Improcede, pois, o recurso, com este fundamento.
3. Presunção derivada do registo
Existe uma inscrição do direito de propriedade sobre o imóvel a favor de AA e dela decorre uma presunção de ser titular desse direito, mas existe igualmente uma inscrição do mesmo teor, sobre o mesmo imóvel, descrito em duplicado, muito posterior, a favor do Estado Português de que decorre a mesma presunção que, como bem tem sido entendido pela jurisprudência, nomeadamente no AUJ 1/2017, de 23.2.20162, publicado no DR nº 38/2017, Série I, de 22.2.2017, se têm que anular mutuamente na medida em que são a prova cabal que o registo predial não cumpriu a função que lhe foi confiada de conter numa inscrição única e universal os direitos sobre os imóveis, acessíveis ao público, para garantir a segurança jurídica dos direitos e do comércio jurídico.
Em todo o caso, a presunção ainda que pudesse funcionar a favor da ré reconvinte, mostra-se nos autos ilidida pela prova de que em 1911 AA perdeu a favor do Estado a propriedade do imóvel.
Improcede, também o recurso, com este fundamento.
4. Aplicação do direito actual vigente
Alega, a ré reconvinte, aqui recorrente que a improcedência da acção afronta a Constituição da República Portuguesa.
Não há dúvida que nos termos constitucionais se afirma a liberdade religiosa, o direito de propriedade e a impossibilidade de os cidadãos poderem dele ser privados pelo Estado fora das situações em que o interesse público o impuser, e, sempre, mediante justa indemnização.
A Constituição da República não tem vocação retroactiva e afirmou em 1976 os seus princípios, forjados também no que se conhecia de tempos e sofrimentos anteriores, para regerem dali em diante a sociedade portuguesa, tendo apenas expressos pequenos apontamentos relativos ao Estado Novo e nenhum relativo ao regime político ou jurídico da 1.ª República.
Naturalmente que o que se passou em 1910 e 1911 com os bens da Igreja Católica e com a liberdade de religião, são impensáveis no contexto constitucional em que nos encontramos, mas isso não basta para que os tribunais estejam dotados de poderes, quase mágicos, de reescrever a história aplicando a lei actual aos factos ocorridos no início do século XX que, não só não compreendemos, como não conhecemos completamente.
Não somos, neste processo, chamados a aplicar as leis da 1.ª República relativas à perseguição das pessoas em face das suas convicções religiosas, isso seria impossível à luz da Constituição. Neste processo está em causa a transferência do direito de propriedade sobre um imóvel de um particular para o Estado, por meios coercivos e sem indemnização, mas em conformidade com a lei vigente à data desse confisco, quando este era querido pelo legislador, que o estabeleceu por lei.
A função dos tribunais é dirimir conflitos em consonância com a lei vigente em cada espaço histórico em que exercem tal função, sem possibilidade de corrigir o legislador ou a história, de acordo com ideários políticos e filosóficos.
Improcede, pois, o recurso, com este fundamento.
5. Obrigação natural
Por definição, a obrigação natural funda-se num dever moral e não é judicialmente exigível, art.º 402.º do Código Civil pelo que não compete ao tribunal declará-lo.
Improcede, também o recurso com este fundamento.
Pelo exposto acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Ana Paula Lobo (relatora)
Orlando dos Santos Nascimento
Fernando Baptista de Oliveira