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SUSPENSÃO DE OPERAÇÕES BANCÁRIAS
PROCESSO EQUITATIVO
LEGITIMIDADE
REENVIO PREJUDICIAL
Sumário
I. Existindo indícios da prática de um crime de branqueamento de capitais (ou de outro, do mesmo catálogo) e, independentemente do facto de não terem sido, ainda, constituídos arguidos no processo, os visados têm um interesse directo na defesa dos direitos que considerem afectados pelas decisões judiciais, razão por que têm legitimidade para recorrer, nos termos do art.º 401.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte do CPP. II. A obrigação de reenvio prejudicial, decorrente do art.º 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, cede quando a interpretação dos dispositivos em causa seja clara e não suscite, por isso, dúvida razoável. III. A Directiva 2102/13/UE não distingue os conceitos de “suspeito” e “arguido”, ao contrário da legislação nacional, o que significa que a norma prevista no art.º 7.º da referida Directiva, por ser clara e não suscitar qualquer dívida, impede o pretendido reenvio prejudicial. IV. Desta feita, face ao disposto nos arts. 2.º e 7.º da citada Directiva em causa, o(a) JIC terá, forçosamente e em virtude da aplicação vertical desta, de proceder à reapreciação do requerido pelas recorrentes, ainda “suspeitas”, quanto ao acesso aos autos, ainda que de forma limitada, em particular, dos elementos processuais essenciais à compreensão da decisão cautelar de apreensão dos saldos bancários que as afectou e, ainda afecta - decorridos que se mostram 4 anos 11 meses e 22 dias sobre a SOB (logo no início de abertura do inquérito) e, subsequente, da apreensão do saldo(s) bancário(s).
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
No processo de inquérito n.º 273/21.5TELSB-D.L1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Sintra – Juiz 5, em que são requerentes AA e BB, com os demais sinais nos autos, consta da parte decisória do despacho, datado de 26.02.2025, o seguinte: «Face ao exposto, e sem mais considerações, por não estarem preenchidos os pressupostos legais, indefiro o reenvio prejudicial para o TJUE requerido.».
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Não se conformando com a mencionada decisão, as requerentes dela interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição sem notas de rodapé): «INTROITO E OBJETO DO RECURSO i. As Recorrentes requereram, em julho de 2024, acesso aos elementos do processo, nos termos do artigo 7.º, n.º 2 da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012 aplicável por efeito direto vertical. ii. Todavia, a Mma. Sra. Juiz de Instrução Criminal indeferiu o pretendido porquanto, na sua perspetiva, a Diretiva foi transposta para o ordenamento jurídico português e não alterou o artigo 89.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP), o qual “prevê que, durante o inquérito (fase processual em que os autos se encontram) o arguido, o assistente, ofendido, o lesado e o responsável civil podem consultar o processo” e, como tal, “pese embora os prazos previstos no art.º 276.º já tenham decorrido, o requerente carece de legitimidade para a consulta de autos pretendida, por não ser arguido, assistente, ofendido, lesado ou responsável civil”. QUESTÃO PRÉVIA: DA LEGITIMIDADE iii. As Recorrentes, conforme melhor infra se explanará, não são Arguidas nos presentes autos. iv. No entanto, conforme referido no Douto Acórdão da 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 11/10/2023 e relativo aos presentes autos, tanto o Ministério Público como o Mmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal “deixam muito bem clarificado que existem indícios […] da prática de crimes, desde logo do crime de branqueamento de capitais […] e do crime de fraude fiscal […], no que assentam a decisão, primeiro de suspensão de operações bancárias e, depois, de apreensão de saldos bancários” e, como tal, “[i]ndependentemente de estarem constituídas arguidas no processo [a legitimidade recursiva não se afere apenas atento isso], as Requerentes têm um interesse directo [que não apenas na forma de interesse em agir] na defesa dos direitos que considerem afectados por decisões judiciais. Pelo que, sendo recorrível a decisão [como é], sempre a sua legitimidade estava estabelecida nos termos do disposto pelo art.º 401º, nº 1, al. d) IIª pte do Cód. Proc. Penal.” PORTUGAL COMO ESTADO MEMBRO DA UNIÃO EUROPEIA, DAS DIRETIVAS E DO EFEITO DIRETO VERTICAL v. Portugal é, desde janeiro de 1986, uma Estado Membro da União Europeia e, como tal, por força do art.º 52.º do TUE e do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, os tratados da União Europeia são lhe aplicáveis. vi. As instituições da UE adotam, para o exercício das competências da União, regulamentos, diretivas, decisões, recomendações e pareceres, à luz do art.º 288.º do TFUE. vii. No que concerne às diretivas, à letra do mencionado preceito, estas vinculam o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. viii.Não obstante, quando o EM não transpuser a diretiva para o direito nacional ou não a transpuser corretamente e, cumulativamente, as disposições da diretiva forem incondicionadas e suficientemente claras e precisas e conferirem direitos aos particulares, esta produzirá efeitos diretamente – efeito direto vertical –, podendo ser invocadas pelos particulares. ix. Neste sentido veja-se o douto Acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de dezembro de 1974 relativo ao Processo C-41/74 Yvonne van Duyn contra Home Office 8 e, ainda, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 08/03/2022, relativo ao Processo n.º 53/19.8GACUB-B.E1 e cuja relatora foi Maria Clara Figueiredo. DA DIRETIVA 2012/13/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 22 DE MAIO DE 2012 E DA SUA APLICAÇÃO x. Em 22 de maio de 2012, o Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram a Diretiva 2012/13/UE, relativa ao direito à informação em processo penal, a qual prevê, inter alia, o direito dos suspeitos10 e dos acusados serem informados sobre os seus direitos, obterem informação sobre a acusação e acederem aos elementos do processo, 11 a qual deveria ter sido transposta para o ordenamento jurídico português até ao dia 2 de junho de 2014, à luz do seu artigo 11.º, n.º 1. xi. Porém, Portugal, como tem sido seu apanágio, não transpôs corretamente a diretiva e, por conseguinte, em 23 de setembro de 2021, a Comissão Europeia deu início a um processo de infração contra Portugal. 12 xii. Nesta sequência, em 2023 – mais de dez anos depois da aprovação da diretiva –, Portugal, intimado pela União Europeia (doravante, UE), completou a transposição da diretiva com a Lei n.º 52/2023 de 28 de agosto. xiii. Todavia, até à presente data, não foi transposto para o ordenamento jurídico português o artigo 7.º da mencionada diretiva, o qual prevê o direito de acesso, pelos suspeitos e acusados, a toda a prova material que se encontre diretiva forem incondicionadas e suficientemente claras e precisas e conferirem direitos aos particulares, esta produzirá efeitos diretamente – efeito direto vertical –, podendo ser invocadas pelos particulares. DA DIRETIVA 2012/13/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO DE 22 DE MAIO DE 2012 E DA SUA APLICAÇÃO x. Em 22 de maio de 2012, o Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram a Diretiva 2012/13/UE, relativa ao direito à informação em processo penal, a qual prevê, inter alia, o direito dos suspeitos 10 e dos acusados serem informados sobre os seus direitos, obterem informação sobre a acusação e acederem aos elementos do processo, 11 a qual deveria ter sido transposta para o ordenamento jurídico português até ao dia 2 de junho de 2014, à luz do seu artigo 11.º, n.º 1. xi. Porém, Portugal, como tem sido seu apanágio, não transpôs corretamente a diretiva e, por conseguinte, em 23 de setembro de 2021, a Comissão Europeia deu início a um processo de infração contra Portugal. xii. Nesta sequência, em 2023 – mais de dez anos depois da aprovação da diretiva –, Portugal, intimado pela União Europeia (doravante, UE), completou a transposição da diretiva com a Lei n.º 52/2023 de 28 de agosto. xiii. Todavia, até à presente data, não foi transposto para o ordenamento jurídico português o artigo 7.º da mencionada diretiva, o qual prevê o direito de acesso, pelos suspeitos e acusados, a toda a prova material que se encontre na posse das autoridades competentes, de modo a salvaguardar a equidade do processo e preparar a defesa. Mantendo-se, em Portugal, apenas tal direito garantido aos suspeitos que assumem o estatuto processual de Arguido. xiv. A referida exclusão dos suspeitos do direito de consulta dos autos, condiciona, severamente os seus direitos, porquanto está na esfera de controlo do Ministério Público e do Juiz de Instrução Criminal constituir ou não um suspeito como Arguido e, como tal, enquanto estas entidades não quiserem dar conhecimento integral do processo, bastará não constituir ou não permitir a constituição como Arguido dos suspeitos. xv. Assim sendo, por não ter sido corretamente transposta para o ordenamento jurídico português, pelo facto das suas disposições serem incondicionadas e suficientemente claras e precisas e por conferir, indubitavelmente, direitos aos particulares - direito de acesso aos elementos do processo pelos suspeitos –, a Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012 relativa ao direito à informação em processo penal é diretamente aplicável e os seus preceitos poderão ser invocados pelos particulares. DO CASO EM CONCRETO xvi. As Recorrentes são, de acordo com o Ministério Público e com os Mmos. Srs. Juízes de Instrução Criminal, suspeitas da prática de, pelo menos, um crime de branqueamento de capitais, tendo, por conseguinte, interesse legitimo na consulta dos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 7.º, n.º 2 da mencionada Diretiva. xvii. Motivo pelo qual, jamais a consulta deveria ter sido indeferida com base na não alteração do artigo 89.º do Código de Processo Penal e na falta de estatuto processual das aqui Visadas, ignorando, assim, o efeito direto vertical e a sua importância para a salvaguarda de direitos fundamentais, como sendo o direito de defesa, o qual só o conhecimento do processo permitirá. xviii. Aliás, colher o entendimento sufragado pela Mma. Sra. Juiz de Instrução Criminal na decisão recorrida, quando todos sabemos de quem depende a atribuição de um estatuto processual, seria admitir que uma pessoa singular ou coletiva, em Portugal, atualmente e por inércia do legislador português, pode ser alvo de uma suspensão de operações bancárias/apreensão de saldos bancários e de outros meios de obtenção de prova, sucessivamente, sem nunca saber as suspeitas que impendam sobre si. Não podendo, consequentemente, opor-se aos meios utilizados, mesmos que estes sejam desproporcionais, inadequados, excessivos e intempestivos, mesmo quando o prazo legalmente estabelecido para o inquérito já tenha terminado. Quem não sabe, não se opõe. xix. Ainda neste sentido, relembre-se que, tendo sido apreendido saldo de uma conta bancária titulada pela Visada AA e ultrapassado o prazo legalmente fixado no artigo 276.º do CPP – como a própria decisão recorrida o admite –, a não constituição das Recorrentes como Arguidas tem como único objetivo a não utilização do mecanismo previsto no artigo 89.º, n.º 6 do CPP pelas Recorrentes, ou seja, obstaculizar à consulta do processo. xx. O referido impedimento representa, assim, um verdeiro bloqueio à preparação da defesa das Recorrentes o que não se coaduna com os princípios orientadores do processo penal e não respeita a mencionada diretiva. xxi. Razão pela qual, as Recorrentes não se conformam com a decisão suprarreferida. xxii. Termos em que se requer V. Exa. se digne revogar a decisão recorrida e, em consequência, admitir o acesso aos elementos do processo pelas aqui Visadas, à luz do artigo 7.º, n.º 2 da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012. DO REENVIO PREJUDICIAL xxiii. Caso subsistam dúvidas quanto à aplicação da diretiva, o que só por mero dever de patrocínio se admite, desde já se requer V. Exa. se digne, nos termos do art.º 267.º, 3.º parágrafo do TFUE, submeter as seguintes questões prejudiciais à decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia: a. Uma diretiva quando não seja corretamente transposta para o ordenamento jurídico de um Estado Membro pode ser diretamente aplicável quando as suas disposições forem incondicionadas e suficientemente claras e precisas e conferirem direitos aos particulares? b. A Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, por não ter sido transposta corretamente para ordenamento jurídico português, é diretamente aplicável, no sentido de conferir aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo num Estado Membro? c. O artigo 7.º, n.º 2 da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012, por não ter sido transposto para ordenamento jurídico português, por ser incondicionado e suficientemente claro e preciso e conferir direitos aos particulares, é diretamente aplicável, no sentido de conferir aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo num Estado Membro? d. De acordo com o artigo 7.º, n.º 2 da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012, os suspeitos – mesmo sem estatuto processual de Arguidos – podem ter acesso a toda a prova material que se encontre na posse das autoridades competentes, seja ela a favor ou contra os suspeitos, de modo a salvaguardar a equidade do processo e a preparar a defesa? ** Nestes termos e nos melhores de direito, que vossas excelências doutamente suprirão, deverá o recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, ser o despacho revogado em conformidade com o que supra se aludiu. Como é de direito e assim se fazendo justiça!»
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O Ministério Público, na 1.ª instância, respondeu ao recurso interposto pelas recorrentes, formulando as seguintes conclusões (transcrição): «1. AA e BB, recorrem do douto despacho proferido no dia 21-12-2024 o qual indeferiu o reenvio prejudicial requerido no dia 19-11-2024, uma vez que não se encontravam preenchidos os requisitos legais para o efeito. 2. Nas alegações apresentadas pelas recorrentes estas referem que requereram a aplicação por efeito direto vertical do artigo 7.º, n.º 2 da Diretiva 2012/13/EU, sucede que o Tribunal à quo indeferiu sempre tal pretensão ao abrigo do artigo 89.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, porquanto, entende que o referido artigo afasta a aplicação da diretiva. Mais refere que o Tribunal à quo terá incorrido em manifesto lapso ao apreciar o pedido das recorrentes e, por consequência, não admitir o reenvio prejudicial, referindo que não foi requerido que o reenvio prejudicial para apreciar a interpretação ou avaliação de normas legislativas ou regulamentares de direito interno, nem a análise da sua conformidade com o direito comunitário. 3. No requerimento com a referência 1593663, apresentado a 19-11-2024 é solicitado o reenvio prejudicial por parte de AA e BB, para o TJUE com vista à resposta às seguintes questões: “a) Uma diretiva quando não seja corretamente transposta para o ordenamento jurídico de um Estado Membro pode ser diretamente aplicável quando as suas disposições forem incondicionadas e suficientemente claras e precisas e conferirem direitos aos particulares? b) A Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, por não ter sido transposta corretamente para ordenamento jurídico português, é diretamente aplicável, no sentido de conferir aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo num Estado Membro? c) O artigo 7.º, n.º 2 da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012, por não ter sido transposto para ordenamento jurídico português, por ser incondicionado e suficientemente claro e preciso e conferir direitos aos particulares, é diretamente aplicável, no sentido de conferir aos particulares direitos que estes podem invocar em juízo num Estado Membro? d) De acordo com o artigo 7.º, n.º 2 da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012, os suspeitos – mesmo sem estatuto processual de Arguidos – podem ter acesso a toda a prova material que se encontre na posse das autoridades competentes, seja ela a favor ou contra os suspeitos, de modo a salvaguardar a equidade do processo e a preparar a defesa 4. Na base deste requerimento está o indeferimento sucessivo dos pedidos das recorrentes para consulta dos autos ao abrigo do artigo 89.º, n.º2, do Código de Processo Penal. 5. Ora, dúvidas não restam que o que as recorrentes pretendem é que no âmbito do Reenvio Prejudicial se proceda à interpretação de direito interno, designadamente, da sua conformidade com o direito comunitário. 6. Contudo, resulta da leitura do artigo 267.º do TFUE que o reenvio prejudicial apenas tem em vista levar ao TJUE qualquer questão relativa à interpretação ou à apreciação da realidade de um ato de direito comunitário. 7. Nas questões de reenvio prejudicial não estão em causa questões relativas à interpretação ou apreciação das normas legislativas ou regulamentares de direito interno, nem matérias relacionadas com a compatibilidade destas normas ou regulamentos com o direito comunitário e, muito menos, a questões de validade ou interpretação das decisões dos tribunais nacionais, o que, como bem se viu, não é a pretensão das recorrentes, ainda que tentem fazer parecer que não é essa a sua pretensão. 8. Por fim resta concluir, tal como referido no douto despacho proferido pelo Tribunal à quo, que a questão em causa recai exclusivamente no domínio do direito nacional, não suscitando dúvidas quanto à interpretação ou aplicação do direito comunitário. 9. Pelo exposto, entende o Ministério Público que o recurso interposto por AA e BB assim improceder, uma vez que não lhes assiste razão. Pelo exposto, deve negar-se provimento ao recurso apresentado por AA e BB e manter-se o douto despacho recorrido, assim se fazendo justiça!»
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Por despacho de 27.03.2025, a Sr.ª Juiz de Instrução Criminal (doravante JIC) sustentou o despacho em crise.
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Nesta instância, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso deve improceder.
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Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2 do CPP.
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Em resposta ao parecer, vieram as recorrentes aduzir os argumentos que se seguem, mantendo o pedido por si formulado: «a Diretiva não estabelece a distinção no dever de acesso à informação aos suspeitos “formais” ou não formais e que, portanto, o Código de Processo Penal, ao estabelecer essa distinção e permitindo apenas aos suspeitos tornados arguidos, mas não aos suspeitos que não gozem desse estatuto, se desvia da Diretiva referida.” Salvo melhor opinião, essa interpretação do texto da Diretiva e dos termos da sua transposição para o ordenamento jurídico português, constitui matéria de interpretação do Direito Europeu e especificamente daquela diretiva e está, portanto, sujeita ao mecanismo do reenvio prejudicial.»
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Consta do despacho recorrido o seguinte [transcrição, à excepção da nota de rodapé]: «Ref.ª 15936663: Vieram os requerentes AA e BB requerer ao Tribunal o reenvio prejudicial para apreciação do Tribunal de Justiça da União europeia das questões enunciadas no artigo 17º do referido requerimento que, sumariamente, se resumem a esclarecimento do direito dos cidadãos da União Europeia relativamente à aplicabilidade ou não aplicabilidade direta de uma diretiva comunitária quando transposta incorretamente para o direito interno e em prevalência sobre este. Na base deste requerimento está o indeferimento sucessivo dos pedidos dos requerentes para consulta dos autos, ao abrigo do disposto no art.º 89º, n.º 2 do Código processo Penal. Alegam os requerentes além do mais, que o Tribunal teria incorrido em lapso, por ter sustentado a decisão de indeferimento da consulta dos autos no disposto no art.º 89º do Código Processo Penal, ao invés de orientar a sua decisão de acordo com o artigo 7º, n.º 2 da diretiva 2012/12/UE. O Ministério Publico pronunciou-se pelo indeferimento do requerido reenvio prejudicial, por não se verificarem os pressupostos previstos no art.º 267º do TFUE. Cumpre apreciar: O reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia depende a verificação do condicionalismo previsto no art.º 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE). Diz o citado artigo que: «O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação dos Tratados; b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.» Assim, o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação dos Tratados e sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Do citado art.º 267º do TFUE, resulta que o reenvio prejudicial apenas tem em vista levar ao TJUE qualquer questão relativa à interpretação ou à apreciação da realidade de um acto de direito comunitário. Nessa medida, nas questões de reenvio prejudicial por efeito do disposto nas aludidas normas, não estão em causa questões relativas à interpretação ou apreciação das normas legislativas ou regulamentares de direito interno, nem matérias relacionadas com a compatibilidades destas normas ou regulamentos com o direito comunitário e muito menos, as questões respeitantes à validade ou interpretação das decisões dos tribunais nacionais. Na verdade, o reenvio prejudicial, apenas pode/deve acontecer, quando um tribunal nacional, se vê confrontado com uma situação de interpretação de uma norma comunitária cuja resolução se torne necessária para o julgamento do caso sub júdice. Acrescente-se, que mesmo no domínio do reenvio obrigatório - ou seja, nos casos em que a decisão do tribunal nacional não é passível de recurso - se vem entendendo que, perante norma comunitária cuja interpretação não suscite nenhuma dúvida razoável, por respeitar a um caso em que, embora outras interpretações sejam possíveis, qualquer jurista ainda que pouco informado sempre optaria pela solução do juiz nacional, será caso de dispensa da obrigação de reenvio. O efeito útil do citado art.º 267 visa, precisamente, a harmonização europeia, razão pela qual, só faz sentido o reenvio prejudicial quando se coloquem questões contraditórias relativas à aplicação do direito comunitário na aplicação das normas jurídicas provenientes da União Europeia. Importa assim salientar que o mecanismo de reenvio prejudicial não se estende à interpretação ou apreciação de normas legislativas ou regulamentares de direito interno, nem à avaliação da sua compatibilidade com o direito comunitário. Ademais, questões relativas à validade ou interpretação de decisões proferidas pelos tribunais nacionais estão fora do âmbito deste procedimento. Em suma, o propósito fundamental do artigo 267.º do TFUE é promover a harmonização europeia. Consequentemente, o reenvio prejudicial só se justifica quando surgem questões contraditórias relativas à aplicação do direito comunitário na implementação das normas jurídicas emanadas da União Europeia. Tal não é manifestamente o caso dos autos. Com efeito, como resulta dos despachos ref.ªs ... e ..., a pretensão dos requerentes foi indeferida ao abrigo de legislação nacional – art.º 89º do CPP – que regula directamente a matéria visada. Por seu turno, é pacifico (embora comporte excepções) que em matéria de aplicação do direito da EU, os regulamentos e as decisões são diretamente aplicáveis em toda a UE na data da sua entrada em vigor e as diretivas devem ser transpostas para o direito nacional pelos países da EU. Todavia, como resulta do requerimento apresentado a 02.07.2024, os requerentes pretendiam que o Tribunal decidisse a sua pretensão afastando o direito nacional – art.º 89º, n.º 2 do CPP – e aplicando directamente a Directiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012, por entenderem que tal directiva não foi corretamente transposta para o ordenamento jurídico português e pelo facto das suas disposições serem incondicionadas e suficientemente claras e precisas e consequentemente conferir direitos aos particulares. Conforme já exposto, o mecanismo de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), não abrange a interpretação ou avaliação de normas legislativas ou regulamentares de direito interno, nem a análise da sua conformidade com o direito comunitário. A intervenção do TJUE através do reenvio prejudicial só se justifica quando se trata de aplicar o direito comunitário ao caso concreto, tendo como propósito assegurar uma interpretação e aplicação uniforme do direito da União Europeia, e não do direito nacional. Caso esteja em causa a interpretação e aplicação do direito interno, não há fundamento para a intervenção do TJUE. Neste contexto, seguindo de perto a posição de M. Melo Rocha, in "O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias" (Coimbra ed. 1982, pp. 45, 46 e 52), o reenvio prejudicial só deve ocorrer "quando um tribunal nacional tem fundadas dúvidas sobre a interpretação a dar a uma norma comunitária ou sobre a validade de um acto jurídico das instituições". O TJUE pronuncia-se "a pedido da jurisdição nacional de um estado membro que deve aplicar uma regra de direito comunitário ou que deve constatar as consequências jurídicas de um acto levado a cabo por uma instituição". É importante salientar que o TJUE fornece uma interpretação abstrata da regra comunitária, não se pronunciando sobre a interpretação das disposições de direito interno, nem sobre a compatibilidade de uma medida nacional com o direito comunitário. Considerando que não compete ao TJUE verificar a compatibilidade do direito nacional face ao direito comunitário, e que o reenvio prejudicial é o processo pelo qual os juízes nacionais dos Estados-Membros podem solicitar ao TJUE esclarecimentos sobre a interpretação ou a validade do direito europeu num processo em curso, conclui-se que o juiz nacional deve indeferir o pedido de reenvio prejudicial se o caso em apreço não implica a aplicação de direito comunitário, mas apenas de direito nacional. Face ao exposto, e tendo em conta a natureza e o âmbito do caso em análise, este tribunal considera que não se justifica o reenvio prejudicial para o TJUE, uma vez que a questão em causa recai exclusivamente no domínio do direito nacional, não suscitando dúvidas quanto à interpretação ou aplicação do direito comunitário. Porém, ainda que assim não fosse, anota-se que o requerente sustenta a sua divergência quanto à transposição para o direito interno da Directiva Comunitária que invoca, na circunstância de o seu art.º 7º se referir a “suspeitos e acusados” e de, no ordenamento jurídico português (cf. art.º 89º do CPP) o direito de acesso aos autos não estar o previsto para meros suspeitos (na acepção prevista no CPP). Vejamos então o que diz o normativo invocado: O art.º 7º da Directiva (sob a epigrafe Direito de acesso aos elementos do processo) prevê que: (…) 2. Os Estados-Membros asseguram que seja dado acesso aos suspeitos ou acusados, ou aos seus advogados, a pelo menos toda a prova material que se encontre na posse das autoridades competentes, seja ela a favor ou contra os suspeitos ou acusados, de modo a salvaguardar a equidade do processo e a preparar a defesa. (…) 4. Em derrogação dos n.ºs 2 e 3, e na condição de não prejudicar o direito a um processo equitativo, pode ser recusado o acesso a certos elementos se esse acesso for suscetível de constituir uma ameaça grave para a vida ou os direitos fundamentais de outra pessoa ou se a recusa for estritamente necessária para salvaguardar um interesse público importante, como nos casos em que a concessão de acesso poderia prejudicar uma investigação em curso ou comprometer gravemente a segurança nacional do Estado-Membro em que corre o processo penal.” Atentando que a Directiva visada não distingue expressamente os conceitos de “suspeito” e “arguido”, ao contrário da legislação nacional, a interpretação dos requerentes no sentido de que o Estado Português não transpôs correctamente para a ordem jurídica interna o conteúdo desta Directiva por não ter incluído no núcleo de cidadãos com direito de acesso aos autos os “suspeitos” (na acepção do CPP) – é imediatamente arredada pelo teor do art.º 2º da mesma Directiva, ao estatuir que “1. A presente diretiva é aplicável a partir do momento em que a uma pessoa seja comunicado pelas autoridades competentes de um Estado-Membro de que é suspeita ou acusada da prática de uma infração penal (…)”. Ora, assente que está que, ao abrigo da legislação nacional, o cidadão a quem é comunicado pelas autoridades competentes que é suspeito ou acusado da prática de um crime, adquire o estatuto de arguido – cf. artigos 57º e 58º, do CPP – parece-nos inequívoco, s.m.o., que não existe transposição incorrecta da legislação comunitária para o direito interno, porquanto o legislador nacional ao consagrar o direito de acesso aos autos e respectivas restrições ao “arguido”, abrange necessariamente o cidadão a quem é comunicado pelas autoridades competentes ser suspeito da prática de crime, precisamente aquele a quem se aplica a directiva invocada (art.º 2º, n.º 1 supra transcrito). Face ao exposto, e sem mais considerações, por não estarem preenchidos os pressupostos legais, indefiro o reenvio prejudicial para o TJUE requerido. Notifique e devolva os autos.»
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III. OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso é definido, como é sobejamente sabido, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Assim, face às conclusões extraídas pelas recorrentes da motivação apresentada, cumpre apreciar as seguintes questões:
i. se as recorrentes têm legitimidade para interpor recurso, uma vez que não revestem a qualidade de arguidas;
ii. se, no caso, se deve lançar mão do reenvio prejudicial; e,
iii. em caso de resposta negativa, se deve ser aplicada a Directiva 2012/13/EU de forma vertical.
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IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO i. Da legitimidade das recorrentes para interpor recurso:
Uma vez que o recurso foi admitido – e bem – pela 1.ª instância, nada mais se nos oferece a dizer quanto a esta matéria, pois que como referem as recorrentes, tanto o Ministério Público como os JIC’s deixaram bem clarificado que existem indícios da prática de crimes, desde logo do crime de branqueamento de capitais e, como tal, independentemente de estarem constituídos arguidas no processo, as ora requerentes têm um interesse directo na defesa dos direitos que considerem afectados pelas decisões judiciais.
Daqui se infere que, sendo recorrível a decisão, sempre a sua legitimidade estava estabelecida nos termos do disposto pelo art.º 401.º, n.º 1, al. d) 2.ª parte do CPP. ii. Do reenvio prejudicial para o TJUE:
Vêm as recorrentes requerer o reenvio prejudicial para o TJUE, enunciando várias questões concretas.
Vejamos se lhes assiste razão.
Lido o despacho em crise, afigura-se-nos que o mesmo é certeiro quando afirma que não se verificam os respectivos pressupostos para se lançar mão do reenvio prejudicial.
Porém, tal assertividade não se deve às razões aí constantes, mas sim à circunstância de, como se afirma no Ac. do STJ de 29.11.2022, publicado em ECLI:PT:STJ:2022:2426.21.7T8VCT.C.S1.25, «a obrigação de reenvio prejudicial decorrente do art.º 267º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia cede quando a interpretação dos dispositivos em causa seja clara e não suscite, por isso, dúvida razoável.» (sublinhado nosso).
Assim, antes de entrarmos na problemática propriamente dita, há que relembrar as palavras de João Gomes de Sousa (in “Interpretar, Traduzir e Informar”: “incómodos” da modernidade?”, publicado na Revista Julgar Online, Março de 2019, pág. 5): «(…) no confronto com o direito comunitário, constatámos nós também, uma parte que parece relevante dos juristas nacionais ainda se não sente à vontade. Ou assume ideias erradas como aquela que contra nós já foi brandida várias vezes, que as Directivas “só podem ser aplicadas se houver transposição pelo Estado, logo as Directivas ditas de garantia, porque não transpostas, não podem ser aplicadas na ordem jurídica portuguesa”. Isto, dito com convicção, alguma agressividade até, para além do relativo desconhecimento e óbvio reflexo defensivo, é uma espantosa demonstração de que a “raison d´État” francesa se entranhou profundamente na mente lusitana ao ponto de a tornar íntima do imobilismo.».
Porém, estamos em crer que esse “imobilismo” tem evoluído - e bem - no sentido contrário, sobretudo em decorrência da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJEU) e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).
Assim, como diz aquele autor, «não transposta a Directiva - sempre indício de violação de disposição de direito comunitário -, que condições devem existir no caso concreto para que ocorra esse efeito directo vertical (perante os poderes públicos, aqui o tribunal e o Estado português)? Sendo claro que uma Directiva, em princípio, só produz efeitos após a sua transposição, a jurisprudência do Tribunal de Justiça, hoje da União Europeia, considera que uma directiva que não foi objecto de transposição pode produzir directamente determinados efeitos, caso: a) não tenha sido efectuada a sua transposição para a legislação nacional ou tenha sido objecto de transposição incorrecta; b) as disposições da directiva sejam incondicionais e suficientemente claras e precisas; c) as disposições da directiva confiram direitos a particulares; d) esteja esgotado o prazo de transposição. Sempre que sejam preenchidas estas condições, os particulares podem invocar a directiva junto de um tribunal.».
Ora, o Conselho Europeu (CE) iniciou um “Roteiro para o Reforço dos Direitos Processuais dos Suspeitos ou Acusados em Processos Penais”, para a garantia de direitos, entre os quais e para o que aqui interessa, “o direito à informação sobre os direitos e sobre a acusação (medida B)”, cfr. Resolução do CE de 30.11.2009, publicada no Jornal Oficial da União Europeia, C 295/1, de 04.12.2009.
E para concretizar tal garantia foi publicada a Directiva 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 22.05.2012, relativa ao direito à informação em processo penal, que no seu considerando 32 faz-se referência a que «O acesso à prova material na posse das autoridades competentes, a favor ou contra o suspeito ou acusado, nos termos previstos na presente diretiva, pode ser recusado, de acordo com o direito nacional, se esse acesso for suscetível de constituir uma ameaça grave para a vida ou os direitos fundamentais de outra pessoa ou se a recusa de tal acesso for estritamente necessária para salvaguardar um interesse público importante. A recusa de acesso deverá ser sopesada contra os direitos de defesa do suspeito ou acusado, tendo em conta as diferentes fases do processo penal. As restrições a esse acesso deverão ser interpretadas em sentido estrito e de acordo com o princípio do direito a um processo equitativo tal como previsto pela CEDH e interpretado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.» (sublinhados nossos).
Assim, em matéria de “suspeitos e acusados”, a União Europeia visou assegurar a existência de um processo justo e equitativo, na acepção do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) - em que cada indivíduo tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal a si dirigida - e à luz da jurisprudência do TEDH, bem como do art.º 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), com estabelecimentos de standards mínimos europeus que dêem corpo a essas preocupações.
Estas normas deste catálogo internacional de direitos humanos vigoram na nossa ordem jurídica interna, de acordo com o disposto no art.º 8.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Sucede que tal Directiva veio a ser transposta pelo Estado Português apenas no ano de 2023, através da Lei n.º 52/2023, de 28.08, depois da Comissão Europeia ter dado início a um processo por infracção por atraso na sua transposição (ou seja, em momento bem posterior ao início do presente inquérito).
E como resulta do requerimento apresentado a 02.07.2024, os requerentes pretendiam que o tribunal decidisse a sua pretensão afastando o direito nacional – art.º 89.º, n.º 2 do CPP – e aplicando directamente a referida Directiva 2012/13/UE, por entenderem que a mesma não foi correctamente transposta para o ordenamento jurídico português e pelo facto das suas disposições serem incondicionadas e suficientemente claras e precisas e consequentemente conferir direitos aos particulares.
Ora, atentando a que a Directiva visada não distingue expressamente os conceitos de “suspeito” e “arguido”, ao contrário da legislação nacional, a interpretação dos requerentes no sentido de que o Estado Português não transpôs correctamente para a ordem jurídica interna o conteúdo desta Directiva por não ter incluído no núcleo de cidadãos com direito de acesso aos autos os “suspeitos” (na acepção do CPP) – é imediatamente arredada pelo teor do art.º 2.º da mesma Directiva.
Assim, aqui chegados, temos de questionar se, em face de tal transposição, a problemática enunciada pelas recorrentes ainda se mantém em aberto.
A resposta é claramente afirmativa.
Na verdade, o conceito de “suspeito”, que se encontra previsto no art.º 1.º , al. e) do CPP, tem uma relevância diminuta no direito processual penal nacional, já que não lhe estão assegurados “direitos”, o que só ocorre quando vem a assumir a qualidade de arguido, nos termos dos arts. 58.º a 61.º do CPP.
E, pese embora se compreendam as razões que subjazem a tal escolha pelo legislador, a verdade é que há que «garantir um equilíbrio razoável entre os interesses de ordem pública visados pelas medidas restritivas e pela desejável discrição, por razões de eficácia, da atividade investigatória, por um lado, e por outro, o interesse que o particular poderá ter em contestar tais medidas, desafiando-as numa base contraditória e em tendencial igualdade de armas para que o processo criminal seja justo e equitativo» - neste sentido, vide o Ac. do TRL de 25.01.2024, não publicado e proferido no processo n.º 837/22.0TELSB-C.L1, desta 9.ª Secção Criminal, relatado pelo Juiz Desembargador, Jorge Rosas de Castro.
Assim, em face do que se acaba de dizer e dado que a norma do art.º 7.º da Directiva 2012/13/EU (assente no seu considerando 32) é clara e não suscita qualquer dívida, passemos, agora, à terceira questão (de conhecimento obrigatório em razão da jurisprudência firmada pelos TJUE e TEDH), ou seja, a se saber se tal normativo pode ser aplicado de forma vertical. iii. Da alegada aplicação com efeito vertical da Directiva 2012/13/EU:
Alegam as recorrentes que a Directiva 2012/13/EU foi incorrectamente transporta pelo Estado Português com a publicação da Lei n.º 52/2023, de 28.08, no tocante ao direito de informação e ao acesso aos elementos do processo penal, situação que não lhes permitiu, até hoje, conhecer os fundamentos das decisões que ordenaram a suspensão das operações bancárias (doravante SOB) e ulterior apreensão dos saldos bancários, nem tão-pouco os elementos que sustentam tais decisões, não tendo sido ainda constituídas arguidas até à presente data, apesar do inquérito se ter iniciado a 24.05.2021, razão por que deve ser aplicado directamente, ou seja, com efeito vertical, o disposto no art.º 7.º, n.º 2, da mencionada Directiva.
Antes do mais, importa dizer que o combate ao fenómeno de branqueamento de capitais esteve associado, num primeiro momento, à repressão do crime de tráfico de substâncias estupefacientes e ao confisco das vantagens obtidas através de tal ilícito e, mais tarde, a outro tipo de criminalidade, designadamente e de entre outras, económico-financeira e terrorismo.
A Lei n.º 83/2017, de 18.08. veio, assim, estabelecer as medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, transpondo parcialmente as Directivas 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20.05.2015, e 2016/2258/UE, do Conselho, de 06.12.2016.
Dito isto, volvemos, agora, ao caso que nos ocupa.
Assim, compulsados os autos (naquilo que aqui interessa), verifica-se o seguinte:
- por decisão proferida a 25.01.2021 foi validada a decisão de sujeitar os autos a segredo de justiça e ordenou a suspensão temporária dos saldos bancários (SOB) por 3
meses de todas as operações a débito, bem como do acesso via homebanking, sobre a conta bancária do BCP, por existir a suspeita da prática de crimes de natureza económico-financeira – cfr. fls. 160 e Ref.ª ..., ambos dos autos de inquérito;
- mediante requerimento de 21.07.2021, os ora recorrentes vieram informar que só nessa data haviam tomado conhecimento do bloqueio da conta, presumindo que tivesse ocorrido à luz da Lei n.º 25/2008, de 05.06, pedindo que tal fosse levantado - cfr. Ref.ª 11205261 dos autos de inquérito;
- o Ministério Público requereu a prorrogação da SOB a 20.08.2021, o que foi deferido por despacho do JIC a 23.08.2021 – cfr. Ref.ªs ... e ..., respectivamente;
- o Ministério Público requereu a prorrogação da SOB a 17.11.2021, o que foi deferido por despacho do JIC a 19.11.2021 – cfr. Ref.ªs ... e ..., respectivamente;
- o Ministério Público requereu a prorrogação da SOB a 16.02.2021, o que foi deferido por despacho do JIC a 17.02.2021– cfr. Ref.ªs ... e ..., respectivamente;
- o Ministério Público requereu a prorrogação da SOB a 17.05.2022, o que foi deferido por despacho do JIC a 25.05.2022 – cfr. Ref.ªs ... e ..., respectivamente;
- nenhuma destas decisões foi notificada aos recorrentes;
- entretanto, o Ministério Público requereu a apreensão dos saldos da conta bancária a 15.07.2022 e o adiamento ao acesso aos autos, o que foi deferido por despacho do JIC a 18.07.2022– cfr. Ref.ªs ... e ..., respectivamente;
- os interessados apenas foram notificados da apreensão, mas não dos fundamentos subjacentes a tal decisão;
- por requerimento de 27.09.2022, de fls. 408 dos autos, os recorrentes requereram a consulta dos autos, o que foi indeferido por despacho de 18.11.2022, cfr. Ref.ª ...;
- por requerimento de 27.09.2023, a recorrente AA veio requerer a consulta dos autos, o que foi indeferido por despacho de 10.11.2023, cfr. Ref.ª ...;
- por despacho de 10.06.2024, a JIC indeferiu a consulta do processo , cfr. Ref.ª ...;
- por despacho de 12.07.2024, a JIC indeferiu novamente a consulta do processo, cfr. Ref.ª ...;
- por despacho de 22.12.2024 (despacho em crise), a JIC indeferiu a consulta do processo por entender que, pese embora os prazos previstos no art.º 276.º do CPP já tenham decorrido, «o requerente carece de legitimidade para a consulta de autos pretendida, por não ser arguido, assistente, ofendido, lesado ou responsável civil», cfr. Ref.ª 163237429.
Na situação em apreço, a medida de SOB e, ulteriormente, a medida cautelar de apreensão dos saldos da conta bancária traduziram-se, claramente, numa ingerência no direito de propriedade dos visados, direito este fundamental e como tal protegido pela nossa CRP (nos seus arts. 61.º, n.º 1 e 62.º, n.º 2), mas também e ainda pelo art.º 1.º do Protocolo Adicional n.º 1 à CEDH e pelo art.º 17.º, n.º 1 da CDFUE, interferência essa que não é de somenos importância pelas seguintes razões:
- pela sua própria essência, visto que implica a impossibilidade de o destinatário da(s) medida(s) usar as suas contas bancárias a débito; e,
- pelo período de tempo pelo qual poderão vigorar:
- a SOB: com um prazo inicialmente fixado em três meses e sujeito a renovações sucessivas dentro do prazo de inquérito - prazo máximo este de 14 meses e, que no caso, foi objecto de períodos de suspensão em decorrência de pedidos de cooperação internacional, nos termos do art.º 49.º, n.º 2 da citada Lei n.º 83/2017 e as disposições conjugadas dos arts. 1.º, al. m), 215.º, n.º 2 e 276.º, n.º 1, al. a) do CPP; e,
- a medida cautelar de apreensão do respectivo saldo bancário sem qualquer prazo máximo - e que só pode ser levantada mediante decisão judicial ou por já não interessar a quem a requereu ou mediante requerimento de oposição por banda do interessado.
Ora, in casu, tal ingerência permanece inalterada [1.º com a SOB e agora com a medida cautelar de apreensão] até à presente data, sendo certo que já se mostram decorridos 4 anos, 11 meses e 22 dias.
E como se diz no acórdão supra citado [Ac. do TRL de 25.01.2024, relativo ao processo n.º 837/22.0TELSB-C.L1] «Decerto que este direito não tem uma natureza absoluta, estando sujeito a restrições de vária ordem, devendo estas porém ter em vista uma finalidade legítima, serem adequadas a alcançá-la e respeitarem critérios de proporcionalidade, só assim podendo passar o crivo, desde logo, do art.º 18º, nºs 2 e 3 da CRP. O pôr-se a descoberto o conjunto de fundamentos em que assenta a ingerência constitui um pressuposto do exercício, pelo interessado, do direito a um processo justo e equitativo, dado que, não conhecendo tais fundamentos na íntegra, fica em maior ou menor medida impedido de escrutinar a decisão e de a desafiar perante um tribunal superior. Ciente do melindre da matéria, aliás, a Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, Deteção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo, de 16-05-2005, ao mesmo tempo que prevê ingerências de tomo no direito de propriedade de pessoas que as entidades de investigação vejam como suspeitas de algum tipo de envolvimento em operações de branqueamento, também prevê que cada jurisdição nacional deverá reconhecer aos visados recursos jurídicos efetivos para salvaguarda dos seus direitos (cfr. arts. 3º a 5º e 8º). Tem sido esta, de resto, a linha seguida pelo TEDH, considerando este que recaem sobre os Estados, do art.º 1º do Protocolo Adicional nº 1 à CEDH, obrigações positivas de natureza processual, destinadas a garantir um equilíbrio razoável entre os interesses de ordem pública visados pelas medidas restritivas e pela desejável discrição, por razões de eficácia, da atividade investigatória, por um lado, e por outro lado o interesse que o particular poderá ter em contestar tais medidas, desafiando-as numa base contraditória e em tendencial igualdade de armas (cfr. Acs. do TEDH Filkin c. Portugal, nº 69729/12, §§ 78-79, de 3/03/2020 e G.I.E.M. S.R.L. et autres c. Italie [GC], nos 1828/06 et 2 autres, § 302, 28/06/2018)» (sublinhado nosso).
Não olvidamos, como é óbvio, que neste tipo de criminalidade, os autos estão, por regra, sujeitos a segredo de justiça e que a busca do equilíbrio razoável entre os interesses da investigação e os valores que lhe subjazem de um lado - divulgar todos os fundamentos concretos e pormenorizados da investigação ou dar a conhecer, precocemente, os meios de prova trazidos aos autos, o acesso a tal acervo probatório pode colocar em causa diligências de prova em curso, comprometendo a descoberta da verdade material -, e do outro os interesses dos titulares dos direitos atingidos em se acharem munidos de informação suficiente para poderem escrutinar e eventualmente desafiar a decisão, se mostra deveras dificultada.
Mais como se refere - e bem - naquele mesmo aresto «Temos na verdade de estar cientes da importância que as mais das vezes o segredo de justiça terá para a eficácia de investigações nesta área; todavia, o regime jurídico do segredo de justiça e os valores e interesses que lhe subjazem não podem servir de argumento fundador da desconsideração dos direitos de defesa, prevalecendo totalmente sobre estes em termos prático-jurídicos. Não pode em suma impor-se, sem mais, uma ingerência com o peso de uma suspensão de operações bancárias a débito, que amiúde persistirá por um longo período de tempo e afetar profundamente a atividade e a vida económica e financeira dos visados, sem que estes sejam concomitantemente habilitados com os fundamentos essenciais da decisão que lhes dizem especificamente respeito, em ordem a que possam questionar a medida. O próprio regime geral do segredo de justiça acomoda aliás a possibilidade já de uma solução nesta matéria, ainda que de alcance limitado. Veja-se o que nos diz o art.º 86.º, n.º 9, alínea b) do CPP: «A autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal não puser em causa a investigação e se afigurar (…) b) indispensável ao exercício de direitos pelos interessados. Dir-se-á então que decorre desde logo do contexto deste regime geral, pelo menos, este ditame: sendo indispensável ao exercício de direitos pelos interessados aceder a conteúdo informacional sujeito a segredo de justiça (este já motivado pelos interesses ligados à eficácia da investigação), só com uma fundamentação adicional poderá obstar-se a esse acesso. Mas independentemente do que decorra do regime geral do segredo de justiça nos termos delineados pelo CPP, uma aplicação direta do art.º 1º do Procotolo Adicional n.º 1 da CEDH, como se nos impõe por via do art.º 8.º, n.º 2 da CRP, e lido à luz da jurisprudência do TEDH que deixámos citada, justifica, no caso concreto, que os recorrentes tenham acesso à documentação, ficando estes habilitados ao exercício do contraditório e a impugnação uma medida que os atinge directamente e que pode persistir por longo período.» (sublinhados nossos).
Ora, no caso, como vimos o prazo máximo da SOB foi atingido e foi-o sem que os interessados tivessem sido notificados dos elementos essenciais da decisão (apenas daqueles que não pusessem em causa a investigação) e que lhes permitiria reagir, como era seu direito.
Esta questão mostra-se, no entanto, ultrapassada, uma vez que os interessados interpuseram dois recursos anteriores, nos quais não puseram em causa, de forma directa, esta realidade.
E prosseguindo, agora, com a subsequente apreensão dos saldos bancários diremos que se logrou “contornar” aquele prazo legal máximo, situação quanto a nós preocupante, já que os interessados, ora recorrentes, também não souberam das razões subjacentes ao seu decretamento, o que viola, clamorosamente, os direitos de defesa dos interessados/recorrentes.
Aliás, como bem expressam as recorrentes, as mesmas «(…) entraram num ciclo sem fim… São suspeitas e, como tal, são alvo de uma suspensão de operações bancárias e depois de uma apreensão de saldos bancários… Não são assim tão suspeitas para serem constituídas arguidas, por iniciativa do Ministério Público… Não sabem as suspeitas que impendem sobre si para requerer a sua constituição como arguidas… Mesmo assim, requerem a sua constituição como arguidas e não são constituídas arguidas…Não podem consultar os autos porque não são arguidas… Entraram num labirinto jurídico sem fim.» e acrescentamos, nós, nem sequer podem requerer a aceleração processual.
Dito isto, somos levados a entender que o prazo razoável se mostra, há muito, ultrapassado, à luz dos interesses em jogo, em clara violação do art.º 1.º do Protocolo Adicional n.º 1 da CEDH, como se nos impõe por via do art.º 8.º, n.º 2 da CRP, e lido à luz da jurisprudência do TEDH supra citada, com destaque para o teor do Ac. do TEDH Filkin c. Portugal, nº 69729/12, §§ 78-79, de 3/03/2020, disponível em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-201549%22]}, que tomou posição clara sobre esta questão do que se deve entender por “prazo razoável”.
Concluindo, dada a aplicação vertical daquele art.º 7.º e dada a sua clareza, inexiste fundamento para o prendido reenvio prejudicial.
Assim, será de manter o decidido no tribunal recorrido quanto ao indeferimento do reenvio prejudicial.
Contudo, a aplicação directa daquele art.º 7.º implica, necessariamente, a reapreciação do requerido pelas recorrentes em conformidade, dela se retirando as devidas consequências quanto ao acesso aos autos, ainda que de forma limitada e se assim vier a ser entendido (em particular, os elementos processuais essenciais à compreensão, pelas recorrentes - que, incompreensivelmente, ainda são suspeitas nos autos -, da decisão cautelar de apreensão dos saldos bancários que as afectou e ainda afecta), por força da jurisprudência dos TJUE e TEDH e atendendo ao primado do direito da EU sobre o direito nacional, em termos de salvaguarda dos direitos humanos.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em confirmar a decisão recorrida, embora por motivos distintos, os quais implicam, necessariamente, a reforma da decisão recorrida, ou seja, uma reapreciação da situação das recorrentes, tudo em consonância com a aplicação directa do disposto na Directiva 2012/13/UE, o que se determina.
Custas pelas recorrentes, cuja taxa de justiça se fixa no mínimo legal.
Notifique.
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Lisboa, 22 de Maio de 2025
Marlene Fortuna
Paula Cristina Bizarro
André Alves