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EXAME CRÍTICO DA PROVA
NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário
I. Através da fundamentação da sentença, há-de ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal num sentido e não noutro, e bem assim porque é que o tribunal teve por fiável determinado meio de prova e não outro, e há-de permitir ao Tribunal Superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório. II. Assim, a mera indicação ou enumeração de provas não serve, de todo, as exigências de fundamentação da matéria de facto na sentença/acórdão, razão por que estamos perante a insuficiência da fundamentação quando da decisão não se logra apreender a sua razão de ser. III. Isto significa que, quando se lê uma motivação da decisão sobre a matéria de facto e não se consegue compreender quais os concretos meios de prova que relevaram para cada facto ou para a actuação imputada ao(s) arguido(s), não se vislumbra qualquer critério, minimamente sistematizado, por referência ao qual fossem indicadas as provas que foram determinantes da convicção do tribunal a esse respeito, tal decisão padece do vício de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos arts 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP. IV. E este cenário constitui, por conseguinte, clara violação do direito constitucionalmente consagrado a um processo justo e equitativo, nos termos do art.º 20.º, n.º 4, da CRP e art.º 6.º da CEDH.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
No processo comum colectivo n.º 216/20.3PDOER do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Cascais – Juiz 3, consta da parte decisória do acórdão datado de 20.02.2025, no que interessa, o seguinte: «Nestes termos, julga-se a acusação integralmente procedente por provada, e, em consequência: Condena-se AA, pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de doze crimes de abuso sexual de criança, consumados, pps. no art.º 171.º, n.º 2, do CP, por que vinha acusado, na pena de quatro anos e seis meses de prisão, efectiva, por cada um desses doze crimes. Condena-se AA, pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de seis crimes de abuso sexual de criança, consumados, pps. no art.º 171.º, n.º 1, do CP, por que vinha acusado, na pena de dois anos e três meses de prisão, efectiva, por cada um desses seis crimes. Condena-se AA, pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de três crimes de abuso sexual de menor dependente ou em situação particularmente vulnerável, consumados, pps. no art.º 171.º, n.º 1, do CP, por que vinha acusado, na pena de dois anos e três meses de prisão, efectiva, por cada um desses três crimes. Condena-se AA, pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de três crimes de abuso sexual de criança, consumados, pps. no art.º 171.º, n.º 3, a), do CP, por que vinha acusado, na pena de nove meses de prisão, efectiva, por cada um desses três crimes. Condena-se AA, pela prática, em autoria material, em concurso efectivo, de um crime de abuso sexual de criança, consumado, pp. no art.º 171.º, n.º 3, b), do CP, por que vinha acusado, na pena de nove meses de prisão, efectiva, por esse crime. Em cúmulo jurídico das penas supra condena-se o arguido AA na pena única de 10 (dez) anos de prisão, efectiva. A título de reparação indemnizatória à ofendida BB, condena-se o arguido a pagar à ofendida o montante de €-30.000,00 (trinta mil euros), por se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais. Tal montante será entregue por depósito à ordem destes autos, a fim de depois ser entregue pelo Tribunal à ofendida.».
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Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição): «A) Face á produção de prova em sede de Audiência de julgamento, e tendo em conta as próprias declarações do Arguido, que prestou declarações e negou a prática dos fatos, não existem testemunhas que presenciaram os fatos, nomeadamente CC, DD e EE, B) Acresce ainda o fato no relatório da P.J. Ora conforme leitura atenta do relatório pericial de clínica forense e datado de 01/09/2020, junto aos autos, com referência citius 17335585, existe uma clara contradição com as declarações da testemunha nomeadamente o refere o seguinte: Exame objetivo, estado Geral: Consciente. Não existem lesões traumáticas recentes, sem alterações na cavidade oral, A nível da região anal e peri anal: não efetuado, A nível da região vaginal e pero vaginal, A Região vulvar: ausência de lesões traumáticas, recentes ou corrimento vaginal. A examinanda não apresenta lesões ou sequelas. C) As declarações para memória futura foram prestadas, por outro lado, é essencial para descoberta da verdade material ouvir as declarações para memória futura prestadas em ... e as declarações aquando da formalização da queixa crime, isto é: D) A formalização da queixa crime foi efetuada em 21 de Agosto de 2020 na PSP de ..., por fatos supostamente ocorridos entre as 03h00 e as 10h00 do dia 19 de Agosto de 2020. E) E as declarações para memória futura somente foram tomadas à menor 13 de Dezembro de 2023, com um lapso temporal de 3 anos, desde a suposta prática dos fatos. F) O instituto das declarações para memória futura é comumente caracterizado como uma antecipação parcial da audiência de julgamento envolta numa concordância prática de interesses que se materializam no interesse público da descoberta da verdade material, na conservação da prova e, por fim, na proteção da vítima, devendo para tal serem tomadas à menor, neste caso em concreto, logo após o tribunal ter conhecimento dos fatos, e não no presentes autos, somente passado três anos, lapso de tempo bastante grande e que compromete o depoimento da própria vitima. G) Daí a ofendida ter dito por exemplo que via filmes pornográficos com o Arguido: Conforme declarações da ofendida para memória futura à passagem 00:19:18, nomeadamente “Não sei estavamos a ver o sexo e a cidade no Hollywood”, sendo que o filme sexo e a cidade não é um filme pornográfico. H) A Ofendida declarou à passagem do seu depoimento 00:22:43 “Eu ás vezes fumava ganzas.” I) Por outro lado a testemunha CC, Mãe da Ofendida indicou no seu depoimento o seguinte à passagem 01:03:00 que a sua filha inventava histórias, e que fumava Crack. J) Mencionou ainda no seu depoimento que tinha uma sobrinha que também andou nas drogas pesadas, e que “meteu” a BB na Droga 00:05:30 a 00:05:50. K) Estas declarações da própria ofendida e da testemunha CC sua Mãe, ainda e face à ausência de datas da suposta prática dos fatos, de abusos pelo Arguido, entende-se que esta não concretiza os supostos abusos por parte do Arguido. L) Uma vez que o Arguido Trabalha como Assistente operacional/cantoneiro, na Câmara Municipal de …, na área da jardinagem, desde 2018, onde se encontra com vínculo efetivo. M) Tem casa própria, visita regularmente a sua Mãe, que reside na zona de Lisboa, mais concretamente em ..., prestando lhe cuidados básicos e necessários visto ter uma idade já avançada. N) Tem uma boa relação com os vizinhos onde mora, bem como com os colegas de trabalho, onde tem uma imagem positiva e descrito como pacifico. O) Face á produção de prova obtida e tendo em conta o princípio do “In dúbio pro Reu”, deverá o Arguido ser absolvido, caso assim não se entenda e P) Se pugne pela aplicação de uma pena de prisão, atendendo ao fato do Arguido ser primário, deverá a pena ser reduzida até 5 anos e ser a mesma suspensa na execução. Não se concordando assim com a DOUTA DECISÃO proferida pelo DOUTO TRIBUNAL de 1ª Instância, e nos termos expostos e demais de Direito que V. Ex.ªs mui Doutamente suprirão, Deve o presente recurso ser julgado procedente, e a final, ser: 1. Absolvição do crime de abuso sexual de criança prevê art.º 171 n. 2 e crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável art.º 172 n 1 al) b). 2. Caso se entenda a aplicação de uma pena de prisão, deverá a pena ser reduzida até 5 anos ser suspensa na sua execução, devido á integração socio profissional do Arguido, trabalha como efetivo na ... e ao fato de ser primário. 3. Absolvição total do pedido Cível formulado ou caso não se entenda se pugne pela sua redução. 4. Só assim se garante os princípios Constitucionais/Penais de Defesa do Arguido. Fazendo- se assim a costumada JUSTIÇA!»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho datado de 20.03.2025, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição): «1. O recorrente foi condenado pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de doze crimes de abuso sexual de crianças, consumados, previstos e punidos no art.º 171.º, n.º 2 do Código Penal, de seis crimes de abuso sexual de crianças, consumados, previstos e punidos no art.º 171.º, n.º 1, do Código Penal, três crimes de abuso sexual de menor dependente ou em situação particularmente vulnerável, consumados, previstos e punidos no art.º 171.º, n.º 1 do Código Penal, de três crimes de abuso sexual de crianças, consumados, previstos e punidos no art.º 171.º, n.º 3, a), do Código Penal e de um crime deabuso sexual de crianças, consumado, previsto e punido no art.º 171.º, n.º 3, b), do Código Penal, pena única de 10 (dez) anos de prisão. 2. Para formar a sua convicção para dar como assente a factualidade dada como provada e a factualidade dada como não provada, o tribunal a quo baseou-se no conjunto da prova produzida, designadamente, nas declarações do recorrente, nas declarações prestadas para memória futura pela ofendida, nos depoimentos das testemunhas e em toda a prova pericial e documental junta ao processo. 3. A apreciação que o tribunal a quo efectuou quer das declarações do recorrente quer das declarações prestadas para memória futura pela ofendida e de toda a prova produzida e analisada em julgamento, não merece qualquer reparo. 4. É certo que não existem testemunhas presenciais dos factos e que o tribunal a quo assentou a sua convicção, fundamentalmente (mas não só), nas declarações prestadas pela ofendida BB. 5. A prova neste caso assenta, essencialmente, e como é transversal neste tipo de crimes, no depoimento da própria vítima, no caso, nas declarações prestadas para memória futura pela ofendida BB. 6. Escutadas as declarações prestadas para memória futura pela ofendida, é possível perceber e apreender o modo espontâneo, natural e genuíno com que foram prestadas sendo, por isso, credíveis, não se vislumbrando, ao longo do relato que foi fazendo, qualquer sentimento de vingança da ofendida relativamente ao recorrente. 7. Face a toda a prova produzida em audiência de julgamento e a prova constante do processo, conjugada com as regras da lógica e do normal acontecer, bem andou o tribunal a quo ao dar como provados os factos dados como assentes no acórdão recorrido e ao condenar o recorrente pela prática dos crimes pelos quais foi efectivamente condenado. 8. Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, facilmente se constata que a sua discordância assenta na valoração da prova efectuada pelo tribunal a quo, por discordar quanto ao sentido daconvicção desse tribunal, por não ter acreditado na sua versão dos factos e, antes, ter acreditado nas declarações da ofendida, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova. 9. Para condenar o recorrente nas penas parcelares e na pena única fixadas no acórdão recorrido, o tribunal a quo baseou-se na ausência de antecedentes criminais do recorrente, na sua integração, em termos sociais e laborais, no dolo directo com que agiu no grau de ilicitude das suas condutas, no lapso de tempo já decorrido desde a data da prática dos factos e na circunstância de, presentemente, a ofendida já não residir com o recorrente. 10. Muito embora não conste expressamente mencionado no acórdão recorrido, são acentuadíssimas as exigências de prevenção geral, no que respeita aos crimes de abusos sexuais cometidos contra crianças e jovens, em particular, em contexto doméstico, atenta frequência com que estes crimes são praticados e o sentimento de repulsa que suscitam na comunidade, um verdadeiro flagelo que, na grande maioria dos casos, senão mesmo em todos, tem consequências dramáticas e devastadoras nas suas vítimas. 11. Embora o recorrente não tenha quaisquer antecedentes criminais averbados no seu CRC e esteja integrado profissionalmente, a verdade é que os comportamentos pelo mesmo perpetrados na pessoa da ofendida, são, numa visão global, particularmente desvaliosos. 12. Não existe qualquer fundamento para diminuir as medidas concretas das penas parcelares e da pena única em que foi condenado sob pena de serem postas em causa as finalidades da punição e de se contribuir para instalar na comunidade a descrença na validade das normas. 13. O tribunal a quo ponderou assertivamente o grau elevado de ilicitude da conduta do recorrente, o facto de ter actuado com dolo directo e a sua situação pessoal,fazendo-o através de uma correcta aplicação dos comandos normativos ínsitos nos artigos 40.º, 50.º, 70.º e 71.º do Código Penal. 14. Deve o recurso ser julgado totalmente improcedente e confirmado o acórdão recorrido. No entanto, V. Excªs. farão a habitual Justiça.»
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Nesta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).
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Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso do tribunal, cfr. arts. 402.º, 403.º, e 412.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.
Assim, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP, e dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2002).
O objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente, e, outras, de conhecimento oficioso.
Da conjugação do disposto nos arts. 368.º, 369.º e 424.º, n.º 2, todos do CPP e 608.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, este aplicável ex vi do estatuído no art.º 4.º do CPP, ressuma que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto de recurso, não perdendo de vista a ordem lógica das consequências da sua eventual procedência, pela seguinte sequência:
- as que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
- as que se segue a denominada revista alargada, atinente aos vícios enumerados no art.º 410.º, n.º 2, uma vez que estes podem implicar o reenvio do processo à 1.ª instância, em consonância com o estabelecido no art.º 426.º, n.º 1, do CPP;
- as questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação ampla, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, por ser passível de correcção, nos termos estabelecidos no art.º 431.º, al. b) do CPP; e,
- finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
No caso em apreço, tendo em perspectiva o que acabámos de dizer, as questões a decidir são as seguintes:
- nulidade do acórdão por falta de exame crítico da prova e de fundamentação, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP;
- a impugnação da matéria de facto/erro de julgamento e a violação do princípio do in dubio pro reo;
- a medida concreta da pena aplicada e eventual suspensão da execução da pena de prisão.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos, com a seguinte motivação (transcrição): «FACTOS PROVADOS: Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos: 1- A ofendida, BB, nasceu em .../.../2006, em 5/4/2024 (data da acusação) tinha 18 anos de idade, tem actualmente 19 anos de idade, e entre meados de 2016 e de 2020, quando tinha entre 10 e 14 anos, durante 4 anos, viveu com a mãe, CC, e o irmão, EE, na casa do arguido, AA, nascido em 11/11/1960, em 5/4/2024 (data da acusação) e actualmente com 64 anos de idade, amigo da família e que os acolheu na sua residência sita na ..., no ..., em .... 2- Por ser uma pessoa amiga da família, que ajudou o agregado familiar da ofendida, dando-lhes guarida após um acidente que vitimou o pai da ofendida, BB tratava o arguido por “cota” e depositava nele confiança durante o seu crescimento, nomeadamente no período de 4 anos que durou a sua coabitação, entre 2016 e 2020. 3- Não obstante essa confiança que depositava no arguido, quando a ofendida ainda morava com a mãe e o irmão na morada anterior, em ... no Cacém, durante o ano de 2015, quando BB tinha nove anos, o arguido começou a aproximar-se da menor, quando a mesma dançava ele dava-lhe palmadas e apalpões no rabo e mostrava-lhe a língua, o que ocorreu um número indeterminado de vezes, mas pelo menos numa ocasião, em que a menor reagiu e lhe deu um estalo na cara. 4- Ainda na residência da ofendida em ..., no ano de 2015, numa ocasião estava o arguido sentado no sofá da sala junto a BB, então com nove anos, vestida com shorts e tapada com uma mantinha, a ver um filme na televisão, quando o arguido começou a mexer com a mão nas pernas da menina, enfiou uma mão por baixo dos calções e introduziu os dedos no interior da vagina da menor, fazendo gestos enquanto lhe dizia “estás a gostar não é?”. 5- No ano de 2016, quando BB já tinha dez anos de idade, a família dela (BB, a mãe e o irmão) foi viver para casa do arguido em ..., um T1 em que a televisão com internet se encontrava no quarto do arguido, dormindo a menor na sala com a sua mãe e o seu irmão, casa onde viveram até 2020, tinha a ofendida 14 anos. 6- Durante esse período, entre 2016 e 2019, aproveitando-se da maior proximidade em relação à menor, tinha BB entre 10 e 13 anos de idade, um número indeterminado de vezes, o arguido mexeu-lhe no peito e deu-lhe palmadas no rabo, por cima da roupa no intuito de satisfazer através desses toques o seu desejo sexual. 7- Durante o período de 2016 a 2019, tinha BB entre 10 e 13 anos de idade, um número indeterminado de vezes, quando a menor estava deitada na cama dele, o arguido mostrou-lhe filmes pornográficos. 8- Durante o período de 2016 a 2019, tinha BB entre 10 e 13 anos de idade, um número indeterminado de vezes, o arguido entrou dentro da casa de banho quando a menor estava no duche, abriu a cortina e viu o corpo dela nu, de seguida mostrou-lhe o pénis, começando a urinar para a sanita enquanto a ofendida tomava banho. 9- Durante o período de 2016 a 2019, tinha BB entre 10 e 13 anos de idade, um número indeterminado de vezes, quando a menor estava deitada na cama do arguido, o mesmo tocou-lhe nos mamilos e na vagina, por baixo do pijama. 10- Durante o período de 2016 a 2019, tinha BB entre 10 e 13 anos de idade, um número indeterminado de vezes, quando a menor estava deitada no sofá da sala, em pelo menos cinco ocasiões o arguido tocou-lhe nos seios e na vagina, colocando a mão por dentro da roupa, tocando com as mãos directamente na pele da criança, lambeu-lhe os mamilos e introduziu os dedos no interior da vagina da criança. 11- Durante o período de 2016 a 2019, tinha BB entre 10 e 13 anos de idade, o arguido pediu várias vezes para a menor lhe “bater uma punheta”, e um número indeterminado de vezes, pelo menos em cinco ocasiões a menor acedeu ao pedido do arguido e com a mão agarrou-lhe no pénis, de fora dos boxers que vestia, fazendo gestos para cima e para baixo, até o arguido ejacular para cima da cama. 12- Durante o período de 2016 a 2019, tinha BB entre 10 e 13 anos de idade, o arguido pediu várias vezes para a menor lhe sexo oral, e um número indeterminado de vezes, pelo menos em cinco ocasiões a menor introduziu o pénis erecto do arguido na sua boca, lambendo-o e fazendo movimentos para cima e para baixo, tendo em todas as ocasiões o arguido ejaculado para fora da boca da menina ofendida. 13- Nestas ocasiões em que o arguido pedia à menor para o masturbar ou para lhe fazer sexo oral, o arguido aliciava-a com dinheiro dizendo que lhe daria 20 € se a mesma acedesse aos seus pedidos, tendo a menor aceite pelo menos numa ocasião o dinheiro que o arguido lhe prometera em troca dos actos sexuais que com ele praticou. 14- Durante o ano de 2019, quando a BB tinha 13 anos de idade e estava no quarto do arguido a ver a novela “O CLONE”, numa ocasião a menor acedeu ao pedido do arguido e deixou-o fazer-lhe sexo oral, baixou os calções e o arguido colocou a sua língua dentro da vagina da criança, fazendo gestos com a língua para dentro e para fora da vagina da menor, penetrando-a na vagina com a língua. 15- Noutra ocasião, no ano de 2020, quando a BB já tinha 14 anos de idade, durante o período de confinamento por causa da pandemia Covid-19, a menor voltou a aceder ao pedido do arguido e por uma segunda vez deixou-o lamber-lhe a vagina, baixando os calções enquanto o arguido colocava a sua língua dentro da vagina da menor, fazendo gestos com a língua para dentro e para fora da vagina da ofendida. 16- Numa ocasião em 2020, tinha BB entre 14 anos de idade, o arguido chegou a casa, estava a menor a dormir na sua cama deitada de lado, o arguido deitou-se atrás dela, junto a si, afastou-lhe os calções do pijama e começou a penetrá-la, com o pénis erecto introduzido no ânus da menor, a qual acordou e após alguns instantes, depois da ejaculação, afastou o arguido por estar a sentir dores no ânus. 17- Depois do acto sexual de penetração anal, o arguido levantou-se e foi limpar-se na casa de banho, deixando BB voltar a dormir. 18- Na noite de 18 para 19 de Agosto de 2020, quando BB, então com 14 anos, ofendida estava a dormir no colchão da sala, o arguido deitou-se por cima dela, afastou-lhe os calções do pijama e colocou os dedos sobre a vagina, introduzindo os dedos e tocando-lhe no clitóris, enquanto ejaculava para cima da menor, a qual acordou, mas deixou o arguido em cima de si, voltando a dormir. 19- No dia seguinte, a mãe da menor apercebeu-se que a filha estava a dormir com as cuecas só numa perna e sujas, confrontou-a com esse facto e finalmente, ao fim de cinco anos de abusos sexuais, BB contou à mãe o que se passava, altura em que a situação foi denunciada, a menor foi levada ao Hospital e só então a menor e a mãe abandonaram definitivamente a casa do arguido. 20- O arguido aproveitou-se da relação de confiança com a menor, e de coabitação na sua residência durante os anos que ela viveu com ele, para praticar os actos descritos. 21- O arguido sabia qual a idade de BB, durante o período que durou a sua convivência e coabitação, tinha plena consciência que durante os anos de 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, anos em que abusou sexualmente da ofendida, ela era uma criança de, respectivamente, 9, 10, 11, 12, 13 e 14 anos de idade, o que não o impediu de agir da forma descrita e abusar da mesma ao longo de cinco anos. 22- Em toda a actuação descrita, o arguido agiu com o propósito conseguido de satisfazer o seu desejo sexual, bem sabendo que dessa forma prejudicava o desenvolvimento da personalidade da menor ofendida, entre os 9 e os 14 anos de idade da mesma, o que punha em causa o seu desenvolvimento psicológico, afectivo e sexual da criança. 23- Em todas as situações descritas, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que o seu comportamento era proibido e penalmente punido. Mais se provou que: À data dos factos AA residia na morada constante nos autos, a qual corresponde a habitação adquirida pelo próprio, localizada em bairro social, onde o arguido reside desde .... AA é natural de Lisboa, tendo vivido sempre em ..., onde ainda reside a sua mãe, com quem mantém uma relação afectivamente significativa. Dada a idade avançada e condição de saúde da mesma, o arguido mantém um contacto muito próximo com a mãe, prestando-lhe os cuidados necessários, uma vez que a irmã mais nova reside no .... O pai, com o qual o arguido manteve uma relação afectiva mais distante, faleceu em 2006. AA completou o 12º ano de escolaridade já em idade adulta, em 2010, através do processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC). Profissionalmente, encontra-se enquadrado, exercendo funções de cantoneiro para a Câmara Municipal de ... desde 2018, com vínculo contratual. O arguido já trabalhou igualmente no sector da limpeza urbana para a Junta de Freguesia durante um ano e meio e tem experiência laboral como operário fabril e motorista, bem como na área das artes gráficas e informática. Foi nesta área em que maioritariamente desempenhou atividade, por conta própria entre 2004 e 2015. No período anterior à instauração dos presentes autos, o agregado familiar era composto pelo arguido, a vítima nos presentes autos, BB, a mãe da vítima e o irmão, EE. AA refere à DGRSP ter conhecido a família da vítima em 2015, através de uma familiar daqueles. Na sequência de um acidente em que o pai da vítima ficou paraplégico, este foi institucionalizado e a família foi despejada da habitação onde viviam, passando então a residir com o arguido em 2016, onde permaneceram até à instauração dos presentes autos. O irmão da vítima mantém-se na residência do arguido na actualidade, assim como uma amiga do arguido, que se encontra institucionalizada numa Casa de Saúde, permanecendo na habitação quinzenalmente aos fins-de-semana. Relativamente à situação económica, e do ponto de vista do sustento do agregado familiar, tanto à data da instauração dos presentes autos como na actualidade, é o arguido quem suporta todas as despesas uma vez que se trata do único elemento profissionalmente activo. AA aufere o ordenado mínimo nacional no âmbito da sua actividade laboral. Como principais despesas, aponta à DGRSP a prestação relativa ao empréstimo bancário da habitação, no valor de 200,00 euros mensais e prestações de créditos pessoais, no valor total de cerca de 70,00 euros mensais. Durante o tempo em que a vítima e a família residiram com o arguido, segundo o próprio à DGRSP, o sustento do agregado era mais dificultado pelo número elevado de elementos que o compunha. A mãe da vítima comparticipava mensalmente com 200,00 euros mas, ainda assim, o arguido recorria nessa altura ao apoio da sua mãe, sobretudo em termos alimentares. O arguido disse à DGRSP que dormia na sala juntamente com EE, tendo cedido o seu quarto à ofendida BB e mãe desta. Disse à DGRSP que vestiam-se de despiam-se à frente uns dos outros, situação que o arguido atribui ao facto de a habitação ser pequena. Era frequente, também, a vítima ir para a sala à noite para ver televisão juntamente com o arguido mantendo ambos, de acordo com o próprio disse à DGRSP, uma relação de confiança confidenciando-lhe a vítima assuntos do foro privado. Hoje em dia, AA refere à DGRSP que a relação intrafamiliar era positiva, embora a caracterize por ausência de limites ao nível da privacidade. O arguido refere à DGRSP que desde a instauração dos presentes autos não voltou a ter contacto com a vítima, apesar de ter conhecimento que a mesma continua a residir com a sua mãe na zona de .... No plano afectivo, o arguido estabeleceu uma relação de namoro com coabitação com a então companheira e o filho dela, que perdurou cerca de 20 anos, a qual terminou em .... A partir daí, refere à DGRSP ter tido alguns relacionamentos pontuais e pouco significativos. Do ponto de vista da integração, o arguido avalia favoravelmente o seu meio sociocomunitário de inserção, onde se sente acolhido e, segundo as fontes consultadas pela DGRSP, beneficia de uma imagem positiva. É descrito à DGRSP como pacífico e altruísta, características que o próprio reconhece referindo também dificuldades de autoafirmação. AA iniciou consumo de álcool em excesso durante o Serviço Militar Obrigatório, aos 20 anos de idade, hábito que perdurou durante dez anos e atingiu situação de dependência. Foi sujeito a tratamento em consulta de Alcoologia no Hospital ... e manteve-se abstinente durante 20 anos. Recaiu em 2010 e, desde aí, mantém consumo abusivo de álcool diariamente, comportamento que, segundo alega à DGRSP, não interfere com o seu desempenho laboral ou na organização do seu quotidiano. Ainda assim, o arguido refere à DGRSP ter tido um contacto anterior com o sistema de justiça penal, tendo cumprido prestação de trabalho a favor da comunidade por condução de veículo em estado de embriaguez. AA revela à DGRSP resignação e acomodação face à instauração do presente processo, não se verificando grandes repercussões da presente situação jurídico-penal na sua vida. O seu quotidiano continua a centrar-se no desempenho de actividade laboral, nos cuidados à mãe e na permanência no bairro onde reside, onde frequenta os cafés. É em ambiente social que mantém a ingestão abusiva de bebidas alcoólicas que, segundo considera, não têm impacto na organização do seu quotidiano. O irmão da vítima referiu à DGRSP que irá em breve sair desta habitação e voltar a coabitar com a mãe. O arguido é um indivíduo de 64 anos de idade e, em termos dos factores de proteção e estabilização, a DGRSP sinaliza a predisposição para o exercício regular de actividade profissional e a inserção laboral estável assim como a integração no meio sociocomunitário de inserção, onde beneficia de uma imagem social positiva, não lhe sendo reconhecidos comportamentos desadequados ou de impulsividade na interação com o outro. Como factores de risco, a DGRSP salienta a problemática do consumo de álcool, que assumiu um caráter transversal e de dependência, a falta de vinculação nas relações afectivas e o anterior contacto com o sistema de justiça penal. Tal enquadramento indica à DGRSP, em caso de condenação, a necessidade de intervenção terapêutica especializada ao nível da adicção ao álcool assim como na área da sexualidade, nomeadamente a frequência de programa específico na área da agressão sexual, de forma a promover o respeito pela integridade física e psíquica do outro. Provou-se ainda que: O arguido não tem antecedente criminal. O arguido nasceu em .../.../1960. Em audiência admitiu pequena parte dos factos imputados, mas negou a prática da generalidade dos factos imputados. Em consequência dos factos a menor veio a cair na dependência de estupefacientes, estando, na data da acusação, internada em estabelecimento de cura e reabilitação. FACTOS NÃO PROVADOS: Não se provou qualquer outro facto relevante para a decisão da causa, para além ou em contrário dos supra vertidos, nomeadamente que entre meados de 2016 e de 2020, a ofendida tivesse entre 9 e 14 anos; que (7) a exibição apurada tenha sido no computador; que (7) o arguido tenha dito à menor “já és uma mulher, tens corpo suficiente, porque é que não perdes a virgindade comigo? Há muitos homens que te desejam, eu sou um deles.”; que (9) a menor tenha acordado com o arguido deitado em cima dela a tentar despir-lhe os calções; que (10) o arguido tenha dito à menor “deixa-me tocar-te, o teu corpo é gostoso”; que o arguido não tenha praticado os factos supra apurados; que o arguido não tivesse intenção de actuar da forma apurada; que o arguido não tivesse intuito libidinoso; que o arguido não tivesse intuito de obter satisfação ou gratificação sexual; que não fosse possível o arguido proceder como apurado; e as demais condições pessoais do arguido. MOTIVAÇÃO: A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada das declarações para memória futura da ofendida com as declarações do arguido e com depoimentos prestados e os documentos dos autos, em especial de fls.4 a 7, 15, 16, 23 a 25v, 30 a 34, 39 a 48, 52 a 61, 85 a 93, 99 a 104, 106 a 109v, 112 a 113v, 119 a 124, 127 a 132, 139 a 140, 150, 154 a 161v, 165, 165v, 195 a 6, 199 a 201v, 203v a 205v, 212 a 213, 226 a 9, 237v, 146 a 7v, 255, 257, 259, 262 a 262v, 267 a 8v, 274v, 298, 298v, 314, 325, 329 a 331, 333, 333v, 340, 349 a 350v, 352, 358 a 362v, 369, 392, 397 a 421, 433 a 5v e 439v (e ainda não numerados e constantes do citius) dos autos principais (de onde constam elementos clínicos, auto de notícia, CRCs, informações e relatórios do INML e social), todos analisados em audiência, tudo face a um juízo de experiência comum e à ponderação (mas não aplicação em concreto no caso vertente, excepto quanto às mencionadas frases dadas como não provadas) do Princípio “in dubio pro reo”, sendo que a prova produzida em audiência se encontra gravada. Desde logo que se diga que as mencionadas frases dadas como não provadas não constam das declarações para memória futura prestadas pela ofendida, pelo que tal, em concatenação com o aludido Princípio “in dubio pro reo” contribuiu para os factos dados como não provados. No mais as declarações para memória futura prestadas pela ofendida revelaram-se integralmente credíveis, por corroboradas por demais prova vertida nos autos e produzida e analisada em audiência, no que tal contribuiu para os factos dados como provados. E bem ainda para os dados como não provados, ao infirmar os aventados pelo arguido. Assim, diga-se que o arguido foi tido por credível (por corroborado por demais elementos de prova) na parte em que confirmou suas apuradas condições pessoais; ao mencionar que conheceu a ofendida BB; que sabe que a mesma nasceu cerca de ...; que era visita de casa da mesma antes de a ofendida, mãe dela e irmão dela irem viver para casa do arguido; que antes ofendida e mãe e irmão moravam em ...; que depois o irmão da ofendida veio de ...; que o agregado da ofendida veio a ser despejado e depois foi acolhido pelo arguido em casa dele; que o pai da ofendida ficou paraplégico, na sequência do que foi institucionalizado; ao confirmar que entre 2016 e 2020 ofendida, mãe e irmão desta viveram em casa dele, arguido; que esta é um T1; ao confirmar o tratamento por “cota”; ao admitir que possa ter mostrado língua à ofendida; que uma vez levou uma chapada dela; ao mencionar a sua apurada morada e local de factos; que houve ocasião em que dormia na sala; que nesta dormia também irmão da ofendida; que namorada deste também aí dormiu; que houve ocasião em que houve troca; que a BB não tinha noção da gravidade; que a mesma foi levada a hospital; que o apartamento é T1; que no mesmo havia duas televisões, uma no quarto e outra na sala; que a “box” estava na sala; que a BB passava mais tempo na sala porque se sentia à vontade com ele, arguido; que esta dormiu muitas vezes na mesma cama que o arguido; que a ofendida dançou uma música; ao mencionar que ofendida, mãe e irmão não tinham para onde ir; que a BB sabia que estavam lá por caridade do arguido; ao mencionar que falou com a mãe da BB sobre a necessidade de a menor tomar a pílula; que actualmente a ofendida está em instituição por causa do problema de adicção que sobreveio à mesma; ao mencionar o problema dele de alcoolismo; ao admitir que a menor fumou “charro” na cama dele; ao mencionar que a menor gostava de ver novelas; ao admitir contacto físico com a menor quando dormia na mesma cama que ela; que é dono da casa onde habita e onde habitavam; que está a pagar respectivo empréstimo bancário; que na sala a televisão é melhor, por ter mais canais; ao admitir contacto na cama dele, na sala; ao mencionar que não tinha relacionamento amoroso com a mãe da BB; ao admitir que vê vídeos de sexo explícito; que o faz na sala, onde tem cama e TV; ao mencionar que a testemunha CC acreditou na filha, a ofendida menor BB; ; ao mencionar que também acolheu em casa dele uma FF e uma GG, no que contribuiu para os factos dados como provados e para a mencionada formação da convicção do Tribunal. Também negou que tenha proferido a expressão mencionada em 7; negou que tenha tentado despir calções à menor, no que face ao aludido “in dubio” contribuiu para os factos dados como não provados. No mais, dada a supra aludida concatenação, não foi o mesmo credível (por infirmado por prova em contrário), nomeadamente ao negar tudo (referindo-se ao imputado); ao aventar que não fez nada do imputado; ao aventar que não tem nada a ver com esta acusação; que não sabe porque levou chapada; ao negar palmada ou apalpão; ao aventar ser mentira, impossível ou falso o imputado; ao negar que tenha dado dinheiro à menor; que tenha ejaculado sobre a mesma; ao aventar que não tinha “má vontade” contra a ofendida; ao negar que lhe tenha exibido filmes pornográficos; ao aventar que nunca houve perigo para a menor; que nunca ofereceu estupefaciente à mesma; ao negar que visse vídeos de sexo explícito quando a ofendida lá estava; ao aventar impotência, no que contribuiu para os factos dados exemplificativamente como não provados. A testemunha DD, inspector da PJ, foi credível (por corroborado por demais elementos de prova) ao referir que houve comunicação de hospital e CPCJ relativamente à menor ofendida; que foram pedidos e feitos exames à mesma, com respectivas perícias; que ouviu a menor e demais testemunhas dos autos; que ouviu a menor por duas vezes; que tem a percepção que o depoimento desta foi demorado e coerente, no que contribuiu para os factos dados como provados, bem como para os não provados (ao infirmar os em contrário aventados), e bem ainda para a formação da convicção do Tribunal no sentido apontado. A testemunha CC foi credível (por corroborada por demais elementos de prova) ao referir que é mãe da menor; que morou com os aludidos filhos quatro anos em casa do arguido, contados desde 2016; que tal sucedeu na sequência de acidente do marido da depoente, em que o mesmo ficou paraplégico; ao mencionar que o apartamento do arguido tem um quarto, uma sala e uma cozinha; que o mesmo se situa em ...; que o arguido antes já frequentava a casa da depoente, tinha então a BB 9 anos de idade; que o arguido era seu amigo; que o tratava quase como família; que às vezes o deixava pernoitar em casa dela porque ele bebia, para o mesmo não ter um acidente; que o arguido bebe diariamente; que com o acidente do marido, perdeu a casa; que o arguido então insistiu para irem para lá; que a depoente então estava com depressão profunda, e medicada, e aceitou; que por regra ela e BB dormiam na mesma cama no quarto; que então o arguido dormia na sala, com o filho da depoente; que o arguido dormia no sofá e filho da depoente com a namorada em colchão; que houve altura em que o arguido também dormiu na sala com a BB; ao mencionar que esteve sem sítio para onde ir nem dinheiro para comer; ao mencionar em que também houve altura em que a depoente dormiu na sala com a BB enquanto o filho dormia com a namorada no quarto; que a BB ia ver TV à sala; que o arguido mandou a depoente levar a BB a médico de família com vista a que esta passasse a tomar a pílula, tinha então a BB 12 anos; que a depoente tomava medicação, adormecia e dormia a noite toda, no quarto; que o arguido passava as noites a beber e a fumar; ao mencionar que notou que desde os 12 anos de idade da menor que esta voltava da escola “má, zangada” e gritava com a depoente; ao mencionar ocasião em que chamou a menor e esta não lhe respondeu; que depois foi ter com a mesma e a menor tinha uma das pernas das cuecas tirada, o que a depoente estranhou; que perguntou à menor o porquê de não ter a outra perna posta na cuecas, tendo-lhe a menor respondido que o responsável por tal tinha sido o arguido; que nessa ocasião a menor estava a dormir no mesmo sofá onde dormia o arguido; que nessa ocasião também viu mancha esbranquiçada/amarelada; que perante tal ligou para assistente social e levou menor a hospital; que viu logo que o arguido tinha feito mal à menor, face ao que telefonou ao mesmo, a confrontá-lo; ao mencionar que a menor chamava o arguido de “cota”; ao mencionar que a menor evidenciava vergonha ao contar o sucedido; que acreditou no relatado pela menor; que foram depois à CPCJ; que a menor de vez em quando dormia com o arguido; que uma vez, ainda com 9 anos de idade, na casa de S. Marcos, a menor desferiu uma bofetada no arguido; que nessa ocasião o arguido tinha posto a língua dele de fora (depoimento nesta parte indirecto mas valorado por conforme às declarações para memória futura da menor); que os factos em apreço sucederam desde essa ocasião (idem); que a menor lhe contou que foi abusada pelo arguido, inclusive com relação sexual (idem); ao mencionar que o arguido quase que obrigou a depoente a levar a menor a consulta com vista a obter pílula (leia-se contraceptiva) para a menor; que (ela depoente) ficou com desgosto do arguido, porque o tratava como um irmão; que o mesmo fuma haxixe e bebe todos os dias, durante a noite; que a menor discutia com o arguido; que o arguido dizia que a casa e o carro eram da BB, que era a BB que mandava; ao mencionar que a depoente não tinha para onde ir com os aludidos filhos dela; que a menor lhe referiu que o cota dizia que nós ficávamos sem casa (idem); que a menor inicialmente gostava do arguido mas depois chamava nomes ao mesmo e estava constantemente irritada; que a depoente ficou sem dinheiro porque ficou sem trabalho; que muitas vezes viu o arguido a ver filmes pornográficos; que o mesmo andava de boxers em casa e punha o pénis de fora dos mesmos; que o arguido via filmes pornográficos em frente deles todos, com a BB presente; que a BB era uma menina inteligente e meiga, que virou rebelde, até com a depoente; que a ofendida lhe disse: “tu não sabes o que eu passei quatro anos, de abusos” pelo arguido; que este para a depoente era um “bom senhor” que a levava todos os fins-de-semana a ver o marido, às instituições onde este esteve sucessivamente acolhido; ao mencionar que o filho dela continua a morar em casa do arguido; que veio a ser receitada pílula à menor; que o arguido lhe disse que era para a menor a tomar para controlar a menstruação; ao mencionar que o arguido já sabia que a menor estava a ser abusada (por ele); ao mencionar que a ofendida começou a ter contacto com drogas; que a depoente “dava um fuminho” (leia-se “um bafo” ou “uma passa”) e também bebia com o arguido; que uma vez tal sucedeu à frente da BB; ao mencionar que o arguido disse que a primeira vez que a BB ia fumar (leia-se estupefaciente) ia ser com ele (arguido); que depois a BB meteu-se nas drogas pesadas; que a mesma saiu recentemente de centro de tratamento; que a menor (depois da revelação dos factos) disse à depoente: “não estás a ver o meu desespero” (referindo-se ao período em que foi abusada); que agora tem a percepção de tudo; que a BB inicialmente gostava da escola mas depois já não queria ira para a escola; que a mesma foi sujeita a exames no hospital; ao mencionar que no hospital homem que ouviu a menor acreditou na mesma, espoletando os presentes autos; que o mesmo acreditou que o que a ofendida disse é verdade; ao referir a ofendida era uma menina que dizia a verdade; que a mesma deixou de lhe contar as coisas porque houve ocasião em que a depoente lhe desferiu bofetada; que depois a menor gritava com a depoente, “mandava vir” com a depoente, o que esta agora associa aos factos em apreço; que a menor às vezes não queria ficar lá em casa; que a mesma veio a ter acompanhamento psicológico e psiquiátrico; que a menor foi para o boxe tailandês para tirar a raiva; que a menor chegou a estar medicada; que o arguido dizia que a menor “ia dar uma mulher solta”, com referência a música onde se refere “ a menina solta”; que a menor começou a consumir estupefacientes na casa do arguido; ao mencionar que tal como a menor viu o pénis do arguido, bem como filmes pornográficos que este via; que acreditou no que a BB lhe contou; que esta esteve internada em instituição no ...; que a menor diz que se meteu nos estupefacientes por causa disto, no que contribuiu para os factos dados como provados, e bem ainda para a formação da convicção do Tribunal no sentido apontado. O irmão da menor, EE, foi credível (por corroborado por demais elementos de prova) ao referir que é irmão da ofendida; que é afilhado do arguido; que tem hoje 26 anos; ao mencionar que vive na mesma casa que o arguido; que a sua mãe e irmã também lá viveram; que as mesmas daí saíram por casa do sucedido, não mais aí tendo voltado; ao mencionar que habitualmente dormia em colchão na sala, onde também dormia o arguido; que a BB dormia habitualmente no quarto em cama com a mãe; que a menos às vezes ia ver novelas para a sala, porque nesta havia box e podia “puxar (a emissão de TV) para trás”; que o arguido bebia e adormecia ali (leia-se na sala); que houve ocasião em que o depoente dormia com a namorada na sala; que a mãe tinha boa relação com o arguido; que este negou sempre o imputado à mãe da menor e ao depoente; que tinham perdido a casa; que então o arguido era a pessoa mais próxima para ajudar a família; que a BB tinha essa consciência, bem como do estado em que o pai ficou; que a mesma estava muitas vezes revoltada, dizendo que a culpa era deles (irmão e mãe) por terem perdido a casa deles; ao mencionar que em S. Marcos havia uma ambiente menos tóxico; que o arguido era a melhor pessoa que eles tinham; que é verdade que o arguido andava em casa com grande à vontade, de boxers; que a mãe em ... “estava com a cabeça…”; que a menor aí respondia ao arguido; que depois soube que a mesma entrou na droga; que cresceu em ..., apenas tendo conhecido a mãe e a ofendida quando tinha 14 anos de idade; que ainda viveu com as mesmas e com o padrasto, o pai da BB; que tem a percepção que a BB sempre foi muito mimada pela mãe; que o padrasto dele agora está em lar; que o arguido era a melhor pessoa para os ajudar a não ficar na rua; que lhe tem gratidão por isso; ao mencionar que não vê nenhuma razão para a irmã inventar os factos imputados; ao mencionar que na casa do arguido pode entrar e sair quando quer; que continua a lá viver por favor; que o arguido ás vezes dormia na cama, às vezes no sofá; que às vezes aí estava a irmã; que já viu ofendida e arguido juntos na cama a verem um programa de televisão, no que contribuiu para os factos dados como provados e para a mencionada formação da convicção do Tribunal. No mais, disse não saber ou não se ter apercebido, no que não contribuiu nem para os factos dados como provados, nem para os dados exemplificativamente como não provados. Já não foi credível (por infirmado por prova em contrário) no mais, nomeadamente ao aventar que não deu conta de a BB dormir na mesma cama (leia-se sofá-cama) que o arguido; ao aventar que não se apercebeu de filmes pornográficos vistos pelo arguido; ao insinuar que se calhar a irmã mentiu, no que contribuiu para os factos dados como não provados. O vertido no relatório social contribuiu para a prova das mencionadas condições pessoais. No que respeita ao inexistente antecedente criminal, assentou nos CRCs mencionados. Os factos não provados resultaram assim em síntese da ausência de prova tida por credível e susceptível de os dar como provados.»
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IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO i.Da nulidade do acórdão por falta de exame crítico da prova e de fundamentação, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374.º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a), do CPP:
Dispõe o art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”
Tal princípio está densificado no art.º 97.º, n.º 5 do CPP onde se diz que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”, esclarecendo o n.º 1 de tal normativo que “Os actos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) Sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo; b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior”.
É, assim, indiscutível que, quer se trate de sentenças, quer de despachos (interlocutórios ou finais), os actos decisórios dos juízes têm de conter os respectivos motivos de facto e de direito.
A inobservância do dever de fundamentação é cominada, no caso da sentença, com a nulidade, como decorre das disposições conjugadas dos arts. 374.º e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.
Especificamente quanto à sentença, o aludido art.º 374.º do CPP, estabelece os respectivos requisitos, entre os quais a fundamentação, capítulo que se segue ao relatório, a qual, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito e no que agora interessa, consiste na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Por seu turno, os arts. 379.º e 380.º do mesmo diploma legal, estabelecem as consequências da inobservância daqueles requisitos: a nulidade ou a mera irregularidade da sentença, consoante os casos.
De acordo com a al. a) do n.º 2 daquele primeiro preceito, é nula a sentença que não contiver, entre outras, as menções referidas no nº 2 do art.º 374.º, onde naturalmente se inclui a fundamentação de facto e análise crítica das provas.
Desta feita, no que tange à exposição dos motivos que fundamentam a decisão, são eles de facto e de direito.
Isto significa que os motivos de facto provados que fundamentam são os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. E, no âmbito da decisão de direito, o juiz deve enunciar as normas legais que os factos convocam e que são determinantes do sentido da decisão.
Assim, através da fundamentação da sentença, há-de ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal, num sentido e não noutro, e bem assim porque é que o tribunal teve por fiável determinado meio de prova e não outro e há-de permitir ao Tribunal Superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respetivo conteúdo decisório.
Com efeito, orientado pelo desiderato da descoberta da verdade material, escopo último do processo penal português, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do CPP, segundo o qual «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.».
Todavia, tal liberdade não é discricionária, estando intimamente ligada ao dever de apreciar a prova com base em critérios de motivação objectivos e terá de ser sempre orientada pelo dever de perseguir a verdade material.
Assim, o princípio da livre apreciação da prova encerra em si duas ideias: numa dimensão positiva, traduzida na inexistência de critérios legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, numa dimensão negativa, traduzida na ideia de que não é permitida uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida. Ou seja, a livre convicção do julgador terá de ser pessoal, mas também objectivável, com base em critérios de valoração racionais, lógicos e entendíveis pela comunidade pública.
Adoptados estes critérios, a verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável, resultará do convencimento do julgador, de acordo com a sua consciência e convicção, com base em regras técnicas e de experiência.
Ora, como se diz no Ac. do STJ de 15.02.2023 (referente ao processo n.º 38/17.9YGLSB.S1, publicado na página https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2023:38.17.9YGLSB.S1.30/ ) «É de há muito pacífico quea mera indicação ou enumeração de provas não serve as exigências de fundamentação da matéria de facto na sentença/acórdão. A explicação da comprovação dos factos implica um verdadeiro exame crítico das provas, com a apreciação das diferentes versões apresentadas em julgamento, a explicação do seu maior crédito ou descrédito, sendo no cruzamento necessário de toda a informação probatória, procedente das diversas fontes, que se retirarão os enunciados fácticos que constituirão a matéria de facto da sentença/acórdão.»
Muitas vezes, o limiar entre a suficiência e a insuficiência da fundamentação é muito ténue; porém, afigura-se-nos, de meridiana clareza, que estamos perante o segundo caso quando não permite apreender a razão de ser da decisão.
Por isso, a avaliação da (in)suficiência da fundamentação deve ser analisada casuisticamente como se salienta no aresto citado, sendo certo que «Os recursos não servem o aprimoramento de decisões menos perfeitas, servem a reparação de erros de julgamento. E se, mau grado eventuais défices de fundamentação da matéria de facto, a sentença/acórdão ainda se revela compreensível de modo a viabilizar a sindicância da matéria de facto no contexto do recurso interposto e da impugnação concretamente efectuada, permitindo a prolação de uma correcta decisão pelo tribunal superior, não tem de haver lugar à declaração da nulidade da sentença/acórdão.»
E prossegue dizendo que «Do regime geral das nulidades (art.º 122.º do CPP) resulta que a declaração de nulidade visa invalidar o acto nulo praticado, sendo repetido aquilo que for necessário repetir e devendo ser aproveitado tudo o que puder ser salvo do efeito daquela. Em recurso, a decisão sobre a correcção da sentença/acórdão, os resultados da sindicância do exame crítico da prova no respeitante a eventuais nulidades por falta de fundamentação da matéria de facto (art.º 379.º, n.º 1, al. a), do CPP), não é uma decisão proferida em abstracto. Não interessa a análise abstracta, de avaliação da decisão no sentido da sua maior ou menor perfeição, pois o recurso não visa, e não serve, o aprimoramento de decisões. O recurso mantém o arquétipo de recurso-remédio em todo o processo de decisão.»
A razão de ser de tal vício prende-se, assim, com o facto de a falta de fundamentação, impedir que o recorrente tenha a possibilidade de em concreto, directa, fundada e eficazmente, demonstrar as razões da sua discordância – a não ser com generalidades – sobre o julgamento da matéria de facto ou de direito, que não esteja alicerçado, de todo - sequer, com frases feitas ou fórmulas abstractas - sem que se surpreenda, de resto, qualquer preocupação de convencimento dos destinatários.
Sempre que observa o condicionalismo legal a motivação de facto permite aos sujeitos processuais e ao tribunal superior a análise do percurso lógico ou racional em que se apoia a decisão de facto (cfr. art.º 410.º, n.º 2, do CPP).
Contudo, o cumprimento da aludida exigência legal não impõe uma explanação total em que se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, ou seja, todo o raciocínio lógico seguido, não sendo necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado, mas antes o que se impõe é uma enunciação, ainda que sucinta das provas que serviram para fundar a decisão e a indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido.
Voltando ao caso que nos ocupa, há que dizer que lendo a motivação da decisão sobre a matéria de facto, não se consegue compreender quais os concretos meios de prova que relevaram para cada facto ou para a actuação imputada ao arguido, não se vislumbra qualquer critério, minimamente sistematizado, por referência ao qual fossem indicadas as provas que foram determinantes da convicção do tribunal colectivo a esse respeito.
Efectivamente, foram indicados os meios de prova nos quais o tribunal afirma ter formado a sua convicção, nomeadamente, os documentos indicados, as declarações do arguido, as declarações para memória futura da vítima e os depoimentos das testemunhas.
Todavia, não está explicitado o raciocínio construído com as provas disponíveis, sopesado o seu valor probatório, que permitiu exarar a maior parte dos factos como provados e outros como não provados, sem qualquer individualização- note-se que o tribunal a quo, de modo absolutamente genérico, afirma «A convicção do tribunal assentou na concatenação ponderada das declarações para memória futura da ofendida com as declarações do arguido e com depoimentos prestados e os documentos dos autos, em especial de fls.4 a 7, 15, 16, 23 a 25v, 30 a 34, 39 a 48, 52 a 61, 85 a 93, 99 a 104, 106 a 109v, 112 a 113v, 119 a 124, 127 a 132, 139 a 140, 150, 154 a 161v, 165, 165v, 195 a 6, 199 a 201v, 203v a 205v, 212 a 213, 226 a 9, 237v, 146 a 7v, 255, 257, 259, 262 a 262v, 267 a 8v, 274v, 298, 298v, 314, 325, 329 a 331, 333, 333v, 340, 349 a 350v, 352, 358 a 362v, 369, 392, 397 a 421, 433 a 5v e 439v (e ainda não numerados e constantes do citius) dos autos principais (de onde constam elementos clínicos, auto de notícia, CRCs, informações e relatórios do INML e social), todos analisados em audiência, tudo face a um juízo de experiência comum e à ponderação (mas não aplicação em concreto no caso vertente, excepto quanto às mencionadas frases dadas como não provadas) do Princípio “in dubio pro reo”, sendo que a prova produzida em audiência se encontra gravada.».
Como sobressai com nitidez, o tribunal colectivo não descreveu o conteúdo probatório útil retirado de cada meio de prova e qual o percurso lógico dedutivo percorrido que conduziu ao desfecho que exarou no parágrafo que supra transcrevemos, impossibilitando a apreciação da bondade da decisão.
O cenário descrito constitui, por conseguinte, clara violação do direito constitucionalmente consagrado a um processo justo e equitativo, nos termos do art.º 20.º, n.º 4, da CRP e art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Afigura-se-nos, pois, inquestionável que o acórdão recorrido padece de nulidade por falta de exame crítico da prova e de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos das disposições conjugadas dos supra citados arts 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP.
De acordo com o n.º 2 do art.º 379.º “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”.
No caso vertente, atento o motivo da nulidade, que se prende com a formação e a expressão da convicção sobre a matéria de facto, é evidente que é impossível a este tribunal suprir a apontada nulidade e que apenas o tribunal a quo que proferiu a decisão inquinada o pode fazer.
Face ao exposto, caberá ao tribunal recorrido proferir novo acórdão, em que repare a nulidade supra apontada.
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Fica, assim, prejudicada a apreciação das restantes questões supra enunciadas.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em declarar nulo o acórdão recorrido, determinando a elaboração de novo acórdão, com os mesmos subscritores, que supra a apontada nulidade por falta de exame crítico da prova e de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Sem tributação (cfr. art.º 513.º, n.º 1, a contrario, do CPP).
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Lisboa, 22 de Maio de 2025
Os Juízes Desembargadores,
Marlene Fortuna
Jorge Rosas de Castro
Maria de Fátima R. Marques Bessa