I. se, após ter anulado um meio de prova – as declarações de um co-arguido –, o acórdão da Relação consegue segmentar a concreta relevância probatória do depoimento em causa, o reenvio dos autos à 1.ª instância não tem qualquer justificação.
II. A motivação da matéria de facto tem de dar um panorama geral das provas e das razões da convicção do tribunal, não se tornando necessário que esmiúce os factos um a um, nem que proceda à transcrição ou descrição do conteúdo de cada meio de prova.
III. A prova não se reduz ao que consta da motivação e os recorrentes não podem usar o que lá não consta nem tinha de constar para discutir se existe ou não existe prova válida para dar como provado determinado facto; para esse fim, a via recursória própria é a impugnação ampla da matéria de facto, com respeito pelos requisitos do art. 412º nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
IV. Não ocorre excesso de pronúncia quando o tribunal de recurso, no âmbito do seu dever de cognição de todas as questões pertinentes para a boa decisão da causa, constata e afirma que o acórdão de 1ª instância se socorreu de presunções judiciais.
V. É jurisprudência constante e estabilizada deste Supremo Tribunal que, estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso, não é admissível recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal
VI. A pena de oito anos e dois meses de prisão, pouco acima do 1/2 da moldura penal mostra-se justa – proporcional, adequada e necessária – num quadro fáctico em que a conduta do arguido ocorreu como um dos coordenadores num quadro de tráfico por via aérea de uma quantidade muito significativa de produto estupefaciente (14,26 quilos de haxixe/canabis e 1, 498 quilos de cocaína), através de terceiros, num momento em que se encontrava em cumprimento de pena de prisão suspensa na sua execução pela prática de crime da mesma natureza.
I – RELATÓRIO
Por acórdão de 14.3.2024, o tribunal coletivo condenou os arguidos:
AA, como autor material, na forma consumada e em concurso real, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no o artigo 21º da Lei da Droga, na pena de oito anos de prisão; de um crime de detenção de arma proibida, p. e p., no artigo 86º/1-c) da Lei das Armas, na pena de um ano e seis meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de oito anos e seis meses de prisão.
BB, como autor material, na forma consumada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no artigo 21º da Lei da Droga, na pena de seis anos e dois meses de prisão.
CC, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no artigo 21º/1, do DL nº 15/1993 de 22.01, na pena de prisão de sete anos e dois meses.
DD, nascido a ........1988, solteiro, natural de ..., residente na Rua ..., como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no artigo 21º/1, do DL nº 15/1993 de 22.01, na pena de prisão de oito anos e dois meses.
Inconformados, os arguidos CC e DD recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 18.12.2024, decidiu:
A) Julgar parcialmente provido o recurso dos arguidos, CC e DD, e revogar a declaração de perdimento a favor do Estado, ao abrigo do artº 110º/1 b) do CP, da viatura automóvel BMW de matrícula ..-XV-.. utilizada habitualmente pelo arguido CC e da viatura Mercedes de matrícula ..-41-.., utilizada habitualmente pelo arguido DD, por se tratar de uma decisão infundada e ilegal.
B) Julgar parcialmente provido o recurso dos arguidos, CC e DD, no que respeita à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, na parte em que se insurgem contra a valoração feita pelo Tribunal a quo, das declarações do coarguido BB, prestadas em sede do seu 1ª interrogatório judicial e reproduzidas em audiência de julgamento, para formar a sua convicção no sentido da condenação destes arguidos, nos termos e pelas razões supra mencionadas, pelo que se terão como não escritas no Acórdão, essas considerações e referências feitas a tais declarações.
C) Julgar no mais, não provido o recurso, interposto pelos arguidos mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Em discordância com o acórdão da Relação vem agora interposto recurso pelo arguido DD para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Decidiu o Tribunal da Relação, Julgar parcialmente provido o recurso dos arguidos, CC e DD, no que respeita à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, na parte em que se insurgem contra a valoração feita pelo Tribunal a quo, das declarações do coarguido BB, prestadas em sede do seu 1.º interrogatório judicial e reproduzidas em audiência de julgamento, para formar a sua convicção no sentido da condenação destes arguidos, nos termos e pelas razões supra mencionadas, pelo que se terão como não escritas no Acórdão, essas considerações e referências feitas a tais declarações.
2. Estando em causa a verificação do vício do artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP, impunha-se a prolação de novo acórdão que excluísse como meio de prova contra o recorrente as declarações prestadas pelo coarguido BB em sede de primeiro interrogatório e que, consequentemente e em conformidade, reconfigurasse a matéria de facto.
3. O Tribunal da Relação violou, assim, o disposto no artigo 426.º do CPP.
4. Nas conclusões 1 a 6 do recurso interposto para o Tribunal da Relação, o recorrente invocou a nulidade do acórdão por não ter sido realizado um adequado exame crítico que permitisse aos destinatários da decisão perceber o porquê de se ter dado como provado alguns aspetos dos pontos 1, 2, 3, 4 e 6 da matéria de facto dada como provada.
5. O recorrente invocou este vício porque a decisão de 1.ª instância não elencou os elementos de prova em que baseou a sua convicção para dar como provados os factos elencados nos pontos 1, 2, 3, 4 e 6.
6. O Tribunal de primeira instância não procedeu a um adequado exame crítico que permitisse aos destinatários da decisão perceber o porquê de se ter dado como provado que:
• os recorrentes se dedicaram “à aquisição e venda de estupefacientes”, “aterceiros consumidores e outros que para tal os procurassem”, “fora daqui”, “desde data não concretamente apurada, mas com certeza desde 2020 a esta parte”, conforme resulta do facto dado como provado no ponto 1;
• os recorrentes abordaram a EE e o FF, em data anterior a 14 de maio de 2022, para que transportassem produto estupefaciente, tendo-se feito transportar no veículo BMW, conforme descrito no ponto 2;
• os recorrentes, no dia 14 de maio de 2022, se deslocaram àresidênciada EE e do FF, levando-os, posteriormente, no veículo BMW, à Estação de Serviço da ... junto ao ..., próximo do Aeroporto ..., conforme pontos 4 e 6.
7. O acórdão recorrido padece de falta de fundamentação nesta matéria quando diz que a análise crítica feita pelo Tribunal da primeira instância é suficiente de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos, para deixar bem claro o seu raciocínio lógico e consistência das provas apresentadas, como resulta da simples leitura da motivação de facto constante do Acórdão e acima reproduzida.
8. Pelo que, o acórdão recorrido, mantendo a decisão proferida em primeira instância nesta matéria, é nulo.
9. Nas conclusões 11 a 18 do recurso interposto para o Tribunal da Relação veio o recorrente impugnar a valoração feita pelo Tribunal de primeira instância assente nas declarações e reconhecimentos efetuados por EE e FF.
10. Nas conclusões 19 a 23 do recurso, o recorrente impugnou a valoração feita pelo Tribunal de primeira instância assente no depoimento do Inspetor GG, na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e pelo FF no processo n.º 486/22.2...
11. A este propósito veio o Tribunal da Relação, no ponto C) do acórdão recorrido, dizer o seguinte:
a) Sobre a valoração do depoimento do Inspetor GG
Essa referência que o supra identificado Inspetor da PJ fez, a todas as diligências de prova em que participou, no âmbito do processo crime n.º 486/22.2... e que envolveram diretamente os arguidos CC e DD, é legitima e podia ser objeto de valoração pelo Tribunal a quo, como efetivamente foi.
(…)
Em resumo, o Sr. Inspetor foi pois questionado no julgamento dos nossos autos, sobre as diligências de prova que presenciou aquando da interceção e detenção dos arguidos EE e FF no âmbito do processo crime n.º 486/22.2... e sobre diligências que efetuou naquele mesmo processo e que foram pertinentes para chegar até aos arguidos CC e DD.
b) Sobre a valoração das declarações se reconhecimentos efetuados pela EE e pelo FF
Ao contrário do alegado pelos arguidos recorrentes, não houve assim referência na motivação da decisão de facto, a quaisquer declarações prestadas pela EE e FF no processo n.º 486/22.2... a fundar a convicção do Tribunal a quo, ou a referência a qualquer expresso reconhecimento por aqueles efetuado ao abrigo do art.º 147 do CPP, no âmbito daquele outro processo crime, para fundar a convicção do Tribunal.
Apenas é dito no Acórdão recorrido que para prova dos factos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 a convicção do Tribunal assentou na certidão do processo n.º 486/22.2..., que foi o processo mãe de todos os demais (uma vez que houve alguns arguidos do grupo inicial que é investigado, por suspeita de envolvimento nos mesmos factos ilícitos de trafico de estupefacientes, que foram sendo julgados separadamente) e aquilo que é considerado pertinente pelo tribunal a quo e retirado dessa certidão, enquanto prova documental, é o que ali surge documentado no que respeita à explicação/justificação, que permite perceber como surgiu a diligência de seguimento às viaturas automóveis conduzidas pelos vários arguidos, nomeadamente CC e DD.
12. Resulta de várias passagens da fundamentação da decisão de facto do acórdão proferido pela primeira instância, reproduzido e mantido pelo acórdão recorrido, o seguinte:
(…) sendo que seguiram aquele que então era conhecido como “HH” que foi assim que a EE e o FF o identificaram como sendo o que os levou ao Centro comercial ... e às bombas da ..., depois melhor reconhecido como sendo o arguido DD, o “II” (…)1
(…) quanto ao Mercedes Classe E Coupé de cor branca, é seguido porque se estava a seguir o ainda suspeito “HH”, que tinha sido previamente identificado pela EE e FF, como aqueles (junto com o arguido CC) que os levaram até ao Centro Comercial ... no ... a fim de fazerem o seu check-in e lhes deram dois telemóveis tudo preparando para a viagem para a ilha ..., e como tal depois vem-se a perceber que o nome deste senhor é o DD, o aqui arguido; (…)2
(…) Desde logo pelas vigilâncias e seguimentos de faciais que os reconheceram da EE e FF (…)
(…) E ao seguirem o arguido DD verificaram que aquele conduz muitas vezes Mercedes Classe E Coupé e foi ali que o reconheceram como o “HH” que a EE chamava.3
13. A questão que se coloca é: quais os meios de prova que permitiram, por exemplo, dar como provado no facto provado no ponto 3, que o recorrente levou a EE e o FF à Agência de Viagens ..., no Centro Comercial ..., para fazer o check-in e lhes comprou dois telemóveis?
14. Qual foi o meio de prova documental ou testemunhal, que não as declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e o FF no outro processo, que permitiu ao Tribunal de 1.ª instância concluir na fundamentação da matéria de facto do modo supra descrito?
15. Não há absolutamente nenhum meio de prova, para além das declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e o FF no outro processo, a queo Inspetor GG fez alusão no seu depoimento, que permita chegar a tais conclusões.
16. Na fundamentação da matéria de facto, o Tribunal de primeira instância remete para a certidão do processo n.º 486/22.2..., sem indicar, em momento algum, qual o elemento de prova documental que lhe permite chegar as estas conclusões.
17. Daí que o recorrente tenha invocado o vício da falta de exame crítico das provas e ainda o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do artigo 410.º do CPP4, vícios esses que se mantêm no acórdão recorrido.
18. Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que o acórdão recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP.
19. O Tribunal da Relação, no seguimento do acórdão da primeira instância, valora o segmento do depoimento do Inspetor GG, na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e pelo FF no processo n.º 486/22.2..., para incriminar os recorrentes.
20. Veja-se a fundamentação da decisão de facto de fls. 33 do acórdão de primeira instância, reproduzida e mantida pelo acórdão recorrido, quando, a propósito do depoimento do Inspetor GG, diz o seguinte:
(…) Tudo começou com a colaboração dos arguidos EE e FF no processo mão 486/22.2... quando são interceptados no Aeroporto ... (…)
(…) A partir dali conseguem chegar aos reconhecimentos faciais, quer do suspeito (na data) “HH” (agora arguido DD) e ao CC que a EE e o FF chamavam de “JJ” e de “II”, pois era assim que os mencionavam.5
21. O art.º 356º n.º 7 do CPP proíbe a inquirição como testemunha e, consequentemente, a inutilidade do depoimento dos órgãos de polícia criminal que recebam declarações, cuja leitura seja proibida.
22. Ao valorar o depoimento do Inspetor GG, na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e pelo FF, o Tribunal a quo subverteu a disciplina dos artigos 133.º, 355.º, 356.º e 357.º todos do CPP.
23. O segmento do depoimento do Inspetor GG, na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e pelo FF no processo n.º 486/22.2..., não pode ser valorado como prova na decisão recorrida, com vista a incriminar o recorrente.
24. Entende, pois, o recorrente que a interpretação da norma extraída com referência aos artigos 133º, 355.º, 356.º e 357.º todos do CPP, no sentido em que confere valor de prova ao depoimento do OPC na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados por arguidos no âmbito de um outro processo, sem que essas mesmas pessoas sejam chamadas a depor ou a prestar declarações no âmbito do processo onde se pretende produzir a prova, enfermam de inconstitucionalidade material por violarem o artigo 32º, nº1 e 5 da CRP.
25. De igual modo, ao valorar as declarações e reconhecimentos efetuados por EE e FF, enquanto arguidos, no âmbito do processo n.º 486/22.2..., o Tribunal a quo subverteu a disciplina dos artigos 133.º, 355.º, 356.º e 357.º todos do CPP. Veja-se, neste sentido, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.6
26. As declarações e reconhecimentos efetuados por EE e FF, enquanto arguidos, no âmbito do processo n.º 486/22.2..., não podiam ter sido valorados como prova pela primeira instância nem na decisão recorrida, com vista a incriminar os recorrentes.
27. Entende, pois, o recorrente que a interpretação da norma extraída com referência aos artigos 133º, 355.º, 356.º e 357.º todos do CPP, no sentido em que confere valor de prova às declarações e depoimentos proferidos por arguidos e testemunhas, no âmbito de um outro processo, quando essas mesmas pessoas não sejam chamadas a depor ou a prestar declarações no âmbito do processo onde se pretende produzir a prova, enfermam de inconstitucionalidade material por violarem o artigo 32º, nº1 e 5 da CRP.
28. Vem ainda o Tribunal da Relação, no ponto D) do acórdão recorrido, respeitante à impugnação da matéria de facto, dizer que quanto aos factos que integram o tipo objetivo do crime de tráfico de estupefacientes, designadamente aqueles especificamente impugnados pelos arguidos CC e DD, descritos sob os pontos 1 a 6, podemos constatar que o tribunal se socorreu das presunções judiciais, para fundar a sua convicção, para além dos restantes meios de prova acima enunciados.
29. Acontece que, o Tribunal de primeira instância não refere, em nenhuma passagem do acórdão proferido, que recorreu às presunções judiciais para concluir pela responsabilização do recorrente.
30. Não cabia, por isso, ao Tribunal da Relação concluir pela responsabilização do recorrente baseado no recurso a presunções judiciais.
31. O acórdão recorrido é nulo, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
32. Nas conclusões 24 a 57 do recurso interposto, veio o recorrente invocar o vício de manifesta contradição insanável entre os factos 1, 2, 3, 4, 6 e a respetiva fundamentação de facto exarada no acórdão proferido pela primeira instância.
33. O acórdão recorrido conclui que a decisão proferida pela primeira instância não padece do referido vício, designadamente, de manifesta contradição na fundamentação dos factos dados como provados e impugnados especificamente pelo recorrente.
34. O acórdão proferido pela primeira instância, na fundamentação da matéria de facto sobre o facto de os arguidos adquirirem ou venderem produto estupefaciente “a terceiros consumidores e outros que para tal os procurassem”, “fora daqui”, “desde data não concretamente apurada, mas com certeza desde 2020 a esta parte” nada refere.
35. Dar-se como provado que os recorrentes decidiram dedicar-se “à aquisição e venda de estupefacientes” “a terceiros consumidores e outros que para tal os procurassem”, “fora daqui”, “desde data não concretamente apurada, mas com certeza desde 2020 a esta parte”, sem que o Tribunal tenha fundamentado como assentou a sua convicção ou concretizado tal imputação na demais factualidade assente, não permite o exercício do princípio do contraditório.
36. Seria uma prova diabólica o recorrente demonstrar que não praticou esses factos (aquisição e venda) durante todos os meses, as semanas, os dias e as horas durante um período indefinido e num local também ele indefinido, designado “fora daqui”.
37. O recorrente não sabe quando, a quem, onde, em que circunstâncias, entregou ou adquiriu o quê, a quem quer que seja, para além do transporte relacionado com os dias 13 e 14 de maio de 2022, conforme vem plasmado nos factos dados como provados nos pontos subsequentes da matéria de facto.
38. O facto dado como provado no ponto 1 não é mais do que um facto genérico e abstrato, insuscetível de ser contraditado.
39. Tal facto é até contrariado pela restante factualidade dada como provada e pela fundamentação de facto, na medida em que o tribunal não dá como provados outros factos para além dos dias 13 e 14 de maio de 2022, assim como não faz qualquer alusão na fundamentação da matéria de facto à forma como chegou a essa convicção.
40. Estando, no nosso entender, verificado o vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
41. O facto contido no ponto 3 padece igualmente de contradição insanável já que a enumeração e análise dos meios de prova apresentados como fundamentos da convicção do tribunal não justificam aquela afirmação.
42. Como já referido supra, parece resultar da fundamentação da matéria de facto, que o Tribunal deu como provado este facto com base nas declarações e reconhecimentos da EE e do FF efetuados no processo n.º 486/22.2..., que não podiam ter sido valoradas.
43. Expurgadas essas declarações, inexistem outros meios de prova que permitam sustentar este facto.
44. Pelo que se encontra verificado o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
45. Por último, nas conclusões 58 a 66 e 75 a 82 do recurso interposto para o Tribunal da Relação, veio o recorrente elencar as razões que, no seu entender, permitem defender a redução do quantum da pena concreta e que não foram tidas em consideração pelo Tribunal de primeira instância.
46. Sobre esta questão veio o Tribunal da Relação, no ponto E) do acórdão recorrido, pronunciar-se e concluir do seguinte modo:
A pretendida redução do quantum das penas concretas de prisão aplicadas, apenas se justificaria, caso houvessem sido apuradas circunstâncias anteriores, novas ou posteriores aos factos, suscetíveis de traduzir um grau mais ligeiro de ilicitude (dentro da ilicitude típica do crime de tráfico do art.º 21.º da Lei da droga) ou da culpa, ou de mitigar relevantemente as exigências de prevenção e a necessidade da pena.
Mas tal não sucede, no caso em apreço, pelo que já ficou dito.
47. O recorrente indicou várias circunstâncias apuradas, mas ignoradas pela primeira instância, e agora pelo Tribunal da Relação, suscetíveis de traduzir um grau mais ligeiro de ilicitude ou da culpa ou de mitigar as exigências de prevenção.
48. Tanto a primeira instância como o Tribunal da Relação apenas consideraram circunstâncias a desfavor do recorrente na determinação do quantum da pena concreta aplicada.
49. Tudo o que seja tido como circunstância a favor do recorrente foi ignorado, tanto pela primeira instância como agora pelo Tribunal da Relação.
50. Em momento algum da fundamentação do acórdão recorrido se pondera que:
• Os factos dados como provados, por respeito ao recorrente, se circunscrevem aos dias 13 e 14 de maio de 2022, não se tendo provado nenhum facto anterior a essa data. – cf. conclusões de recurso 59 e 60.
• Desde essa data, até ao finalizar da investigação, não se demonstraram outros factos em que os recorrentes tenham participado. – cf. conclusão de recurso 61.
• Foi dado como provado, relativamente aos recorrentes, um ato isolado, uma situação única e pontual, de transporte de produto estupefaciente - 14 Kg de canábis e 1,5 Kg de cocaína. – cf. conclusão de recurso 62.
• Não se provou qualquer atividade de aquisição, venda, cedência ou guarda de produto estupefaciente, neste ou em qualquer outro momento, no que ao recorrente diz respeito. – cf. conclusão de recurso 63.
• Está integrado a todos os níveis, o que se revela como fator de proteção. – cf. conclusão de recurso 75.
• Tem habilitações literárias ao nível do 9.º ano de escolaridade, sendo que iniciou cedo a atividade profissional, exercendo funções num talho e depois no setor da construção civil, atividade que mantem no presente. – cf. conclusão de recurso 77.
• Tem 36 anos de idade, não tem processos pendentes e não há registo de que tenha prosseguido com a atividade criminosa em causa nestes autos ou qualquer outra. – cf. conclusão de recurso 78.
• Conta, atualmente, com o total apoio da sua família. – cf. conclusão de recurso 80.
51. Ao se referir apenas à integração familiar e social do recorrente aquando da sua detenção, o acórdão recorrido ignora a integração familiar e social do recorrente aquando da prolação do acórdão de primeira instância e, bem assim, que o recorrente se encontra em liberdade.
52. Ao não se ter pronunciado sobre aspetos relevantes para a determinação do quantum da pena a aplicar ao recorrente, o acórdão recorrido incorreu no vício plasmado no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
53. Refere o acórdão recorrido que o risco de disseminação dessa droga, apenas se deveu à ação da Justiça e não a qualquer ação dos arguidos.
54. Não é igualmente nenhuma inverdade que, devido à sua apreensão, não houve risco de disseminação do produto estupefaciente em causa nestes autos por um número elevado de pessoas, com a consequente e conhecida danosidade social e de saúde.
55. Tenha sido pela ação da Justiça ou não, deve ser ponderado para efeitos da medida concreta da pena a aplicar ao recorrente.
56. Pelo que, tendo em conta todos os aspetos mencionados, deve o recorrente ser condenado numa pena de prisão inferior a 8 anos e 2 meses.
Violaram-se as seguintes disposições:
• Todas as descritas ao longo das motivações e conclusões de recurso.
Nestes termos, deve o presente recurso obter provimento.
V. EXAS FARÃO, CONTUDO, A COSTUMADA JUSTIÇA!
O recurso foi admitido.
Respondeu a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação, concluindo pela improcedência do recurso:
1 - O Ministério Público nesta segunda Instância entende que o recorrente não tem razão e que o acórdão recorrido não padece dos vícios que lhe vêm imputados no presente recurso, devendo ser mantido, na íntegra.
2- Dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça Artigo 434.º do CPP:
Em primeiro lugar, cumpre referir que o recorrente, ao socorrer-se dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal para atacar o acórdão recorrido, com os argumentos invocados, pretende tão só colocar em crise a decisão quanto à matéria de facto confirmada pelo Tribunal da Relação em sede de recurso e a consequente aplicação do direito aos factos definitivamente assentes, sendo certo que, na situação em apreço, o Supremo Tribunal de Justiça não aprecia a matéria de facto, como decorre do art.º 434.º do Código de Processo Penal.
Com efeito, pretende o recorrente, verdadeiramente, ver reapreciada a matéria de facto fixada, o que, em nosso entendimento está vedado ao Supremo Tribunal.
3 - Ademais, os vícios a que alude o n.º 2 do artigo 410.º do CPP, são vícios decisórios, têm que resultar da própria decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos estranhos à mesma, sendo vícios intrínsecos à decisão, pelo que não se pode alicerçar a sua invocação em alegado erro de julgamento. Porém, o recorrente invoca a existência dos alegados vícios decisórios no pressuposto de que o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento da matéria de facto.
4 - O texto do acórdão recorrido, sendo lógico coerente, consonante com as regras da experiência comum e percetível aos olhos do cidadão comum, não evidencia qualquer erro patente, razão pela qual entendemos ser manifesta a improcedência dos alegados vícios.
5 - O tribunal da Relação de Lisboa, ao ter julgado parcialmente procedente o recurso dos recorrentes CC e DD, no que respeita à valoração feita pelo tribunal de 1.ª instância, na decisão sobre matéria de facto, das declarações do coarguido BB, prestadas em sede do seu 1.º interrogatório judicial e reproduzidas em audiência de julgamento, tendo considerado a mesma prova proibida e determinado, em consequência, que fosse considerada como não escrita e expurgadas as referências feitas no acórdão a tais declarações como fundamento para a prova dos factos integrantes da “factualidade provada em julgamento nos presentes autos”, não violou o disposto no art.º426.º do CPP, ao não ter proferido acórdão que reconfigurasse a matéria de facto, uma vez que foi possível decidir a causa, e não se verifica o vício do art.º410.º, n.º 2, al. c) do CPP (erro notório na apreciação da prova), uma vez que a não consideração de tais declarações na formação da convicção do tribunal em nada abalou tal convicção porque a mesma se mostra fundada em variada prova que o acórdão recorrido devidamente elenca.
6 - Quanto ao alegado vício do art.º410.º, n.º2, alínea b) do CPP, por manifesta contradição insanável entre os factos provados 1, 2, 3, 4 e 6 e a respetiva fundamentação de facto exarada no acórdão proferido em primeira instância (conclusões 32 a 44), também entendemos que é manifestamente improcedente, bastando para tal a leitura da motivação do acórdão de 1.ª instância, a fls.27 a 33, que damos aqui por inteiramente reproduzida,, na qual se procede à fundamentação da tal matéria de facto, de modo claro, preciso, coerente e lógico, como formou a convicção da prova de tais factos, elencando detalhada e proficuamente os meios de prova que a tal convicção conduziram.
Pelo que não existe qualquer contradição entre tal matéria de facto dada como provada e a fundamentação da mesma, tal como concluiu o acórdão do TRL, a fls.103 a 116 do referido aresto, que aqui se dá por reproduzido.
7 - Quanto à alegada nulidade do acórdão por não ter realizado o exame crítico da prova, quanto aos factos provados 1, 2, 3, 4 e 6 (conclusões 4 a 8), o tribunal logrou formar a sua convicção para além de qualquer dúvida, não tendo incerteza quanto à fixação da matéria de facto como decorre da clarividência e certeza espelhadas no texto da decisão quanto à ponderação e conjugação de todos os elementos de prova, para concluir com segurança que o planeamento e as circunstâncias das ações apontam para o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime em causa, o de tráfico de estupefacientes.
Sobre esta questão também já se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão recorrido, a fls. 116 a 128, de modo elucidativo, concluindo pela improcedência do alegado vício de falta de fundamentação, ao que aderimos na íntegra.
8 - Quanto à alegada valoração do depoimento do Inspetor da PJ GG, na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e pelo FF no processo n.º486/22.2... (conclusões 9 a 27), deverá improceder, tendo em conta que o referido Inspetor da PJ prestou declarações como testemunha no julgamento dos nossos autos, sobre as diligências de prova que presenciou aquando da interceção e detenção dos arguidos EE e FF no âmbito do processo crime nº 486/22.2... e sobre diligências que efetuou naquele mesmo processo e que foram pertinentes para chegar até aos arguidos CC e DD, pelo que é uma prova legítima e válida.
Ao contrário do alegado pelo arguido recorrente, não houve referência na motivação da decisão de facto, a quaisquer declarações prestadas pela EE e FF no processo nº 486/22.2... a fundar a convicção do Tribunal a quo, ou a referência a qualquer expresso reconhecimento por aqueles efetuado ao abrigo do artº 147º do CPP, no âmbito daquele outro processo crime, para fundar a convicção do Tribunal.
9 - Quanto à alegada nulidade nos termos do art.º 379.º, n.º1, alínea c) do CPP do acórdão recorrido, por afirmar que o tribunal de primeira instância se socorreu de presunções judiciais para fundar a sua convicção, quando este tribunal em nenhuma passagem se refere a tal (Conclusões 28 a 31):
O acórdão recorrido, a páginas 123 a 128, vem efetivamente mencionar que, para formar a sua convicção, o tribunal a quo se socorreu, sempre com fundamento nas provas produzidas, aque já se alude acima, em presunções judiciais, para dar como provados alguns factos, designadamente os atinentes ao elemento subjetivo do crime de tráfico de estupefacientes.
Tal não constitui qualquer nulidade, é apenas a constatação de uma evidência, o que tem inteiro suporte legal e jurisprudencial, conforme o próprio acórdão devidamente fundamenta.
10 - Quanto à requerida redução do quantum da pena a que o recorrente foi condenado (Conclusões 45 a 56) deverá improceder porque acórdão ora recorrido, assim como o proferido em 1.ª instância, ponderou de forma correta todas as circunstâncias que militam a favor e contra o recorrente, concretamente a intensidade do dolo direto reconhecido nos factos, a falta de arrependimento, os antecedentes criminais inclusivamente por crimes de tráfico, tendo o transporte de droga efetuado em 14.05.22 (objeto destes autos) sido levado a cabo no decurso do período de suspensão da execução da pena de 4 anos e 9 meses, por igual período, com regime de prova a que foi condenado no processo n.º48/09.0... pelo mesmo crime de tráfico de estupefacientes, as muito elevadas exigências de prevenção geral e especial, tendo considerado acertadamente fixada a medida da pena, sem violação de qualquer normativo legal.
11 - Quanto à redução da pena com fundamento no facto de ter sido apreendida a droga, pelo que não ter houve risco de disseminação do produto estupefaciente por um número elevado de pessoas, e, portanto, não ocorreu a danosidade social e dano na saúde dos consumidores, é um argumento sem-valia, que não pode pesar a favor do agente do crime, no caso o recorrente, uma vez que tal circunstância apenas se deveu à ação da justiça e dos seus agentes e não a qualquer conduta ou ação do recorrente, conforme o acórdão recorrido já se havia pronunciado.
12 -Pelo exposto, não existe fundamentação válida para alterar a pena que foi fixada pelo tribunal de 1ª instância e confirmada em 2.ª instância pelo acórdão recorrido.
13 - A decisão recorrida mostra-se justa e adequada às necessidades de prevenção geral e especial, pelo que deve ser mantida, negando-se provimento ao recurso apresentado.
14 - O recurso do recorrente, em todas as vertentes apreciadas deveria ser rejeitado por manifesta improcedência, ao abrigo do disposto no art.º 420.º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Penal, porquanto as pretensões de procedência dos alegados vícios do acórdão e de redução da pena não estão minimamente fundamentadas.
15 - Ainda que assim não se entenda, deverá ser negado provimento ao recurso apresentado pelo recorrente/arguido DD, mantendo-se, na íntegra o acórdão recorrido.
Vossas Excelências, mantendo a decisão recorrida, farão a costumada JUSTIÇA!
*
Nesta instância, foi cumprido o disposto no art. 417º nº 1 do Código de Processo Penal.
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto tomou posição, terminando com a seguinte síntese e conclusão:
Em síntese:
Deve ser rejeitado o recurso quanto à questão do erro-vício invocado (contradição insanável da fundamentação);
Não padece a decisão “sub judice” do vício de falta de fundamentação, pois o Tribunal da Relação não estava vinculado a revisitar passo-a-passo – mormente testemunha-a-testemunha, arguido-a-arguido, documento-a-documento – a fundamentação do Colectivo;
Não padece a decisão da nulidade de excesso de pronúncia, pois que ao recorrer à noção de presunções judiciais, limitou-se a enquadrar e explicar jurídico-conceitualmente (atribuindo-lhe o seu nomen iuris) o processo lógico-intelectual da formação da livre convicção do Colectivo, não decidindo qualquer questão;
Não padece a decisão da nulidade por assentar em prova proibida, pois que não houve testemunha que depusesse sobre o teor de declarações ou depoimentos de outrem, nem foi valorada prova por “reconhecimento de pessoas”, que pressupõe que a pessoa identificada, não fosse já do conhecimento de quem a reconheceu;
Padece de erro notório na apreciação da prova – e não de contradição insanável da fundamentação – o Acórdão sub judice na parte em que sancionou a prova de facto (3.) sem que da motivação conste qualquer elemento probatório que o revele (no que toca aos arguidos);
Tal vício, sendo patente, poderá ser suprido pelo STJ, pelo recurso ao texto da decisão recorrida, tanto mais que não contende com a culpa (ou a sua gravidade) dos arguidos, mormente o ora recorrente;
Se assim não se entender, deverá ser decretada a anulação do Acórdão recorrido nesta parte, com reenvio do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para que seja proferido novo acórdão, para sanação do vício;
Não sendo declarado tal vício, ou sendo sanado neste Alto Tribunal, mostra-se justa e criteriosa a pena aplicada ao ora recorrente.
IV
Em conclusão:
Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:
-Deverá o presente recurso ser rejeitado quanto ao invocado erro-vício de “contradição insanável da fundamentação”;
-No restante, deverá o recurso ser julgado não provido e improcedente, com excepção da declaração e sanação neste Alto Tribunal do vício de “erro notório na apreciação da prova” (facto-provado 3.), sendo de manter os restantes termos da decisão recorrida, ou, assim não se entendendo, com anulação da decisão recorrida nessa parte e com o reenvio dos autos para o Tribunal da Relação de Lisboa para suprimento do vício em causa..
O Recorrente não respondeu.
*
Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 418º e 419º, nº 3 al. c) a contrario, 421º e 435º do Código de Processo Penal).
Realizou-se audiência nos termos requeridos pelo Recorrente (para debate dos pontos da motivação do recurso que especifica: a) violação do artigo 426.º do CPP; b) falta de fundamentação e do exame crítico da prova; c) legalidade da valoração das declarações e reconhecimentos efetuados por EE e FF, bem como da valoração do depoimento do Inspetor GG na parte em que se refere ao conteúdo daquelas declarações e reconhecimentos; d) vícios do artigo 410.º, n.º 2 do CPP (contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova); e) vícios do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP; f) medida da pena).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
O recurso, que é circunscrito a matéria de direito (art. 434º do Código de Processo Penal), tem, pois, por objecto, um acórdão da Relação proferido em recurso, que confirmou a decisão de aplicação de uma pena única superior a 8 anos de prisão, recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça (artigos 399º, 400º nº 1 al. f) e 432º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal).
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (art.s 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se necessário à boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal (acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, no DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379º nº 2 do Código de Processo Penal, na redação da Lei 20/2013, de 21.2).
Tendo em conta as conclusões da motivação e a posição do Ministério Publico, as questões a decidir são:
1. Violação do disposto no art. 426º do Código de Processo Penal
2. Falta de fundamentação
3. Proibição de prova (depoimento sobre declarações e reconhecimentos)
4. Excesso de pronúncia (presunções judiciais)
5. Vícios da decisão (art. 410º nº 2 al.s b) e c) do Código de Processo Penal)
6. Medida da pena
***
Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada (expurgada se factos atinentes a outros arguidos):
«FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
FACTOS PROVADOS
Na sequência do julgamento e discussão da causa resultou assente a seguinte matéria de facto com relevância para os autos:
1 - Os arguidos AA, BB, CC (também conhecido pela alcunha de “JJ”) e DD (também conhecido pela alcunha de “II”), decidiram em conjunto e em comunhão de esforços, dedicar-se à aquisição e venda de estupefacientes designadamente, cocaína e haxixe, a terceiros consumidores e outros que para tal os procurassem, quer na ilha terceira, quer fora daqui, o que fazem desde data não concretamente apurada, mas com certeza desde 2020 a esta parte, nos termos e condições a seguir descritas;
2 - Em data não concretamente apurada, mas antes de 14 de Maio de 2022, os arguidos CC e DD e de acordo com os arguidos AA e BB, fazendo-se transportar no veículo automóvel com a matrícula BMW, modelo 5K ..-XV-.., abordaram EE e FF, no sentido destes transportarem cocaína e haxixe/canabis para a ilha ... a troco do pagamento de uma quantia monetária;
3 - Na sequência desse desígnio, na véspera dessa viagem, ou seja, em 13 de Maio de 2022, os mesmos arguidos CC e DD fazendo uso do carro antes referido e conduzido habitualmente por DD, levaram-nos ao Centro Comercial ..., sito no ..., à Agência de Viagens ... para que fizessem o check-in e ainda compraram dois telemóveis, que lhes deram:
• 1 (um) telemóvel da marca Real Me, com o modelo RMX3231, de cor cinzenta, com os IMEI’s .............13 e .............05, contendo no seu interior um cartão SIM, com o nº .......42 de telemóvel associado e,
• 1 (um) telemóvel da marca IPhone, com o modelo 6s Plus, de cor rosa, com os IMEI .............76, contendo no seu interior um cartão SIM, com o nº .......09 de telemóvel associado e respetiva cablagem de alimentação;
4 - No dia seguinte, em 14 de Maio de 2022, CC (“JJ”) e DD (“II”), fazendo uso do veículo de marca BMW, modelo 5k, de matricula ..-XV-.., conduzido por este último, deslocaram-se à residência de EE e FF e conduziram-nos até à Estação de Serviço da ... junto ao ..., próximo ao Aeroporto ... em ...;
5 - Entretanto a mala de viagem contendo o produto estupefaciente (14,26 quilos de haxixe/canabis e 1, 498 quilos de cocaína) foi previamente acondicionada pelo arguido BB, ficando por sua vez o arguido AA a observar esta operação e, foi colocada no interior da viatura marca AUDI, modelo 8V (A3), com matrícula ..-96-.., que era conduzida pelo arguido AA;
6 - Encontraram-se todos nas bombas da ..., junto ao Catering do Aeroporto e o BB junto com um indivíduo cuja identidade concreta não foi possível apurar, mas que se chamava de KK, colocou a mala com a cocaína e o haxixe no BMW, modelo 5k, de matrícula ..-XV-.. na ocasião conduzido pelo arguido CC (JJ), e foi levar naquele carro, a EE e o FF ao aeroporto;
7 - Pelo que, no dia 14 de Maio de 2022, pelas 23H30, os arguidos EE e FF, foram interceptados no aeroporto ..., sito nas ..., concelho da ..., depois de se terem feito transportar num voo procedente do aeroporto ..., em ...;
8 - Após a intercepção de EE e FF no aeroporto ..., a mala contendo a cocaína e o haxixe/canabis, foi sujeita a exame pericial de onde resultou a verificação da existência dos dactilogramas dos dedos anelar e médio, da mão esquerda, do arguido BB, aposta na fita cola que envolvia o estupefaciente e no plástico bolha que envolvia o produto estupefaciente antes citado, vestígios A e B;
9 - No dia 9 de novembro de 2022, pelas 11H00 da manhã, numa estrada de terra batida, que faz intercepção com a Estrada Nacional ..., junto à Rua da ..., local com as Coordenadas: .......04, .......26, ..., foi interceptado o arguido LL, o qual se fazia transportar no veículo BMW modelo M4, de cor branca, com matrícula ..-29-.., que saía da casa do arguido AA;
10 - Ao ser interceptado no veículo antes referido, foi apreendido a LL:
• À cintura, dentro de uma bolsa que o referido tinha, ama arma de fogo, pistola semiautomática, de marca SIG, modelo P210-6, de calibre 9,19mm, com o n.º de série rasurado, em bom estado de conservação, com o respetivo carregador e seis munições de calibre 9,19 mm com a inscrição «lugger» - arma de fogo da Classe B;
• Em cima do banco do pendura, no interior de uma mochila de cor preta e estampado de cor branca, com o símbolo da “Nike” e os dizeres “Just do It”:
• 21 (vinte e um) corpos cilíndricos, vulgarmente conhecidas no meio como “bolotas”, 6 (seis) placas e 2 (dois) pedaços contendo no seu interior uma substância vegetal prensada, de cor castanha, com o peso bruto total e aproximado de 876,5 gr. (oitocentos e setenta e cinco gramas e cinco centigramas) de Haxixe.
• (dois) sacos e 4 (quatro) panfletos contendo uma substância em pó, de cor branca, com o peso bruto total e aproximado de 543,7 gr. (quinhentos e quarenta e três gramas e sete centigramas) de Cocaína.
• (uma) carteira castanha com a inscrição “Rendez-Vous Paris” contendo no seu interior € 580,00 (quinhentos e oitenta euros), emitidas pelo Banco Central Europeu;
• 1 (uma) mini balança de precisão e 1 (uma) mini carteira de papel de cor castanha.
11 - No compartimento destinado a bebidas perto da caixa de velocidades:
• (um) telemóvel da marca REDMI, de cor cinzenta, com o IMEI 1: .............41 e IMEI 2: .............58, contendo no seu interior o cartão SIM .......79;
• 2 (duas) chaves, sendo 1 (uma) prateada com a inscrição “windcolor” e 1 (uma) azul com a inscrição “AMJ”;
• No interior no porta luvas do veículo automóvel, foram apreendidos diversos documentos, tais como: 1 (um) documento referente a um Certificado Internacional de Seguro Automóvel, da empresa Liberty Seguros, para o veículo BMW, M4, com a matrícula ..-29-.., cujo tomador de seguro é o LL e, uma declaração de circulação para MM (irmão de AA), que é o proprietário daquela viatura;
• 1 (um) documento relativo à Inspeção Técnica Periódica efetuada à viatura BMW com a matrícula ..-29-..;
• 1 (um) documento referente ao Certificado de Conformidade emitido pela BMW.
• Foi ainda apreendido o veículo da marca BMW Série M4, de cor branco, com a matrícula ..-29-.., com 35194 Kms, cuja propriedade era titulada por L..., Lda.;
12 - Nessa mesma ocasião, foi efetuada uma busca domiciliária à residência supra citada, ou seja, sita na Rua da ..., coordenadas ........43, . .......95, ..., onde residiam os arguidos AA e NN, onde apenas esta se encontrava, e aí foram apreendidos os seguintes objetos:
• Uma balança de precisão de cor prateada, em funcionamento, contendo apostas duas pilhas;
• Uma balança de precisão maior que a anteriormente descrita, com capacidade de pesagem de 1 g a 5Kg;
• Uma meia preta contendo no seu interior uma munição PPU 380 Auto (9mm curto); oito munições G.F.L.7,65mm; 2 munições calibre.22, de modelo não totalmente possível de definir;
• Um certificado de matrícula referente à viatura Mercedes Benz 245G AMG, matrícula ..-79-.., propriedade do arguido BB;
• Um papel manuscrito com diversos valores, tendo entre outros discriminado "44050 Recebido";
• Um papel manuscrito, encontrado no interior da capa de motivos florais aposta no telemóvel pertença de NN, com diversos nomes e valores associados;
• Um almofariz em mármore cinza, contendo, no seu interior um pó de cor branca, com o peso bruto total e aproximado 0,51g, de cocaína;
• Um produto de cor castanha com o peso de 5,87g, de haxixe (resina de canábis), o qual encontrava-se no interior de uma caixa de madeira;
• Um produto de cor castanha, com o peso de 1,01 g de haxixe (resina de canábis), o qual encontrava-se no interior de uma caixa de tabaco pertencente à arguida NN;
• Vários documentos referentes a MM, designadamente, cópia do cartão de cidadão e um requerimento de registo de automóvel referente à viatura da marca Mercedes Benz com a matrícula ..-79-..;
• Documentos referentes ao arguido BB, designadamente, cópia do cartão de cidadão, várias citações postais emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, um comprovativo de IBAN referente à conta ..........55, sediada no Novo Banco, um comprovativo de depósito, no Banco Montepio, no valor de 650 €, em nome de OO; um comprovativo de depósito, na Caixa Geral de Depósitos, no valor de 1400 €, em nome de PP e documentos referentes a reparações e manutenção do veículo automóvel da marca Mercedes Benz, matrícula ..-79- ..;
• Documentos referentes a LL designadamente, uma notificação para liquidação oficiosa de IUC relativo ao veículo automóvel matrícula ..-16-.., entre outros;
• Vários documentos referentes a QQ (irmã do arguido AA) entre eles, comprovativos referentes a reparações e manutenção do veículo VW Polo 1.4 TDI com a matrícula ..-17-.., carta verde relativa ao veículo ..-96-.. e folha de suporte de envio de documento único automóvel da mesma viatura, bem como, da viatura AUDI matrícula ..-96-.., proveniente da Conservatória do Registo Automóvel relativo ao DUA e uma apólice de seguro da companhia Fidelidade;
• Vários documentos referentes a RR referentes a manutenções/reparações da viatura matrícula ..-96-..;
• Vários documentos referentes a SS, com o contribuinte nº .......64, referentes a manutenções/reparações da viatura matrícula ..-16-..;
• Vários documentos referentes a TT (ex-companheira de AA), designadamente, uma fatura com o nº ..........45, datada de 09/03/2022, emitida pela SMAS, ..., referente ao consumo de água da habitação sita na Rua ..., uma carta registada emitida pela Vialivre, no pretérito dia 14/01/2022, referente à cobrança de portagens feitas pela viatura da marca MINI, modelo UKL-L, de cor branca e com a matrícula ..-Pl-..;
• Um produto de cor castanha haxixe, com o peso de 3,34g, o qual se encontrava dentro de uma bolsa de cintura em cima do roupeiro;
13 - Nas buscas realizadas em 09-11-2022 à residência do arguido CC (e da sua companheira UU), foram encontrados e apreendidos os seguintes objetos:
• 1 (uma) arma de alarme de classe A, da marca Zoraki 917, calibre 9mm, com número de série A................02, de cor preto;
• 1 (um) carregador de munições de cor preta;
• 15 (quinze) munições de cor cinzenta e verde da marca POBJEDA, de calibre 9mm;
• € 900,00 (novecentos euros), cifrados em parcelas, doravante discriminadas, a saber assim distribuídos - 45 (quarenta e cinco) notas de valor facial de €20,00 (vinte euros), emitidas pelo Banco Central Europeu;
• 1 (uma) caixa de cor preta de armazenamento com 3 (três) objetos no interior da mesma, esta caixa pertence à arma de alarme supra mencionada;
• 1 (um) certificado de matrícula referente ao veículo automóvel ..-XV-...
14 - Por sua vez o arguido BB, foi detido em 09.02.2023, pelas 11 horas e 20 minutos, quando se dirigiu à Direção Geral de Viação de ..., para ali levantar a sua carta de condução, sendo que lhe foram apreendidos os seguintes objetos:
• Um (1) telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy A53 5G, com o IMEI 1: .............94/019 e IMEI 2: .............99/09, número de série: .........YL, cartão SIM: ..........29 - NOS, de cor preto, em razoável estado de conservação e funcionamento;
• Um (1) telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy A53 5G, com o IMEI 1: .............94 e IMEI 2: ............95, número de série: .........VL, cartão SIM: ...........15 - MEO, de cor azul-claro, em razoável estado de conservação e funcionamento;
• Um (1) telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy A53 5G, com o IMEI 1: .............84 e IMEI 2: .............89, número de série: .........0X, cartão SIM: ...........82 - MEO, de cor preto, em razoável estado de conservação e funcionamento;
• Um (1) telemóvel da marca Samsung, modelo Galaxy A52s 5G, com o IMEI 1: .............69 e IMEI 2: .............68, número de série: .........8L, sem cartão SIM, de cor verde-água, em mau estado de conservação e funcionamento;
15 - O arguido BB, era quem na ilha ..., tratava da recolha de dinheiro e posterior depósito das quantias monetárias provenientes dos lucros do tráfico de produto estupefaciente, nas contas para as quais o arguido AA indicava;
16 - Pelo que, no dia 19 de junho de 2023, pelas 08H30, (nos Açores eram 07H30 da manhã), junto da moradia de “Alojamento Local”, sita na Rua ... - onde se encontrava alojado, foi o arguido AA, interceptado no decurso da qual lhe foram apreendidos:
• 26 pequenos embrulhos (prontos para venda) e uma embalagem de plástico de cor preta contendo produto estupefaciente cocaína, com um grau de pureza de 57% e com o peso líquido de 12,043 gramas;
• Um embrulho em plástico com cocaína com um grau de pureza de 71%, com o peso líquido de 4,890 gramas;
• A quantia em numerário no total de € 300 (trezentos euros);
• Uma balança de precisão de pequenas dimensões com resíduos de cocaína;
• Por sua vez, foram ainda feitas buscas ao veículo AUDI, modelo 8V com matrícula ..-16-.., usado pelo arguido AA onde foi encontrado na bagageira, no interior de uma mochila:
• produto estupefaciente cocaína, com um grau de pureza de 64,7%, com o peso de 205,170 gramas/peso líquido.
• No decurso à busca à moradia do n.º ..., da Rua ..., foi apreendido ao arguido:
• Uma arma de fogo transformada tendo por base uma pistola de alarme da marca Tangfoglio Giuseppe SRL Gardone e
• Cinco munições;
(…)
20 - O arguido DD, presta serviços de construção civil como pintor para DD, auferindo diariamente a quantia de 60 €, o que faz pelo menos desde Junho de 2024;
21 - Antes dessa data não lhe são conhecidos quaisquer outros trabalhos ou profissão que lhe permita a obtenção de rendimentos;
(...)
25 - Os arguidos AA, BB, CC e DD, não fazem descontos para a Segurança Social;
26 - A viatura de marca AUDI, modelo 8V (A3), com matrícula ..-96-.., acima identificada possui como primeiro proprietário a empresa E..., Lda., Stand ... e como segundo proprietário, QQ (irmã do arguido AA), sendo que quem o utiliza diariamente é o arguido AA;
27 - Por sua vez a viatura de marca BMW modelo 5K, série ..., de matrícula ..-XV-.., viatura apreendida nos autos, é o veículo usado e conduzido pelo arguido CC (o “JJ”), já devidamente citada supra e tem como proprietários, em primeiro lugar a firma L..., Lda., e em segundo lugar, UU, a companheira deste arguido;
28 - A carrinha de marca Mercedes, modelo R1ec, de matrícula ..-41-.., apreendida nos autos, é conduzida habitualmente pelo arguido DD (o “II”) e tem como primeiro proprietário: L..., Lda., e como segunda proprietária VV, amiga de WW, ex-companheira deste arguido, sendo que também esta conduz a carrinha;
29 - Esta carrinha por decisão de fls. 99 e ss., no Apenso B de inquérito ligado a este processo, datada de 15.06.2023, foi levantada a dita apreensão;
30 - A viatura de marca BMW, modelo M4, matrícula ..-29-.., viatura aprendida nos auto, e conduzida pelo arguido LL e que respondeu no processo nº 291/23.9..., esta viatura tem como primeiro proprietário L..., Lda., e como segundo proprietário MM (irmão do arguido AA);
31 - A viatura de marca AUDI, modelo 8v (A3), com a matrícula ..-16-.., a qual foi apreendida nos autos como acima se mencionou, é conduzida pelo arguido AA, e possui como primeiro proprietário, a firma L..., Lda., e como segundo proprietário LL (arguido e amigo de AA);
32 - Pelo que, o arguido CC e o arguido DD, usam a identidade de UU e VV (esta última como amiga de WW, ex-companheira do arguido DD), para dissimular o seu património quanto aos veículos acima identificados de marca BMW modelo 5K, série ..., de matrícula ..-XV-.., e o veículo de marca Mercedes, modelo R1ec, de matrícula ..-41-.. LDA, respectivamente;
33 - Por sua vez, o arguido AA, usa as suas irmãs QQ, PP e o seu irmão MM, tal como, pessoas da sua confiança, como sejam o arguido BB e LL relativamente aos veículos supra citados de marca AUDI, modelo 8V (A3), com matrícula ..-96-.., a viatura de marca BMW, modelo M4, matrícula ..-29-.. e a viatura de marca AUDI, modelo 8v (A3), com a matrícula ..-16-..;
34 - Para além daquelas viaturas apreendidas nas circunstâncias suprarreferidas, temos outras viaturas do mesmo tipo em termos de marcas de referência, e que também são referidas na documentação apreendida nos autos tais como:
- Volkswagen, modelo (Polo) 6r, com a matrícula ..-17-.., sendo seu primeiro proprietário E..., Lda., e como segunda proprietária QQ;
- Mercedes, AMG, modelo 245g, com a matrícula ..-79-.., sendo primeiro proprietário L..., Lda., e como tomador do seguro o arguido BB;
- Honda, modelo Fk2, (Civic) com a matrícula ..-DO-.., figurando como primeiro proprietário LL e XX (irmã de uma das companheiras do arguido AA) e como tomadores do seguro encontram-se LL e XX (irmã da companheira de AA).
- AUDI, modelo 8x (A1), com a matrícula ..-65-.., tendo como primeiro proprietário L..., Lda., e como segundo proprietário TT (ex-companheira de AA) e é também quem utiliza esta viatura;
35 - Os arguidos AA, BB, CC, DD agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que não estavam autorizados a adquirir, comprar, ceder, vender, transportar ou ter na sua posse, por si ou por interposta pessoa, o haxixe/canabis e cocaína designadamente a transportada e apreendida aos arguidos e aos «correios mulas» FF, EE e LL;
(…)
37 - Os arguidos AA, BB, CC e DD, estavam cientes da reprovabilidade legal das suas condutas e que as mesmas eram proibidas por lei e penalmente punidas;
(…)
82 - Condições pessoais quanto ao arguido DD - o arguido registou um processo de crescimento num contexto aparentemente disfuncional, tendo sido entregue aos cuidados da avó materna por indisponibilidade manifesta dos respetivos progenitores;
83 - Aos 17 anos emigrou para o Luxemburgo e juntou-se ao agregado da namorada, a fim de obter trabalho, todavia, acabou por regressar logo após 6 meses por não se ter conseguido habituar e identificar naquele país;
84 - Aos 20 anos passou a coabitar com a ex-companheira, relação marital que perdurou até data não concretamente apurada, e do qual resultaram duas descendentes, atualmente com 13 e 5 anos, sendo que no entanto, mantém contacto regular com as descendentes, assim como com a respetiva ex-companheira;
85 - O percurso escolar do arguido, iniciado em idade regulamentar para o efeito, terá sido caraterizado pelo absentismo, pela falta de motivação e desinteresse e levaram-no a abandonar o sistema de ensino com 16 anos, ficando habilitado com 9.º ano;
86 - No plano laboral, DD refere que iniciou o seu percurso profissional desde cedo, ainda que numa trajetória irregular, desenvolvida em torno de trabalhos de cariz indiferenciado, tendo começado a exercer funções num talho e posteriormente no setor da construção civil, atividade que alude manter no presente;
87 - O arguido verbalizou que desempenha funções como pintor na construção civil, numa empresa que pertence a um familiar (padrinho), encontrando-se muitas vezes na zona do algarve ou descolado da zona de residência, pese embora, exerça a atividade sem qualquer enquadramento contratual;
88 - Menciona que é pago no valor de 60€/dia, ainda que não tenha apresentado qualquer documentação comprovativa em relação à sua situação profissional/financeira;
89 - DD não evidenciou dificuldades no domínio económico e na gestão do orçamento familiar. Segundo o arguido a subsistência é assegurada através dos rendimentos provenientes do seu vencimento;
90 - Os encargos com a habitação são suportados pela respetiva avó materna, que aufere uma pensão de reforma (700 euros) e assegura valor da renda de habitação (12 euros), assim como os respetivos encargos com agua/luz/gás;
91 - Ainda no domínio económico, os principais encargos do arguido dizem respeito ao valor da pensão de alimentos correspondente às duas filhas, que de acordo com que proferiu, não tem um valor judicialmente estipulado, tem uma “boa relação” e vai transferindo consoante as necessidades das menores;
92 - Em termos de inserção sociocomunitária, DD revela interesse por automóveis e atividades designadas “tunning”, privilegiando a socialização do convívio com pares com a mesma interação;
93 - No que tange aos hábitos de consumos, DD admitiu que iniciou o contacto com substâncias estupefacientes (haxixe) desde muito cedo, conduta que o levou a ter contactos precoces com o sistema de justiça penal (2014), todavia, no presente, alega que os consumos são de forma esporádica e em contexto social, não se identificando com qualquer dependência associada;
94 - No relato da progenitora, a mesma descreve que não tem muito conhecimento do percurso do arguido, menciona que não partilhou parte do seu desenvolvimento, que o arguido se autonomizou muito cedo, não conseguindo com clareza definir o seu percurso profissional/pessoal, utilizando um discurso evasivo e ambíguo, o que poderá configurar um constrangimento/limitações, no que concerne à recolha de informação de outras fontes;
95 - DD após a separação da ex-companheira mudou-se para casa da avó materna (82 anos), situada na zona de ..., local onde efetuou o seu percurso de socialização e onde o arguido revela satisfação com o contexto habitacional, onde a dinâmica familiar surge retratada como harmoniosa e isenta de conflitos;
(…)
116 - Antecedentes criminais quanto ao arguido DD - resulta do seu certificado de registo criminal de fls. 2967 e ss., que foi condenado no processo n.º 395/08.8..., por sentença transitada em 08.09.2008, pela prática, em 17.08.2008, de um crime de condução sem carta, na pena de 50 dias de multa à razão diária de 5 €, extinta em 20.10.2008;
117 - Foi condenado no processo n.º 103/10.3..., por sentença transitada em 27.07.2010, pela prática, em 22.06.2010, de um crime de condução sem carta, na pena de 70 dias de multa à razão diária de 6,50 €, extinta em 04.05.2011;
118 - Foi condenado no processo n.º 358/10.3... por sentença transitada em 26.06.2012, pela prática, em 02.03.2010, de um crime de consumo de estupefacientes em concurso com crime de detenção de arma proibida, na pena de 200 dias de multa à razão diária de 5,50 €, substituída por 200 horas de trabalho comunitário, extinta em 24.07.2015;
119 - Foi condenado no processo n.º 700/13.5..., por sentença transitada em 09.12.2013, pela prática, em 20.10.2013, de um crime de condução sem carta, na pena de 3 meses de prisão, suspensa por um ano, extinta em 10.12.2014;
120 - Foi condenado no processo n.º 72/17.9..., por sentença transitada em 29.01.2018, pela prática, em 02.12.2017, de um crime de condução sem carta, na pena de 1 ano de prisão substituída por 365 horas de trabalho comunitário, extinta em 13.11.2019;
121 - Foi condenado no processo n.º 48/09.0..., por sentença transitada em 11.01.2022, pela prática, em 06.01.2010, de um crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º da Lei da Droga, em concurso com um crime de detenção de arma, na pena de 4 anos e 9 meses, suspensa por igual período de tempo sujeita a regime de prova.
Factos não Provados:
Com interesse para decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos:
1 - Que relativamente ao facto provado nº 6, não se prova nada mais do ali consignado e designadamente, que nesse dia 14 de maio de 2022, os arguidos AA e BB, usando a viatura marca AUDI, modelo 8V (A3), com matrícula ..-96-.., transportaram os «correios, mulas» FF e EE, assim como, o respetivo produto estupefaciente entre a Estação de Serviço da ... junto ao aeroporto de ... e o Aeroporto ... em ..., onde deixaram os «correios, mulas» a fim de que estes realizassem o transporte do estupefaciente pela via aérea tal como combinado.
Todos os restantes factos constantes da acusação ou são juízos conclusivos, ou conceitos abstractos, ou conceitos de direito, ou menção de prova ou factos irrelevantes para os tipos criminais em apreço ou simplesmente são factos repetidos, pelo que não deveriam constar da acusação e por isso não foram levados em consideração.
1. Violação do disposto no art. 426º do Código de Processo Penal
O Recorrente sustenta que a decisão recorrida violou o disposto no art. 426º do Código de Processo Penal por, tendo decidido existir erro notório na apreciação da prova (art. 410º nº 2 al. c) do Código de Processo Penal) relativamente à “valoração feita pelo Tribunal a quo, das declarações do coarguido BB, prestadas em sede do seu 1.º interrogatório judicial e reproduzidas em audiência de julgamento, para formar a sua convicção”.
Depreende-se que o Recorrente considera que verificado um dos vícios do art. 410º do Código de Processo Penal, o tribunal de recurso está obrigado a reenviar o processo para novo julgamento, sem qualquer alternativa.
Não foi esse o entendimento do tribunal a quo.
Começa por lembrar logo a seguir a reconhecer a inadmissibilidade daquela prova que aquele tribunal de recurso tem poderes em sede de impugnação da decisão da matéria de facto (fls. 94):
«Pelo exposto, tendo este Tribunal de recurso, poderes em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, determina-se que se tenha como não escrita, a parte da fundamentação do Acórdão em que o Tribunal de julgamento fez assentar a sua convicção, relativamente à factualidade provada ali descrita, nas declarações deste arguido BB, por ser essa valoração claramente ilegal e não poder como tal ser aceite, por se tratar de prova proibida».
Para adiante (fls. 110) realçar que esse erro é corrigível:
«Estamos pois em sede de um certo poder discricionário do Juiz, que “só pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente não se encontram – com única excepção para o já supra apontado erro de valoração, das declarações prestadas em sede de inquérito pelo arguido BB, erro esse que é passível de correcção por este Tribunal da Relação, com poderes para apreciar e julgar a decisão sobre a matéria de facto, proferida na 1ª instância como já acima ficou dito».
E, concretizando, conclui (a fls. 128 a 132) ser possível ao Tribunal da Relação, porque também julga em matéria de facto, manter o juízo condenatório formulado pela decisão de 1ª instância sem considerar a prova que decorreria da valoração das declarações prestadas em sede de inquérito pelo arguido BB:
«Mas assiste razão aos arguidos recorrentes, no ponto em que vieram defender que a convicção do Tribunal a quo, no sentido da imputação aos arguidos recorrentes do crime de tráfico de estupefacientes, assentou também nas declarações prestadas pelo coarguido BB em sede de 1º interrogatório judicial e reproduzidas, não o podendo fazer por se tratar de prova proibida no caso em apreço.
Esta valoração indevida das declarações prestadas pelo coarguido BB em sede de 1º interrogatório judicial e lidas em julgamento, constitui sem dúvida um erro notório na apreciação da prova, uma vez que nos termos já acima expostos, tal prova não podia ser aqui valorada, pelo que se procedeu já à sanação desse erro na análise acima feita.
Determina-se assim nessa sequência, que seja considerado não escrito, tudo o que na fundamentação da matéria de facto, ficou escrito no Acórdão recorrido. no sentido de tais declarações do arguido BB, servirem como fundamento para a prova de factos integrantes da “factualidade provada em julgamento nos presentes autos”.
Assim sendo, uma vez expurgadas essas declarações do BB, que não podem ser valoradas nos termos já acima referidos, não existem contudo razões para alterar a factualidade julgada provada, nos pontos especificadamente impugnados pelos arguidos recorrentes (sob os pontos 1., 2, 3, 4, e 6), a qual se mantém, pois que a convicção do Tribunal a quo assentou também noutros meios de prova válidos e legítimos para dar como assentes esses mesmos factos:
- prova testemunhal abarcando as várias testemunhas que foram ouvidas em juízo, onde se destacam os vários senhores inspectores da PJ que participaram na investigação destes autos, em especial, o importante depoimento do inspector da PJ GG que participou na investigação na sua fase inicial e bem assim, as declarações de TT ex companheira do arguido AA a qual referiu, que numa altura em que o AA andava fugido, foram a sua casa em ..., os arguidos CC e DD, a exigirem o dinheiro da perda da droga transportada pela EE e FF em 14.5.2022, e ameaçaram esta testemunha de morte, se o dinheiro não lhes fosse pago;
- as imagens de seguimento das viaturas automóveis conduzidas pelos vários arguidos e aquelas intervenientes na operação de transporte da droga pela EE e FF no dia 14.5.2022, os autos, e também as imagens da PB e do aeroporto ... de fls 424 e segs onde se vêm os veículos BMW e Audi;
- das vigilâncias efectuadas a posteriori, pelo OPC com vista a identificar os utilizadores das viaturas BMW, Audi e Mercedes de fls 394 e 465, sendo que na fundamentação da matéria de facto constante do Acórdão, se faz referência a esses movimentos dos veículos automóveis e aos seguimentos efectuados pela PJ.
- os documentos que permitiram apurar que à data da aquisição dos veículos automóveis por eles conduzidos, o veículo BMW de matrícula ..-XV-.. (o arguido CC) e o Mercedes Classe E Coupé de cor branca com a matrícula ..-96-.. (o arguido DD) nenhum deles, tinha declarado o exercício de qualquer actividade lícita, de onde pudessem retirar proventos suficientes, para permitir a aquisição de viaturas automóveis desta cilindrada, com um curto económico elevado;
- a apreensão da droga aos correios EE e FF no dia 14.5.2022, nos termos descritos no Acórdão e o exame pericial feito à droga apreendida e transportada por eles, bem como o produto estupefaciente que foi apreendido nas outras circunstâncias descritas no Acórdão, nomeadamente aquando da busca domiciliária cfr o provado em 12 e aquando da intercepção do arguido AA no dia 19.6.23 cf o descrito em 16;
- as declarações prestadas em julgamento pelo coarguido AA (corroboradas pelos meios de prova acima mencionados).
Tudo visto, nos termos e pelas razões supra expostas, se conclui que improcede a impugnação da decisão da matéria da facto, feita pelos arguidos recorrentes, com base na imputação ao Acórdão recorrido, do vício de contradição insanável da matéria de facto previsto no artº 410º/2 b) do C.P.P, mas procede parcialmente a impugnação feita com base na existência de erro notório na apreciação da prova previsto no artº 410º/2 c) do CPP.
Na realidade a leitura da fundamentação do Acórdão, mostra claramente que o Tribunal a quo examinou criticamente as provas que serviram para formar a sua convicção, tendo ainda explicado de forma suficiente, porque razão não lhe mereceu credibilidade a versão apresentada em juízo pelos arguidos CC e DD que negaram os factos e essa valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido é perfeitamente legítima, não sendo violadora das regras da experiência e da lógica – apenas se ressalvando aqui a valoração feita pelo Tribunal a quo quanto às declarações do coarguido BB, as quais não podem servir para fundar a convicção do Tribunal nos termos acima expostos, devendo por isso ter-se como não escritas as considerações em que no texto do Acórdão se faz referência a essas declarações como meio de prova relevante, assim se sanando o erro.
A impugnação dos arguidos, relativamente à decisão sobre a matéria de facto, procede pois parcialmente, na medida em que se expurgam da motivação dessa decisão sobre a matéria de facto, as declarações do coarguido BB, nos termos por eles requeridos, assim se sanando o erro notório cometido sobre a apreciação da prova.
Contudo, não resulta da sanação desse erro, a procedência da pretensão principal dos recorrentes, que era julgar não provados os factos concretamente impugnados e decidir o Tribunal a quo pela absolvição dos arguidos, pois que dessa sanação do erro, não resulta qualquer alteração da factualidade provada e não provada, descritas no Acórdão, que se mantém inalteradas».
O caminho percorrido não foi impugnado pelo Recorrente, sendo certo que as normas processuais penais apontam a possibilidade de, alternativamente ao reenvio, haver modificação da matéria de facto no Tribunal da Relação (art. 431º do Código de Processo Penal). Se é possível ao Tribunal da Relação modificar a decisão, uma vez que conhece de facto (art. 428º do Código de Processo Penal), por maioria de razão, é possível manter a decisão quanto à matéria de facto, formulando um novo juízo sobre a prova, por virtude da invalidade de um meio de prova, mesmo não havendo recurso de impugnação ampla da matéria de facto.
A possibilidade de resolver a questão por essa via está consagrada na jurisprudência, desde que se verifiquem os pressupostos da al. a) do art. 431º do Código de Processo Penal:
«A Relação não está, assim, impedida de, se necessário, embora com fortes restrições, alterar a matéria de facto constante da sentença da 1.ª instância, mesmo que não seja interposto recurso da decisão em matéria de facto, por alegado erro de julgamento [caso previsto na al. b)]. Porém, como se consignou nos acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023, proferidos nos processos 215/18.5JAFAR.E1.S1 e 1066/16.7T9CLD.C3.S1, em www.dgsi.pt, que se seguem de perto, esta possibilidade só pode ocorrer por via e na sequência da verificação e declaração de vício a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP nas condições impostas pelos artigos 426.º e 431.º, al. a), do CPP, em vista da superação desse vício, para uma boa decisão de direito.
Estabelece o n.º 1 do artigo 426.º que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio». O que obriga o tribunal da relação a uma dupla decisão ou a uma decisão em dois momentos: em primeiro lugar, à deteção e aferição (determinação e concretização) do vício e, em segundo lugar, à verificação e avaliação das possibilidades de sanação do vício e, sendo caso disso, a respetiva sanação, com base num juízo sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade, que são as provas existentes no processo que serviram de base à decisão [al. a) do artigo 431.º do CPP].
Fora do âmbito do recurso em matéria de facto ou dos casos de renovação da prova – que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido [artigos 412.º, n.ºs 1 e 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP] –, o tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto, para remover um vício que for identificado e que impeça a decisão de direito, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base» [al. a) do artigo 431.º do CPP]7»
Mas, efectivamente, tendo em atenção que está em causa essencialmente uma nulidade (e aqui divergimos do acórdão recorrido), como bem acentua o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto «porque a questão suscitada não integra, directamente, o erro-vício de “erro notório na apreciação da prova” 8, que deva ser declarado e sanado na lógica das disposições dos arts. 410º/2 e 426º do Código de Processo Penal, mas, isso-sim, uma proibição de prova, que – não fosse, em concreto, sanável na 2ª Instância – poderia implicar a anulação do Acórdão do Colectivo, com a sua repetição (cfr, os arts. 122º, 126º, 345º/4, 357º e 410º/3 do mesmo diploma legal», afigura-se claro que se trata de uma nulidade que pode ser suprida pelo tribunal de recurso, por força do disposto no art. 379º nº 2 do Código de Processo Penal.
Efectivamente, “se, após ter anulado um meio de prova – as declarações de um co-arguido –, o acórdão da Relação consegue segmentar a concreta relevância probatória do depoimento em causa, o reenvio dos autos à 1.ª instância não tem qualquer justificação”9.
Foi o caso dos autos, como aparece devidamente fundamentado na decisão recorrida, nas partes supra transcritas.
2. Falta de fundamentação
O Recorrente sustenta ainda que o acórdão recorrido padece de falta de fundamentação quanto aos factos provados 1, 2, 3, 4 e 6, quando diz que a análise crítica feita pelo Tribunal da primeira instância é suficiente de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos, para deixar bem claro o seu raciocínio lógico e consistência das provas apresentadas, como resulta da simples leitura da motivação de facto constante do Acórdão e acima reproduzida. Por isso, “mantendo a decisão proferida em primeira instância nesta matéria, é nulo”.
A abordagem que importa efectuar tem de se limitar à análise da eventual falta de fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação, porquanto, como é consabido, de acordo com jurisprudência estabilizada deste Supremo Tribunal que, estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso, o recorrente inconformado com a decisão da 2ª instância, já só pode impugnar esta última decisão e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância10.
Vejamos.
A fundamentação do acórdão recorrido, nesta parte, é a seguinte:
Na verdade, esta argumentação dos arguidos, apenas traduz a diferente leitura que os mesmos fazem da prova produzida em audiência de julgamento, a qual pretendem ver sobreposta àquela que foi feita pelo Tribunal recorrido na 1ª instância.
É verdade que o artº 374º/2 do C.P.P exige:
“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e reprovados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”.
E que o artº 379º/1 do mesmo diploma legal, preceitua:
“É nula a sentença:
alínea a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artº 374º do C.P.P (...)
alínea b) Que condenar por factos diversos dos da acusação ou da pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º do C.P.P.
alínea c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Sem dúvida que a sentença penal, como decisão que reconhece em definitivo o direito ao caso concreto, comporta na sua dimensão um juízo fáctico, consubstanciado na “reconstrução do acontecimento acompanhado da valoração de carácter probatório” – cfr Carlo Zanza in “La Sentença Penal”, Geoffrey Editore 2004 pág. 60 – e um juízo jurídico “as conclusões com relevância jurídica do acontecimento, que se traduzem numa recondução a uma norma incriminadora” ibidem, pág. 60.
É através da fundamentação, que se possibilita o controlo da sentença por um Tribunal superior, evitando decisões arbitrárias, que se concretiza a garantia de defesa do arguido (na medida em que apenas com a fundamentação pode ser concretizado o direito constitucional ao recurso) e se assume um mecanismo de autocontrolo do próprio Tribunal.
A fundamentação deve sempre ser suficiente coerente e razoável, de modo a permitir o cumprimento das finalidades que lhe estão subjacentes.
Tem-se entendido, que a fundamentação da sentença penal, como decorre da norma do artº 374º, nº 2 do C.P.P, é composta por dois grandes segmentos:
- um primeiro que consiste na enumeração dos factos provados e não provados;
- e outro que consiste na exposição concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do Tribunal.
A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa.
É esta enumeração de factos que permite concluir se o Tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.
A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo Tribunal – o que não exige, relativamente à prova por declarações, a realização de assentadas tendo por objecto os depoimentos produzidos em audiência –, bem como a análise crítica de tais provas.
Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o Tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.
O aludido exame crítico, deverá pois consistir na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou por outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o Tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
Em resumo, podemos sintetizar que uma decisão só será nula, quando se verifique qualquer das situações referidas nas alíneas a) a c) do nº 1 do artº 379º do C.P.P.
Ora, analisado o Acórdão recorrido, constata-se que nele estão indicados os factos provados e os não provados, as provas em que o Tribunal a quo se baseou para dar como assentes tais factos, a análise critica dessas mesmas provas e, de seguida, os motivos de direito que fundamentam a condenação.
Tudo em conformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 al. a) e b) do artº 374º do C. P. Penal, nada havendo pois a criticar no caso concreto, quanto à realização de exame crítico da prova que se mostra efectuado, nem quanto à fundamentação do Acórdão, de facto ou de direito.
Isto é, depois de descrever os meios de prova que credibilizou, o Tribunal recorrido faz uma “análise crítica” para nós suficiente, de acordo com a experiência comum e com critérios objetivos, para deixar bem claro o seu raciocínio lógico e consistência das provas apresentadas, como resulta da simples leitura da motivação de facto constante do Acórdão e acima reproduzida.
Acresce que os factos pelos quais estes dois arguidos foram condenados, foram aqueles que constam da acusação, não se verificando qualquer alteração da qualificação jurídica em relação aos crimes de que vinham acusados.
Com efeito, vieram os mesmos a ser condenados cada um deles, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes p.p no artº 21º/1 do D.L nº 15/93 de 22.1, cometidos no circunstancialismo de tempo e de lugar descrito na acusação pública deduzida neste processo – crimes pelos quais lhes foi aplicada na 1ª instância, a pena de oito (8) anos e dois (2) meses de prisão (arguido DD) e a pena de sete (7) anos e dois (2) meses de prisão (arguido CC).
É certo que os arguidos vieram também no seu recurso, colocar em causa a valoração que foi feita pelo Tribunal de julgamento na 1ª instância, das declarações anteriormente prestadas pelo arguido BB, em sede de 1ª interrogatório judicial, bem como a valoração que foi feita ao depoimento prestado em julgamento pelo Inspector GG.
Porém essa sindicância, cabe na impugnação da matéria de facto e sua fundamentação, que adiante será também aqui apreciada, não configurando de todo, o vício da nulidade previsto no artº 379º/1 a) do C.P.P.
Na verdade, não é pelo facto de os recorrentes discordarem da valoração da prova feita na 1ª instância, que tal posição os legitima a imputar ao Acórdão recorrido, a nulidade que vieram invocar.
Assim sendo, sem dúvida que esta pretensão dos arguidos, repetimos, apenas traduz afinal de contas, a diferente leitura que eles próprios fazem, da prova produzida em audiência de julgamento.
Não lhes assiste pois qualquer razão com esta sua pretensão, na medida em que no fundo, estão afinal apenas a colocar em causa, a valoração da prova produzida, que foi feita pelo Tribunal a quo, esquecendo-se que no nosso sistema penal vigora não um regime de prova vinculada, mas um sistema de prova livre, em que ao julgador cabe a faculdade de poder apreciar e valorar a prova e fundar a sua convicção livremente, de acordo com o artº 127º do C.P.P.
Por tudo o acima exposto, se conclui que o Acórdão não padece do vício que lhe foi apontado pelos arguidos e o recurso improcede neste segmento.
Saliente-se que a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada em que a sentença reproduza as declarações e os depoimentos das testemunhas inquiridas, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação segura do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo11.
Assim, essencial é o exame crítico da prova. «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção»12.
Sintetizando, para o que releva no caso concreto, a motivação da matéria de facto tem, essencialmente, de dar um panorama geral das provas e das razões da convicção do tribunal.
Não se torna necessário que esmiúce os factos um a um, nem que proceda à transcrição ou descrição do conteúdo de cada meio de prova como o Recorrente parece pretender.
Basta que sejam elencados os meios probatórios e as razões que levaram o tribunal a decidir como decidiu.
A leitura da motivação da decisão da decisão de 1ª instância que aqui se transcreve na parte pertinente (já sem a parte em que se refere ao depoimento do co-arguido BB) é elucidativa para se compreender que são devidamente elencados os meios de prova de que o tribunal se serviu e também explicada cabalmente a razão da convicção dos julgadores:
Fazendo a análise crítica das provas produzidas, a convicção do tribunal assentou na apreciação de toda a prova documental junta aos autos nomeadamente, na extracção de certidão relativa ao processo nº 486/22.2... de fls. 1 e ss., onde se pode analisar o seguimento visual das viaturas BMW série 5 com a matrícula ..-VX.. e a viatura AUDI. Modelo S3 com a matrícula ..-96-.. na aproximação ao aeroporto ... em ... e dentro do aeroporto e nas bombas da ... de fls. 424 e ss., onde se pode também ver o Mercedes Classe E Coupé de cor branca com a matrícula ..-41-.. no parque de estacionamento junto ao cemitério de ..., fls. 394, o dito veículo BMW série 5 com a matrícula ..-VX.. mas agora preto e não cinza como antes era, estacionado junto da oficina “A...”, na Rua da ... em ..., saindo dali o arguido CC e o arguido DD conforme fls. 466, 467, 468, 469, 470, 471, 472, onde para o BMW junto à casa de UU, companheira de CC, sendo que seguiram aquele que então era conhecido como “HH” que foi assim que a EE e o FF o identificaram como sendo o que os levou ao Centro comercial ... e às bombas da ..., depois melhor reconhecido como sendo o arguido DD, o “II” fls. 476, cuja nome de proprietária é VV, amiga de WW, mãe das filhas do arguido DD, fls. 478 e 479.
Mandado de busca a casa de ..., ambas pertença do Arguido AA de fls. 661 e ss., na primeira morava TT ex-companheira de AA e na segunda morava a NN também companheira (à data) de AA, e nesta casa de fora foi onde foi detido LL e julgado no processo nº 291/23.9... supra citado, e de fls. 670 e ss., e vários documentos de seguro de viaturas, inspecção técnica quanto ao veículo BMW modelo M4 com a matricula ..-29-..; auto de busca da Residência do arguido CC e de UU de fls. 754 e ss., e do veiculo BMW 5K com a matricula ..-XV-...
Auto de apreensão do veículo Mercedes classe E Coupé com a matricula ..-41-.., que se encontrava na posse de WW, ex-companheira do arguido DD de fls. 712 e ss., auto de busca e apreensão na casa de ... pertença de AA e NN de fls. 889 e ss., e todos os objectos ali apreendidos e documentos inclusive do arguido BB, fls. 921 e ss., mandado de busca e apreensão originais na ... de fls. 1202 e ss., originais das buscas na casa de CC e UU de fls. 1290 e ss., original do auto de apreensão do Mercedes classe E Coupé pertença de DD e da ex-companheira WW com a matricula ..-41-.. de fls. 1411 e ss., originais do auto de busca e apreensão da casa de ... de fls. 1431 e ss., documentos do irmão do arguido AA, o MM de fls. 1446 e ss., documentos bancários de fls. 1711 e ss., a UU e a NN e de BB, detalhe de conversações quanto aos telefones .......52, .......93 e .......56 da Vodafone de fls. 1788 e ss., auto de revista de BB de fls. 1863 e ss., e dos telemóveis apreendidos àquele de fls. 1868 e ss., fotos de onde vivia nos ... o BB de fls. 1879 e ss..
Autos de intercepções e gravação conversações dos arguidos de fls. 2079 e ss., registos dos automóveis apreendidos e outros usados pelos arguidos nos autos conforme fls. 2208 e ss., várias certidões de firmas associadas aos arguidos de fls. 2219 e ss., exames periciais provenientes da polícia judiciária cientifica de fls. 2243 e ss., de produto estupefaciente de fls. 2245 e ss., mais registos automóveis de fls. 2249 e ss., informações da AT relativa aos anos de 2018, 2019 e 2020 quanto a MM de fls. 2326 e ss., informações da segurança social de UU de fls. 2351 e ss., LL, fls. 2355 e ss., AA de fls. 2335, auto de busca e apreensão na casa de alojamento local de ..., onde foi detido o arguido AA de fls. 2351 e ss., e fotos do Audi A 3 com a matricula ..-16-.., onde se vê marmita com droga/cocaína a fls. 2356 e 2357, a arma de fls. 2360 e 2361, o auto de exame de fls. 2367 a 2368, da arma de fogo transformada tendo por fase a pistola de alarme Tanfoglio Giuseppe SRL Gardone GT-28 de calibre 8mm Knall/8mm alarme /8mm-salva, transformada em arma de fogo de repetição semiautomática capaz de disparar munições de percussão central 6,35 Browning de calibre .25 ACP, arma de classe A, artigo 3º/2-l) da Lei das Armas nº 5/2006, alterada pela Lei nº 50/2019 de 24.07, artigo 2º/1-x) do mesmo diploma, artigo 86º/1-c) da mesma lei e ainda apreensão de cinco (5) munições de calibre 6,350mm Browning chamadas de .25 Auto, tudo em razoável estado de conservação e apresentam condições de ser disparada e usadas.
Mais um exame pericial de cocaína feito pela polícia judiciaria cientifica de fls. 2425, 2427, mais declarações de IRS de fls. 2475 e ss., também de VV de fls. 2497 e ss., de UU de fls. 2513 e ss., também recibos verdes do arguido CC de fls. 3063 e ss., e declaração de entidade patronal do arguido DD ... DD de fls. 3076.
Relatórios sociais para determinação de sanção quanto a todos os arguidos de fls. 2964 e ss., e certificados de registo criminal quanto a todos os arguidos de fls. 2967 e ss.
Do apenso B, temos documentação relativa a VV e WW para justificar a propriedade e posse do veículo Mercedes classe E Coupé com a matrícula ..-41-.., da financeira 321 de fls. 7 e ss., mais fls. 54 e ss., documentos provenientes da Segurança Social WW de fls. 66 e ss., e de VV de fls. 67 e ss., documentação bancária de fls. 71 e ss..
Assentou ainda a convicção do Tribunal na audição dos arguidos e testemunhas ouvidas em sede de julgamento.
Prova dos factos nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 - O tribunal assentou a sua convicção para assim os considerar como provados desde logo, pela certidão do processo nº 486/22.2..., que foi o processo mãe de todos os demais, designadamente, mesmo deste e dos movimentos dos carros dos arguidos assim do BMW Série 5 com a matrícula ..-VX-.., a viatura Audi, modelo S3 com a matrícula ..-96-.., o Mercedes Classe E Coupé de cor branca com a matrícula ..-41-.., veículos conduzidos pelos arguidos aqui nos autos sendo que quanto ao Mercedes Classe E Coupé de cor branca, é seguido porque se estava a seguir o ainda suspeito “HH”, que tinha sido previamente identificado pela EE e FF, como aqueles (junto com o arguido CC) que os levaram até ao Centro Comercial ... no ... a fim de fazerem o seu check-in e lhes deram dois telemóveis tudo preparando para a viagem para a ilha ..., e como tal depois vem-se a perceber que o nome deste senhor é o de DD, o aqui arguido; as fotos de seguimento que lhes são tiradas pela polícia judiciaria enfim, tudo quanto acima já se mencionou na parte documental e que aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos.
Assentou também na audição dos arguidos.
Assim, AA, foi o primeiro arguido a ser ouvido, o qual no essencial disse a verdade sobre o que consta contra si na acusação.
Então explicou que fugia sim senhora, mas para fugir dos arguidos DD e CC e não dos senhores policias e que esta droga que foi apreendida à EE e ao namorado dela o FF que ele nem sabe quem são, a droga era daqueles e eles andavam zangados consigo porque a droga tinha sido apreendida e ele tinha que pagá-la a eles; que quem angario aquelas duas “mulas”/ os pássaros como lhes chamavam, foi precisamente o DD e o CC que lhe disseram que já temos os “os pássaros”; então que é verdade que combinaram de se encontrar na bombas da BP, mas depois mudaram o lugar de encontro para as bombas mas do ..., junto ao Catering do Aeroporto mas quem embalou a droga foi ele e o arguido BB, sendo que como estava doente, quem embalou aquela foi o BB e ele ficou a ver, depois agarraram na mala e colocaram no Audi que era o seu carro e foram ter com os arguidos CC e DD melhor conhecidos por “JJ e II”.
Então quando ali chegaram esperaram pelo CC mais o DD e quando chegaram, saíram todos do carro e quem conduzia o BMW era o DD e então ali trocaram de carro a mala da droga e foram levar no BMW e foi lá o BB mais um outro individuo que não se lembra bem quem era o KK, mas ele não foi com eles ele ficou ali a ver a troca da mala que o BB foi buscar ao seu porta-bagagem.
É verdade que ele cedeu a casa de ... para que o CC mais o DD ali pusessem a droga que eles roubavam a terceiros (mas que ele também o fez) e ele concordou em ali guardarem a droga; a droga não era sua; só era para dividir os lucros e que era o testa de ferro do CC e do DD; ele próprio trabalhava na venda da droga porque não tinha rendimentos e tinha 3 filhos para criar e já foi condenado uma vez por tráfico.
Também era toxicodependente de heroína e cocaína mas já deixou isso e está muito arrependido do que fez; quanto aos carros que tinha, era com o dinheiro da droga que os pagava e primeiro conheceu o CC e o DD em 2017 e só mais tarde em 2020 é que conhece o BB e sempre nesta vida do tráfico e como tinha muitas dívidas trabalhava para o CC e o DD e quando a droga lhe era entregue pelo CC e pelo DD, passava também a ser dele e por isso eles queriam que ele pagasse a droga perdida e era o DD que angariava os “pássaros”; foi ele e o BB que foram ao Chinês comprar a mala e os plásticos e o que era necessário para embalar a droga.
Também foi ele que disse ao LL para ir lá a casa e o DD e o CC não trabalhavam apenas se dedicavam ao tráfico e foi o II que entregou 2.500,00 € à EE; o Sr. DD é que comunicava a hora e o sitio para se encontrarem e cada placa de haxixe custava cerca de 250 € e o quilo e meio de cocaína custava cerca de 60.000,00 € e as 140 placas de haxixe custavam mais ou menos 180.000,00 €, o que era muito dinheiro e depois disto tentou fazer as pazes com eles para continuar a vender a droga e deram-lhes mais meio quilo de cocaína e como ele andou 6 meses em fuga então foi ali que ele foi vendendo o que tinha para arranjar dinheiro para se sustentar, em ... estava com o Audi A3 e os carros que todos andavam era para disfarçar o seu tráfico.
Mesmo dele e que pagou com o seu dinheiro é o Honda Civic e que custou 2000 € e todos os demais carros não estavam pagos e ele vendia haxixe e era contra se vender cocaína.
Quanto ao CC conhece-o e não é das corridas de “Tunning”.
(…)
Como se vê deste dois depoimentos, no essencial estes dois arguidos assumem praticamente tudo o que consta da acusação, com algumas pouca nuances que não assumem por exemplo o AA quando diz que a droga era apenas do CC e do DD e que estava a fugir deles, pois que a droga era também sua e de todos os três, o AA, o CC e o DD é que arranjavam a droga e que a procuravam mandar para a ..., mas também a vendiam lá no Continente.
Pelo que naquela parte não se acreditou no arguido AA.
(…)
No resto, o tribunal considerou verdade porque bate certo com o que os dois disseram de tudo quanto se passou.
Quanto aos dois restantes arguidos, o CC (o “JJ) e o DD (o II), não se acreditou de todo, na respectiva versão que apresentaram dos factos: ambos negaram que tenham tido alguma vez alguma coisa a haver com o AA e quanto ao arguido BB disseram que o conheciam mas qua não praticaram qualquer facto ilícito com ele.
Desde logo o arguido CC disse que trabalhava na D... em ... e ainda fazia transferes como motorista de carros de aluguer e que trabalha a recibos verdes; tinha de renda de casa que vivia com a UU 650 € e do carro o BMW era de 270 € e o dinheiro que lhe foi apreendido de 900 € era para pagar isso mesmo; então que o patrão lhe paga 850 € e ele dava o cartão de multibanco à mulher e era ela que levantava o dinheiro e depois depositava de novo na sua conta própria para pagar ao senhorio e à Financeira que no caso era Cofidis (não é credível todos estes movimentos de levantar e voltar a depositar e depois transferir).
E que emprestou a carrinha BMW ao BB porque ele disse que estava em mudanças, pois ele mal conhecia a EE e o FF; vive em casa da mãe e é de renda e paga a renda.
Não é verdade que a droga seja dele quem o diz mente.
Quanto ao dinheiro do salário: é assim que fazem ela levanta o salário dele e entrega-lhe dinheiro e depois ela volta a depositar para pagar.
Conhece muito bem o DD.
Eles os dois gostam do Tunning, que é uma concentração de carros e quando carro lhe foi apreendido ficou muito triste e falou com o BB e este não lhe disse nada.
O AA também entrava nas concentrações e viu o AA várias vezes no Stand e conhece a EE do Tunning.
Nunca falou com o AA.
Por fim, o arguido DD diz que trabalha na construção civil com o padrinho DD e ganha 60 €/dia e que também trabalha para o Sr. YY e ganha cerca de 1.000,00 €/mês.
E diz que é tudo mentira o que consta da acusação e nunca cometeu qualquer tráfico que seja.
Que apenas conhece o Sr. AA de vista e o BB já conhece há mais anos e o CC é seu amigo e conhece a EE e o FF de zonas de ... e da concentração de carros e motas, do Tunning.
E conhece de vista o LL das Bombas de ... e quanto ao carro Mercedes Classe E Coupé, é o carro da ex-companheira WW, a mãe das suas filhas e ele de vez em quando conduz para levar as filhas à escola e assim, porque estão separados mas dão-se bem.
E o carro não está no nome da WW mas sim da sua amiga VV porque é madrinha da sua filha e como ela na data não tinha acesso a empréstimo então pediu-se à VV para fazer o empréstimo junto da financeira e todos os meses a ex-companheira entrega-lhe o dinheiro.
O seu carro é um Smart e a acusação não tem razão alguma.
As suas filhas têm 6 e 3 anos de idade e vivem próximo uns dos outros.
Actualmente a WW trabalha como cabeleireira e ganha cerca de 1500 €/mês.
E o Mercedes custou 40.000,00 € e ela paga cerca de 300 € para a financeira.
Pelo que de todo não se acreditou nas versões apresentadas pelos arguidos CC e DD.
Desde logo pelas vigilâncias e seguimentos de faciais que os reconheceram da EE e FF bem como, pelos seguimentos que a polícia judiciária lhes fez.
Depois o seguimento dos carros deles, no caso do BMW do CC que levou as mulas até ao ... e depois mesmo ao aeroporto ... em ....
E ao seguirem o arguido DD verificaram que aquele conduz muitas vezes Mercedes Classe E Coupé e foi ali que o reconheceram como o HH” que a EE chamava.
Pelo que este carro apenas foi comprado com recurso aos proventos que o arguido tirou do tráfico de compra e venda da cocaína e do haxixe que levava a cabo junto com o CC e o AA porque os rendimentos e salários auferidos pelo DD e pela companheira WW que na data apenas ganhava o salário mínimo nacional, não podia suportar o custo de um carro por 40.000,00 € (sendo certo que entraram logo com cerca de 20.000,00 €).
Logo, simplesmente estes dois arguidos mentiram.
Como com estes salários conseguiram dar de entrada todo aquele dinheiro?
Não podemos esquecer que o arguido DD trabalha ao dia recentemente, e não lhe era conhecido qualquer trabalho à data em que comprou este Mercedes.
Estes dois arguidos estão claramente, implicados na compra e transporte de haxixe/canabis e cocaína para venda a terceiros consumidores e outros, e para a ilha ... e no Continente português.
(…)
Assentou ainda na audição de todos os senhores inspectores da polícia judiciária que fizeram esta investigação e dos que os ajudaram no Continente português com todas estas buscas e apreensões e assim começamos por ouvir a testemunha GG, que o senhor inspector que dirigiu toda a linha de investigação a partir dos Açores até à procura dos arguidos no Continente português.
Tudo começou com a colaboração dos arguidos EE e FF no processo mão 486/22.2... quando são interceptados no Aeroporto ..., ilha ... no dia 14 de Maio de 2022; a droga apreendida é então os cerca de 14 quilos de haxixe/canabis e cerca de 1 quilo e meio de cocaína.
A partir dali conseguem chegar aos reconhecimentos faciais, quer do suspeito (na data) HH” (agora arguido DD) e ao CC que a EE e o FF chamavam de “JJ” e de “II”, pois era assim que os mencionavam.
Fazem seguimento ao então suspeito “ZZ” (agora arguido DD) e verificam o carro que aquele conduz o Mercedes Classe E Coupé de cor branco (o qual foi apreendido e depois liberto), ou seja, ele apresenta-se várias vezes com este carro; também o vêm a conduzir o BMW 5K ..-XV-.., mais o arguido CC que conduz este carro, cuja proprietária é a companheira do arguido UU, o qual na data em que levam a EE e o FF ao aeroporto ... em ... é cinzento e depois mais tarde aparece como preto (6 meses despois).
Depois participou nas buscas a casa do CC e da UU; seguiram também os Standes de onde vinham estes carros; viram a segurança social dos arguidos e das companheiras deles e as declarações de IRS à AT.
Esteve em ... junto à casa da Dª TT ex-companheira do AA, o qual detectando a presença daquele ali pôs-se em fuga mas fizeram a busca e apreensão na casa da companheira e depois seguiram para a outra casa do AA que se situava em ... e lá foram e aí detiveram o arguido LL bem como, a droga que aquele tinha o qual conduzia o BMW M4 AT-29-QS (também apreendido nos autos).
Depois foram a casa da ... onde vivia à data, a companheira do AA, a NN e lá fizeram mais apreensões de balanças e produto estupefaciente (haxixe, cocaína) e vários documentos relacionados com vários arguidos.
Seguidamente foi ouvido AAA, outro senhor Inspector da polícia judiciária que participou nas busca e apreensões da casa de ... (onde vivia a NN) e ali detiveram o LL e viram escapar-se mais uma vez o arguido AA que os viu ali em casa.
Ouvido que foi o inspector da polícia Judiciaria BBB, afirmou que deu apoio à investigação dos Açores e foi a casa da TT ex companheira do AA em ... e enquanto estavam ali, aparece o AA de carro que quando os vê na casa, foge; então foram para ... uma vez que a companheira deste disse que ele vivia em ... e ali quando estavam a deter o arguido LL viram que se aproximou de casa o AA que nada data conduzia o Mini Cooper e que fugiu deles.
Ouvido CCC, disse também que colaborou nas buscas e na detenção do AA como inspector da Polícia Judiciária; então tiveram a informação que ele estava em ... numa casa de Alojamento Local e ele saiu para tomar café e quando veio abordaram-no e fizeram-lhe revista pessoal e ele tina na sua posse cerca de 15 gramas de cocaína, paracetamol, balança e em dinheiro 300 €; no Audi A3 que tinha consigo nessa localidade tinha mais 200 gramas de cocaína e uma outra balança maior, mais faca, mais o telemóvel e fizeram ainda uma busca a residência e ali encontraram a pistola transformada de calibre .35 e mostrou-se colaborante.
DDD, também inspector da policia judiciária e que participou na detenção do AA o que fez com o seu colega anterior e para tal receberam a informação de que ele estava e ... e como eles tinham o mandado de detenção contra ele ao verem-no abordaram-no e detiveram-no e fizeram uma revista pessoal e ao carro e tinha balanças e droga com ele e ainda, dentro da casa tinha a arma de calibre .35 e as munições.
Como bem salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, «não cabia ao Tribunal recorrido a fundamentação (também incidente em prova declaratória e testemunhal, que não é directamente apreendida e imediatizada em recurso), bastando-se, pois, por um controlo de racionalidade e razoabilidade (págs. 84-85)».
«O Tribunal da Relação não estava, pois, vinculado a revisitar passo-a-passo – qual ritual estéril, testemunha-a-testemunha, arguido-a-arguido, documento-a-documento – a fundamentação do Colectivo, explicitando credibilidade dos testemunhos e declarações, no cotejo com as restantes provas, em espacial com a versão negatória do arguido ora recorrente».
Conclui-se, assim, que não se verifica a aludida nulidade por falta de fundamentação.
3. Proibição de prova (depoimento sobre declarações e reconhecimentos)
O Recorrente considera que a decisão recorrida, ao pronunciar-se sobre a valoração do depoimento do Inspetor GG e das declarações de reconhecimentos efectuados pela EE e pelo FF não esclarece quais os meios de prova que “permitiram, por exemplo, dar como provado no facto provado no ponto 3, que o recorrente levou a EE e o FF à Agência de Viagens Abreu, no Centro Comercial ..., para fazer o check-in e lhes comprou dois telemóveis” e “qual foi o meio de prova documental ou testemunhal, que não as declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e o FF no outro processo, que permitiu ao Tribunal de 1.ª instância concluir na fundamentação da matéria de facto do modo supra descrito”. Afirma que não há e que “na fundamentação da matéria de facto, o Tribunal de primeira instância remete para a certidão do processo n.º 486/22.2..., sem indicar, em momento algum, qual o elemento de prova documental que lhe permite chegar as estas conclusões”. Considera existirem os vícios do art. 410º nº 2 al.s b) e c) do Código de Processo Penal e afirma que “ao valorar o depoimento do Inspetor GG, na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados pela EE e pelo FF, o Tribunal a quo subverteu a disciplina dos artigos 133.º, 355.º, 356.º e 357.º todos do CPP” e que que a interpretação dessas normas “no sentido em que confere valor de prova ao depoimento do OPC na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados por arguidos no âmbito de um outro processo, sem que essas mesmas pessoas sejam chamadas a depor ou a prestar declarações no âmbito do processo onde se pretende produzir a prova, enfermam de inconstitucionalidade material por violarem o artigo 32º, nº1 e 5 da CRP”, o mesmo acontecendo com a valoração das “declarações e reconhecimentos efetuados por EE e FF, enquanto arguidos, no âmbito do processo n.º 486/22.2...”.
Sobre a questão, o acórdão recorrido afirmou:
Da interpretação conjugada destes preceitos e tendo em atenção o princípio da imediação da prova e o direito ao contraditório, bem como o preceituado no artº 32º/1 e 5 do CPP. resulta sem dúvida que o Tribunal a quo, estava impedido de assentar a sua convicção, em autos de reconhecimento, bem como em declarações prestadas pela EE e FF na qualidade de arguidos, no âmbito do processo crime nº 486/22.2..., por violação dos princípios gerais sobre a prova acima mencionados, bem como por violação do direito ao contraditório que assistia aos arguidos CC e DD no julgamento a que foram sujeitos nos presentes autos – uma vez que a EE e FF não são arguidos nos presentes autos nem foram chamados aqui a prestar declarações em julgamento, na qualidade de testemunhas.
Bem como, estava o Tribunal a quo igualmente impedido, sob pena de ir valorar prova proibida e nessa medida ilegal, de aceitar como válido o depoimento do Sr Inspector GG, na parte em que o mesmo, reproduzisse o conteúdo das declarações prestadas pela EE e pelo FF e/ou reconhecimentos por eles efectuados no âmbito do processo crime nº 486/22.2...
Mas tal como foi argumentado pelo MP, também nós entendemos que não é isso que resulta da leitura do texto do Acórdão recorrido, na parte respeitante à motivação da decisão sobre a matéria de facto,
Dessa leitura, resulta claramente, que de acordo com o referido regime processual acima referido, o Sr Inspector GG, da Polícia Judiciária, foi questionado no julgamento dos presentes autos, na qualidade de testemunha que teve um papel importante na investigação dos factos objecto da acusação deduzida contra os arguidos CC e DD (e outros) no presente processo, por ter sido ele quem dirigiu toda a linha de investigação a partir dos Açores, até à procura e detenção dos arguidos no Continente.
Daí que ele tenha sido questionado sobre os primeiros passos que foram dados neste processo e o mesmo se tenha referido em audiência de julgamento, a todas as diligências em que participou (quer de apreensão da droga, quer na detenção dos arguidos, quer na forma como chegaram ao CC e DD, com a ajuda da EE e FF e com os seguimentos das viaturas automóveis habitualmente conduzidas pelo CC e DD).
Essa referência que o supra identificado Inspector da PJ fez, a todas as diligências de prova em que participou, no âmbito do processo crime nº 486/22.2... e que envolveram directamente os arguidos CC e DD, é legítima e podia ser objecto de valoração pelo Tribunal a quo, como efectivamente foi.
Referir como fez esta testemunha, que a EE e o FF no âmbito do processo crime nº 486/22.2..., identificaram as pessoas que os conduziram ao aeroporto de ... para efectuar o transporte da droga para a ilha ... nos Açores no dia 14.5.2022, e que a partir daí e na sequência de outras diligências de prova, em que directamente participou esta testemunha, na qualidade de Inspector da P.J responsável pela investigação criminal nesses autos, chegaram depois à identificação dos arguidos CC e DD, não é no nosso modo de ver, reproduzir declarações prestadas pela EE e o FF no âmbito do processo crime nº 486/22.2..., nem é fazer uso de reconhecimentos efectuados ao abrigo do artº 147º do CPP, pela EE e DD no âmbito daquele outro processo crime.
Tratou-se apenas de explicar o percurso lógico e orientação que foi seguida na investigação criminal subjacente à dedução da acusação nestes autos, para o Tribunal a quo perceber de que forma chegou o MP, aos arguidos CC e DD, e porque razão os mesmos foram investigados por estarem directamente envolvidos com o transporte de droga efectuado por EE e FF no dia 14.5.2022, conforme o descrito na acusação.
Em resumo, o Sr Inspector foi pois questionado no julgamento dos nossos autos, sobre as diligências de prova que presenciou aquando da intercepção e detenção dos arguidos EE e FF no âmbito do processo crime nº 486/22.2... e sobre diligências que efectuou naquele mesmo processo e que foram pertinentes para chegar até aos arguidos CC e DD.
Acresce que o depoimento do Sr Inspector foi prestado em audiência nestes nossos autos, na presença dos arguidos, representados por advogados, pelo que poderia ser alvo do contraditório nos termos legais.
De igual forma, o Tribunal a quo referiu expressamente que foi considerada, a certidão do processo nº 486/22.2... enquanto prova documental, para fundar a sua convicção, cfr se pode ler na seguinte passagem: “Prova dos factos nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 - O tribunal assentou a sua convicção para assim os considerar como provados desde logo, pela certidão do processo nº 486/22.2..., que foi o processo mãe de todos os demais, designadamente, mesmo deste e dos movimentos dos carros dos arguidos assim do BMW Série 5 com a matrícula ..-VX-.., a viatura Audi, modelo S3 com a matrícula ..-96-.., o Mercedes Classe E Coupé de cor branca com a matrícula ..-41-.., veículos conduzidos pelos arguidos aqui nos autos sendo que quanto ao Mercedes Classe E Coupé de cor branca, é seguido porque se estava a seguir o ainda suspeito “HH”, que tinha sido previamente identificado pela EE e FF, como aqueles (junto com o arguido CC) que os levaram até ao Centro Comercial ... no ... a fim de fazerem o seu check-in e lhes deram dois telemóveis tudo preparando para a viagem para a ilha ..., e como tal depois vem-se a perceber que o nome deste senhor é o de DD, o aqui arguido; as fotos de seguimento que lhes são tiradas pela polícia judiciaria enfim, tudo quanto acima já se mencionou na parte documental e que aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos.”
Ao contrário do alegado pelos arguidos recorrentes, não houve assim referência na motivação da decisão de facto, a quaisquer declarações prestadas pela EE e FF no processo nº 486/22.2... a fundar a convicção do Tribunal a quo, ou a referência a qualquer expresso reconhecimento por aqueles efectuado ao abrigo do artº 147º do CPP, no âmbito daquele outro processo crime, para fundar a convicção do Tribunal.
Apenas é dito no Acórdão recorrido que para prova dos factos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 a convicção do Tribunal assentou na certidão do processo nº 486/22.2..., que foi o processo mãe de todos os demais (uma vez que houve alguns arguidos do grupo inicial que é investigado, por suspeita de envolvimento nos mesmos factos ilícitos de tráfico de estupefacientes, que foram sendo julgados separadamente) e aquilo que é considerado pertinente pelo Tribunal a quo e retirado dessa certidão, enquanto prova documental, é o que ali surge documentado no que respeita à explicação/justificação, que permite perceber como surgiu a diligência de seguimento às viaturas automóveis conduzidas pelos vários arguidos, nomeadamente CC e DD.
Em conclusão, por tudo o acima exposto, o recurso dos arguidos improcede neste segmento, pois que não foi valorada prova proibida, nem foi violado qualquer preceito legal ou constitucional, nomeadamente os referidos pelos recorrentes.
Salvo o devido respeito e tendo em atenção o que supra se afirmou sobre os contornos da fundamentação da matéria de facto, evidencia-se que o Recorrente usa aquilo que considera lacunas da motivação, como se a prova se reduzisse ao que aí consta. Se pretendia discutir se existia ou não existia prova válida que permite dar como provado determinado facto, a via recursória própria era a impugnação ampla da matéria de facto, com respeito pelos requisitos do art. 412º nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
Optou por não o fazer. Por isso, não pode agora, conforme lhe interessa, afirmar que não existe prova ou que a prova é inválida, questões que, por exigirem a apreciação de elementos exteriores ao texto da decisão recorrida, não configuram qualquer vício.
Como expõe o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto:
(…) não é alegado ou demonstrado que a testemunha Inspector da Polícia Judiciária (GG) que investigou os factos tenha deposto em julgamento relatando:
O teor de declarações ou depoimentos que tenham sido prestados nestes autos ou no Processo conexo 486/22.2...;
O teor de qualquer acto formal de reconhecimento do arguido ora recorrente.
Consequentemente, também não tem qualquer sustentação a alegação de que o acórdão recorrido interpretou os art.s 133º, 355º, 356º e 357º do Código de Processo Penal “no sentido em que confere valor de prova ao depoimento do OPC na parte em que se refere ao conteúdo das declarações e reconhecimentos efetuados por arguidos no âmbito de um outro processo, sem que essas mesmas pessoas sejam chamadas a depor ou a prestar declarações no âmbito do processo onde se pretende produzir a prova”, enfermando assim de inconstitucionalidade material por violarem o artigo 32º, nº1 e 5 da CRP, na leitura do Recorrente.
Pelo contrário, como se alcança cristalinamente da fundamentação do acórdão recorrido, na parte supra transcrita para a qual se remete.
4. Excesso de pronúncia (presunções judiciais)
Considera o Recorrente que existe nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art. 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, quando o acórdão recorrido afirma que “podemos constatar que o tribunal se socorreu das presunções judiciais, para fundar a sua convicção, para além dos restantes meios de prova acima enunciados”.
Melhor contextualizando, no acórdão recorrido afirma-se:
Assim, a leitura da fundamentação do Acórdão mostra claramente que o Tribunal a quo examinou criticamente as provas que serviram para formar a sua convicção, tendo ainda explicado porque razão não lhe mereceu credibilidade a versão apresentada em juízo pela defesa dos arguidos CC e DD.
Por outro lado, é visível que para julgar provados muitos dos factos que enumerou como tal, no sentido da incriminação dos dois arguidos aqui recorrentes, para além da prova documental, testemunhal e pericial e para além das declarações do arguido AA, o Tribunal a quo socorreu-se também das presunções judiciais, quer para julgar comprovado o elemento subjectivo, quer também para a demonstração do elemento objectivo do tipo de crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual os arguidos CC e DD foram condenados.
Na verdade, no Acórdão recorrido, o Tribunal a quo, concluiu pela verificação do dolo dos arguidos (nos factos descritos sob o nº 35 a 37), através de presunções judiciais, no confronto com a demais factualidade objectiva apurada, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência.
Mas também quanto aos demais factos que integram o tipo objectivo do crime de tráfico de estupefacientes, designadamente aqueles especificadamente impugnados pelos arguidos CC e DD, descritos sob os pontos 1 a 6, podemos constatar que o Tribunal se socorreu das presunções judiciais, para fundar a sua convicção, para além dos restantes meios de prova acima enunciados.
Com efeito, neste tipo de actividade ilícita de tráfico de droga, como é aquela objecto destes autos, já assente numa estrutura com alguma organização, processando-se o comércio ilícito de estupefacientes, quer na ilha ... dos Açores, quer no continente e envolvendo viagens aéreas entre o continente e os Açores, e contratação dos necessários correios de droga para os transportes aéreos (função desempenhada pelos arguidos EE e FF, já julgados no processo crime nº 486/22), é inegável que as pessoas que lideram ou são os responsáveis pelas decisões e organização desse comércio ilícito, não aparecem visíveis no terreno.
Esses líderes, são, habitualmente pessoas pouco expostas e raramente lhes são apreendidos artigos comprometedores relacionados com esse tráfico ou produto estupefaciente, pois os mesmos se rodeiam das maiores cautelas, para não se tornarem visíveis e contratam outros, para desenvolver tarefas mais expostas e consequentemente com maior risco de responsabilização criminal, em caso de as autoridades policiais descobrirem o esquema ilícito em funcionamento.
Ora ficou apurado em julgamento, que na actividade de venda de produtos estupefacientes, designadamente haxixe e cocaína, na ilha ... (Açores) e no Continente português, decidida em data não apurada, entre os 4 arguidos julgados nestes autos e mencionados no ponto 1, mas praticada seguramente desde o ano de 2000, cabia aos arguidos CC e DD, funções de liderança, por serem eles que decidiam sobre o modus operandi, nomeadamente sobre a contratação dos correios de droga para efectuarem o transporte dos estupefacientes por via aérea de Lisboa para a ilha ... e que controlavam em última instância, os lucros proporcionados pelas vendas de produto estupefaciente, que era feita no terreno, pelos demais arguidos.
Daí a necessidade de recurso também à prova indirecta para julgar como provados alguns dos factos, respeitantes à actuação dos arguidos CC e DD, não sendo forçoso e imprescindível para concluir pela sua intervenção no transporte de droga que teve lugar no dia 14.5.2022, da forma descrita no Acórdão sob os pontos 1 a 7, a existência de imagens ou vigilâncias, que permitam claramente identificar a presença no terreno dos arguidos CC e DD, no dia 13.5.22 no ..., cfr o descrito no ponto 3, ou a sua presença nas deslocações descritas no dia 14 de Maio de 2022, para concluir nesse sentido.
Entendemos pois ser lícito ao Tribunal de 1ª instância concluir pela responsabilização destes dois arguidos, nos termos que constam do Acórdão recorrido, com base na análise conjunta de todos os meios de prova que foram produzidos e com recurso também às presunções judiciais.
Importa sublinhar, que tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4.05.1994 (disponível em www.dgsi.pt), “o dolo não é susceptível de apreensão directa por pertencer ao foro íntimo de cada um, pelo que só poderá ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência que permitam inferi-lo a partir de factos materiais comuns, entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infracção”.
Deste modo, nada temos a censurar a tal conclusão do Tribunal a quo, no que respeita aos elementos subjectivos do crime de tráfico de estupefacientes imputado aos arguidos CC e DD, tendo presente que o próprio S.T.J tem defendido como já se disse, que a prova por presunção é legítima, inclusive para demonstração dos elementos objectivos do tipo, sendo normal por exemplo o recurso a este tipo de prova, na grande maioria dos crimes contra o património, em que inexistem em regra testemunhas presenciais e a prova documental nem sempre é possível ou é completa.
Na realidade, é claro para todos, que neste tipo de ilícito objecto dos presentes autos (crime de tráfico de estupefacientes), a prova testemunhal directa é em regra escassa, sobretudo em relação àqueles que se encontram no topo da cadeia que gere e organiza a actividade do tráfico pelas razões acima enunciadas.
Assim, na ausência de confissão por parte dos agentes dos crimes, o Tribunal a quo tem de ponderar conjugadamente toda a prova restante produzida, de forma hábil, sensata e adequada, o que sem dúvida aconteceu no caso em apreço – aqui, para além das declarações do arguido AA e das declarações das testemunhas ouvidas em julgamento, documentos analisados e prova pericial, sem dúvida que as conclusões retiradas pelo Tribunal a quo assentaram também nas presunções judiciais.
Mas repetimos, há muito que o S.T.J vem defendendo que a prova por presunção constitui também um meio de prova perfeitamente legítimo.
Veja-se por todos o Ac. do S.T.J de 17.3.2004 in www.dgsi.pt onde ficou escrito “os meios de prova directos não são os únicos a poderem ser utilizados pelo julgador. Existem meios de prova indirecta que são procedimentos lógicos, para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um (ou vários) factos conhecidos ou seja as presunções.
As presunções cuja definição se encontra no artº 349º do C.Civil são também válidas em processo penal, importando, neste domínio as presunções naturais que são, não mais do que o produto das regras da experiência: o juiz valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. O Juiz utiliza a experiência de vida, da qual resulta que um facto é consequência de outro, ou seja, procede mediante presunção natural. Na passagem do facto conhecido para a aquisição do facto desconhecido, têm de intervir procedimentos lógicos e intelectuais que permitam, com fundamento, segundo as regras da experiência que determinado facto anteriormente desconhecido, é a natural consequência, ou resulta com probabilidade próxima da certeza de outro facto conhecido”.
E também o decidido no Ac. do S.T.J de 12.9.2007, proferido no âmbito do processo nº 07P4588 disponível in dgsi.pt, bem como o Ac. do S.T.J de 27.5.2010 proferido no Processo nº 86/08.0GBPRD.P1.S1 sumariado in dgsi.pt:
“I - Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça.
II - Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. artº 125º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. artº 349º do CC).
III - As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova).”
Assim o Tribunal a quo não ignorou o recurso à prova indirecta, nem a jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, expressa no Acórdão de 3.6.2009 proferido no processo nº 6053/08.3TDLSB, nem a Jurisprudência do S.T.J no sentido acima referido.
Ao contrário do sustentado pelos arguidos, o Tribunal a quo não fez assentar a sua convicção nas declarações da EE e do FF prestadas no âmbito de outro processo crime, em que aqueles foram já julgados, como acima já ficou sublinhado.
Subscrevemos o que consta do acórdão recorrido. É manifesto que não há qualquer excesso de pronúncia, considerada como o conhecimento pelo Tribunal de questão de que não lhe era lícito conhecer porque não compreendida no objecto do recurso. O Tribunal da Relação limita-se a analisar o acórdão de 1ª instância e a constatar, no âmbito do seu dever de cognição de todas as questões pertinentes para a boa decisão da causa, verificando, como detalhadamente explica, que o tribunal se socorreu de presunções judiciais. Se na discussão e fundamentação jurídica da decisão se abordaram aspectos que o Recorrente nem sequer invocou, isso não implica, de modo algum, que o Supremo Tribunal de Justiça tenha exorbitado das suas atribuições13.
Por outro lado, também não merece contestação nem pode agora ser discutida ex novo a legalidade das presunções judiciais ou prova indirecta.
Não se verifica a invocada nulidade.
5. Vícios da decisão (art. 410º nº 2 al.s b) e c) do Código de Processo Penal)
O Recorrente, nas conclusões 32 a 44 retoma a invocação de vícios que já apontava ao acórdão de 1ª instância, de manifesta contradição insanável entre os factos 1, 2, 3, 4, 6 e a respetiva fundamentação de facto exarada no acórdão proferido pela primeira instância. Insiste que o facto dado como provado no ponto 1 não é mais do que um facto genérico e abstrato, insuscetível de ser contraditado e contrariado pela restante factualidade dada como provada e pela fundamentação de facto, na medida em que o tribunal não dá como provados outros factos para além dos dias 13 e 14 de maio de 2022, assim como não faz qualquer alusão na fundamentação da matéria de facto à forma como chegou a essa convicção; considera haver contradição insanável no facto provado 3 porque a enumeração e análise dos meios de prova apresentados como fundamentos da convicção do tribunal não justificam aquela afirmação, parecendo resultar da fundamentação da matéria de facto, que o Tribunal deu como provado este facto com base nas declarações e reconhecimentos da EE e do FF efetuados no processo n.º 486/22.2..., que não podiam ter sido valoradas.
Vejamos:
Sobre todas essas questões já se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, considerando que o acórdão de 1ª instância não padecia de qualquer vício.
Nos termos do art. 400º nº 1, al.s e) e f), do Código de Processo Penal, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, excepto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância (e); nem de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos (f).
O segmento final da transcrita alínea e) resulta da redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, que para o caso não importa.
Por sua vez, dispõe o artigo 432º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”:
«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».
Finalmente, o art. 434º, sob a epígrafe “poderes de cognição”, preceitua que «o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º», resultando o segmento final da redação dada pela Lei n.º 94/2021.
Do exposto resulta que só é admissível recurso de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem:
• penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme;
• penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.
Tal significa só ser admissível recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico14.
No caso em apreço, não está em causa recurso de decisão da Relação proferida em 1ª instância, nem recurso directo de decisão proferida por tribunal do júri ou coletivo de 1ª instância, mas antes recurso de decisão confirmatória da Relação relativa a pena superior a 8 anos de prisão pelo que tal decisão é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 400º nº1 al. f) a contrario e 432º nº1 al. b) do Código de Processo Penal.
De acordo com o referido art. 434º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, porquanto o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428º do Código de Processo Penal).
Tratando-se de acórdão da Relação proferido em recurso (art. 432º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal), não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça “com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º”, isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do art. 11º da Lei 94/2021 de 21.12), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), sem embargo dos poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correcta decisão de direito15.
É jurisprudência constante e estabilizada deste Supremo Tribunal que, estando em causa acórdão da Relação proferido em recurso, não é admissível recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal e que, julgado pela Relação o recurso interposto da decisão proferida em 1ª instância, o recorrente inconformado com a decisão da 2ª instância, já só pode impugnar esta última decisão e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância16.
Ainda assim, vejamos se se justifica uma sanação oficiosa, tendo em atenção que o Recorrente apenas retoma as críticas que já havia efectuado quanto aos factos provados 1 e 3.
No caso dos autos, é manifesto que o Recorrente não concorda com a decisão recorrida e apenas pretende voltar a discutir a questão.
Mas sem razão.
Quanto ao facto 1, como bem salienta o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, a fundamentação permite essa conclusão quando se afirma, a propósito das declarações do co-arguido AA em julgamento:
«…primeiro conheceu o CC e o DD em 2017 e só mais tarde em 2020 é que conhece o BB e sempre nesta vida do tráfico e como tinha muitas dívidas trabalhava para o CC e o DD e quando a droga lhe era entregue pelo CC e pelo DD, passava também a ser dele e por isso eles queriam que ele pagasse a droga perdida e era o DD que angariava os “pássaros”; foi ele e o BB que foram ao Chinês comprar a mala e os plásticos e o que era necessário para embalar a droga».
Quanto ao facto provado 3, também não se encontra qualquer contradição (ao contrário do que considera o Recorrente) nem erro notório na apreciação da prova (ao invés do sustentado pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto).
No entender do Recorrente, existiria contradição insanável “já que a enumeração e análise dos meios de prova apresentados como fundamentos da convicção do tribunal não justificam aquela afirmação” porque, continua o Recorrente, “parece resultar da fundamentação da matéria de facto, que o Tribunal deu como provado este facto com base nas declarações e reconhecimentos da EE e do FF efetuados no processo n.º 486/22.2..., que não podiam ter sido valoradas”.
Na leitura do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto existe erro notório na apreciação da prova porquanto, “quanto ao facto 3., parece ser patente não haver, efectivamente, na fundamentação referência à sua comprovação que não seja o auto de apreensão dos telemóveis em causa”.
Salvo o devido respeito, a alegada existência de contradição baseia-se na presunção de que o Tribunal deu como provado este facto com base nas declarações e reconhecimentos da EE e do FF efetuados no processo n.º 486/22.2..., que não podiam ter sido valoradas. Ora para aquilatar se assim é, como o Recorrente afirma, necessário era que se examinassem os meios de prova constantes da motivação, ou seja, a confirmação ou infirmação dessa alegação dependeria de uma impugnação ampla da matéria de facto, com respeito pelos requisitos do art. 412º nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal. O que é certo é que, por força do art. 434º do Código de Processo Penal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça limitam-se à matéria de direito.
Mas mais do que isso, o acórdão recorrido ponderou essa alegada violação de proibição de prova e conforme transcrição efectuada no ponto 3 supra, concluiu que «ao contrário do alegado pelos arguidos recorrentes, não houve assim referência na motivação da decisão de facto, a quaisquer declarações prestadas pela EE e FF no processo nº 486/22.2... a fundar a convicção do Tribunal a quo, ou a referência a qualquer expresso reconhecimento por aqueles efectuado ao abrigo do artº 147º do CPP, no âmbito daquele outro processo crime, para fundar a convicção do Tribunal».
Também não existe qualquer erro notório na apreciação da prova quanto ao facto provado 3, porquanto quando o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto afirma que na fundamentação não há referência à comprovação desse facto para além do auto de apreensão dos telemóveis em causa, não está a definir um erro notório na apreciação da prova – porquanto só se aferiria esse erro pela apreciação da prova produzida e não pela análise do texto da decisão – mas, outrossim, uma falta ou insuficiência da fundamentação, por não ter sido mais detalhada na referência ao conteúdo das provas produzidas.
Ora, sobre a suficiência da fundamentação já se pronunciou este Tribunal supra (2. Falta de fundamentação) e tal como aí, tomando emprestadas as palavras do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto: «O Tribunal da Relação não estava, pois, vinculado a revisitar passo-a-passo – qual ritual estéril, testemunha-a-testemunha, arguido-a-arguido, documento-a-documento – a fundamentação do Colectivo, explicitando credibilidade dos testemunhos e declarações, no cotejo com as restantes provas, em espacial com a versão negatória do arguido ora recorrente».
Ademais, da fundamentação, para além do auto de apreensão, retiram-se elementos pertinentes para a fundamentação do facto 3, das referências a vigilâncias e seguimentos, do que consta da certidão do processo nº 486/22.2..., das declarações do co-arguido AA no que se refere a todo o episódio e ainda do depoimento GG, inspector da Polícia Judiciária.
Como se disse supra, a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada em que a sentença reproduza as declarações e os depoimentos das testemunhas inquiridas, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação segura do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo. Quanto muito poder-se-ia questionar a necessidade do acórdão de 1ª instância ter, em parte, efectuado a dita assentada. Porém, é despicienda a necessidade de referência expressa a cada um dos fotogramas do seguimento, aos minutos das declarações do co-arguido ou da testemunha, ainda para mais quanto a pormenores secundários, porquanto o que consta da fundamentação basta para se compreender o trajecto dos arguidos e o seu contacto com a EE e o FF.
Pelo exposto, não há qualquer vício que deva ser oficiosamente sanado e, consequentemente, por inadmissibilidade legal, o recurso tem de ser rejeitado nesta parte, nos termos do disposto nos art.s 414º nºs 2 e 3 e 420º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal.
6. Medida da pena
Nas conclusões 46 a 56 o Recorrente exprime as razões do seu dissídio em relação à medida da pena.
Sustenta que indicou várias circunstâncias apuradas, mas ignoradas, suscetíveis de traduzir um grau mais ligeiro de ilicitude ou da culpa ou de mitigar as exigências de prevenção; que apenas foram consideradas circunstâncias a desfavor do recorrente e ignoradas todas as circunstâncias, não se tendo ponderado, designadamente, que os factos dados como provados, por respeito ao recorrente, se circunscrevem aos dias 13 e 14 de maio de 2022, não se tendo provado nenhum facto anterior a essa data; que desde essa data, até ao finalizar da investigação, não se demonstraram outros factos em que os recorrentes tenham participado; que foi dado como provado, relativamente aos recorrentes, um acto isolado, uma situação única e pontual, de transporte de produto estupefaciente - 14 Kg de canábis e 1,5 Kg de cocaína; que não se provou qualquer atividade de aquisição, venda, cedência ou guarda de produto estupefaciente, neste ou em qualquer outro momento, no que ao recorrente diz respeito; que está integrado a todos os níveis, o que se revela como factor de protecção; que tem habilitações literárias ao nível do 9.º ano de escolaridade, sendo que iniciou cedo a atividade profissional, exercendo funções num talho e depois no setor da construção civil, atividade que mantem no presente; que tem 36 anos de idade, não tem processos pendentes e não há registo de que tenha prosseguido com a actividade criminosa em causa nestes autos ou qualquer outra; contando, actualmente, com o total apoio da sua família.
Alega ainda que ao se referir apenas à integração familiar e social do recorrente aquando da sua detenção, o acórdão recorrido ignora a integração familiar e social do recorrente aquando da prolação do acórdão de primeira instância e, bem assim, que o recorrente se encontra em liberdade e que ao não se ter pronunciado sobre aspectos relevantes para a determinação do quantum da pena a aplicar ao recorrente, o acórdão recorrido incorreu no vício plasmado no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP.
Diz ainda “Refere o acórdão recorrido que o risco de disseminação dessa droga, apenas se deveu à ação da Justiça e não a qualquer ação dos arguidos. Não é igualmente nenhuma inverdade que, devido à sua apreensão, não houve risco de disseminação do produto estupefaciente em causa nestes autos por um número elevado de pessoas, com a consequente e conhecida danosidade social e de saúde. Tenha sido pela ação da Justiça ou não, deve ser ponderado para efeitos da medida concreta da pena a aplicar ao recorrente.
*
Quanto à medida da pena, o acórdão de 1ª instância apresenta a seguinte fundamentação:
Definindo os contornos e ilicitude da conduta do ora Recorrente, afirma:
«Quanto ao arguido DD, também conhecido pelo “II”, tendo em conta a prova que se fez supra das várias compras e vendas de droga que no caso dos autos temos cocaína e haxixe/canabis, sendo a primeira uma droga dura e muito perniciosa para a saúde dos consumidores criando uma dependência muito grande daquela, o seu valor elevado e a grande quantidade um quilo e meio e, quanto à segunda o haxixe/canabis a grande quantidade apreendida de 14 quilos à EE e ao FF em primeiro lugar e depois a cocaína apreendida em segundo lugar ao LL de mais meio quilo de cocaína (para além de mais haxixe), a própria droga detida pelo AA mais 12 gramas (que trazia consigo pessoalmente) de cocaína e mais 200 gramas (no porta bagagens do Audi A3 ..-16-..), arranjava a droga junto com o AA e o amigo CC, sendo que ainda angariava as mulas junto com este último, enfim tudo nos conduz à imagem global de que nos encontramos perante uma actividade de tráfico grande e intensa, que se integra no artigo 21º, por referência à tabela I-B e I-C anexas ao DL 15/93 de 23.01 (Lei da Droga), ou seja, o grande tráfico, revelando uma ilicitude grave da sua conduta; a forma organizada como estabelecia as vendas e angariava os lucros e procedia à aquisição da droga em grandes quantidades, com várias pessoas a trabalhar para si enfim, tudo nos remete para o tráfico de grande dimensão».
Propriamente sobre a medida da pena fundamenta (excluem-se, na medida do possível, as referências a outros arguidos):
«O crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. p. pelo artigo 21º/1, do DL nº 15/93 de 22/1, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos.
(…)
Dispõe o artigo 40º do CP que, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Do nosso ponto de vista deve entender-se que, sempre que, e tanto quanto possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa - nulla poena sine culpa -, a função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos.
A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define em concreto o seu limite máximo, absolutamente intransponível, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir.
A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo; esse logicamente não pode ser outro que não o mínimo de pena que em concreto ainda realiza eficazmente aquela protecção.
Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal (sem todavia sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral de integração.
Ora se, por um lado a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que - dentro claro está da moldura legal - a moldura da pena aplicável ao caso concreto, há-de definir-se entre o mínimo imprescindível a estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.
A medida das penas de acordo com o que dispõe o artigo 71º do CP, determina-se em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
A determinação concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a. o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b. a intensidade do dolo ou da negligência;
c. os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d. as condições pessoais do agente e a sua condição económica;
e. a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f. a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deve ser censurada através da aplicação da pena.
A disseminação da droga é um mal que causa consequências graves à saúde dos seus consumidores e constitui ilícito grave.
Infelizmente é um produto de elevada procura, de lucro elevado e fácil e em regra de venda garantida.
Todos os quatro arguidos AA, BB, CC e DD, dedicaram-se cada um por si mas com decisão conjunta e algumas tarefas especificas para cada qual e em autoria material e na forma consumada, ao tráfico de estupefacientes, no caso todos ao tráfico previsto no artigo 21º da Lei da Droga, (…), o que de uma fácil lhes dava grandes proventos económicos e com isso adquiriram todos os carros de gama alta apreendidos nos autos, sendo este um evidente sinal exterior de riqueza.
Pelo que apenas a pena de prisão se adequa a todos e quanto em especial ao arguido AA, mesmo no crime de detenção de arma proibida, apenas a pena de prisão se mostra adequada e proporcional aos crimes cometidos.
(…)
E por fim quanto ao arguido DD, a sua posição em julgamento não foi sincera e não colaborou com o tribunal na descoberta da verdade da causa, negando a prática de todos os factos constantes da acusação contra si deduzidos; já possui vários antecedentes criminais desde condução sem carta (várias condenações); no entanto e já possui vários antecedentes criminais desde logo uma vez por crime de consumo de estupefacientes e uma detenção de arma proibida, e uma segunda vez pelo crime de tráfico do artigo 21º da Lei da Droga e novamente, um crime de detenção de arma proibida, pelo que esta será a segunda condenação pelo artigo 21º (para além do consumo), o que em termos de necessidades de prevenção geral e especial é sobremaneira grave, pelo que tudo sopesado, inclusive a grande quantidade da droga apreendida, e à moldura penal abstracta prevista na lei, o tribunal conclui ser proporcional e adequado aplicar-lhe a seguinte pena:
- pela prática do crime de tráfico do artigo 21º da Lei da Droga, a pena de oito (8) anos e dois (2) meses de prisão».
E o acórdão recorrido fundamentou desenvolvidamente (também se excluem, na medida do possível, as referências a outros arguidos):
«Vieram os arguidos CC e DD impugnar a medida das penas de prisão, aplicadas na 1ª instância, que consideram exageradas e desproporcionais, pedindo que sejam as mesmas reduzidas para penas de 5 anos de prisão suspensas na sua execução, nos termos do artº 50º/1 do C.P ou no limite lhes seja aplicada uma pena que seja inferior a 6 anos de prisão.
Sustentam esta sua pretensão na seguinte argumentação: “Os factos dados como provados, por respeito aos ora recorrentes, circunscrevem-se aos dias 13 e 14 de maio de 2022.
Não se provou nenhum facto anterior a essa data. Do mesmo modo, desde essa data, até ao finalizar da investigação, não se demonstraram outros factos em que os recorrentes tenham participado.
Foi dado como provado, relativamente aos recorrentes, um ato isolado, uma situação única e pontual, de transporte de produto estupefaciente - 14 Kg de canábis e 1,5 Kg de cocaína.
Não lhes foram apreendidos objetos conotados com o desenvolvimento de uma atividade de tráfico, nem avultadas quantias em dinheiro.
Todo o produto estupefaciente alvo de transporte foi apreendido, pelo que não houve risco de disseminação de tal substância por um número muitíssimo elevado de pessoas, com a consequente e conhecida danosidade social e de saúde.
Ambos contam com o total apoio das suas familias”
(…)
Alega também o arguido DD para ser considerado em seu abono, o seguinte: “O recorrente DD está integrado a todos os níveis, o que se revela como fator de proteção.
Integra o agregado familiar da avó materna, cuja dinâmica familiar se revela harmoniosa e isenta de conflitos. (cf. facto 95 dado como provado).
Tem habilitações literárias ao nível do 9.º ano de escolaridade, sendo que iniciou cedo a atividade profissional, exercendo funções num talho e depois no setor da construção civil, atividade que mantem no presente. (cf. factos 85 a 88 dados como provados).
Tem 36 anos de idade, não tem processos pendentes e não há registo de que tenha prosseguido com a atividade criminosa em causa nestes autos ou qualquer outra.
Tem vários antecedentes criminais, sendo que já foi condenado por tráfico de estupefacientes praticado há mais de 10 anos.”
Fundamentam assim a sua pretensão de diminuição das penas de prisão aplicadas, no entendimento de que o Tribunal a quo não ponderou correctamente os princípios subjacentes à escolha e determinação da medida da pena consagrados no artº 40º, 70º e 71º do C.P, tendo violado flagrantemente a medida da culpa, ultrapassando-a em muito no que respeita aos recorrentes.
Pelo contrário o MP, veio defender a manutenção do regime sancionatório fixado na 1ª instância (conclusão h) da sua resposta), sublinhando nomeadamente o seguinte: “No que respeita às exigências de prevenção geral do tipo de crime tráfico de drogas, as mesmas são muito elevadas, atenta a quantidade de crimes de idêntica natureza que são praticados todo o país e tendo em conta a evolução vertiginosa deste tipo de criminalidade, em que ano após ano se regista uma subida desta tipologia de crimes, em boa verdade este tipo de criminalidade está-se a tornar um autentico flagelo com consequências negativas ao nível da saúde humana, e indiretamente ao nível da tutela dos bens jurídicos que se prendem com a vida, a integridade física e psíquica dos toxicodependentes e seus agregados familiares.
Já no que tocante às necessidades de prevenção especial: - conforme resulta do acórdão recorrido o arguido DD foi condenado por inúmeros crimes incluindo tráfico e outras atividades ilicitas (…).
Os arguidos não se consciencializaram da gravidade dos atos, da ilicitude das suas condutas, e não alteraram os seus comportamentos, a necessidade de socialização é premente a dois cidadãos que repetidamente praticam crimes, e é incompatível com a aplicação de uma pena inferior à que foi aplicada nos presentes autos.
É que a determinação da medida da pena concretamente a aplicar aos arguidos, nos termos do disposto no artigo 71°, n° 1, do CP, será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, e nos termos do n° 2 do mesmo artigo, e o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do elemento do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
Considerando as exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, e que arguidos demonstram total insensibilidade e alheamento às decisões dos tribunais e desprezo pela legalidade vigente, a necessidade de socialização é premente a dois cidadãos que repetidamente praticam crimes, aos quais já lhe foram aplicadas penas de prisão, ainda que algumas suspensas na sua execução, assim e sem necessidade de mais considerações o Ministério Público entende que deve improceder a aplicação aos arguidos de pena inferior à das respetivas condenações”
Quid juris?
Os tráficos de estupefacientes são comunitariamente sentidos como actividades de largo espectro de afectação de valores sociais fundamentais, e de intensos riscos para bens jurídicos estruturantes, e cuja desconsideração perturba a própria coesão social, não só pelo enorme perigo e dano para a saúde dos consumidores de produtos estupefacientes, como por todo o cortejo de fracturas sociais que lhes anda associado, quer nas famílias, quer decorrente de infracções concomitantes, quer ainda pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes das actividades de tráfico.
A dimensão dos riscos e das consequências faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral – prevenção de integração para recomposição dos valores afectados e para a afirmação comunitária da validade das normas que, punindo as actividades de tráfico, protegem tais valores.
Os arguidos CC e DD vieram insurgir-se contra a medida das penas de prisão aplicadas na 1ª instância, que consideram excessivas e objectivamente desproporcionais e desadequadas às necessidades de repressão, prevenção e reintegração que o caso concreto suscita, pelo que será o quantum dessas penas de prisão concretas, aplicadas a estes dois arguidos, o objecto da nossa análise.
Ora nesta parte, não podemos deixar de constatar que a decisão recorrida se nos afigura estar suficientemente fundamentada, no que respeita à determinação da medida concreta das penas aplicadas.
Desde logo, não é especialmente relevante o alegado pelos recorrentes, no que toca à sua integração familiar e social aquando da sua detenção, uma vez que a mesma não foi inibidora da prática do tráfico de estupefacientes a que se dedicavam.
Acresce que foi exactamente por força da investigação criminal e detenção dos arguidos pela autoridade policial, que a droga que foi transportada de ... para a ... no dia 14.5.2022 foi apreendida, pelo que o risco de disseminação dessa droga, apenas se deveu à acção da Justiça e não a qualquer acção dos arguidos.
Atentas as funções dos arguidos recorrentes de coordenação e tomada de decisões de relevo, na actividade de tráfico de estupefacientes objecto destes autos, é compreensível que aos arguidos CC e DD, não tenham sido apreendidas elevadas quantias em dinheiro ou outros objectos conotados com esse tráfico, sendo certo porém, que lhes foram apreendidas viaturas automóveis, de alta gama e elevada cilindrada onde se faziam transportar regularmente.
É assim nosso entendimento, que no caso do crime de tráfico de estupefacientes p.p no artº 21º/1 do D.L nº 15/93 de 22.1, pelo qual foram ambos condenados, perante uma moldura legal abstracta, de 4 anos de prisão – limite mínimo – a 12 anos de prisão – limite máximo - , o Tribunal a quo fez uma correcta aplicação do direito aos factos, não merecendo a menor censura, (…) a pena de 8 anos e 2 meses de prisão que foi aplicada ao arguido DD, as quais se revelam ser justas e adequadas às necessidade punitivas do caso concreto.
E justifica-se a diferença entre as duas, pelo facto de no 1º caso o arguido CC não ter antecedentes pela prática deste tipo de crime e o arguido DD, para além de uma condenação por crime de consumo de estupefacientes, já ter sido condenado entre outros crimes, pela prática de um crime de tráfico p.p no artº 21º do D.L 15/93 de 22.1.
Acresce que nenhum dos dois arguidos, veio alegar factos idóneos, que justifiquem a peticionada diminuição das penas concretas aplicadas, para 5 anos de prisão e suspensa na sua execução, ou no limite para uma pena inferior a 6 anos de prisão.
Não obstante o alegado pelos arguidos na sua motivação de recurso, a verdade é que como se pode ler na transcrição parcial da fundamentação do Acórdão, no que respeita à escolha e graduação da medida das penas na 1ª instância, o Tribunal recorrido teve em atenção todos os factores que legalmente devem ser valorados nesta sede.
Isto é, foram devidamente ponderadas, quer as elevadas exigências de prevenção geral, assim como as também as exigências de prevenção especial que se revelam também elevadas, no caso em apreço – atentos os antecedentes criminais dos arguidos, a determinação revelada pelos agentes no seu modus operandi, e o facto de não terem assumido a prática dos factos em julgamento, não revelando assim qualquer arrependimento ou juízo de autocensura perante a sua conduta.
(…)
Acresce que o transporte de droga efectuado para a ilha ... em 14.5.2022, objecto destes autos, foi efectuado no decurso do período da suspensão da execução da pena de prisão de 4 anos e 9 meses, suspensa por igual período, com regime de prova, que havia sido aplicada ao arguido DD no processo nº 48/09.0... por sentença transitada em julgado em 11.1.2022, pela prática em 6.1.2010 de um crime de tráfico de estupefacientes p.p no artº 21º da Lei nº 15/93 de 22.1.
Foi ainda ponderado, o conjunto de factos praticados pelos agentes e o contexto em que os mesmos tiveram lugar, nomeadamente o perigo que representa para a sociedade este tipo de traficância – em especial da cocaína, conhecida pela elevada dependência que provoca nos consumidores, com deterioração da sua saúde física e psíquica e levando-os se necessário, à prática de actos anti sociais, nomeadamente de crimes contra o património, para sustentar essa sua dependência.
Deste modo, não releva a discordância dos arguidos, feita em termos genéricos, quanto ao quantum das penas de prisão que lhes foram aplicadas, por não estar essa discordância assente em qualquer substrato factual idóneo a permitir a alteração pretendida e a sua convicção não se poder substituir à convicção do julgador – sendo certo, que da factualidade apurada, não resulta haver qualquer razão para alterar as mesmas, no sentido de aplicar aos arguidos CC e DD, penas de prisão mais reduzidas, nos termos por eles peticionados, pois que tais penas assim reduzidas, não seriam adequadas ao grau da sua culpa.
Melhor dizendo, os recorrentes não apresentaram nenhum argumento factual, susceptível de demonstrar que as penas de (…) de 8 anos e 2 meses de prisão (DD), são penas que excedem a sua culpa.
E como se sabe, medir e graduar a pena concreta, constitui uma tarefa assaz complexa para o julgador e releva aqui a sua própria intuição assessorada pelas regras da experiência comum, face ao caso concreto em análise e o critério de uniformidade seguido pelo próprio Tribunal em situações idênticas, ponderadas as circunstâncias agravantes e atenuantes provadas, sem esquecer que em caso algum, a pena poderá ultrapassar a medida da culpa.
Além do mais, os critérios de determinação da medida concreta das penas, são sempre subjectivos e discutíveis, não obstante as regras definidas pelas normas do Código Penal, pelo que subscrevemos o entendimento daqueles que defendem na Jurisprudência das Relações, que os Tribunais de recurso, não devem simplesmente alterar a medida das penas, só porque os julgadores no Tribunal “ad quem” possam ter um critério diferente do julgador recorrido.
Devem modificá-las sim, mas quando existam razões objectivas para tal, máxime, a violação dos princípios orientadores da determinação da medida da pena e no caso presente, como resulta da leitura atenta do texto do Acórdão, foram inteiramente respeitadas as normas aplicáveis nesta matéria.
Na determinação da medida da pena, esta tem como primeira referência a culpa, funcionando depois num segundo momento, mas ao mesmo nível, a prevenção.
No tocante à culpa, os factos ilícitos são decisivos e devem ser valorados em função do seu efeito externo; a prevenção constitui um fim e deve relevar para a determinação da medida da pena em função da maior ou menor exigência do ponto de vista preventivo.
Conjugando o disposto nos arts 40º e 70º do Código Penal, resulta que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e o reforço da consciência jurídica comunitária na validade da norma infringida (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Em face da factualidade provada - nomeadamente nos pontos indicados em 1) a 37) no que respeita ao objecto do processo; (…) quanto à situação pessoal do arguido DD, o descrito no Acórdão sob os pontos 82) a 95), quanto aos seus antecedentes criminais o descrito sob os pontos 116) a 121) - matéria que aqui se dá por reproduzida – resulta claro da fundamentação do Acórdão, não terem sido violados quaisquer dos preceitos legais aplicáveis na matéria, quanto à escolha e determinação da medida das penas concretas de prisão, aqui em análise.
Reproduzindo aqui tudo o que se deixou escrito a respeito dessas concretas penas de prisão, onde foi considerada para além das elevadas quantidades de droga apreendidas (haxixe e cocaína), a situação pessoal e personalidade dos arguidos, a existência de antecedentes criminais e a sua postura em julgamento, afigura-se adequada e suficientemente fundamentada no Acórdão, repetimos, a aplicação (…) da pena de 8 anos e 2 meses (arguido DD), as quais em nosso entender, reflectem pois adequadamente o grau de ilicitude das suas condutas, o que se traduz na respectiva culpa, assim como dão equilibrada resposta às necessidades de prevenção geral e especial, que o caso sub Júdice suscita.
Com efeito, as penas acima referidas, aplicadas aos arguidos recorrentes (ainda assim, próximo do limite médio da respectiva moldura legal), em nosso entender, reflectem adequadamente o grau de ilicitude da conduta dos arguidos recorrentes, que é elevado, o que se traduz na sua respectiva culpa, assim como dão equilibrada resposta às elevadas necessidades de prevenção geral e especial, que o caso sub Júdice suscita, nada tendo sido trazido aos autos pelos arguidos que justifique a sua alteração.
Em resumo, podemos afirmar que a discordância dos arguidos manifestada em sede de recurso, quanto à alteração do quantum das respectivas penas de prisão aplicadas, não pode ser atendida, por não estar essa discordância assente em qualquer substrato factual e a sua convicção não se poder substituir à convicção do julgador.
As penas têm por essencial finalidade manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e vigência das normas jurídico-penais, pelo que, ainda que dentro dos limites permitidos pela culpa do agente, toda e qualquer pena não pode questionar a crença da comunidade na validade da norma violada.
A pretendida redução do quantum das penas concretas de prisão aplicadas, apenas se justificaria, caso houvessem sido apuradas circunstâncias anteriores, novas ou posteriores aos factos, suscetíveis de traduzir um grau mais ligeiro de ilicitude (dentro da ilicitude típica do crime de tráfico do artº 21º da Lei da droga) ou da culpa, ou de mitigar relevantemente as exigências de prevenção e a necessidade da pena.
Mas tal não sucede, no caso em apreço, pelo que já ficou dito.
E afigura-se-nos que se as penas de prisão concretamente aplicadas aos dois arguidos na 1ª instância (…) de 8 anos e 2 meses de prisão (DD), fossem agora situadas no limiar abaixo, por decisão deste Tribunal de recurso, seriam irremediavelmente postas em causa as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, impondo-se por isso serem aquelas mantidas.
Com efeito, reduzir o quantum destas penas, abalaria o sentimento de confiança da comunidade nas normas que tutelam o bem jurídico protegido pelas normas que punem este tipo de tráfico aqui em apreço (a saúde pública), veiculando um perigoso sinal de complacência ético-jurídica para com estes ilícitos criminais com tal gravidade e alarme social, em flagrante oposição às fortíssimas necessidades de prevenção geral suscitadas por este tipo de ilícitos.
Consequentemente, é de concluir que o Tribunal a quo aplicou adequadamente os critérios legais de determinação da medida da pena constantes do artº 71º, nºs 1, e 2, do C.P. e ponderou judiciosamente as finalidades das penas consagradas no artº 40º nº 1 do mesmo código, não violando qualquer comando legal.
Em conclusão, as penas concretas de prisão deverão ser mantidas, por não deixarem transparecer inobservância dos critérios contemplados no artº 71º, nºs 1, e 2, do C.P. nem desconsideração pelas finalidades das penas consagradas no artº 40º, nº 1 do mesmo código.
Tudo ponderado, tal como o Tribunal a quo também nós entendemos que a aplicação aos arguidos de uma pena de (…) 8 anos e 2 meses de prisão (DD), realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição no caso concreto.
E sendo assim, fica prejudicada a requerida suspensão da execução das penas de prisão, nos termos do artº 50º do C.P, por manifesta falta de um dos pressupostos formais deste regime – o quantum da pena de prisão aplicada, não pode ser superior a 5 anos, para o arguido poder beneficiar deste regime.
O recurso dos arguidos improcede neste segmento».
Vejamos.
É inovatória a invocação da nulidade por omissão de pronúncia (art. 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal) relativamente ao acórdão de 1ª instância, por não se ter pronunciado sobre aspectos relevantes para a determinação do quantum da pena, designadamente na parte atinente às suas condições pessoais, familiares e sociais. Por isso, nessa parte tem de ser rejeitado o recurso, por força da jurisprudência já salientada, no sentido de que o Recorrente já só pode impugnar esta última decisão e não (re)introduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão da 1.ª instância e, além disso, porque também não é admissível que o recorrente submeta inovatoriamente à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça a questão que optou por não submeter à apreciação do tribunal da relação (art. 410º nº 1 do Código de Processo Penal)17.
É desnecessário apontar a referência efectuada no acórdão recorrido “à sua integração familiar e social aquando da sua detenção” que obviamente deve ser considerada como atinente ao complexo de factos provados relativos a essa situação, como enquadrando o “vício plasmado no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP” (sic). Quanto muito, trata-se de uma imprecisão irrelevante e compreensível no contexto e, não se vislumbra como pode configurar um qualquer vício ou nulidade.
De qualquer forma, decorre da análise efectuada pelo acórdão recorrido e da medida da pena concreta fixada que toda essa factualidade “quanto à situação pessoal do arguido DD, o descrito no Acórdão sob os pontos 82) a 95”, tendo sido considerada provada, foi devidamente valorada.
Por consequência, também não se pode afirmar, ao contrário do invocado, que tenham sido ignorados todos os aspectos favoráveis ao Recorrente e que só tenham sido consideradas circunstâncias a desfavor.
O acórdão recorrido deixa claro (transcrição efectuada) que: «considerada para além das elevadas quantidades de droga apreendidas (haxixe e cocaína), a situação pessoal e personalidade dos arguidos, a existência de antecedentes criminais e a sua postura em julgamento, afigura-se adequada e suficientemente fundamentada no Acórdão, repetimos, a aplicação (…) da pena de 8 anos e 2 meses (arguido DD), as quais em nosso entender, reflectem pois adequadamente o grau de ilicitude das suas condutas, o que se traduz na respectiva culpa, assim como dão equilibrada resposta às necessidades de prevenção geral e especial, que o caso sub Júdice suscita» (sublinhado do relator).
O Recorrente acentua ainda um lapso manifesto do acórdão recorrido, quando diz que «… o risco de disseminação dessa droga, apenas se deveu à acção da Justiça e não a qualquer acção dos arguidos» - quando era óbvio que o sentido da frase, perfeitamente perceptível no contexto, era «… a eliminação do risco de disseminação dessa droga, apenas se deveu à acção da Justiça e não a qualquer acção dos arguidos» - para salientar que deve ser ponderado, para efeitos da medida concreta da pena a aplicar, que a droga foi apreendida e por isso não foi disseminada. Estando a apreensão provada, essa circunstância foi naturalmente ponderada, embora não se encontre aí qualquer valor atenuante para o Recorrente. Por outro lado, o crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstracto, pelo que a danosidade para a saúde decorrente da disseminação existe independentemente da apreensão e decorre já da actividade desenvolvida pelo Recorrente, em co-autoria com os demais arguidos.
Não é esta a forma de apontar lapsos irrelevantes.
Nos termos supra transcritos, o acórdão recorrido atendeu à culpa como limite superior da pena e às exigências de prevenção, ponderando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, respeitando o disposto nos art.s 40º e 71º do Código Penal, ao contrário do alegado.
O recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas, de acordo com Figueiredo Dias18 não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”19 reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar20.
Conclui-se, assim, pelo respeito dos princípios gerais que presidem à determinação da medida da pena e pelas operações de determinação impostas por lei, com a indicação e consideração dos factores de medida da pena, tendo sido sopesadas todas as circunstâncias atendíveis.
Resta, então apreciar se a pena definida pelo tribunal a quo é excessiva ou se, ao invés, se mostra justa, adequada e proporcional, sendo certo que não sendo caso de manifesta desproporcionalidade21, não se justifica qualquer compressão.
A pena foi fixada em oito anos e dois meses de prisão, pouco acima do 1/2 da moldura penal, sendo particularmente impressivo que a conduta do arguido ocorreu como um dos coordenadores num quadro de tráfico por via aérea de uma quantidade muito significativa de produto estupefaciente (14,26 quilos de haxixe/canabis e 1, 498 quilos de cocaína), num momento em que o Recorrente se encontrava em cumprimento de pena de prisão suspensa na sua execução pela prática de crime da mesma natureza. A pena está em sintonia com a jurisprudência deste Supremo Tribunal para casos semelhantes22.
Está assim plenamente fundamentada, mostrando-se justa – proporcional, adequada e necessária – e conforme aos critérios plasmados no art. 71º do Código Penal, não merecendo qualquer censura, a condenação na pena fixada.
Improcede o recurso também nesta parte.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em:
1. Rejeitar o recurso, no que respeita à nulidade do acórdão de 1ª instância e vícios do art. 410º do Código de Processo Penal [pontos II 5 e 6 (1º parágrafo)].
2. Na parte restante, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido DD e, consequentemente em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 7 UC.
Lisboa, 14-05-2025
Jorge Raposo (relator)
Maria Margarida Almeida
Carlos Campos Lobo
_____________________________________________
1. Cf. final do primeiro parágrafo de fls. 25 da decisão da primeira instância.
2. Cf. último parágrafo de fls. 27 da decisão da primeira instância.
3. Cf. décimo e décimo segundo parágrafos de fls. 32 da decisão da primeira instância.
4. Este vício consiste na contradição insanável – que não possa ser ultrapassada ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação, que ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, quando se verifica contradição insanável entre factos provados e não provados e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão. (Cf. Ac. Proferido pelo STJ no processo 1411/07-5 de 31/1/2008 – nosso sublinhado e negrito)
5. Cf. dois últimos parágrafos de fls. 33 da decisão recorrida.
6. 12 Cf. Acórdão do TRC, proferido em 03.07.2013, no âmbito do processo n.º 1568/08.9TAVIS.C2, disponível em www.dgsi.pt
7. Neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.1.2002 (Armando Leandro), Proc. 3264/01-3.ª, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª ed., Quid Juris, 2020, p. 1067-1068, de 23.3.2006 (Santos Carvalho), Proc. 06547, em www.dgsi.pt, e de 24.5.2018 (Carlos Almeida), Proc. 632/13.7PARGR.L2.S1, apud Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, cit., 3.ª ed., p. 1384.
8. Poderá também consistir o vício de erro notório na apreciação da prova se o mesmo resultar de forma evidente do texto da decisão recorrida.
9. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.3.2008, no proc. 08P694.
10. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2024, no proc. 127/16.7GCPTM.E3.S1.
11. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.3.2008, no proc. 07P4833; Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º3, pg. 21 e seg.s).
12. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.3.2005, no proc. 05P662.
13. Como já bem se observava no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.2.2003, no proc. 03P378.
14. Entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11. 3.2021, no proc. 809/19.1T9VFX.E1.S1; de 2.12.2021, no proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1; de 12.1.2022, no proc. 89/14.5T9LOU.P1.S1; de 20.10.2022, no proc. 1991/18.0GLSNT.L1.S1; de 30.11.2022, no proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1.
15. Entre outros, os acórdãos de 1.3.2023, no proc. 589/15.0JABRG.G2.S1, e de 8.11.2023, no proc. 808/21.3PCOER.L1.S1.
16. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2024, no proc. 127/16.7GCPTM.E3.S1, que seguimos de perto.
17. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.9.2022, no proc. 797/14.0TAPTM.E2.S1, jurisprudência e doutrina aí citados; no mesmo sentido, ainda, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.5.2004, no proc. 1086/04 – 3ª, in sumários do STJ (Boletim).
18. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, §255, pg. 197.
19. Neste sentido também os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2008 e 11.7.2024, respectivamente nos proc.s 08P1964 e 491/21.6PDFLSB.L1.S1.
20. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.3.2004, CJ 2004, 1, pg. 220 e de 20.2.2008, proc. 07P4639.
21. “A restrição do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da CRP), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos, – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na justa medida, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.12.2020, proc. 565/19.3PBTMR.E1.S1)
22. Em situação com contornos semelhantes, embora estivesse em causa quantidade francamente menor de estupefacientes, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.10.2013, proc. 156/07.1JAPDL.L2.S1 considerou “inteiramente adequada a pena de 7 anos e 6 meses de prisão”.