I. A omissão é, ao lado da ação, uma das formas de realização típica do crime (artigo 10.º, n.º 1, do CP): o tipo de crime tanto se realiza através da prática da ação proibida como através da omissão de um comportamento juridicamente exigido para afastar um resultado típico.
II. A tipicidade legal resulta, nestes casos, de uma cláusula geral de equiparação da omissão à ação se esta compreender «um certo resultado» (n.º 1 do art.º 10.º), como sucede no caso do homicídio (artigos 131.º e 132.º do CP), o que só sucede se e quando sobre o agente recaia um dever jurídico de evitar ativa e positivamente a verificação do resultado típico, isto é, um dever de garante (n.º 2 do artigo 10.º).
III. São elementos do tipo incriminador objetivo do crime de omissão imprópria: a «situação típica» e a ausência da ação devida ou esperada; a possibilidade fática de ação; a imputação objetiva do resultado, e a posição de garante.
IV. O critério normativo de adequação estabelecido no artigo 10.º, n.º 1, do CP, fundado num juízo de prognose póstuma (ex ante) segundo as regras de experiência comum, identifica os elementos essenciais de imputação do resultado à conduta omissiva do agente vinculado pelo dever de evitar esse resultado (a morte da vítima, no homicídio).
V. Verificando-se que, nas circunstâncias concretas de tempo e lugar da pessoa adstrita ao dever de garante e tendo em conta os seus conhecimentos, era previsível, segundo as regras da experiência, que da situação em desenvolvimento adviria o resultado, dever-se-á concluir que essa pessoa se deparou com uma situação de risco para o resultado verificado, que a obrigava a agir no sentido de diminuir ou evitar esse risco, e que, não agindo, como devia, deve ser objetivamente imputado tal resultado à sua conduta (omissiva), a não ser que, ex post, após a verificação do resultado típico (a morte da vítima, no caso de homicídio), se deva concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que a diminuição do risco pela conduta devida não o evitaria, o que implica a comprovação de que tal conduta seria ineficaz.
VI. Sendo mãe da vítima, que com ela vivia, e tendo a vítima três anos de idade, encontrava-se a arguida, pela relação de coabitação e proximidade e pelos especiais deveres de proteção e assistência a que estava obrigada, numa posição de garante, fonte do dever jurídico de garante para com a menor, fruto do vínculo jurídico familiar entre pais e filhos reconhecido nos artigos 1874º, n.º 1, 1877.º, 1878.º do Código Civil.
VII. Sendo a arguida conhecedora dos riscos que a sua filha corria, estando e continuando entregue aos cuidados dos coarguidos, impunha-se que agisse no sentido de garantir a integridade física, a saúde e a segurança desta, assistindo-a e prestando-lhe e diligenciando para que lhe fossem prestados todos os cuidados requeridos pela dependência própria da sua idade e pela gravidade do seu estado de saúde e do risco de vida em que se encontrava.
VIII. Não subsiste dúvida de que, perante os factos provados, se deve concluir que a omissão da arguida recorrente constituiu uma omissão da ação devida e adequada a evitar a morte da vítima. Não se identificando qualquer impossibilidade fática de intervir, tal atuação integra a sua participação em toda a atuação delituosa dos coarguidos que levou à morte da vítima, não obstante a possibilidade de poder intervir no processo de execução do crime, impedindo ou interrompendo o processo que conduziu à verificação do resultado morte.
IX. O artigo 132.º do Código Penal contém um tipo qualificado do crime de homicídio previsto no artigo 131.º por uma cláusula geral que fixa um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa, agravada pelas circunstâncias do caso, combinando-se essa cláusula geral com a enumeração, no n.º 2, de um conjunto de exemplos-padrão, indiciadores de um grau especialmente elevado de culpa que, não sendo de funcionamento automático, determinarão a concretização da especial censurabilidade ou perversidade relativas ao facto e ao agente.
X. A concretização da circunstância da al. c) do n.º 2 do artigo 132.º do CP resulta da idade da vítima, que tinha apenas três anos de idade, a qual, por esse motivo, se encontrava na total dependência de terceiros para sobreviver das intermináveis, violentas e cruéis agressões sofridas (no interior da habitação das pessoas a quem foi entregue pela sua própria mãe). Perante a evidência dos graves ferimentos sofridos pela vítima, impossibilitada de, por si, obter auxílio, o comportamento omissivo da mãe justifica um juízo de censura agravado, não só pelas caraterísticas pessoais particularmente desvaliosas projetadas na omissão de agir, mas também na especial censurabilidade dessa omissão.
XI. A concretização da circunstância da al. h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP afirma-se num quadro de comparticipação dos arguidos na realização do resultado. Numa valoração abrangente das condutas dos vários arguidos, verifica-se que o resultado morte ocorreu em razão dos ferimentos causados e das condutas, por ação e omissão, dos coarguidos: ao omitir a conduta salvadora que lhe era exigida, de forma prolongada e repetida no tempo, agindo de livre vontade e com consciente aceitação do resultado, que também quis, o comportamento da recorrente traduz uma adesão à ação dos demais arguidos, podendo concluir-se que ocorre a relação de comparticipação de, pelo menos, três pessoas, o que permite afirmar que a arguida, com a sua omissão, «agiu conjuntamente juntamente com outros», na aceção do artigo 26.º (autoria) do CP.
XII. A qualificação do crime de homicídio pela al. a) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, decorrente, como é geralmente reconhecido, do facto de o agente vencer os «motivos inibitórios» ou as «contra motivações éticas» inerentes a essa relação familiar, resulta da circunstância de a recorrente ser mãe da vítima. Embora o elemento formal da circunstância de agravação da culpa e o elemento formal do elemento do tipo de ilícito de homicídio comissivo por omissão – isto é, a relação de filiação – sejam coincidentes, não se verifica uma violação do princípio da proibição da dupla valoração.
XIII. No caso, a violação do dever de garante (elemento do tipo de ilícito omissivo), que compreende, mas não se reduz ao elemento formal da relação de filiação, assumiu uma gravidade merecedora de especial censura (como elemento do tipo de culpa), pela energia criminosa que levou a vencer as contramotivações impostas por essa relação de filiação.
XIV. Inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, constituiu-se a arguida autora de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. a), c) e h), do Código Penal.
XV. A extrema gravidade da atuação da arguida, a levar em conta na determinação da pena, revela-se com particular nitidez na situação, prolongada no tempo, que conduziu à morte, e na qual se define um quadro de comparticipação criminosa: a morte da vítima apresenta-se como o resultado das condutas dos vários arguidos, por ação ou omissão, que, voluntariamente e de forma convergente, produziram esse resultado.
XVI. A sequência dos factos mostra que a omissão da arguida ocorreu num contexto em que esta também podia «dominar o facto», intervindo ativamente no processo que conduziu à morte, não voltando a entregar a sua filha, sabedora dos riscos que ela corria, e não retirando ou providenciando para que a sua filha fosse retirada da companhia das pessoas que causaram ou permitiram que fosse causadas as graves lesões de que resultou a morte e do local em que essas lesões ocorreram, circunstância que milita severamente contra a arguida na omissão do dever de agir perante a situação criada, para que contribuiu, revelando a essencialidade do seu contributo para o resultado verificado.
XVII. Face à extrema gravidade dos factos provados, tendo em conta as características desvaliosas da personalidade da arguida neles projetada, a gravidade das circunstâncias relevando por via da culpa e da prevenção, não se encontra fundamento que justificadamente permita constituir uma base de discordância quanto à pena aplicada, de 25 anos de prisão, no respeito pelos critérios de adequação ou proporcionalidade que presidem à sua determinação.
I. Relatório
1. Por acórdão de 2 de agosto de 2023, o tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, condenou a arguida AA, com a identificação dos autos, «em comissão por omissão, pela prática no período compreendido entre os dias 14 de junho de 2022 e 20 de junho de 2022, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 10.º n.º 1 e 2, 131.º n.º 1, 132.º n.º 2 alínea a), c) e h) todos do Código Penal, na pena de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.»
2. Pelo mesmo acórdão foram também condenadas os arguidos BB, CC e DD, pela prática, em coautoria material e em comissão por omissão, no período compreendido entre 14 de junho de 2022 e 20 de junho de 2022, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c), d), e) e h), nas penas de 25 anos de prisão, cada um deles.
Foram ainda os arguidos demandados condenados a pagar solidariamente ao assistente demandante EE uma indemnização a título de danos não patrimoniais pelo sofrimento pela perda da filha, na quantia de 50.000,00 euros.
3. Discordando, recorreram as arguidas AA, DD e BB para o Tribunal da Relação de Évora, o qual, por acórdão de 23.01.2024, negou provimento aos recursos, confirmando o acórdão recorrido.
4. Não se conformando com o decidido no acórdão da Relação de Évora, vem agora a arguida AA interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando motivação de que extrai as seguintes conclusões (transcrição):
«a) O presente recurso é interposto do douto acórdão que negou provimento ao recurso interposto pela ora recorrente, confirmando o acórdão que a, em comissão por omissão, pela prática no período compreendido entre os dias 14 de junho de 2022 e 20 de junho de 2022, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 23.º 131.º n.º 1 e 132.º n.º 2 alínea a) c) e h) do Código Penal, na pena de 25 (vinte cinco anos) anos de prisão;
b) Em 20 de junho de 2022, quando a recorrente tem finalmente acesso à sua filha (que lhe era recusado), desconhecia em absoluto que a mesma havia sido sujeita, entre as 48h e as 2 horas anteriores, às mais variadas, brutais e inqualificáveis sevícias e que o seu destino já se encontrava traçado, porque, sabemo-lo agora, nada podia salvar a vida da infeliz criança;
c) Mas entendeu o acórdão recorrido que a conduta omissiva, causal da morte da menor FF, iniciou-se no dia 19 de junho, quando a recorrente “teve conhecimento da convulsão sofrida pela filha e, ainda assim, prosseguiu a sua rotina normal (…), pelo que (…) “não interrompeu, de forma decisiva, o processo causal (…)”;
d) Salvo o devido respeito, o tribunal a quo não relaciona, não equaciona, não releva e não tem em conta aquilo que constitui o elemento probatório essencial nestes autos: O relatório pericial (fls 513 a 525) e as declarações do respetivo perito (pág 39 do Acórdão proferido em 1ª Instância). De acordo com as declarações do perito - que constam da motivação da matéria dada como provada -, as selváticas agressões perpetradas contra FF pelos arguidos BB, CC e DD ocorreram entre 48h a 2h antes do dia 20 de junho;
e) Ou seja, as agressões que vieram a provocar o destino final da infeliz criança podem ter sido perpetradas na noite de 19 para 20 de junho, tendo sido por isso mesmo que nessa noite foram registadas 7 chamadas telefónicas efetuadas por um número cujo cartão foi apreendido na casa dos arguidos GG para o telemóvel da recorrente;
f) Muito embora o acórdão proferido em primeira instância não o refira, o tribunal a quo conclui que a recorrente agiu com dolo eventual. Porém, também considerou que os arguidos BB, CC e DD agiram com dolo direto;
g) Assim sendo, o cometimento do crime por omissão, e com dolo eventual, aponta para uma forma circunscrita de culpa, convocando duplamente a atenuação especial da pena prevista no art. 73.º, do Cód. Penal, pelo que, salvo o devido respeito, não fez o acórdão recorrido a melhor interpretação dos artigos 10.º, 131.º e 132.º, todos do CP, devendo ser alterado por outro que, quanto à recorrente, se estabeleça uma forma circunscrita de culpa, convocando duplamente a atenuação especial da pena prevista no art. 73.º do Cód. Penal.»
5. Respondeu a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação, dizendo, em defesa da improcedência do recurso, que (transcrição parcial):
«A) No que respeita à discordância / impugnação de parte da matéria de facto:
Embora de forma muito mais restrita do que havia antes feito, mantém a recorrente o apelo a parte do argumentário com base no qual impugna matéria de facto já assente, como seja, que:
• É em 20 de junho de 2022 que “(…) tem finalmente acesso à sua filha (que lhe era recusado), desconhecia em absoluto que a mesma havia sido sujeita, entre as 48h e as 2 horas anteriores, às mais variadas, brutais e inqualificáveis sevícias e que o seu destino já se encontrava traçado, porque, sabemo-lo agora, nada podia salvar a vida da infeliz criança (…)”, colocando em causa a matéria de facto assente, na parte relativa à conduta omissiva causal da morte da menor FF como iniciada a 19 de junho;
• Defende que não foi tido em conta o que entende ser “(…) elemento probatório essencial nestes autos: O relatório pericial (fls 513 a 525) e as declarações do respetivo perito.(…)”, das quais afirma resultar “(…) as selváticas agressões perpetradas contra FF pelos arguidos BB, CC e DD ocorreram entre 48h a 2h antes do dia 20 de junho (…)”;
• Afirma que as agressões que vieram a provocar a morte da criança podem ter ocorrido na noite de 19 para 20 de junho.
Sucede, no entanto, que tal matéria de facto será de considerar nesta sede insindicável, porquanto, por um lado, os poderes de conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça encontram-se delimitados pela matéria de direito e, por outro, embora seja de ressalvar que a regra que vem de ser enunciada comporta a necessidade de conhecimento oficioso de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2 do CPP, na situação em análise, da leitura que fazemos da decisão ora em crise, afigura-se-nos não resultar a verificação de qualquer das situações a que alude a disciplina do artigo 410.º a que vimos de aludir.
Assim, e sem necessidade de mais, deverá ser desconsiderado este segmento da argumentação da recorrente.
B) Medida concreta da pena
Se bem compreendemos a motivação da recorrente, na parte em que refere que “(…) o cometimento do crime por omissão, e com dolo eventual, aponta para uma forma circunscrita de culpa, convocando duplamente a atenuação especial da pena prevista no art. 73.º, do Cód. Penal (…)”, aceitando já a recorrente que a decisão condenatória que procura colocar em crise dá como assente que agiu com dolo eventual, procura colocar em crise a decisão recorrida por entender que a determinação concreta da pena deveria ter sido sujeita a um processo conducente a “dupla(mente) atenuação especial da pena prevista no art. 73.º, do Cód. Penal.”
Da decisão recorrida resulta, inquestionavelmente, que o tema ora recolocado à consideração do Supremo Tribunal de Justiça, foi sobremaneira abordado e decidido. Sem necessidade de mais do que fazer apelo ao essencial, atente-se ao seguinte passo da decisão do Tribunal da Relação de Évora, dos termos do qual resulta, por síntese, o seguinte:
“(…)
Por relação a este último das possibilidades de atenuação especial o tribunal negou-a com os seguintes argumentos: “Aqui chegados importa atentar no que dispõe o n.º 3 do artigo 10.º do Código Penal que estabelece que nos casos em que deva ser punível a conduta de um arguido em comissão por omissão, a pena pode ser especialmente atenuada, o que significa que no caso do homicídio qualificado a moldura passaria de 12 anos a 25 anos de prisão para 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão. Se pode ser, por maioria de razão poderá não ser, devendo de acordo com o caso concreto ser decidida a eventual atenuação especial da pena de acordo com o grau efetivo de culpa do agente. Nos presentes autos, atento o grau de culpa muito elevado de todos os arguidos, em especial da arguida AA a partir de 19 de junho de 2022 à tarde, com contornos de alheamento confrangedores, eventual atenuação especial não seria socialmente tolerável e frustraria por completo os fins das penas.”
Vejamos. (…)
Numa primeira abordagem temos a apontar à recorrente que a ali prevista atenuação especial é uma mera possibilidade de que julgador se pode servir, como decorre do termo verbal “pode”.
O estabelecimento dessa prerrogativa ao julgador radica na necessidade de salvaguardar àqueles casos extremos que, pela sua natureza e modo de cometimento, impõem o desaparecimento da diferença de gravidade entre a comissão por acção e a comissão por omissão. Tal é o caso com que somos confrontados como bem defende o Colectivo quando afirma, repetimos, “o grau de culpa muito elevado de todos os arguidos, em especial da arguida AA a partir de 19 de junho de 2022 à tarde, com contornos de alheamento confrangedores, eventual atenuação especial não seria socialmente tolerável e frustraria por completo os fins das penas.”, postura esta que merece a nossa integral adesão.
A segunda possibilidade de atenuação especial invocada pela recorrente mostra-se apontada ao tipo e grau de dolo que lhe foi atribuído – dolo eventual -, mostrando-se aqui espúria a apreciação dessa possibilidade sobre a perspectiva da negligência pois já se mostra afastada a integração desse elemento subjectivo.
O dolo eventual mostra-se previsto no art.º 14.º n.º 3 CP - “Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.” - não se prevendo por via directa dessa qualificação qualquer atenuação especial, embora não deixe de relevar, por contraposição ao dolo directo ou necessário, na fixação da pena isto numa abrangente integração dentro do conceito de culpa do arguido.
A atenuação especial da pena encontra-se genericamente prevista no art.º 72.º CP. (…)
Vejamos.
Quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para certo tipo de crime tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até casos de maior gravidade.
Porém, para ter em conta situações pessoais do agente em que a prevenção geral não imponha e a prevenção especial não exija uma pena a encontrar nos limites da moldura penal do tipo, e em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do art.º 72° do Cód. Penal.
Para resolver os casos em que «a capacidade de previsão do legislador é necessariamente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade de situações reais da vida», «mandamentos irrenunciáveis de justiça, adequação (ou necessidade) da punição» impõem que o sistema disponha de uma válvula de segurança que permita responder a casos especiais, em que concorram circunstâncias que «diminuam de uma forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada relativamente ao complexo normal» de casos que o legislador terá previsto e para os quais fixou os limites da moldura respectiva (cfr. Jorge de Figueiredo Dias "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", 1990, pág. 302)
A esta ideia político-criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no art.º 72.º, n.º 1 do Cód. Penal.
O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena - art.º 72.º, n.º 1.
O n.º 2 enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da pena, ou seja, também diminuição das exigências de prevenção.
Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Mas acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída em relação aos casos para os quais está prevista a fórmula de punição, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, idem, pág. 306; e v.g., Acs. Deste Supremo Tribunal, de 18/Out./2001, Proc. 2137/01, e de 30/Out./03, in CJ/STJ, Ano XI, Tomo III, pág. 208, e de 03/Nov./04, In CJ/STJ, Ano XII, Tomo III, pág. 217).
Ora este quadro de acentuada diminuição da culpa não se mostra, mesmo num patamar mínimo, percepcionável no quadro fáctico estabelecido na decisão recorrida, isto seja por relação ao momento da prática dos factos, seja por relação a momentos anteriores ou posteriores a esse último, seja uma qualquer diminuição, muito menos acentuada, da ilicitude ou da necessidade da pena.
Para completar a abordagem relativa à medida da pena, não deixamos de citar a decisão recorrida quando fixou a pena máxima de privação de liberdade também à recorrente:
“(…) Nos presentes autos as necessidades de prevenção geral são altíssimas. Não se antevê como pudessem ser maiores. A morte de uma criança gera sempre muita comoção o que justificará o forte mediatismo à volta deste processo. Acontece que esta criança não foi só morta, mas torturada de uma forma que as palavras não conseguem cabalmente descrever.
É fundamental aplicar aos arguidos uma pena em que a comunidade se reveja, reforçando a confiança nas instituições e o inerente sentimento de segurança, determinante para uma pacificação social.
As necessidades de prevenção especial são igualmente muito elevadas.
Os arguidos não mostraram arrependimento, nem qualquer empatia para com a vítima, cuja morte aparentam não valorizar.
(…)
O grau de ilicitude foi muito elevado quanto a todos os arguidos. A vítima era uma criança de 3 anos, e os arguidos BB, CC e DD por ação quanto a cada um e por omissão no que quanto aos outros não lograram impedir, torturaram FF com a mais grave das consequências que se possa imaginar traduzida na morte após longo e atroz sofrimento. O grau de violação dos deveres a que se vincularam ao aceitarem acolher uma criança indefesa em casa foi máximo e o resultado foi um ser humano indefeso que perdeu o direito à infância de uma forma medieval.
A intensidade nas ofensas que consubstanciaram a tortura antes da morte terá sido máxima para quem a praticou. O dolo eventual de homicídio dentro que se encontra abrangido pelo dolo eventual não poderia ser maior.
Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os motivos que o determinaram permanecerão uma incógnita, na certeza, porém, de que mesmo ascendendo ao plano da abstração e da hipótese, não se antevê nenhum sentimento ou motivo que pudesse abonar de alguma forma os arguidos.
As condições pessoais dos arguidos, todos sem exceção, são francamente negativas. Constatando a impossibilidade de utilizar a factualidade constante dos relatórios sociais junto aos autos que pudesse de alguma forma abonar os arguidos, desagravando as penas, optou-se por não levar aos factos provados tal matéria, para preservar a intimidade e privacidade dos arguidos, que poderia assim ser desnecessariamente devassada. Probabilidade com grau especialmente elevado nestes autos atenta a sua repercussão mediática.
No que concerne à conduta anterior, os arguidos a condenar não têm antecedentes criminais, mas considerando a tipologia e contornos do crime em nada releva este parâmetro.
A conduta posterior é negativa. Enquanto estiveram em liberdade nada fizeram para evitar o resultado e, de lá para cá não foi demonstrado qualquer arrependimento ou interiorização do desvalor da conduta. Pelo contrário, os arguidos continuaram a agir indiferentes os efeitos da sua conduta para o termo da vida de FF e sempre focados naquilo que percecionaram, mal, ser o melhor para sua esfera jurídica, evidenciando uma personalidade autocentrada com total falta de empatia sobre a vítima e o sofrimento a que a sujeitaram.
Em suma, nada de relevante que se possa apontar abona os arguidos. Mais grave, nenhum elemento, com exceção dos antecedentes criminais, é inócuo, sendo tudo profundamente negativo.
Conclui-se que deverão ser ponderadas penas dentro dos limites máximos da moldura para todos os arguidos. E aqui chegados, olhando uma vez mais para as fotografias do corpo de FF, questionou-se este Coletivo sem encontrar resposta, de quantas mais pancadas, cortes, arranhões, beliscões e picadas teria de suportar FF? De quantas mais perversidades teriam de utilizar os arguidos GG e de quanto mais alheamento teria AA de evidenciar perante o sofrimento da filha, para estarmos perante o exemplo prático, paradigmático, do que é um crime de homicídio com especial perversidade e censurabilidade com dignidade para ser punido com a pena mais alta do ordenamento jurídico português?
A moldura está prevista para a prática de um crime no singular, sendo fundamental em sede de prevenção geral, transmitir à sociedade qual o limite, qual a linha vermelha que não poderá ser ultrapassada, sob pena de ser aplicada a pena mais gravosa. Compulsando artigos 8 a 12 e 25, cremos que com menos metade das lesões descritas na transcrição do relatório de autópsia teríamos ultrapassado essa linha vermelha.
Apenas a culpa de cada um dos arguidos poderia limitar esta pena que se crê adequada, mas como por várias já se referiu, a culpa de cada um dos arguidos é muito elevada, não ficando comprometida com a aplicação da única pena que se afigura servir os fins das penas e as necessidades de prevenção geral e especial que neste caso se fazem sentir.”
Termina o Tribunal da Relação referindo que a citação merece a sua “incondicional adesão”, com fundamento no que afasta a pretensão da recorrente, neste segmento da sua motivação.
Fazendo agora o Ministério Público esse mesmo percurso, não ficando indiferente ao desassossego que o confronto com o sofrimento desta vítima nos devolve, conclui que corrobora cada argumento invocado na referida fundamentação, entendendo, carecer de fundamento a pretendida atenuação da pena, como invocado pela recorrente.
Na verdade, entende o Ministério Público que se impõe, pelo contrário, a sujeição da arguida recorrente à pena que lhe foi aplicada como única resposta jurídico-penal possível e suportável.
Em conclusão, entende o Ministério Público que carecendo de pertinência todos os argumentos invocados pela arguida recorrente, não deve merecer provimento o recurso ora em apreço.»
6. No mesmo sentido se pronunciou o assistente EE na sua resposta, dizendo, em conclusões:
«1. A Recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pedindo que fosse reexaminada a matéria de facto produzida em audiência de discussão e julgamento da causa, com fundamento na sua má apreciação e, por isso, má decisão, bem como, pedindo que fosse alterada a medida da pena aplicada, com fundamento de que devia ser aplicada à Recorrente especial atenuação da sua pena por ter cometido o crime de homicídio qualificado na pessoa da sua filha FF, por omissão e, na sua pessoal opinião, na modalidade de dolo eventual.
2. Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça encontram-se delimitados à matéria de direito.
3. Deverá ser considerado precludido este pedido da Recorrente, quer com fundamento na sua inadmissibilidade legal, quer com fundamento na não verificação, no caso concreto, de qualquer vício que pudesse colocar a matéria de facto à consideração e cognição do Supremo Tribunal de Justiça.
4. Caso a Recorrente tivesse razão para que o Supremo Tribunal de Justiça conhecesse da matéria de facto, releve-se que foi a Recorrente quem deu causa ao resultado morte.
5. O resultado morte jamais teria ocorrido se a Recorrente não tivesse voluntariamente entregado a sua filha, por mais que uma vez, aos cuidados dos outros co-arguidos.
6. Pior, a Recorrente foi, voluntariamente, entregar a sua filha no dia 14.06.2022, mesmo depois de a ter recebido em Maio de 2022 vítima de maus tratos.
7. Maus tratos que não denunciou e, com isso, impediu, por acção sua, que a FF recebesse ajuda médica e medicamentosa necessária a atenuar as queixas e lesões que apresentava e certamente causavam dores e desconforto.
8. A Recorrente impediu, também, o auxílio médico e medicamentoso, com a sua acção, à sua filha FF, no dia 20.06.2022, concorrendo de forma indiscritível para que o resultado morte ocorresse.
9. Fê-lo com o maior desrespeito pela pessoa humana e sua dignidade, obrigando a sua filha a ir morrendo em acto de contínuo e de galopante sofrimento.
10. Fê-lo de modo e de tal forma degradante e inimaginável que inexistem palavras para a sua correcta descrição, enquanto, descansada e descontraída assistia a programas televisivos na sala.
11. Nem sequer foi a Recorrente quem ligou para o INEM a pedir auxílio.
12. A Recorrente tem coragem para recorrer da matéria de facto pretendendo obter benefício para si mesma através da sua reanálise e da sua reponderação, mas nunca teve coragem para denunciar maus tratos a uma filha que pariu, nem tão-pouco teve coragem para pedir auxílio médico e permitir que a sua filha FF tivesse partido de forma apoiada com cuidados médicos e medicamentos.
13. Ainda que nada já pudesse salvar a vida da FF, foi a acção da Recorrente a que a impediu de ter partido sem dor e sofrimento, sendo tratada com dignidade.
14. Se coubesse, no caso concreto, ao Supremo Tribunal de Justiça reexaminar a matéria de facto e reanalisá-la, certo está o Recorrido de que a pena de 25 anos de prisão seria mantida, por não ser prevista outra, mais grave, que ao caso concreto pudesse ser aplicada.
15. Relativamente à discordância da Recorrente quanto à medida concreta da pena, nos termos do disposto no artigo 73.º do CP., releve-se que a previsão legal não constitui uma imposição ao julgador, como pretendido pela Recorrente, mas tão-só a possibilidade legal de tal atenuação em casos merecidos.
16. Manifestamente não é o caso dos presentes autos.
17. A possibilidade de atenuação da pena prevista pelo legislador, não passa disso mesmo, de uma possibilidade.
18. Possibilidade prevista de modo a permitir ao julgador, no caso concreto, aplicá-la se for caso de ser aplicada e não apenas por vontade dos sujeitos processuais.
19. No caso dos autos, à Recorrente, com os actos que praticou e com os actos que omitiu, aqueles que decidiu voluntaria e conscientemente não praticar, não pode ser aplicada qualquer atenuação da medida da pena.
20. Aliás, no caso dos autos, sucede precisamente o contrário, são especialmente censuráveis os actos praticados pela Recorrente e são especialmente censuráveis os actos não praticados pela Recorrente que, consciente e voluntariamente, decidiu concorrer para o resultado morte da FF.
21. A pena de prisão, na sua medida, os 25 anos de prisão, é a medida que melhor satisfaz as necessidades da punição, por outra, mais elevada, não existir prevista no ordenamento jurídico nacional.
22. Neste preciso sentido, o excerto do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora: “(…) Nos presentes autos, atento o grau de culpa muito elevado de todos os arguidos, em especial da arguida AA a partir de 19 de junho de 2022 à tarde, com contornos de alheamento confrangedores, eventual atenuação especial não seria socialmente tolerável e frustraria por completo os fins das penas.”.
23. A Recorrente ignora que a atenuação que pede ter de ser o resultado de existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, cfr. artigo 72.º do CP..
24. É manifesta a falta de causa de pedir para que a medida da pena aplicada à Recorrente seja alterada.
25. A Recorrente foi condenada, em comissão por omissão, pela prática no período compreendido entre os dias 14 de junho de 2022 e 20 de junho de 2022, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 10.º n.º 1 e 2, 131.º n.º 1, 132.º n.º 2 alínea a), c) e h) todos do Código Penal, na pena de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
26. Decisão que deve ser mantida integralmente.»
7. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer de concordância com a condenação e com o Ministério Público na Relação, nos seguintes termos:
«[…] seguindo-se neste parecer o referido pelo MºPº na resposta, com cujo conteúdo se concorda integralmente, há desde logo a notar que a recorrente pretende – mais uma vez – ver alterada a matéria de facto que ficou provada em 1ª instância e que não mereceu alteração em sede de recurso para o Tribunal da Relação.
Ora, certo é que não pode neste recurso pedir o que pede em termos de alteração daquela matéria, pois que:
- por um lado, os recursos para este STJ são limitados à matéria de direito, como expressamente refere o art.º 434.º do CPP; e
- por outro, mesmo atendendo às exceções a tal regra, o que a recorrente faz não é apontar nenhum dos vícios do art.º 432.º, als. a) e c) – e, consequentemente, do artº 410.º, n.º 2 e 3 -, mas sim uma leitura diferente que efetua da prova produzida, apontando alguma como sendo de relevante valor para, ao que entende, o tribunal ter agido de forma incorreta ao concluir no sentido da sua responsabilidade na prática dos factos.
Mesmo se se admitisse a apreciação da matéria de facto dada como provada – e já confirmada no Tribunal da Relação -, verifica-se que o que é alegado no recurso nem chega para se questionar se terá ficado ‘bem’ fixada: por exemplo, quando a recorrente refere que sempre lhe teria sido impossível evitar a morte da malograda FF, pois que no dia 20 de junho de 2022 nada poderia salvar a sua filha, esquece que lhe são imputados factos anteriores a essa data, nomeadamente os que constam nos pontos 13 e seguintes da matéria de facto dada como provada, donde se retira, entre o mais, que:
«[No dia 19 de junho de 2022] 15. Nos minutos em que esteve no Beco do ..., a arguida AA constatou que a sua filha tinha a cara queimada na zona do nariz e buço com equimoses visíveis na testa e faces, prostrada, sem abrir os olhos, sem falar, tendo ainda tido conhecimento em moldes não concretamente apurados, de que a mesma teria naquele dia, em movimento reflexo, enrolado a língua e revirado os olhos, ao mesmo tempo que todo o seu corpo tremia e se esticava, factos que os arguidos BB, CC e DD presenciaram, tomando conhecimento em momento anterior.
16. Apesar de ter observado as referidas lesões, de se ter apercebido do estado muito grave de saúde em que FF, sua filha, se encontrava e, de estar convencida terem sido os coarguidos a provocar as lesões que observou, a arguida AA regressou a sua casa, mantendo a sua filha aos cuidados de BB, CC e DD, sem chamar socorro médico, sem solicitar a intervenção das autoridades e sem contar a ninguém o que ali tinha acabado de observar, antes optando por manter a sua rotina diária, saindo à noite para efeitos lúdicos com o seu companheiro HH»
E, depois de ter ido, no dia 20, buscar a filha, verificou o estado em que esta se encontrava, com evidentes sinais de ter sido torturada (como provado ficou que o foi, efetivamente), provado ficou que:
«21. Apesar dos ferimentos e de FF se encontrar prostrada, sem reagir a qualquer estímulo, a arguida AA, uma vez mais, não chamou socorro médico e não solicitou a intervenção das autoridades.
22. Por volta das 15H00m, a arguida AA constatou que FF estava com graves dificuldades respiratórias, em constante engasgamento e com os batimentos cardíacos muito acelerados.»
Daqui ter sido correto o entendimento do coletivo (mantido pela Relação de Évora, como se viu), de que:
«34. Apesar de estar convencida de que foram os arguidos BB, CC e DD, os responsáveis pelo aparecimento das lesões descritas no ponto 4 dos factos provados, a arguida AA, praticou os factos descritos no ponto 6, consciente de que expunha a sua filha ao perigo e que comprometia o seu bem-estar, a sua integridade física e o seu direito à infância, conformando-se.
35. Ao praticar os factos descritos no ponto 16, após tomar conhecimento da factualidade descrita em 15, AA soube que o estado de saúde de FF era muito grave, a carecer de socorro médico urgente, pelo que previu necessariamente como possível, a ocorrência da sua morte, conformando-se.
36. Consciente da factualidade descrita no ponto 18 e do risco que desde o dia anterior a vida da sua filha corria, caso não fosse prestado imediato auxílio médico, AA praticou a factualidade descrita nos pontos 19 a 23 dos factos provados, ciente de que a sua filha estava a morrer, conformando-se.
37. AA sabia que era a mãe de FF e que, por causa disso, impendia sobre si um especial dever de vigilância e de cuidado, que deliberadamente desprezou.
38. Em tudo agiram os arguidos BB, CC, DD e AA de forma livre deliberada e consciente, sabiam que as supra descritas condutas por ação e por omissão eram proibidas e punidas por lei, tinham capacidade para se determinar em sentido contrário de acordo com a avaliação que efetivamente fizeram e, ainda assim, não se abstiveram de agir sempre contra a infância e contra a vida de FF, conformando-se com a sua morte.»
Ou seja, a condenação da recorrente AA, o ter-se concluído ter a mesma responsabilidade na morte da malograda FF, não se reconduz à – já de si altamente censurável – atividade posterior ao dia em que a foi recolher e levou para casa (e onde a deixou sem socorro), mas sim ao conjunto de atuações/omissões que levou a cabo naquele dia e nos que o antecederam, tendo deixado à sua filha à mercê dos co-arguidos que torturaram a criança, tortura que percebeu ter sido levada a cabo e que permitiu que prosseguisse.
Toda a matéria de facto dada como provada, e fundamentadamente dada como provada, não podia resultar outra conclusão senão a de que a recorrente praticou o crime pelo qual foi condenada. Como referiu o Tribunal recorrido (o da Relação de Évora):
«Ainda que não se tenha apurado quem fez exatamente o quê (face ao silêncio mantido pela arguida DD e à postura negatória de CC e de BB), há uma omissão que todos os arguidos necessariamente, adoptaram: a de não fazer cessar as agressões violentas.
E tal permite concluir pelo preenchimento do tipo do crime de homicídio, ainda que por omissão (artigo 10.º, n.º 1, do Código Penal).
Estamos perante um crime de resultado, que abrange não só a acção adequada a produzi-lo, mas também a omissão de acção adequada a evitá-lo, só sendo esta punível quando sobre o omitente recaia o dever jurídico de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e para a saúde, em virtude do estatuído no artigo 10.º, n.º 2, do Código Penal.
E para a verificação do crime cometido por omissão, exige-se a ausência de acção, como acto voluntário, a capacidade fáctica de acção (excluindo as situações em que inexistam, por parte do agente, as características físicas ou intelectuais, os conhecimentos ou instrumentos que lhe permitam evitar a concretização do perigo), o nexo de causalidade adequada (possibilidade do agente desencadear um processo causal idóneo a evitar a concretização do perigo, sendo essa possibilidade conhecida ou cognoscível do agente) e, finalmente, o conhecimento da posição de garante.»
Por outro lado, relativamente ao pedido de afastamento da verificação dos índices de especial censurabilidade e perversidade, bem como quanto ao pedido da atenuação especial da pena que foi aplicada à recorrente, quase entendemos estes pedidos como entrando no campo da ficção, face ao que provado ficou em termos de comportamento daquela para com quem devia defender. No entanto, sempre se tem a lembrar que, tal como referido no acórdão ora recorrido, «No caso vertente, a recorrente revelou, salvo melhor opinião, qualidades particularmente desvaliosas e censuráveis, demonstrando um comportamento profundamente distanciado relativamente à vida da sua filha menor que, mais do que qualquer outra pessoa, lhe incumbia defender, demonstrando um egoísmo sem limites, centrando-se essencialmente no seu sofrimento – quando a única vítima foi a menor FF -, merecedor de grande reprovação, o que só poderia resultar na conclusão de que se mostram preenchidos os pressupostos da especial censurabilidade e da especial perversidade.»
E, finalmente, em termos de pena aplicada em concreto, não se entende ter sido a mesma excessiva.
Se nos é permitido dizer, o que mostrou excessivamente grave foi o comportamento da recorrente e dos demais arguidos, comportamento que certamente ultrapassou em muito a previsão do legislador quanto estabeleceu o limite das penas… É inimaginável – para mais quando a vítima foi uma criança totalmente indefesa – que existam comportamento humanos daquela gravidade.
No mais, parece-nos que a fundamentação das decisões, quer de 1ª, quer de 2ª instância, justificam plenamente a pena concreta aplicada, não se justificando qualquer atuação corretiva por parte deste Supremo Tribunal.
Daqui que o Ministério Público seja do parecer que a decisão recorrida deverá ser integralmente mantida, julgando-se improcedente o recurso interposto pela recorrente AA.»
8. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, a recorrente nada disse.
9. Não tendo sido requerida audiência, seguiu o recurso para julgamento em conferência – artigo 419.º, n.º 3, al. c), do CPP.
Apreciando e decidindo.
II. Fundamentação
Dos factos
10. Mostra-se estabelecida a seguinte matéria de facto, confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação:
10.1. Factos provados:
«1. A arguida AA e EE são os progenitores de FF.
2. FF nasceu às 20h37m. do dia ... de ... de 2019, no Hospital de ..., em ..., saudável e sem malformações.
3. Em data não concretamente apurada, mas posterior ao início do mês de maio de 2022 e anterior a 08 de junho de 2022, por motivos não concretamente apurados, a arguida AA levou a sua filha FF para a residência dos arguidos sita no Beco do ..., em ..., entregando-a aos cuidados da arguida BB, com o conhecimento dos arguidos CC e DD, ali a deixando por período de tempo não concretamente apurado, mas superior a 24 horas.
4. Quando regressou da residência dos arguidos, FF apresentava escoriações e nódoas negras na face, escoriação no lábio, uma marca de dentada no braço, e nódoas negras numa das pernas que se encontravam ocultadas pela saia que vestia.
5. Apesar do estado em que se encontrava FF e de ter recebido aconselhamento de II nesse sentido, a arguida AA, convencida de que tais lesões foram provocadas pela família GG, não a levou a qualquer unidade hospitalar ou centro de saúde, a fim de aferir do estado de saúde daquela, nem apresentou queixa às autoridades.
6. Por motivos e em contexto não concretamente apurados, no dia 14 de junho de 2022, a arguida AA, introduziu numa mala de viagem colorida roupa de FF e umas embalagens de supositórios ben-u-ron, que colocou a tiracolo, após o que foi entregar a sua filha no Beco do ..., pelas 09H30m, aos cuidados da arguida BB, com o conhecimento dos arguidos CC e DD que, concordando, não se opuseram.
7. FF permaneceu na residência da família GG junto dos arguidos BB, DD e CC das 09H30 do dia 14 de junho de 2022 a cerca da mesma hora do dia 20 de junho de 2022.
8. Durante os cinco dias em que FF permaneceu em casa dos arguidos BB, CC e DD, em moldes, cronologia e motivo não concretamente apurados, mas seguramente com o conhecimento, conivência e encobrimento de todos eles, a criança sofreu múltiplas e fortes pancadas e pressões por ação das mãos/punhos, pés e/ou objeto(s) contundentes em todas as zonas exteriores do corpo, da cabeça à planta dos pés, concluindo-se que, pelo menos, sofreu:
a) 7 pancadas na zona da cabeça e face;
b) 18 pancadas na zona do tórax;
c) 5 pancadas na zona do abdómen;
d) 1 pancada na área genital/ púbica;
e) 17 pancadas no membro superior direito, incluindo ombro;
f) 7 pancadas no membro superior esquerdo, incluindo ombro;
g) 10 pancadas no membro inferior direito incluindo coxa e nádega;
h) 13 pancadas no membro inferior esquerdo, incluindo coxa e nádega;
Perfazendo um total mínimo de 78 fortes pancadas no corpo de FF por ação das mãos, pés e/ou objeto contundente.
9. Sofreu ainda em moldes e cronologia não totalmente apuradas, múltiplos golpes por ação de unhas e objeto cortante e perfurante por todo o corpo, concluindo-se que, pelo menos, sofreu o seguinte número de picadas/arranhões/esfacelos, beliscões e pequenos cortes ao nível da pele:
a) 17 na zona da cabeça e face;
i) 2 na zona do pescoço;
j) 15 na zona do tórax;
k) 2 na zona do abdómen
l) 1 na zona inguinal direita
m) 7 no membro superior direito, incluindo ombro
n) 7 no membro superior esquerdo, incluindo ombro
o) 12 no membro inferior direito incluindo nádegas
p) 13 no membro inferior esquerdo, incluindo nádegas;
Perfazendo um total mínimo de 76 picadas/arranhões/esfoladelas e pequenos cortes desferidos no corpo de FF.
10. Sofreu ainda em moldes e cronologia não concretamente apurados, queimadura na face, na zona do nariz, buço e boca, por ação de fonte de calor traduzida em líquido fervente.
11. Sofreu ainda em moldes e cronologia não apuradas, mas seguramente em momento posterior à tarde do dia 18 de junho de 2022 e anterior à entrega à progenitora no dia 20 de junho de 2022, pelo menos, 3 fortes embates com a cabeça em superfície(s) dura(s) e fortes abanões com intensidade superior a 2 abanões por segundo e por período sempre superior a 5 segundos.
12. Sofreu ainda no mesmo período, mas seguramente após sofrer, pelo menos um dos fortes embates com a cabeça contra superfície dura, múltiplos puxões de cabelos que foram arrancados aos tufos pela raiz e a deixaram com extensas peladas.
13. No dia 19 de junho de 2022, em momento posterior a pelo menos um dos embates contra superfície dura a que se alude em 11, entre as 18h03m e as 18h52m, a arguida AA soube através de chamada telefónica efetuada a partir do n.º .......88, que a sua filha FF estaria com problemas de saúde/físicos no Beco do ... onde se mantinha com os coarguidos BB, CC e DD.
14. A arguida AA no mesmo circunstancialismo de tempo a que se alude no artigo anterior dirigiu-se a casa dos arguidos BB, CC e DD, tendo descido parte da Avenida ... em passo de corrida, designadamente quando passou em frente ao posto da Guarda Nacional Republicana, regressando passados cerca de 25 minutos.
15. Nos minutos em que esteve no Beco do ..., a arguida AA constatou que a sua filha tinha a cara queimada na zona do nariz e buço com equimoses visíveis na testa e faces, prostrada, sem abrir os olhos, sem falar, tendo ainda tido conhecimento em moldes não concretamente apurados, de que a mesma teria naquele dia, em movimento reflexo, enrolado a língua e revirado os olhos, ao mesmo tempo que todo o seu corpo tremia e se esticava, factos que os arguidos BB, CC e DD presenciaram, tomando conhecimento em momento anterior.
16. Apesar de ter observado as referidas lesões, de se ter apercebido do estado muito grave de saúde em que FF, sua filha, se encontrava e, de estar convencida terem sido os coarguidos a provocar as lesões que observou, a arguida AA regressou a sua casa, mantendo a sua filha aos cuidados de BB, CC e DD, sem chamar socorro médico, sem solicitar a intervenção das autoridades e sem contar a ninguém o que ali tinha acabado de observar, antes optando por manter a sua rotina diária, saindo à noite para efeitos lúdicos com o seu companheiro HH.
17. No dia 20 de junho de 2022, a arguida AA recebeu e atendeu às 08H04m, uma chamada o número .......88, efetuando outra às 08H58m, após mais duas chamadas não atendidas às 08H51m e 08H56m, após o que foi buscar a sua filha FF que lhe foi entregue por BB e DD, cerca das 09H30, em local não concretamente apurado, mas situado entre o Beco do ... e o Parque do ... em ....
18. FF estava enrolada numa manta, permanecendo sem se mexer, falar, com os olhos sempre fechados, equimoses nas pernas, testa e faces, grandes peladas no couro cabeludo e a zona do rosto toda ensanguentada, ostentando uma queimadura no nariz e buço.
19. Após receber a sua filha, a arguida AA fez o percurso inverso de regresso a sua casa, com a filha ao colo, completamente prostrada e as arguidas BB e DD a acompanharem-na.
20. Quando chegou a sua casa, cerca das 10h00m., e depois de ter visto, pelo menos, as lesões descritas nos pontos 15) e 18), a arguida AA deitou FF na cama do seu quarto e aí a deixou.
21. Apesar dos ferimentos e de FF se encontrar prostrada, sem reagir a qualquer estímulo, a arguida AA, uma vez mais, não chamou socorro médico e não solicitou a intervenção das autoridades.
22. Por volta das 15H00m, a arguida AA constatou que FF estava com graves dificuldades respiratórias, em constante engasgamento e com os batimentos cardíacos muito acelerados.
23. Só nessa altura, a arguida AA decidiu pedir ao seu companheiro, HH, para chamar o INEM, o que este fez, através do seu telemóvel com o cartão SIM .......51, às 15h15m.18s.
24. Apesar dos esforços envidados na reanimação de FF, esta acabou por falecer no Hospital ..., em ..., tendo sido o óbito declarado em 20 de junho de 2022, às 16h27m.
25. Como consequência direta e necessária das sevícias descritas nos pontos 8 a 12, FF sofreu as seguintes lesões verificadas em sede de autópsia:
I - Hábito externo:
A) Cabeça:
a) Uma escoriação, com crosta avermelhada, na região frontal esquerda, linear, arciforme de concavidade medial, com 1,5cm de comprimento;
b) uma escoriação, sem crosta, cerca de 0,5cm para medial da extremidade posterior da anteriormente descrita, puntiforme;
c) uma escoriação, sem crosta, na região frontal esquerda, puntiforme;
d) uma área equimótica arroxeada na região parieto-occipital esquerda, com 7x7cm de maiores dimensões, tendo no seu seio escoriação, sem crosta, com 2,5x1cm de maior eixo vertical, com tumefação flutuante associada.
e) uma área equimótica arroxeada na região parieto-occipital direita, com 7x7cm de maiores dimensões;
f) uma escoriação, sem crosta, na face posterior do pavilhão auricular direito, com 1cm de diâmetro;
g) 1cm para baixo e para dentro da escoriação anteriormente descrita, identifica-se escoriação, sem crosta, com lx0,5rm de maior eixo vertical;
h) uma escoriação, com crosta esbranquiçada, na face posterior do pavilhão auricular direito, linear, vertical, com 4cm de comprimento;
i) duas escoriações, sem crosta, na face posterior do pavilhão auricular direito, distando 2cm entre elas, com 4mm de diâmetro cada.
j) uma área equimótica na face posterior do pavilhão auricular esquerdo, com 2,5x2cm de maior eixo transversal, tendo no seu interior várias escoriações lineares;
k) uma área equimótica arroxeada, sobre a bossa frontal direita, em forma de ferradura, com abertura frontal, com 7x4cm de maior eixo transversal e com tumefação móvel associada;
l) uma equimose arroxeada sobre a bossa frontal esquerda, com 4cm de diâmetro;
m) uma escoriação, com crosta avermelhada, sobre a glabela, com 0,7x0,3cm de maior eixo transversal;
n) uma equimose arroxeada na pálpebra superior direita, oblíqua para baixo e para fora, com lx0,8cm de maiores dimensões, com ponteado hemorrágico associado;
o) uma área equimótica arroxeada na hemiface esquerda, com 7x6cm de maior eixo vertical, no seio da qual se observam várias escoriações lineares, verticais, distando entre si 1mm e uma escoriação linear, com crosta avermelhada, na região malar, arciforme, de concavidade inferior, com 2,2cm de comprimento;
p) uma escoriação, com crosta avermelhada, adjacente à comissura labial esquerda, com 0,5x0,3cm de maior eixo transversal;
q) uma área equimótica arroxeada na hemiface direita, com 6,5x4cm de maior eixo transversal;
r) 1cm para baixo e para fora do epicanto lateral do olho direito, observa-se uma escoriação, com crosta esbranquiçada, com 0,5x0,3cm de maior eixo vertical;
s) desepidermização da metade inferior do dorso do nariz e das narinas, com limite superior irregular e laterais e inferior regulares; que se prolonga pela região infra-nasal e através de escoriação em forma de L, com ramo maior, oblíquo para baixo e para fora, com 4x(),5cm de maiores dimensões e ramo menor, com 2x0,5cm de maior eixo vertical, que termina a 0,5cm de distância da comissura labial direita; edema da região infra-nasal e do superior;
t) uma equimose arroxeada na mucosa do hemilábio inferior esquerdo, adjacente à linha média, com lx0,5cm de maior eixo transversal;
u) uma área equimótica avermelhada na região mentoniana, com 5x2cm de maior eixo transversal, com desepidermização associada;
v) três escoriações, sem crosta, na região submandibular direita, a 2cm de distância do ângulo mandibular, com 1,7x1cm de maior eixo oblíquo íntero-medialmente;
w) uma escoriação, sem crosta, na região submandibular esquerda, com 2mm de diâmetro;
x) uma escoriação, sem crosta, na face ântero-lateral direita do terço inferior do pescoço, com 0,4cm de diâmetro.
B) Pescoço:
a) uma escoriação, com crosta esbranquiçada, na face ântero-lateral direita, com 0,4cm de diâmetro;
b) uma escoriação, com crosta esbranquiçada, na face ântero-lateral esquerda, com 0,4cm de diâmetro.
C) Tórax:
a) uma escoriação, com crosta esbranquiçada, sobre o terço médio da clavícula esquerda, com 0,4cm de diâmetro;
b) uma escoriação, sem crosta, sobre o terço lateral da clavícula esquerda, oblíqua para baixo e para dentro, com 1cm de comprimento;
c) duas escoriações, com crosta avermelhada, localizadas imediatamente abaixo do mamilo direito, puntiformes;
d) três equimoses arroxeadas sobre o corpo do esterno, ao nível da linha intermamilar, com 0,6cm de diâmetro cada;
e) uma equimose acastanhada no hemitórax esquerdo, adjacente ao corpo do esterno e imediatamente acima da linha intermamilar, em forma de V, com concavidade lateral, com 6x1cm de maiores dimensões. – Uma escoriação, com crosta avermelhada, sobre o corpo do esterno, imediatamente acima da linha intermamilar, com 1cm de diâmetro;
f) um halo equimótico arroxeado, localizado no hemitórax esquerdo, com 1cm de máxima espessura nas faces inferior e lateral, ocupando uma área com 4x1,7cm de maior eixo oblíquo ínfero-lateralmente;
g) uma escoriação, com crosta acastanhada, localizada para medial do mamilo esquerdo, vertical, com 6cm de comprimento;
h) uma equimose acastanhada localizada imediatamente abaixo do mamilo, com 1,5x1cm de maior eixo vertical;
i) uma equimose arroxeada localizada no hemitórax esquerdo, adjacente ao processo xifoide esternal, com 1cm de diâmetro;
j) duas escoriações apergaminhadas localizadas no terço lateral da grelha costal direita, ao nível do processo xifoide, com de maior eixo oblíquo para baixo e para medial;
k) duas equimoses roxas na região escapular direita, a maior com 2,5x2,5cm de maior eixo transversal e a menor, oblíqua para baixo e para fora, com 2x1cm de maiores dimensões;
l) duas escoriações, sem crosta, na região escapular esquerda, com 0,5cm de diâmetro cada;
m) cinco equimoses esverdeadas na região toracolombar, mediana, com 0,7cm de diâmetro cada;
n) cinco escoriações, sem crosta, na face lateral do hemitórax esquerdo, lineares, verticais, a maior com 1cm de comprimento e a menor com 0,4cm de comprimento; - três equimoses arroxeadas na face lateral do hemitórax esquerdo, separadas entre si por 0,5cm, obliquas para fora e para cima, com 1,7x0,7cm de maiores dimensões cada;
o) uma equimose arroxeada sobre a crista ilíaca póstero-superior esquerda, oblíqua para baixo e para dentro, com 3,7x1,6cm de maiores dimensões
D) Abdómen:
a) uma equimose arroxeada localizada na fossa ilíaca direita, oblíqua ínfero-medialmente, com 2,3x0,6cm de maiores dimensões, no seio da qual se observa uma escoriação, com crosta acastanhada, com 0,7x0,4cm de maior eixo transversal;
b) uma área equimótica, heterogénea, localizada sobre a crista ilíaca ântero-superior direita, arroxeada no centro e esverdeada na periferia, com 8x3cm de maior eixo transversal;
c) uma escoriação, sem crosta, localizada 4cm para fora da crista ilíaca ântero-superior direita, linear, vertical, com 3,7cm de comprimento;
d) uma equimose arroxeada na fossa ilíaca esquerda, com 0,5cm de diâmetro;
e) uma equimose arroxeada sobre a crista ilíaca ântero-superior esquerda, com 1cm de diâmetro;
f) uma placa apergaminhada localizada imediatamente abaixo da crista ilíaca ântero-superior esquerda, com 1cm de diâmetro;
E) Área Ano-Genital:
a) uma equimose heterogénea, na região supra-púbica, roxa no centro e esverdeada na periferia, ocupando uma área com 7x5cm de maior eixo transversal;
b) uma escoriação, com crosta avermelhada, na região inguinal direita, com 2x0,5cm de maior eixo vertical;
F) Membro superior direito:
a) perímetro do braço medido 10cm acima do olecrânio: 15,5cm;
b) uma equimose arroxeada na face pósterosuperior do ombro, com 4,5x4cm de maior eixo vertical;
c) seis equimoses arroxeadas na face ântero-lateral da metade proximal do braço, a maior com 2,5x2cm de maior eixo transversal e a menor com 0,5cm de diâmetro;
d) uma equimose arroxeada na face posterior do terço distal do braço, com 3x1cm de maior eixo transversal;
e) uma equimose acastanhada na face posterior do terço distal do braço, com 1x0,5cm de maior eixo vertical;
f) uma escoriação linear, com crosta avermelhada, na face póstero-lateral do terço distal do braço, vertical, com 0,3cm de comprimento; 2cm para baixo e para lateral da escoriação anteriormente descrita, escoriação, com crosta avermelhada, puntiforme;
g) uma equimose arroxeada na face posterior do cotovelo, com 7cm de diâmetro, no interior da qual se identificam várias escoriações lineares, com rosta avermelhada, verticais, paralelas e distanciando entre si 0,5cm.;
h) sete equimoses arroxeadas na face póstero-lateral do antebraço, a maior com 0,7cm de diâmetro e a menor com 0,2cm de diâmetro;
G) Membro superior esquerdo:
a) um halo equimótico arroxeado, na face superior do ombro, com 1 cm de máxima espessura no bordo inferior, com 3,5cm de diâmetro;
b) uma equimose arroxeada na face súpero-lateral do ombro, com 3cm de diâmetro;
c) três equimoses arroxeadas na face póstero-lateral do braço, a maior com 3x0,5cm de maior eixo vertical e a menor com 0,6cm de diâmetro;
d) duas escoriações, com crosta avermelhada, na face posterior do terço médio do braço, lineares, transversais, a maior com 2,5cm de comprimento e a menor com 0,3cm de comprimento;
e) uma escoriação, com crosta acastanhada, na face posterior do cotovelo, com 3,7x1cm de maior eixo vertical;
f) uma equimose arroxeada na face lateral do terço médio do antebraço, com 0,5cm de diâmetro;
g) uma equimose roxa na face posterior do terço distal do antebraço, com 1cm de diâmetro;
h) várias escoriações, com crosta acastanhada, distribuídas pela face posterior do antebraço e pelo dorso e palma da mão, puntiformes.
H) Membro inferior direito:
a) quatro equimoses acastanhadas na região glútea, distando entre si 0,5cm, distribuídas numa área com 9x6cm de maior eixo vertical;
b) múltiplas escoriações, com crosta avermelhada, nos quadrantes internos da região glútea, lineares, com várias orientações, a maior com 1cm de comprimento e a menor com 0,3cm de comprimento;
c) uma escoriação, com crosta avermelhada, no quadrante súpero-externo da região glútea, puntiforme;
d) duas escoriações, com crosta avermelhada, na face lateral do terço proximal da coxa, puntiformes;
e) uma equimose arroxeada na face lateral da anca, com 4,5x3cm de maior eixo vertical;
f) uma escoriação, com crosta avermelhada, na face anterior do terço proximal da coxa, transversal, com 3,5cm de comprimento;
g) três equimoses arroxeadas na face anterior da metade proximal da perna, a maior com 1,5cm de diâmetro e a menor com 0,5cm de diâmetro;
h) uma equimose arroxeada no bordo lateral do dorso do médio pé, com 4,5x4cm de maior eixo vertical;
i) múltiplas escoriações, com crosta avermelhada, no dorso do pé;
j) uma equimose arroxeada no terço posterior da planta do pé, com 1,3x0,2cm de maior eixo vertical.
I) Membro inferior esquerdo:
a) uma equimose acastanhada no quadrante súpero-externo da região glútea, com 5x4cm de maior eixo transversa;
b) uma equimose acastanhada no quadrante ínfero-externo da região glútea, com 3x2cm de maior eixo transversal;
c) múltiplas escoriações, com crosta avermelhada, nos quadrantes inferiores da região glútea, lineares, com diversas orientações, a maior com 2cm de comprimento e a menor com 0,3cm de comprimento;
d) uma equimose arroxeada na face interna do terço médio da coxa, com 3x2cm de maior eixo transversal;
e) duas equimoses arroxeadas na face lateral do terço proximal da coxa, a mais superior com 3x2,5cm de maior eixo transversal e a inferior com 2,5x2cm de maior eixo transversal;
f) uma equimose acastanhada na face lateral do terço médio da coxa esquerda, com 2x1,5cm de maior eixo transversal;
g) uma equimose arroxeada na face ântero-lateral do terço distal da coxa, com 1,5cm de diâmetro;
h) uma equimose esverdeada na face anterior do terço distal da coxa, com 2x1cm de maior eixo transversal;
i) cinco escoriações, com crosta avermelhada, na face anterior do terço médio da coxa, a maior, transversal, com 2,5cm de comprimento e a menor puntiforme;
j) uma equimose arroxeada nas faces anterior, medial e lateral do joelho, com 10x6cm de maior eixo transversal;
k) duas escoriações, com crosta avermelhada, na face anterior do joelho, verticais, distando entre si 0,5cm, com 0,5cm de comprimento cada;
l) uma equimose arroxeada na face interna do terço médio da perna, com 1,5x1cm de maior eixo vertical;
m) uma equimose esverdeada localizada imediatamente abaixo do maléolo lateral, com 1cm de diâmetro.
n) uma equimose esverdeada localizada no bordo lateral do dorso do pé, com 1cm de diâmetro;
o) duas escoriações, com crosta avermelhada, sobre o maléolo lateral, puntiformes;
p) área equimótica, heterogénea, no terço posterior da planta do pé, com 5x3cm de maior eixo vertical;
II - Lesões do hábito interno
A) Cabeça / Partes moles:
a) infiltração sanguínea do couro cabeludo e da aponevrose epicraniana da região frontal direita, com 7x5cm de maior eixo transversal;
b) infiltração sanguínea do couro cabeludo e da aponevrose epicraniana da região frontal esquerda, com 5x4cm de maior eixo vertical;
c) infiltração sanguínea do couro cabeludo e da aponevrose epicraniana da região parietal, bilateralmente, com 18x11cm de maior eixo transversal;
d) infiltração sanguínea do couro cabeludo da região occipital, bilateralmente, com 10x9,5cm de maior eixo transversal; discretas infiltrações sanguíneas de ambos os músculos temporais;
e) meninges: flutuação subdural parietal e occipital, bilateralmente, sugestiva de hemorragia subdural.
f) encéfalo: imagem sugestiva de presença de focos de contusão em ambos os lobos frontais. Edema encefálico.
B) Meninges e Encéfalo:
a) Parênquima cerebral, do tronco cerebral e do cerebelo, com congestão vascular generalizada e edema;
b) hemorragia subdural;
c) hemorragia sub-aracnoideia, com hemorragia intraparenquimatosa multifocal, de padrão petequial, nas regiões fronto-parietais esquerda e direita, sem infiltrado inflamatório, sem necrose e sem tecido de granulação documentáveis.
d) Nas regiões parietais, para-ventriculares, esquerda e direita, sofreu hemorragia intraparenquimatosa do tipo petequial, acompanhada por ligeiro a moderado infiltrado inflamatório neutrofílico, destacando-se degenerescência “gorda” de células neurais na região occipital direita.
C) Cavidades orbitárias e globos oculares
a) marcada embebição hemorrágica da bainha do nervo ótico, bilateralmente, sem infiltrado inflamatório, sem tecido de granulação e sem necrose tecidular, associadas;
b) hemorragia intra-retiniana e submembranar/sub hialoide, com distribuição multifocal, no polo posterior de ambos os globos oculares, sem infiltrado inflamatório;
D) Pescoço:
a) faringe e esófago: conteúdo residual de papa líquida de coloração castanha aderida às paredes;
b) traqueia e brônquios: conteúdo de escasso muco esbranquiçado com pequenas;
c) bolhas aderido às paredes;
d) pulmões e pleuras viscerais: parênquima heterogéneo;
e) Esófago: conteúdo residual de papa líquida de coloração castanha aderida às paredes.
E) Abdómen:
a) paredes: infiltração sanguínea ao nível do músculo reto abdominal esquerdo, no seu terço inferior, com 1,5cm de diâmetro.
F) Coluna vertebral e medula:
a) meninges: hemorragia meníngea cérvico-tóraco-lombar, após remoção em bloco dos vários segmentos da coluna vertebral.
26. Os embates na cabeça e abanões sofridos por FF nos termos descritos em 11, provocaram-lhe as lesões traumáticas meningo-encefálicas e intra-retinianas, descritas nos pontos 25.II B) e C), compatíveis com a síndrome da criança abanada (shaken baby syndrome), que desencadearam a sua morte.
27. As fortes pancadas e picadas/arranhões, esfacelos, beliscões e pequenos cortes, bem assim como as queimaduras e puxões de cabelos que sofreu nos termos descritos nos pontos 8, 9, 10 e 12, provocaram em FF sofrimento e dor atrozes.
28. BB, CC e DD sabiam que FF, pela idade e compleição física, era uma criança indefesa, com direito a viver a sua infância, não tendo capacidade para se defender das agressões de que foi alvo.
29. Sabiam que a ação diária e sucessiva de fortes pancadas, de picadas, arranhões, esfacelos, beliscões e pequenos cortes por todo o corpo de FF, incluindo cabeça e sola dos pés, e a sujeição da zona do nariz, buço e boca à ação do calor extremos através de líquido fervente lhe provocariam grande sofrimento e tortura.
30. Sabiam que FF lhes tinha sido entregue pela progenitora AA, para ali permanecer vários dias, pelo que ao a aceitarem, sabiam que ficavam responsáveis por garantir a sobrevivência e bem-estar da criança naquele período;
31. e que por isso, tinham o dever, todos e cada um, de fazer cessar qualquer agressão ou ameaça que pusesse em causa essa sobrevivência e esse bem-estar, chamando as autoridades para afastar eventual ameaça ou agressão que estivesse iminente ou a decorrer e, assistência médica, caso a integridade física, saúde e vida de FF estivesse em risco.
32. O que, ora praticando, ora apercebendo-se da prática dos factos descritos nos pontos 8 a 12, intencionalmente se abstiveram de fazer, cientes de que tal violação grosseira do dever de garante a que voluntariamente se vincularam poderia provocar, como provocou, a morte de FF.
33. Resultado que anteciparam como muito provável, pelo menos, após FF sofrer a convulsão descrita na parte final do ponto 15, conformando-se com o mesmo.
34. Apesar de estar convencida de que foram os arguidos BB, CC e DD, os responsáveis pelo aparecimento das lesões descritas no ponto 4 dos factos provados, a arguida AA, praticou os factos descritos no ponto 6, consciente de que expunha a sua filha ao perigo e que comprometia o seu bem-estar, a sua integridade física e o seu direito à infância, conformando-se.
35. Ao praticar os factos descritos no ponto 16, após tomar conhecimento da factualidade descrita em 15, AA soube que o estado de saúde de FF era muito grave, a carecer de socorro médico urgente, pelo que previu necessariamente como possível, a ocorrência da sua morte, conformando-se.
36. Consciente da factualidade descrita no ponto 18 e do risco que desde o dia anterior a vida da sua filha corria, caso não fosse prestado imediato auxílio médico, AA praticou a factualidade descrita nos pontos 19 a 23 dos factos provados, ciente de que a sua filha estava a morrer, conformando-se.
37. AA sabia que era a mãe de FF e que, por causa disso, impendia sobre si um especial dever de vigilância e de cuidado, que deliberadamente desprezou.
38. Em tudo agiram os arguidos BB, CC, DD e AA de forma livre deliberada e consciente, sabiam que as supra descritas condutas por ação e por omissão eram proibidas e punidas por lei, tinham capacidade para se determinar em sentido contrário de acordo com a avaliação que efetivamente fizeram e, ainda assim, não se abstiveram de agir sempre contra a infância e contra a vida de FF, conformando-se com a sua morte.
Mais se provou:
39. Para além das lesões descritas no ponto 25, em sede de autópsia foi ainda verificada a seguinte lesão:
a) Ânus dilatado atingindo 2 cm de diâmetro máximo – diátese anal
b) No estudo histopatológico apurou-se: “transição muco-cutânea, do períneo para o canal anal, irregular, com pregas espessadas e elásticas, destacando-se rebordo do canal anal, com contorno arredondado na face anterior e alongamento e espessamento do rafe perineal anterior. Não há sinais macroscópicos de hemorragia e de inflamação aguda/ativa.” Ao microscópio “mucosa peri-anal, com áreas de fibrose densa da derma, acompanhada por hiperplasia e hipertrofia de feixes nervosos periféricos e com distorção dos tecidos musculares liso e esquelético, com atrofia marcada de miócitos, sem infiltrado inflamatório associado”
c) embebição hemorrágica multifocal da gordura em torno do períneo, canal anal e reto.
40. FF, em circunstâncias não concretamente apuradas foi exposta nos 5 dias que antecederam a sua morte às substâncias cetamina/ketamina, fenacetina, benzoilecgonina, cocaína, metadona, lidocaína e paracetamol.
41. Pelo menos desde abril de 2022 que BB e DD se consideravam credoras de AA de dívida de montante e origem não concretamente apurados.
42. O número de telemóvel .......88 corresponde a um cartão pré-pago ativado no dia 13 de junho de 2022 e foi utilizado até ao dia 21 de junho de 2022 pelo agregado familiar residente no Beco do ..., constituído por BB, CC e DD.
43. Na manhã dos factos descritos no ponto 6, a arguida AA efetuou duas chamadas a partir do número de telemóvel .......50, para o n.º .......88 às 08H39m com a duração de 23 segundos e às 8H54m com a duração de 6 segundos, após o que saiu da sua residência levando consigo FF e uma mala de roupa colorida, dirigindo-se ao estabelecimento Café ... onde chegou pelas 09h15m, voltando a sair pelas 09H16m, levando consigo FF, virando ambas à esquerda pela Rua ... ainda às 09H16m, voltando a efetuar uma chamada telefónica para o número .......88 às 09H26m com a duração de 88 segundos, voltando a aparecer junto café Joker, onde entrou, vinda da Rua ..., pelas 09H45m, voltando a sair do Café ... às 09H58m.
44. No período compreendido entre a entrega de FF no Beco do ... na manhã do dia 14 de junho de 2022 e o final do dia 18 de junho de 2022, AA efetuou para/ recebeu do n.º .......88 um total de 35 chamadas telefónicas.
45. CC, durante o período em que FF permaneceu na sua residência, foi pelo menos uma vez, comprar fraldas para esta e para a sua neta JJ, filha da arguida DD.
46. Durante o dia 19 de junho de 2022, AA efetuou para/ recebeu do n.º .......88, 21 chamadas telefónicas.
47. Na noite de 19 para 20 de junho de 2022, após os factos descritos em 13, 14, 15 e 16, a arguida AA foi sair à noite com o seu companheiro, entre as 22H30 do dia 19 de junho e as 00H55m do dia 20 de junho, período em que devolveu uma chamada não atendida, ligando para o n.º .......88, às 22H49m, 2minutos e 55 segundos de conversação, após o que, recebeu sem atender mais 7 chamadas do mesmo número, tendo a última ocorrido às 00H33m do dia 20 de junho de 2022.
48. Na manhã do dia 20 de junho de 2022, até à entrega de FF à arguida AA, esta efetuou para/ recebeu do n.º .......88, 4 chamadas telefónicas.
49. A fralda que FF trazia na data da sua morte, foi-lhe colocada por DD.
50. No dia 20 de junho de 2022, após a entrega de FF, até à sua morte AA efetuou 6 chamadas e recebeu 14 chamadas que não atendeu do número .......88.
51. AA tem mais 5 filhos de outros dois relacionamentos amorosos, todos mais velhos que FF, sendo que em junho de 2022, não se encontrava nenhum entregue aos seus cuidados.
52. AA verbalizava receio de que a guarda de FF lhe fosse retirada.
53. Por baixo da cama onde dormia AA na residência sita em Rua ..., a mesma guardava um saco contendo no seu interior penas e ervas.
54. BB, CC e DD, deslocaram-se para a cidade de Leiria após a morte de FF, no intuito de fugirem à ação da justiça.
55. KK no período compreendido entre os dias 14 de junho de 2022 e a noite do dia 18 de junho de 2022, esteve ausente em Espanha.
56. EE, no período em que ocorreram os factos encontrava-se a trabalhar na Holanda, comunicando com a arguida AA por telemóvel no intuito de saber notícias da filha FF.
57. Foi surpreendido pela morte de FF, tendo sofrido desgosto.
Antecedentes criminais
58. Os arguidos BB, CC e DD não têm antecedentes criminais.»
10.2. Factos não provados com relevância para a decisão em matéria de facto:
«a) Que pelo menos desde o ano de 2017, a arguida AA conheça todos os arguidos, devido ao seu ex-companheiro, EE, pai de FF, ter adquirido aos arguidos KK e CC, quase diariamente, entre os anos 2017 e 2021, produto estupefaciente, designadamente canábis (resina).
b) Que desde data não concretamente apurada, mas seguramente antes do mês de maio de 2022, que a arguida BB se assuma como vidente, dedicando-se a práticas de bruxaria, sendo tal atividade do conhecimento dos arguidos CC e DD, companheiro e filha, respetivamente.
c) Que atravessando problemas conjugais com o seu companheiro, HH, a arguida AA, tenha tido conhecimento que a arguida BB se dedicava a tais práticas e lhe tenha solicitado em datas não concretamente apuradas, mas seguramente antes de 11/05/2022, duas vezes, os seus serviços de bruxaria, com vista a melhorar o seu relacionamento amoroso com aquele.
d) Que nas duas primeiras vezes, a arguida BB tenha exigido à arguida AA por cada um dos serviços prestados, que consistiram na entrega de uns sacos com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama, 100,00€ (cem euros), que a arguida AA não pagou.
e) Que por força dessa dívida, no valor total de 200,00€ (duzentos euros), os arguidos BB, CC e DD tenham engendraram um plano com vista a exigirem à arguida AA o pagamento, exigindo-lhe a entrega da filha FF como garantia desse pagamento.
f) Que dois dias depois da entrega da FF tenha pago 100,00€ e que por causa disso BB e DD, tenham restituído a sua filha FF.
g) Que por terem permanecido em dívida 100,00€, as arguidas BB e DD tenham exigido novamente à arguida AA a entrega de FF como garantia do pagamento da dívida em causa, o que esta fez.
h) Que uma semana volvida depois do dia da entrega, a arguida AA tenha sido contactada telefonicamente pela arguida BB, no intuito de se encontrarem na Praça do ..., em Setúbal, para entregar FF, o que aconteceu, sem que no entanto tenha entrega qualquer quantia em dinheiro.
i) Que depois da factualidade descrita no ponto 4 dos factos provados e por causa dos ferimentos sofridos, durante a semana seguinte, já em casa da arguida AA, FF se tenha alimentado de líquidos.
j) Que no dia 12/06/2022, e sem que lhe tenha sido diretamente solicitado tal trabalho pela arguida AA, a arguida BB lhe tenha entregue mais um saco com ervas e folhas, também para colocar debaixo da cama, exigindo o pagamento de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros).
k) Que a arguida AA tenha aceite o saco, mas tenha referido imediatamente à arguida BB que não tinha disponível tal quantia.
l) Que nessa sequência, a arguida BB tenha informado a arguida AA que acresceriam juros à dívida, sendo o valor diário mínimo de 50,00€ (cinquenta euros), sendo consecutivamente aumentado até 100,00€/dia.
m) Que no dia 13/06/2022, às 11h43m, a chamada efetuada através do n.º de telemóvel ... ... .88 pela arguida BB para o n.º .......50, tenha servido para exigir à arguida AA que entregasse a quantia em falta, nesse mesmo dia.
n) Que com o mesmo objetivo, e através do mesmo n.º de telemóvel, a arguida BB tenha contactado, no mesmo dia supra referido, às 13h.22m., a arguida AA.
o) Que em todas as conversações estabelecidas por telemóvel entre a arguida AA e os arguidos, esta tenha informado BB que não tinha a quantia em dinheiro exigida.
p) Que os arguidos BB, CC e DD, tenham percebido que a arguida AA não iria pagar o valor por si exigido e, como tal, tenham engendrado um plano com vista a pressionar novamente a arguida AA a pagar a dívida.
q) Que aquando da entrega de FF na casa da família GG no dia 14 de junho de 2022, a arguida BB tenha dito a AA, que tinham de conversar pessoalmente, devendo trazer e entregar novamente FF e uma mochila com roupas e medicamentos desta, como garantia do pagamento da dívida.
r) Que a arguida AA tenha no dia 14 de junho de 2022, entregue contrariada FF no Beco do ... em ....
s) Que a arguida BB tenha então advertido a arguida AA que só lhe entregaria a filha quando pagasse a dívida.
t) Que o saco com penas e ervas apreendido debaixo da cama da arguida AA, tenha sido entregue gratuitamente pela arguida BB no dia 15/06/2022.
u) Que no dia 16/06/2022, às 14h30m a arguida BB tenha ligado à arguida AA dizendo-lhe, em tom de voz alto e agressivo, que FF tinha partido o tablet de sua neta, por isso, acrescendo à dívida o valor de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros), também com juros.
v) Que a arguida AA tenha informado a arguida BB que não tinha dinheiro para pagar, tendo esta respondido que a sua filha teria de permanecer em sua casa e que teria de pagar a dívida “a bem ou a mal”.
w) Que nesse mesmo dia o arguido CC, fazendo uso do mesmo n.º de telemóvel utilizado pela arguida BB, tenha em tom de voz sério e agressivo, exigido o pagamento total da dívida e explicando mais uma vez, os contornos dos juros.
x) Que nos múltiplos telefonemas realizados entre a arguida AA e os coarguidos, a primeira tenha pretendido inteirar-se do estado de saúde de FF e os segundos, tenham sempre referido que não se precisaria de preocupar com a FF mas sim com a dívida.
y) Que AA tenha ouvido vozes e gritos de crianças e não se tenha apercebido tratar-se de FF.
z) Quem é que desenrolou a língua a FF aquando das convulsões e que AA tenha assistido.
aa) Que a arguida AA tenha saído da casa dos GG no dia 19 de junho de 2022, por, entretanto, terem chegado dois indivíduos à residência dos arguidos GG e a arguida BB tenha dito à arguida AA que se teria de ir embora, salientando que apenas levaria consigo FF quando pagasse a dívida.
bb) Que depois de terem entregado FF à arguida AA, as arguidas BB e DD tenham dito repetidamente na direção daquela, em tom de voz agressivo, a seguinte expressão: “quando a menina melhorar entregas novamente a gente, senão a gente mata-te”.
cc) Que desde data não concretamente apurada, mas seguramente desde o ano de 2019 até 20 de junho de 2022, os arguidos CC e KK tenham vendido diariamente produto estupefaciente, nomeadamente canábis (resina) e cocaína a clientes/consumidores, tendo sido um deles EE, junto da residência de ambos, sita em Beco do ..., em Setúbal.
dd) Que o produto estupefaciente vendido pelos arguidos CC e KK fosse trazido de Leiria, cidade onde residem vários familiares seus, incluindo o outro irmão e cunhada do arguido KK, para Setúbal, com o auxílio das arguidas BB e DD.
ee) Que para não serem detetados no transporte e tendo consigo, em sua casa, FF, os arguidos BB, CC, DD e KK, entre o dia 18 de junho de 2022 e a manhã do dia 19 de junho de 2022 tenham decidido utilizar FF para transportar produto estupefaciente para não serem descobertos pelas autoridades policiais, se fossem alvo de interceção.
ff) Que nessa sequência tenham viajado para Leiria, levando FF e transportando consigo produto estupefaciente no interior do corpo desta, designadamente no ânus.
gg) Que nos dias 11 e 12 de junho de 2022, FF tivesse o seu ânus íntegro, sem relaxamento permanente.
hh) Que as lesões no ânus descritas no ponto 39 tenham sido provocadas no período compreendido entre a manhã do dia 14 de junho de 2020 e o momento da morte de FF.»
Do objeto e âmbito do recurso
11. O recurso, que é circunscrito a matéria de direito (artigo 434.º do CPP), tem, pois, por objeto um acórdão da Relação proferido em recurso, que confirmou a decisão de aplicação de uma pena superior a 8 anos de prisão, como tal recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [cfr. artigos 399.º, 400.º, n.º 1, al. f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP].
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal ad quem, delimita-se pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).
12. Como resulta do acórdão recorrido, no recurso para o Tribunal da Relação a arguida AA impugnou a decisão em matéria de facto quanto aos factos dados como provados nos pontos 13 (parte), 15, 16, 34, 35, 36, 37 (parte), e 38, invocou erro de julgamento em matéria de direito quanto à «imputação subjetiva que lhe foi atribuída» («dolo eventual») e impugnou a decisão quanto à medida concreta da pena.
13. No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, vem agora, em substância, suscitar questões tendo por objeto:
a) A decisão em matéria de facto que foi já objeto de impugnação no recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que a manteve inalterada, na parte que considerou a conduta omissiva causal da morte da menor FF como iniciada a 19 de junho de 2022, com desconsideração do relatório pericial (fls. 513 a 525) e das declarações do respetivo perito, elementos probatórios que considera essenciais [conclusões a) a e)];
b) A decisão em matéria de direito na medida em que a condenou pela prática de um crime comissivo por omissão porque tinha um dever jurídico de garante perante a vítima, por, na sua alegação, ter desconsiderado as suas (in)capacidades pessoais para evitar o resultado morte, o que decorre do relatório social e das regras de experiência, e não ter resultado provado o nexo causal entre a conduta omissiva da recorrente e o resultado morte e a especial censurabilidade ou perversidade do homicídio qualificado, e, consequentemente, o grau de comparticipação [conclusões a) a e)];
c) A decisão de determinação da medida concreta da pena, que considera excessiva uma vez que foi condenada a título de dolo eventual e por prática de crime comissivo por omissão o que, alega, aponta para uma forma circunscrita de culpa, que convoca uma dupla atenuação especial (artigos. 10.º, n.º 3, e 73.º do Código Penal) que não foi aplicada [conclusões f) e g)].
Da pretensão de reexame da decisão da matéria de facto na parte que considerou a conduta omissiva causal da morte da menor FF como iniciada a 19 de junho
14. Das conclusões da motivação resulta que a recorrente retoma, ainda que de forma menos desenvolvida, a argumentação do recurso interposto para a Relação, sem levar em conta que o que agora está em causa é a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora.
Entende-se, todavia, não ser caso de rejeição por falta de motivação, considerando-se esta, persistindo na mesma linha argumentativa, como sendo agora dirigida ao acórdão da Relação que confirmou a condenação no acórdão da 1.ª instância1.
15. A recorrente, repetindo argumentos do recurso do acórdão da 1.ª instância perante o Tribunal da Relação, mantém (supra, 4) que “b) Em 20 de junho de 2022, quando (…) tem finalmente acesso à sua filha (que lhe era recusado), desconhecia em absoluto que a mesma havia sido sujeita, entre as 48h e as 2 horas anteriores, às mais variadas, brutais e inqualificáveis sevícias e que o seu destino já se encontrava traçado, porque, sabemo-lo agora, nada podia salvar a vida da infeliz criança”, colocando em causa a conclusão de que “c) (…) a conduta omissiva, causal da morte da menor FF, iniciou-se no dia 19 de junho, quando a recorrente “teve conhecimento da convulsão sofrida pela filha e, ainda assim, prosseguiu a sua rotina normal (…), pelo que (…) “não interrompeu, de forma decisiva, o processo causal (…)”, pois considera que o tribunal a quo “d) (…) não releva e não tem em conta (…) o elemento probatório essencial nestes autos: o relatório pericial (fls. 513 a 525) e as declarações do respetivo perito (pág. 39 do Acórdão proferido em 1ª Instância).”.
Conclui assim que “e) (…) as agressões que vieram a provocar o destino final da infeliz criança podem ter sido perpetradas na noite de 19 para 20 de junho, tendo sido por isso mesmo que nessa noite foram registadas 7 chamadas telefónicas efetuadas por um número cujo cartão foi apreendido na casa dos arguidos GG para o telemóvel da recorrente”.
16. Como considera o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, subscrevendo a resposta do Ministério Público junto do Tribunal da Relação, a recorrente dirige também a sua pretensão a uma reapreciação da matéria de facto provada em 1.ª instância e que não mereceu alteração em sede de recurso para o Tribunal da Relação, o que não poderá proceder face ao disposto no artigo 46.º da Lei n.º 62/2013 (Lei de Organização do Sistema Judiciário), de 26.08.2013, e no artigo 434.º do Código de Processo Penal («CPP»), que restringem os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça a matéria de direito.
Como se tem repetidamente afirmado, o recurso não serve para conhecer de novo da causa. Não é, neste caso, um segundo recurso do acórdão da 1.ª instância, mas um recurso do acórdão da Relação que conheceu daquele recurso, um meio processual – um “remédio processual” – destinado a garantir o direito de reapreciação, noutra instância, de decisões sobre matérias e questões submetidas a decisão do tribunal de que se recorre2, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objeto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente.
O que significa que, verificados os fundamentos para recorrer, o objeto do recurso se delimita pelas questões identificadas pelo recorrente que digam respeito a questões que tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que devessem sê-lo, com as necessárias consequências ao nível da validade da própria decisão, assim se circunscrevendo os poderes de cognição do tribunal de recurso, sem prejuízo, como referido, do exercício, neste âmbito, dos poderes de conhecimento oficioso necessários e legalmente conferidos em vista da justa decisão do recurso.
17. Esgotando-se no tribunal de relação a apreciação, em recurso, da decisão em matéria de facto – artigo 428.º do CPP, segundo o qual, as relações conhecem de facto e de direito –, o recurso interposto para o STJ, nos termos do artigo 434.º, do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas als. a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º, que dizem respeito aos recursos de decisões das relações proferidas em 1.ª instância e aos recursos de acórdãos proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, os quais, por força desta alteração legislativa, passam a admitir recurso para o STJ com os fundamentos (vícios da sentença e nulidades processuais) previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP.
Não sendo o caso – pois que se trata de recurso de acórdão da Relação proferido em recurso, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP –, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, sem prejuízo, como se notou, do conhecimento oficioso destes vícios e nulidades em vista da boa decisão de direito, que possa ser prejudicada ou afetada pela sua subsistência, conforme jurisprudência firme deste tribunal.
Este regime, tem-se sublinhado, efetiva de forma adequada a garantia do duplo grau de jurisdição, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição , enquanto parte integrante do direito de defesa em processo penal reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema de proteção de direitos humanos (nomeadamente no artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais).
18. Nas conclusões b), c), d) e e) da motivação de recurso, a recorrente reedita, ainda que de forma abreviada, as conclusões b) a i) do recurso que apresentou perante o Tribunal da Relação, questionando mais uma vez a matéria de facto, ao considerar que o tribunal recorrido não teve em conta elementos probatórios essenciais dos autos na decisão sobre a matéria de facto, o que consubstanciaria um erro de julgamento da matéria de facto por erro na apreciação da prova.
A inadmissibilidade do recurso, nesta parte, determina, porém, a sua rejeição nos termos das disposições conjugadas dos artigos 420.º, n.º 1, al. b), 414.º, n.º 2, e 434.º, todos do Código de Processo Penal.
19. Sem prejuízo do que vem de expor quanto ao conhecimento da matéria de facto e não se identificando qualquer nulidade processual que deva ser conhecida (artigo 410,º, n.º 3, do CPP), há que, embora de forma sumária, verificar se a decisão recorrida contém algum dos vícios mencionados no artigo 410.º, n.ºs 2, do CPP, suscetíveis de afetar as bases da decisão quanto às questões de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente para a decisão [n.º 2, al. a)], por esta assentar em premissas que se mostram contraditórias [n.º 2, al. b)], ou se fundar em manifesto erro de apreciação da prova [n.º 2, al. c)], ou, ainda, por se verificarem nulidades que não se devam considerar sanadas (n.º 3).
Como se tem afirmado em jurisprudência firme e reiterada, os vícios a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP são vícios de lógica do discurso argumentativo da decisão em matéria de facto, que resultam e se manifestam do texto da própria decisão, por si só ou em conjugação das regras da experiência, que não se confundem com erros de julgamento na apreciação da prova e no estabelecimento dos factos provados e não provados, pelo que o seu conhecimento se limita pelo texto da decisão recorrida, não sendo admissível o apelo a elementos exteriores a esse texto3.
Existe um vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada sempre que, do acervo de factos constantes da decisão, se constatar que faltam elementos que o tribunal recorrido deixou de apurar, mas que cabia indagar dentro do objeto do processo, tal como configurado pela acusação ou pela pronúncia e pela defesa, e que, nele, devessem ser esgotantemente averiguados pelo tribunal na constituição da base para a decisão de condenação ou de absolvição. Como se tem advertido, este vício não deve ser confundido com uma divergência relativa à apreciação da prova (artigo 127.º do CPP) ou com a insuficiência de prova para a decisão de facto, que se reconduz a erro de julgamento, matéria subtraída aos poderes de cognição do STJ.
Existe um erro de contradição insanável da decisão de facto ou entre a fundamentação e aquela decisão sempre que é dado como provado ou não provado um facto e o seu contrário, quando se consideram como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Exprime-se aqui uma incoerência, uma oposição, ou incompatibilidade manifesta e insanável entre diferentes passos da motivação da decisão, comprometendo a sua estrutura lógica, de forma inultrapassável pelo tribunal de recurso.
Finalmente, verifica-se erro notório na apreciação da prova se o erro é manifesto, ostensivo e evidente à observação do leitor, traduzindo-se num vício de lógica da decisão revelado a partir do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, que não se confunde com o erro de julgamento na apreciação da prova produzida em audiência.
20. Tendo presente que a decisão sob escrutínio é o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, que reapreciou, em recurso, a decisão em matéria de facto proferida pela 1.ª instância, sempre se dirá que da indagação oficiosa realizada, examinado o texto do acórdão recorrido em si e à luz das regras da experiência, como impõe o artigo 410.º n.º 2, do CPP, nada se encontra que denuncie uma insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, uma contradição da decisão de facto ou entre a fundamentação e aquela decisão ou um erro notório na apreciação da prova.
Em síntese, foram dados como provados em 1.ª instância e mantidos em recurso pelo Tribunal a quo, além do mais, os seguintes factos, que, constituindo a base para a decisão de direito, se mostram estabilizados:
- «em data não concretamente apurada, mas posterior ao início do mês de maio de 2022 e anterior a 08 de junho de 2022, por motivos não concretamente apurados, a arguida AA levou a sua filha FF para a residência dos arguidos (…) entregando-a aos seus cuidados» (facto 3);
- «quando regressou da residência dos arguidos, FF apresentava escoriações e nódoas negras na face, escoriação no lábio, uma marca de dentada no braço, e nódoas negras numa das pernas que se encontravam ocultadas pela saia que vestia» (facto 4);
- «apesar do estado em que se encontrava FF e de ter recebido aconselhamento de II nesse sentido, a arguida AA, convencida de que tais lesões foram provocadas pela família GG, não a levou a qualquer unidade hospitalar ou centro de saúde, a fim de aferir do estado de saúde daquela, nem apresentou queixa às autoridades» (facto 5);
- «FF voltou a permanecer na residência da família GG das 09H30 do dia 14 de junho de 2022 a cerca da mesma hora do dia 20 de junho de 2022», entregue pela recorrente; (factos 6 e 7);
- «Sofreu ainda em moldes e cronologia não apuradas, mas seguramente em momento posterior à tarde do dia 18 de junho de 2022 e anterior à entrega à progenitora no dia 20 de junho de 2022, pelo menos, 3 fortes embates com a cabeça em superfície(s) dura(s) e fortes abanões com intensidade superior a 2 abanões por segundo e por período sempre superior a 5 segundos» (facto 11);
- «No dia 19 de junho de 2022, em momento posterior a pelo menos um dos embates contra superfície dura a que se alude em 11, entre as 18h03m e as 18h52m, a arguida AA soube através de chamada telefónica efetuada a partir do n.º .......88, que a sua filha FF estaria com problemas de saúde/físicos no Beco do ... onde se mantinha com os coarguidos BB, CC e DD» (facto 13);
- A arguida «constatou que a sua filha tinha a cara queimada na zona do nariz e buço com equimoses visíveis na testa e faces, prostrada, sem abrir os olhos, sem falar, tendo ainda tido conhecimento em moldes não concretamente apurados, de que a mesma teria naquele dia, em movimento reflexo, enrolado a língua e revirado os olhos, ao mesmo tempo que todo o seu corpo tremia e se esticava, factos que os arguidos BB, CC e DD presenciaram, tomando conhecimento em momento anterior» (facto 15);
- «Apesar de ter observado as referidas lesões, de se ter apercebido do estado muito grave de saúde em que FF, sua filha, se encontrava e, de estar convencida terem sido os coarguidos a provocar as lesões que observou, a arguida AA regressou a sua casa, mantendo a sua filha aos cuidados de BB, CC e DD, sem chamar socorro médico, sem solicitar a intervenção das autoridades e sem contar a ninguém o que ali tinha acabado de observar, antes optando por manter a sua rotina diária» (facto 16);
- «No dia 20 de junho de 2022, a arguida AA recebeu e atendeu às 08H04m, uma chamada o número .......88, efetuando outra às 08H58m, após mais duas chamadas não atendidas às 08H51m e 08H56m, após o que foi buscar a sua filha FF que lhe foi entregue por BB e DD, cerca das 09H30 (…) FF estava enrolada numa manta, permanecendo sem se mexer, falar, com os olhos sempre fechados, equimoses nas pernas, testa e faces, grandes peladas no couro cabeludo e a zona do rosto toda ensanguentada, ostentando uma queimadura no nariz e buço» (factos 17 e 18);
- «Após receber a sua filha, fez o percurso inverso de regresso a sua casa, com a filha ao colo, completamente prostrada e as arguidas BB e DD a acompanharem-na» (facto 19);
- «Quando chegou a sua casa, cerca das 10h00m., e depois de ter visto, pelo menos, as lesões descritas nos pontos 15) e 18), a arguida AA deitou FF na cama do seu quarto e aí a deixou, apesar dos ferimentos e de se encontrar prostrada, sem reagir a qualquer estímulo, a arguida AA, uma vez mais, não chamou socorro médico e não solicitou a intervenção das autoridades» (factos 20 e 21);
- «Apesar de estar convencida de que foram os arguidos BB, CC e DD, os responsáveis pelo aparecimento das lesões descritas no ponto 4 dos factos provados, a arguida AA, praticou os factos descritos no ponto 6, consciente de que expunha a sua filha ao perigo e que comprometia o seu bem-estar, a sua integridade física e o seu direito à infância, conformando-se» (facto 34));
- «Ao praticar os factos descritos no ponto 16, após tomar conhecimento da factualidade descrita em 15, AA soube que o estado de saúde de FF era muito grave, a carecer de socorro médico urgente, pelo que previu necessariamente como possível, a ocorrência da sua morte, conformando-se» (facto 35);
- «Consciente da factualidade descrita no ponto 18 e do risco que desde o dia anterior a vida da sua filha corria, caso não fosse prestado imediato auxílio médico, AA praticou a factualidade descrita nos pontos 19 a 23 dos factos provados, ciente de que a sua filha estava a morrer, conformando-se» (facto 36).
21. A respeito da impugnação pela recorrente dos factos dados como provados nos pontos 13 (parte), 15, 16, 34, 35, 36, 37 (parte), e 38, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância, refere o Tribunal da Relação, a dado passo, na sua fundamentação:
“[…] Ainda assim, mesmo que incorramos na repetição de segmento da fundamentação desenvolvida pelo tribunal, na esteira da resposta do M.º P.º a esta concreta alegação diremos que a invocação por banda da recorrente, mais de que uma vez, de que o Tribunal foi além do suporte probatório invocado, produzindo uma narrativa conclusiva, parece esquecer que a prova deve ser valorada na sua globalidade, com recurso a deduções e induções, tendo sempre presente as regras da experiência comum, não se circunscrevendo apenas à prova declarativa produzida.
No caso vertente, tais regras não só legitimam, mas antes impõem a conclusão extraída e plasmada na factualidade provada ora questionada: a de que a recorrente tomou conhecimento directo, no dia 19 de Junho de 2022, do estado de saúde de sua filha e da extrema gravidade do mesmo, de que a sua vida corria perigo e que, não obstante, nada fez para evitar a sua morte, conformando-se com a mesma.
Estranhamente, por banda da recorrente não se mostra questionada a factualidade inserta nos pontos 3, 4 e 5 (este conexionado com o ponto 34), sendo certo que nos pontos 4 e 5 se refere que, aquando do regresso da residência dos arguidos GG, a menor apresentava diversas lesões externas e que, apesar desse facto e de ter sido aconselhada por II, a recorrente, convencida de que tais lesões foram provocadas pela família GG, não a levou a qualquer unidade hospitalar ou centro de saúde, a fim de aferir do estado de saúde daquela, nem apresentou queixa às autoridades.
Tal factualidade assentou, como se menciona no acórdão recorrido, na conjugação das declarações da arguida AA que nesta parte conseguiu manter alguma coerência, com as do arguido KK, que atestou ter visto a criança na casa dos pais em momento anterior, uns meses antes, com o depoimento da testemunha II, que atestou ter visto FF umas semanas antes com marcas de agressões após um período em que não a viu junto da mãe AA e, as fotografias a fls. 1227 a 1229 que esta arguida terá entregue ao processo como meio de retratar as primeiras agressões.
Os factos dados como provados em 33 e 34 assentam nos factos constantes dos pontos 4, 5 e 6, já mencionados e da conjugação de toda a restante prova, designadamente a descrita nos pontos 13 a 19, com regras básicas de experiência comum, sendo marcadamente mais evidente a consciencialização da iminência da morte de FF após presenciar a convulsão conforme descrito no ponto 15 dos factos provados.
Como se consignou no texto decisório, provando-se que AA ficou convencida que as lesões descritas no ponto 4 dos factos provados foram produzidas por BB, CC e DD, independentemente de assim ter ocorrido ou não, certo é que teria de saber que ao entregar novamente FF aos coarguidos nos termos descritos em 6, expunha a sua filha ao perigo, comprometendo o seu bem-estar, integridade física e infância.
Por maioria de razão, conhecedora que era de que a sua filha não sofria de epilepsia, ao tomar conhecimento da convulsão descrita no ponto 15 dos factos provados e ao visualizar a cara de FF, teve forçosamente de se consciencializar que a sua filha estava naquele momento em risco de vida e que carecia de socorro médico urgente, sob pena da mesma poder vir a morrer, como efetivamente ocorreu. Isto quanto ao dia 19 de junho, tudo se agravando no dia 20.
A recorrente reconduz a sua omissão apenas ao dia 20 de Junho de 2022, quando a menor lhe foi entregue pelas arguidas BB e DD.
Mas a sua conduta omissiva, causal da morte de FF, iniciou-se no dia 19 de Junho, quando teve conhecimento da convulsão sofrida pela filha e, ainda assim, prosseguiu a sua rotina normal, saindo nessa noite com o seu companheiro, HH, sendo certo que, nessa noite, recebeu sem atender 7 chamadas do número n.º .......88 (correspondente a um dos cartões apreendidos na casa da família GG), a última das quais às 00H33m do dia 20 de Junho de 2022 (facto provado 47).
Chamadas efectuadas supostamente pelas pessoas que tinham consigo a sua filha, cujo estado quase moribundo presenciara horas antes…
Deste modo, a recorrente não interrompeu, de forma decisiva, o processo causal, podendo (e devendo) fazê-lo.
Deste modo, decorre que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação alargada da matéria de facto por parte da recorrente. […]»
22. Para além disso, o Tribunal da Relação transcreveu e subscreveu a fundamentação da decisão em 1.ª instância do seguinte teor:
«[…] C) Convicção do Tribunal
O tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente nos esclarecimentos prestados pelo senhor perito médico-legal Dr. LL (…)
(…) Prova pericial: a) Relatório preliminar de autópsia médico-legal (fls. 513 a 525);
b) Relatório de autópsia médico-legal resposta complementar a quesitos (fls. 1732 a 1734); (…)
(…) Genericamente o tribunal formou a sua convicção essencialmente pela conjugação daquilo a que se pode chamar o depoimento da vítima post mortem traduzido nas imagens que temos do corpo à chegada ao hospital e após, na autópsia, com os relatórios de autópsia, resposta aos quesitos, estudo histopatológico e com os esclarecimentos prestados pelo senhor perito em sede de audiência de julgamento. Esta é a prova essencial e que alicerça a base da convicção do tribunal. Por um lado, de forma mais vincada, quanto às agressões perpetradas contra o corpo da criança FF e os seus efeitos no processo morte (dando-nos o quê e o como aconteceu). Por outro, no estabelecimento de marcos temporais importantíssimos para o julgamento do caso (dando-nos o quando) para, com o auxílio da prova testemunhal e documental, quando corroborativas uma da outra, conseguir concluir ou não pela autoria dos factos imputados que levaram à morte da vítima, seja pela ação de produzir o resultado, seja pela inação de não o evitar (dando-nos o quem). (…)
(…) O tribunal alicerçou a sua convicção na prova da matéria descrita nos pontos 8 a 12 e 25 a 27 no relatório preliminar de autópsia médico-legal (fls. 513 a 525) de autópsia médico-legal de resposta complementar aos quesitos efetuados pelo Ministério Público na fase de inquérito (1732 a 1734), estudo histopatológico (2734 a 2738) e esclarecimentos do senhor perito prestados em audiência. Estes elementos foram fundamentais para fixar o período das lesões e como é que elas apareceram, porque resultam de evidência científica. (…)
(…) Quem presenciou os factos não os relatou, pelo que não foi possível concretizar com detalhe o que efetivamente ocorreu, mas com o auxílio do senhor perito, foi assim possível obter uma descrição factual que permite percecionar com um grau mínimo de rigor, a intensidade do esforço físico necessário a produzir tão elevado número de lesões e o tempo necessário para as concretizar. A baliza temporal máxima dos 5 dias foi fixada pela cor das equimoses e que evidencia o seu estádio de cicatrização, remetendo-se para a audição dos esclarecimentos do senhor perito quanto aos estádios de hemorragia ativa (mais avermelhada), consolidação (entre o vermelho e o arroxeado), reabsorção (arroxeadas) e cicatrização traduzindo este último estádio a ocorrer ao fim de 5 dias as equimoses de cor esverdeada que vão amarelando até desaparecer. (…)
(…) É relevante salientar neste momento, que o senhor perito, com vista a ilustrar a violência de tais embates, colocou a possibilidade da criança ter sido arremessada contra uma parede, agarrada pelos pés, como se de um bastão de tratasse. Para melhor se interpretar a matéria de facto, o tribunal sublinhou e destacou as ações descritas que provocaram a morte e as respetivas evidências na descrição das lesões no relatório de autópsia. Concretizando, às ações descritas no ponto 11 dos factos provados, correspondem as equimoses descritas no ponto 25-I-A) alíneas d), c) e k), que por sua vez exteriorizam as lesões verificadas no hábito interno que efetivamente causaram a morte de FF e se encontram descritas no ponto 25-II-B) alíneas b) c) e d), igualmente sublinhadas e destacadas. No que concerne à janela temporal em que estas lesões foram produzidas, o tribunal julgou provado que as mesmas foram resultado de agressões desferidas após a tarde de 18 de junho de 2022 e antes da entrega de FF a AA. Isto porque de acordo com o senhor perito, estas lesões em concreto não poderiam ter mais de 48 horas nem menos de duas horas. Quando no relatório de autópsia se refere a hemorragia subdural e sub-aracnoideia sem infiltrado inflamatório, tal significa de acordo com o senhor perito que a lesão é muito recente, inferior a 48 horas. As lesões são muito graves e a vítima teria de ter ficado prostrada, como efetivamente já estava quando foi entregue a AA, razão pela qual é forçoso concluir que as lesões mortais foram provocadas em momento anterior, assim se julgando a factualidade conforme descrito no ponto 11. (…)
(…) AA, CC e BB descrevem ter observado FF a ter uma convulsão. CC logo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido referiu que foi comprar fraldas para FF e que quando chegou esta estava caída e que começou a enrolar a língua e “mexia as mãozinhas, os bracinhos” tendo tal corrido após uma suposta queda de uma cadeira. BB referiu a mesma queda da cadeira, descrevendo que a menina ficou meio a desmaiar e que deitada começou a fazer movimentos de “esticar-se”. Ambos referiram que BB ligou à mãe que foi lá a casa, o que se mostra documentalmente comprovado pelo registo telefónico da tarde do dia 19 de junho de 2022 e pelas imagens de videovigilância da Avenida ... que AA desce parcialmente em passo de corrida, voltando 25 minutos depois, o que é tempo suficiente para a ocorrência dos factos que o tribunal julgou provados, tendo em conta a distância a percorrer e a velocidade média de caminhada – fls. 156 a 160 do Apenso I. Abstraindo da descrição de quem é que desenrolou a língua a FF, se AA assistiu ou não assistiu à convulsão e se para tanto foi ou não utilizada uma colher, pois que as contradições e mudanças de versão espelhadas nas audições das gravações, são muitas, certo é que a descrição da reação física é real e compatível com as lesões que a autópsia aponta ter a menor sofrido naquela janela temporal. Os arguidos não têm conhecimento médico/científico para descreverem tais reações num cenário de efabulação. Concluiu por isso o Coletivo, com certeza, que pelo menos BB, CC e DD observaram FF a ter esta reação, que de acordo com o senhor perito evidencia uma convulsão por falha no sistema nervoso central provocada por um dos fortes embates ou abanões que terá sofrido nos termos descritos no ponto 11 dos factos provados e que lhe terá provocado a morte no dia seguinte. DD também estaria presente porque para além de ter colocado a última fralda que FF usou, foram encontrados vestígios de ADN seu e de BB junto com mechas de cabelos arrancados com raiz nos termos descritos em 12. Os arguidos estavam presentes e como perceberam nesse momento que FF teria a vida em risco, ligaram a AA que apressadamente se dirigiu ao local e necessariamente terá tomado conhecimento nesse momento da reação e visualizado o estado de saúde da sua filha que já teria de estar prostrada. Não faz sentido uma das últimas versões trazidas por AA quando diz que os GG não a deixaram ver a sua filha. Se assim fosse, não lhe teriam ligado para contar o episódio da convulsão. Mesmo num cenário que não se provou, em que os arguidos pretendessem pressionar AA ao pagamento de uma dívida, torturando a filha, se não lhe mostrassem o real estado físico em que a mesma se encontrava, não obteriam o efeito pretendido de condicionar AA a proceder ao pagamento no mais breve possível. Termos em que o tribunal se convenceu que a arguida AA, tal como os demais arguidos se consciencializaram na tarde de 19 de junho de 2022 que a vida de FF estava fortemente em perigo e que nada fazendo para a evitar, se conformaram com a sua morte. (…) […]»
23. Da leitura da decisão proferida sobre a matéria de facto e face ao recorte conceptual do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, tal como sedimentado na doutrina e na jurisprudência, conclui-se que o referido vício não se verifica. Efetivamente, os factos ali narrados estão suficientemente especificados, porque o tribunal averiguou exaustivamente toda a matéria descrita na acusação e na defesa, tendo prolatado uma decisão que traduz um juízo seguro e sustentado numa base factual sólida construída com todos os elementos necessários, não se vislumbrando que tenham ficado por apurar factos que, uma vez averiguados pelo tribunal e dados como provados, determinariam uma decisão de direito distinta.
Também não se verifica vício de contradição insanável da decisão de facto ou entre a fundamentação e aquela decisão. Perscrutando todos os factos provados e não provados, não se deteta qualquer contradição ou incompatibilidade entre si. Igualmente, não se alcança qualquer incoerência ou oposição manifesta ao longo da fundamentação da decisão, cuja verificação, por inultrapassável, poderia conduzir a uma decisão oposta à que foi tomada. A fundamentação do acórdão recorrido apresenta-se correta, sem defeito e coesa, sem a presença de erros percetíveis pela sua leitura. A sua formulação textual segue um fio condutor isento de contradições, uma linha de raciocínio lógico e coerente, quer entre os factos provados e não provados, quer entre estes e a sua respetiva fundamentação de facto, não patenteando qualquer distorção ou apreciação arbitrária, incongruente ou insustentável.
24. Ressalva-se aqui, porém, uma aparente imprecisão, passível de configurar um mero lapso de escrita que se deteta da simples leitura da fundamentação da matéria de facto redigida em 1.ª instância e mantida pelo Tribunal a quo, no parágrafo: «[…] AA, CC e BB descrevem ter observado FF a ter uma convulsão. […]». Onde se diz «[…] AA, CC e BB descrevem (…) […]», crê-se, queria dizer-se «[…] DD, CC e BB descrevem ter observado FF a ter uma convulsão […]».
Tal lapso, que em nada relevou para a decisão agora em recurso, resulta evidente da própria fundamentação, dizendo-se no mesmo parágrafo que: «CC logo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido referiu que foi comprar fraldas para FF e que quando chegou esta estava caída e que começou a enrolar a língua (…) BB referiu a mesma queda da cadeira, descrevendo que a menina ficou meio a desmaiar (…) ambos referiram [CC e BB] que BB ligou à mãe que foi lá a casa, o que se mostra documentalmente comprovado pelo registo telefónico da tarde do dia 19 de junho de 2022 e pelas imagens de videovigilância da Avenida ... que AA desce parcialmente em passo de corrida, voltando 25 minutos depois, o que é tempo suficiente para a ocorrência dos factos que o tribunal julgou provados (…) abstraindo da descrição de quem é que desenrolou a língua a FF, se AA assistiu ou não assistiu à convulsão (…) Concluiu por isso o Coletivo, com certeza, que pelo menos BB, CC e DD observaram FF a ter esta reação (…) DD também estaria presente porque para além de ter colocado a última fralda que FF usou, foram encontrados vestígios de ADN seu e de BB junto com mechas de cabelos arrancados com raiz nos termos descritos em 12 (…)».
25. Finalmente, também não se identifica vício de erro notório na apreciação da prova, que parece ser o vício que mais se aproxima ao pretenso erro da decisão invocado no recurso.
Com efeito, a recorrente questiona, como se disse, a valoração da prova produzida em audiência, pois considera que esta, no que respeita ao teor do relatório pericial e às declarações prestadas pelo perito em audiência, não foi devidamente relevada e tida em conta pelo tribunal a quo. Em consequência, avança, como hipótese, que «as agressões que vieram a provocar a destino final da infeliz criança podem ter sido perpetradas na noite de 19 para 20 de Junho, tendo sido por isso mesmo que nessa noite foram registadas 7 chamadas telefónicas efetuadas por um número cujo cartão foi apreendido na casa dos GG.»
Importa assinalar, desde já, que não lhe assiste razão.
26. Conforme resulta do texto do acórdão recorrido, o tribunal a quo, ao manter na íntegra a decisão proferida em 1.ª instância, transcreve e subscreve os considerandos referentes à apreciação da prova e à fundamentação da decisão em matéria de facto, em que se incluem estes dois elementos probatórios, de importância decisiva à fixação dos factos provados.
Ao percorrer-se aquela decisão, verifica-se que o tribunal retira precisamente do conteúdo desses dois elementos probatórios a conclusão de que a recorrente tomou conhecimento do estado de saúde de FF e do risco de vida que esta corria no dia 19.06.2022.
Lê-se no acórdão recorrido:
«[…] É relevante salientar neste momento, que o senhor perito, com vista a ilustrar a violência de tais embates, colocou a possibilidade da criança ter sido arremessada contra uma parede, agarrada pelos pés, como se de um bastão de tratasse. Para melhor se interpretar a matéria de facto, o tribunal sublinhou e destacou as ações descritas que provocaram a morte e as respetivas evidências na descrição das lesões no relatório de autópsia. Concretizando, às ações descritas no ponto 11 dos factos provados, correspondem as equimoses descritas no ponto 25-I-A) alíneas d), c) e k), que por sua vez exteriorizam as lesões verificadas no hábito interno que efetivamente causaram a morte de FF e se encontram descritas no ponto 25-II-B) alíneas b) c) e d), igualmente sublinhadas e destacadas. No que concerne à janela temporal em que estas lesões foram produzidas, o tribunal julgou provado que as mesmas foram resultado de agressões desferidas após a tarde de 18 de junho de 2022 e antes da entrega de FF a AA. Isto porque de acordo com o senhor perito, estas lesões em concreto não poderiam ter mais de 48 horas nem menos de duas horas. Quando no relatório de autópsia se refere a hemorragia subdural e sub-aracnoideia sem infiltrado inflamatório, tal significa de acordo com o senhor perito que a lesão é muito recente, inferior a 48 horas. As lesões são muito graves e a vítima teria de ter ficado prostrada, como efetivamente já estava quando foi entregue a AA, razão pela qual é forçoso concluir que as lesões mortais foram provocadas em momento anterior, assim se julgando a factualidade conforme descrito no ponto 11. (…)
(…) AA, CC e BB descrevem ter observado FF a ter uma convulsão. CC logo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido referiu que foi comprar fraldas para FF e que quando chegou esta estava caída e que começou a enrolar a língua e “mexia as mãozinhas, os bracinhos” tendo tal corrido após uma suposta queda de uma cadeira. BB referiu a mesma queda da cadeira, descrevendo que a menina ficou meio a desmaiar e que deitada começou a fazer movimentos de “esticar-se”. Ambos referiram que BB ligou à mãe que foi lá a casa, o que se mostra documentalmente comprovado pelo registo telefónico da tarde do dia 19 de junho de 2022 e pelas imagens de videovigilância da Avenida ... que AA desce parcialmente em passo de corrida, voltando 25 minutos depois, o que é tempo suficiente para a ocorrência dos factos que o tribunal julgou provados, tendo em conta a distância a percorrer e a velocidade média de caminhada – fls. 156 a 160 do Apenso I.
(…) Abstraindo da descrição de quem é que desenrolou a língua a FF, se AA assistiu ou não assistiu à convulsão e se para tanto foi ou não utilizada uma colher, pois que as contradições e mudanças de versão espelhadas nas audições das gravações, são muitas, certo é que a descrição da reação física é real e compatível com as lesões que a autópsia aponta ter a menor sofrido naquela janela temporal. Os arguidos não têm conhecimento médico/científico para descreverem tais reações num cenário de efabulação. Concluiu por isso o Coletivo, com certeza, que pelo menos BB, CC e DD observaram FF a ter esta reação, que de acordo com o senhor perito evidencia uma convulsão por falha no sistema nervoso central provocada por um dos fortes embates ou abanões que terá sofrido nos termos descritos no ponto 11 dos factos provados e que lhe terá provocado a morte no dia seguinte. DD também estaria presente porque para além de ter colocado a última fralda que FF usou, foram encontrados vestígios de ADN seu e de BB junto com mechas de cabelos arrancados com raiz nos termos descritos em 12. Os arguidos estavam presentes e como perceberam nesse momento que FF teria a vida em risco, ligaram a AA que apressadamente se dirigiu ao local e necessariamente terá tomado conhecimento nesse momento da reação e visualizado o estado de saúde da sua filha que já teria de estar prostrada. (…)».
27. Daqui resulta à evidência que o tribunal concluiu que pelo menos um dos fortes embates ou abanões que FF sofreu nos termos descritos no ponto 11 dos factos provados e que lhe terá provocado a morte no dia seguinte foi desferido antes da descrita convulsão, ocorrida na janela temporal infra referida, já que, segundo as declarações do perito ouvido em audiência, a descrita reação física de FF evidencia uma convulsão por falha no sistema nervoso central compatível com as lesões que a autópsia aponta ter a menor sofrido naquela janela temporal e que a levaram à morte.
Nota-se, a este propósito, que o tribunal, por dever de ofício, teve o cuidado de referir um cenário que não resultou provado para blindar a decisão em matéria de facto a que chegou, concluindo não ser credível qualquer outra versão sobre os factos apurados. Disse: “(…) Não faz sentido uma das últimas versões trazidas por AA quando diz que os GG não a deixaram ver a sua filha. Se assim fosse, não lhe teriam ligado para contar o episódio da convulsão. Mesmo num cenário que não se provou, em que os arguidos pretendessem pressionar AA ao pagamento de uma dívida, torturando a filha, se não lhe mostrassem o real estado físico em que a mesma se encontrava, não obteriam o efeito pretendido de condicionar AA a proceder ao pagamento no mais breve possível. Termos em que o tribunal se convenceu que a arguida AA, tal como os demais arguidos se consciencializaram na tarde de 19 de junho de 2022 que a vida de FF estava fortemente em perigo e que nada fazendo para a evitar, se conformaram com a sua morte. (…)”.
Assim, não subsistem quaisquer dúvidas de que os referidos elementos probatórios foram devidamente considerados na decisão recorrida.
28. Questão distinta é a expressão de uma divergência que possa resultar em relação ao decidido face à apreciação de determinados elementos probatórios em conjugação com os demais.
Com interesse, a este propósito, pode ler-se, no acórdão recorrido, o seguinte:
«[…] a arguida apesar de indicar quais os concretos pontos de facto que considera erradamente julgados, limitou-se a fazer a sua própria valoração da prova produzida na audiência de julgamento e que se mostra discriminada na decisão recorrida, mais especificamente, na fundamentação da convicção do tribunal, em contraposição à que foi feita pelo tribunal. A arguida utiliza diversas fórmulas ou procedimentos na tarefa de impugnação a que se propôs e que passam por menções como “não encontra o tal suporte científico, essencial para a decisão destes autos, que o sustente”, quanto ao facto 13, “o tribunal a quo foi além desse suporte probatório e produziu uma narrativa conclusiva, ao arrepio dos elementos que constam dos autos, uma vez que não há um único elemento probatório que refira”, “Não há um único elemento probatório“, quanto aos factos 15 e 16, “parte do pressuposto (repete-se, não probatório) que a recorrente foi protagonista dos estados de alma que o acórdão qualificou, sem ter ponderado outro cenário igualmente viável”, “tribunal a quo, quase imbuído de um ímpeto de justicialismo jornalístico que, em tempo algum, deverá toldar o juízo (necessariamente) crítico das provas existentes”, para concluir que “dos factos provados, devem ser considerados como não provados, por estarem imbuídos de considerações sobre a perceção que a recorrente teria tido quanto ao desfecho do assassinato da sua filha, que não encontram sustentação probatória nos autos”.
Com o devido respeito pela leitura da decisão transmitida pela recorrente com a alegação em questão, verificamos que a mesma se limita a fazer uma valoração/apreciação própria dos meios de prova que o tribunal elegeu para a sua convicção, ignorando a análise critica que dos mesmos meios o tribunal fez quando os analisou e conjugou. […]».
29. A argumentação da recorrente reconduz-se, a final, a uma irrelevante manifestação de discordância quanto ao decidido, em moldes similares aos já afirmados perante o Tribunal da Relação, em recurso da decisão da 1.ª instância.
Disse, a este respeito, o Tribunal da Relação:
«[…] Acresce que resultando claro que andou bem o Tribunal “a quo”, na apreciação e valoração de tais elementos de prova, admitir outra valoração apenas por reserva mental se poderia conceder.
Assim, face a este acervo de prova, terá de se concluir nos termos feitos pelo Tribunal “a quo”, pois nenhuma outra prova directa ou indirecta existe sobre a ocorrência de tais factos.
A prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada.
O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou “hominis”, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.
Ademais, ressalvado sempre o devido respeito pelo esforço argumentativo dos recorrentes, os mesmos olvidam o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127º, do Código de Processo Penal, norma de acordo com a qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
É sabido que livre convicção não se confunde com convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, no ensinamento do Professor Figueiredo Dias (…), que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.
A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.
Só assim não será, quando as provas produzidas impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, o que sucederá, sem preocupação de enunciação exaustiva, designadamente, quando o julgador decidiu a apreciação dos meios de prova ou de obtenção de prova ao arrepio e contra a prova produzida (v.g. dá como provado determinado facto com fundamento no depoimento de determinada testemunha e ouvido tal depoimento ou lida a respectiva transcrição constata-se que a dita testemunha disse coisa diversa da afirmada na decisão recorrida ou nem se pronunciou sobre aquele facto), ou quando o tribunal valorou meios de prova ou de obtenção de prova proibidos, ou apreciou a prova produzida desrespeitando as regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis”, ou quando a apreciação da prova produzida contraria as regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, enfim, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, ou, ainda, quando a apreciação se revela ilógica, arbitrária e violadora do “favor rei”.
Tal interpretação e aplicação do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, não viola qualquer preceito constitucional, nomeadamente qualquer garantia de defesa do arguido, constitucionalmente garantida nomeadamente pelo artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa.
Posto isto, surge como evidente que a não aceitação, que a recorrente manifesta relativamente ao modo como o Tribunal “a quo” decidiu a matéria de facto, não radica na existência de provas que impusessem decisão diversa da que foi proferida, mas tão só nas suas análises pessoais da prova e da sua vontade de a sobrepor à análise levada a cabo por quem tem o poder/dever de a fazer. […]».
30. O erro que respeite à apreciação da prova enquanto juízo valorativo e objetivo (artigo 127.º do CPP), efetuado mediante a ponderação de cada prova produzida em conjugação com as demais e que permitiu dar como assentes os factos provados e não provados pelo tribunal a quo, terá de ser havido como erro de julgamento, distinto do erro-vício, já analisado.
Como anteriormente se deixou expresso, quanto à impugnação da decisão em matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem competência de reexame da matéria de direito, podendo, por esta via, controlar a legalidade da prova produzida – verificando, por exemplo se foi produzida prova proibida ou se se omitiu a produção de alguma prova apresentada em detrimento do direito de defesa dos arguidos que possa gerar uma nulidade do acórdão recorrido –, mas não exerce controlo do juízo de valoração dessa prova feito pelo Tribunal da Relação fora do âmbito de apreciação dos vícios da sentença (artigo 410.º, n.º 2, do CPP).
31. Da análise da decisão sob recurso extrai-se que todas as questões suscitadas a propósito da matéria de facto foram devidamente apreciadas, não revelando erro ou lapso suscetíveis de afetar o juízo probatório formulado no sentido da imputação dos factos narrados à recorrente.
Por outro lado, evidencia a decisão um juízo estruturado e solidamente fundamentado, na medida em que o tribunal recorrido analisou exaustiva e criticamente toda a prova, conjugando, designadamente, a prova documental, testemunhal e pericial produzida em audiência de julgamento e efetuando uma ponderação crítica e valorativa de todo o acervo probatório, sujeito a rigoroso teste de contraditório.
Tal ponderação conduziu a uma decisão clara e objetiva da qual ressalta o processo de fundamentação para explicar as razões pelas quais foi integralmente acolhida a decisão da 1.ª instância, no qual não se identificam qualquer erro ou motivo de nulidade, nem juízos contraditórios, desrazoáveis, incongruentes ou contrários às regras da experiência comum, passíveis de censura.
32. Pelo que vem de se expor se conclui que, mostrando-se elaborado em total respeito pelas normas legais aplicáveis (artigos 374.º, 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP), e inexistindo vício ou nulidade suscetível de afetar o acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, se considera definitivamente fixada a matéria de facto.
Em consequência, improcede o recurso na parte em que vem questionada a decisão nesta matéria.
Do reexame da decisão da matéria de direito na medida em que condenou a recorrente pela prática de um crime comissivo por omissão, por violação do dever de garante
33. A recorrente põe em causa a sua condenação pela prática do crime de homicídio por omissão, por violação do dever de garante.
Refere que o tribunal desconsiderou as suas (in)capacidades pessoais para evitar o resultado morte, conforme decorre do relatório social e das regras de experiência (pontos 2, 3 e 8 da motivação), o facto de não ter conhecimento de que os outros arguidos pudessem ter perpetrado as agressões e o facto de não ter dado adesão ou concordância a tal atuação (pontos 5 e 7 da motivação).
Refere ainda que não resultou provado o nexo causal entre a conduta omissiva da recorrente e o resultado morte de FF (pontos 9, 14, 15 e 16 da motivação) e que não poderia ter sido condenada pelas qualificativas do crime porque não resultou provada a especial censurabilidade ou perversidade uma vez que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independente do grau de culpa ou punição dos outros comparticipantes, sendo que foi condenada a título de dolo eventual (pontos 18, 19, 20 e 21 da motivação).
34. Nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 1, do CPP, a motivação é constituída por duas partes: uma parte que enuncia especificamente os fundamentos de facto e de direito da razão da discordância com a decisão recorrida e outra, as conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido e que delimitam o âmbito do recurso (supra, 11).
Apesar de nas conclusões apenas se questionar a determinação da medida da pena e a não atenuação especial, certo é que, no corpo da motivação, a recorrente manifesta o seu inconformismo relativamente à decisão das questões anteriormente referidas, inerentes ao estabelecimento da moldura abstrata da pena – que constitui o primeiro momento do processo de determinação da pena –, pelo que também estas serão apreciadas. Iniciando-se esta apreciação pela definição do quadro legal relevante.
(Cont.). Do crime comissivo por omissão e da posição jurídica de garante
35. A recorrente foi condenada pela prática, em comissão por omissão, no período compreendido entre os dias 14 de junho de 2022 e 20 de junho de 2022, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 10.º n.º 1 e 2, 131.º n.º 1, 132.º n.º 2, al. a), c) e h), do Código Penal, na pena de 25 (vinte e cinco) anos de prisão, condenação que foi mantida inalterada no acórdão recorrido.
36. Importa, antes de mais, centrar a atenção no regime do crime comissivo por omissão (a denominada «omissão imprópria»4) e na posição jurídica de «garante» (seu elemento decisivo do tipo de ilícito), convocando o artigo 10.º do Código Penal («CP»), em que se funda a condenação.
Dispõe este preceito:
«Artigo 10.º (Comissão por acção e por omissão)
1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.»
37. A omissão é, ao lado da ação (artigo 10.º, n.º 1, do CP), uma das formas de realização típica do crime – o tipo de crime tanto se realiza através da prática da ação proibida como através da omissão5 de um comportamento juridicamente exigido para afastar um resultado típico6.
Estabelecendo um critério de solução das delicadas e complexas questões de tratamento penal da omissão, o artigo 10.º, n.º 1, do CP inclui uma cláusula de equiparação da omissão à ação descrita na lei7, quanto aos denominados crimes «impuros» ou «impróprios» de omissão, que, por «extensão da punibilidade» dos tipos legais à omissão, estabelece as condições de «correspondência material» entre estas formas de realização dos tipos legais de crime, ligando-a à circunstância de o agente não ter diminuído ou eliminado o perigo para o bem jurídico ameaçado8.
A tipicidade legal resulta, nestes casos, não de uma descrição típica da ação punível, mas da cláusula geral de equiparação se esta compreender «um certo resultado» (n.º 1 do art.º 10.º), como sucede no caso do homicídio, de que agora se trata. A omissão «impura» ou «imprópria» corresponde, assim, a um tipo de crime «composto» pelo tipo previsto na Parte Especial do Código Penal (no caso, pelos artigos 131.º e 132.º) e pela cláusula de equiparação do artigo 10.º 9.
A equiparação encontra o seu fundamento quando, por conjugação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do CP, através de uma «valoração autónoma da ilicitude», se conclui, relativamente ao mesmo tipo de ilícito, que compreende o resultado típico10 – no caso do homicídio, a morte da vítima –, que o desvalor da omissão corresponde no essencial ao desvalor da ação, excluindo, assim, os casos em que «outra for a intenção da lei» (n.º 1, in fine, do artigo 10.º). O que só sucede se e quando sobre o agente recaia um «dever de evitar ativa e positivamente a realização típica», «de obstar à verificação do resultado típico», isto é, um «dever de garantia» ou «dever de garante» (n.º 2 do artigo 10.º), apesar de tal dever não se encontrar na descrição do tipo legal de crime.
A exclusão da equiparação se for essa a «intenção da lei»11 não suscita problemas quanto aos crimes em que o tipo legal se limita a descrever a «causação de um resultado» (crimes de execução livre, «causais puros», como o homicídio), casos em que a equiparação tem lugar12.
Autor de um crime de omissão «impura» só pode ser o garante; pune-se o agente que, sendo garante, nada faz para afastar a ameaça da lesão (da vida, no homicídio – art.º 131.º do CP)13.
38. Identificam-se como elementos do tipo incriminador objetivo do crime de omissão imprópria: a «situação típica» e a ausência da ação devida ou esperada; a possibilidade fática de ação; a imputação objetiva do resultado; e a posição de garante14.
O primeiro, reconduzindo a «situação típica» à criação de um risco de verificação de um resultado típico, por força da omissão (ausência da ação), há- de determinar-se, na sua completude, por «correspondência» com os elementos da ação, nomeadamente no que respeita à finalidade que deve ser alcançada com a ação esperada ou devida, necessária para obstar à verificação do resultado, e ao bem jurídico protegido.
A ausência de ação só será típica (punível) se o omitente tiver a possibilidade de levar a cabo a ação esperada ou devida para impedir a verificação do resultado – só se sobre o omitente recair um dever jurídico que «pessoalmente» o obrigue a evitar esse resultado (n.º 2 do art.º 10.º), excluindo-se, por esta via, os casos de falta de capacidade física de ação, de capacidade técnica, de conhecimento ou de meios. Tem de ser possível ao garante praticar a ação – o que advém do princípio geral ultra posse nemo obligatur, segundo o qual não se pode exigir a ninguém uma prestação impossível.
A omissão pode então definir-se como a não-realização da ação juridicamente devida para evitação do resultado apesar da «possibilidade fática de ação»15.
39. Quanto à imputação objetiva do resultado à omissão da ação devida salienta-se que o omitente só pode ser responsabilizado se houver uma relação de adequação entre a conduta e o resultado (omissão da ação «adequada» a evitar o resultado – art.º 10.º, n.º 1, do CP, o qual, como é unanimemente reconhecido, adota a «teoria da adequação» ou da «causalidade adequada» como critério básico da imputação objetiva16.
Como não se pode afirmar que a omissão causou ou não um resultado, tem de se averiguar «se a ação omitida (apesar de jurídico-penalmente imposta) teria impedido o resultado»17.
É necessário que a ação seja idónea para causar o resultado e que o resultado seja uma consequência normal típica da ação. Excluindo-se as consequências «imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara», o processo lógico a seguir deve ser o de uma «prognose póstuma», isto é, de um juízo de idoneidade referido ao momento em que a ação se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado (juízo ex ante). Este juízo deve ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas em geral conhecidas, não se devendo, porém, abstrair das circunstâncias que o agente efetivamente conhecia18.
A relação de causalidade entre a omissão e o resultado, que não pode apurar-se com base numa relação de efetividade entre um comportamento e o resultado, é uma relação de natureza hipotética «que existe sempre que, de acordo com um juízo de razoabilidade e de normalidade, se comprova que a prática da ação devida teria impedido a ocorrência do resultado». A imputação do resultado à conduta omissiva afirmar-se-á quando, para além de toda a dúvida razoável, se comprovar que o resultado não teria ocorrido se o omitente tivesse praticado a ação que era devida; a omissão é causal se a ação omitida tivesse hipoteticamente evitado o resultado típico19.
40. Este raciocínio tem de assentar numa «dupla indagação»: primeiramente importa estabelecer a «relação causal efetiva entre uma ação ou um fator natural e um resultado» (no caso, a ação e omissão dos demais arguidos e os graves ferimentos produzidos que foram a causa da morte, matéria que se encontra definitivamente estabelecida no acórdão da Relação); depois verificar a «causalidade hipotética da omissão» da arguida agora recorrente (que esta questiona) ou seja, «a eficácia potencialmente impeditiva do resultado que teria tido a prática da ação devida»20.
Esta segunda indagação – que se relaciona com o argumento central do presente recurso sobre a imputação do resultado morte à recorrente – tem suscitado sérias dificuldades com respeito ao grau de exigência que deve colocar-se na afirmação da probabilidade de afastamento da lesão do bem jurídico através da prática da ação devida. Confrontando-se, na doutrina, a este propósito várias teorias21 que, no essencial e no que agora interessa, convergem, no entanto, no reconhecimento da suficiência das bases oferecidas pelo artigo 10.º, n.º 1, do CP, que, inspirado na «teoria da adequação», oferece resposta às questões fundamentais relativas à imputação do resultado à conduta omissiva e às condições de exclusão dessa imputação, mesmo face às exigências da chamada «teoria da conexão do risco», que visou complementar aquela22.
Citando Figueiredo Dias, «o problema da imputação objetiva do resultado típico à omissão só poderá ser em definitivo solucionado no seio da chamada “conexão do risco”: a ação esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico». Afastando soluções no sentido de que, para afirmar a imputação objetiva do resultado, «se deve exigir a comprovação de que, se a ação esperada tivesse tido lugar, o resultado não se teria produzido seguramente, ou pelo menos, com uma probabilidade que roça a certeza», o resultado pode ser imputado à omissão sempre que «se comprove que a ação (devida) teria diminuído o perigo que atinge o bem jurídico» (o risco de ocorrência do resultado): «é esta diminuição do perigo que tem que ser comprovada, não qualquer probabilidade roçando a certeza». Notando, todavia, que, jogando-se com critérios de probabilidade, «se uma tal comprovação (da diminuição do perigo) não lograr ser alcançada e a dúvida persistir (…) ela tem de ser valorada a favor do omitente (in dubio pro reo), pelo que a imputação objetiva do resultado deverá ser negada»23. O mesmo sucedendo quando, numa consideração ex post, «se comprove que o comportamento lícito alternativo em nada teria servido para o resultado”24.
Partindo de uma posição diversa25, conclui Taipa de Carvalho que «a tipicidade e a ilicitude da omissão devem ser negadas sempre que seja «inequivocamente evidente, no momento em que se omite a ação, que esta era inteiramente ineficaz para evitar a lesão do bem jurídico»26. E sublinhando igualmente que «a criação ou potenciação do risco tem de ser considerada com base num juízo ex ante afirma: «daqui resulta a exclusão da imputação no caso de “comportamento ilícito alternativo”, i. é, quando, mesmo que o agente atuasse licitamente, o resultado provavelmente se produziria na mesma».
41. Nos casos em que a não produção do resultado não está dependente apenas da ação do agente, mas de uma «cadeia de comportamentos» de outras pessoas– como sucede no caso sub judice –, será ainda necessário proceder a uma «valoração abrangente» das várias omissões em ordem a definir a qual das condutas se poderia ficar a dever a não ocorrência do resultado27 ou, no caso de o resultado ser de imputar a várias condutas, se poder afirmar uma situação de comparticipação («coautoria»28) entre uma atuação positiva (comissão por ação) e uma atuação negativa (comissão por omissão) ou entre diferentes omissões (comissões por omissão), ou, na ausência de acordo, mesmo que tácito, uma situação de «autoria paralela» (não havendo coautoria, as condutas visam o mesmo resultado29). Afirmar-se-á uma situação de comparticipação sempre que a morte resulta de uma ação positiva punível como crime de homicídio em comissão por ação em coautoria em comissão por omissão sempre que se forme um acordo, mesmo que tácito, e uma execução conjunta constituída por atos produzidos por ação e omissão, todos eles, materializados num facere ou num non facere, aptos à produção do resultado.
Nos termos do artigo 26.º do CP, “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”. Numa formulação sintética, o artigo 26.º contém várias hipóteses de autoria: uma de autoria singular, quando ao agente executa o facto por si mesmo – autoria imediata –, e três de autoria plural, em que se incluem situações em que dois ou mais agentes acordam entre si a prática do facto e o executam conjuntamente (coautoria) – casos em que o autor executa o facto ou toma parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, desde que haja execução ou começo de execução.
Como tem sido unanime e reiteradamente afirmado na jurisprudência30 e na doutrina, na coautoria a realização conjunta de um crime supõe a existência de um plano ou de um acordo (contendo a “decisão”) e o contributo objetivo de cada um dos autores na execução do facto. Porque nenhum dos coautores possui na íntegra o domínio do facto, no sentido que lhe é atribuído para definir a autoria – «autor é quem domina o facto, quem dele é “senhor”, quem toma a execução “nas suas próprias mãos”, de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica», «e não apenas que se limite a oferecer ou a pôr à disposição os meios de realização» de facto alheio –, Figueiredo Dias usa o conceito de “condomínio do facto”31, para designar a partilha ou o exercício conjunto desse “domínio” durante a execução do facto [numa “teoria do domínio do facto estrita”, comumente reconhecida como refletida no artigo 26.º do Código Penal português, que não abrange uma contribuição “substancial” na fase de preparação (“teoria do domínio do facto moderada”)32].
A coautoria é caraterizada por uma atuação com divisões de trabalho, ou repartição de tarefas, e uma distribuição funcional de papéis na execução do facto (preenchimento do tipo). Dado que cada contribuição singular completa um todo unitário (a realização do tipo), todas as contribuições individuais e objetivas têm que ser imputadas reciprocamente a todos os coautores, desde que eles atuem nos limites do acordo, expresso ou tácito, estabelecido entre eles, de praticar o facto conjuntamente. A componente subjetiva reside na decisão conjunta, pois só assim “se pode justificar que responda pela totalidade do delito o agente que por si levou a cabo uma parte da execução típica”. Não basta, porém, o mero acordo ou plano conjunto, pois necessário se torna que este respeite ao papel ou função na execução do facto “por forma a que o contributo de cada um para o facto apareça não como mero favorecimento de um facto alheio, mas como parte da atividade total e, correspondentemente, as ações dos outros se revelam como um complemento da sua participação própria”33. Daí que o dolo da prática do facto típico por cada coautor seja “um dolo de realização conjunta desse facto típico, o que obriga ao conhecimento do plano [conjunto], das tarefas envolvidas, das circunstâncias típicas de atuação e a vontade da sua realização nesses termos”34.
42. Em síntese, independentemente da via seguida, no que agora interessa à decisão do recurso, o critério normativo estabelecido no artigo 10.º, n.º 1, do CP, fundado num juízo de prognose póstuma (ex ante) segundo as regras de experiência comum, identifica os elementos essenciais de imputação do resultado à conduta omissiva do agente vinculado pelo dever («dever de garante») de evitar esse resultado (no caso presente, a morte da vítima). Importando saber se o resultado era previsível, isto é, se um observador médio, dotado dos conhecimentos (especiais) do agente, antes do facto (ex ante), consideraria a conduta arriscada face ao resultado (ex post).
Verificando-se que, nas circunstâncias concretas de tempo e lugar da pessoa adstrita ao dever de garante e tendo em conta os seus conhecimentos, era previsível, segundo as regras da experiência, que da situação em desenvolvimento adviria o resultado, dever-se-á concluir que essa pessoa se deparou com uma situação de risco para o resultado verificado, que a obrigava a agir no sentido de diminuir ou evitar o risco de efetiva verificação desse resultado, e que, não agindo, como devia, deve ser objetivamente imputado tal resultado à sua conduta (omissiva).
Se a pessoa não adotou a ação adequada a essa finalidade, é, então, fundado concluir que a verificação do resultado se ficou a dever à ação de não diminuição ou não evitação do risco. A não ser que, após a verificação do resultado típico (a morte da vítima, no caso de homicídio), se deva concluir que a diminuição do risco pela conduta devida não evitaria tal resultado, o que implica a comprovação de que a tal conduta seria ineficaz; porém, sendo comprovado, para além de qualquer dúvida razoável, que a atuação da pessoa teria sido eficaz, deverá então concluir-se que o resultado se ficou a dever à exigida não diminuição do risco. Havendo dúvida razoável quanto à eficácia da atuação de diminuição do risco, o princípio in dubio pro reo conduzirá a que não deva concluir-se que a pessoa obrigada a agir omitiu a ação adequada a evitar o resultado (na formulação do n.º 1 do artigo 10.º do CP)35.
43. A «posição de garante», fonte do «dever de garante», elemento essencial do tipo-de-ilícito, é, pois, condição ou pressuposto da equiparação da omissão à ação. Encontra-se, como se viu, previsto no n.º 2 do artigo 10.º do CP, segundo o qual a comissão de um resultado por omissão (isto é, através de uma abstenção de conduta devida ou esperada) só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico pessoal de agir. O dever jurídico de garante nasce, pois, de uma relação preexistente, com relevância jurídica, traduzível no dever de evitação da produção do resultado proibido.
A relação de solidariedade natural que se estabelece entre pais e filhos e os deveres de proteção e assistência, reconhecidos na lei (artigos 1874.º, n.º 1, 1877.º e 1878, n.º 1, do Código Civil) e que dela decorrem, definem o âmbito «mais indiscutível» em que se estabelecem posições de garante que, num contexto de proximidade e de possibilidade fática, impõem aos pais o dever de agir perante uma situação de risco de morte de um filho36. No plano jurídico-penal importa salientar a necessidade de o dever de proteção e auxílio, com sede legal nestas disposições da lei civil, se conjugar com uma efetiva relação de proximidade, exigindo, nomeadamente, a coabitação, e de dependência, dando conteúdo à posição de garante37.
44. No que respeita ao tipo subjetivo do ilícito de comissão por omissão há que transportar para a omissão o conceito de dolo do tipo válido para a ação.
Concretizando-se o crime de omissão no não cumprimento de um dever de agir e integrando-se a situação fática no tipo objetivo de ilícito, impõe-se, desde logo, que o omitente conheça essa situação fática, de que advém o dever de agir, e que, conhecendo-a, omita a ação que lhe é imposta com vontade de que se preencha o tipo objetivo pela realização do resultado compreendido no tipo de crime (embora não controlando e dominando o processo causal).
Identificam-se aqui aspetos relacionados com o momento da decisão e com o conhecimento e representação da «posição de garante», importando determinar, quanto ao primeiro, que o agente omite a ação imposta «apesar de contar seriamente com a possibilidade de realização típica, com esta assim se conformando», e quanto ao segundo, que este conhecia e representou os pressupostos da sua «posição de garante» (no caso, a relação de parentesco com a vítima – «relação pais/filho» – de que resultava o dever de agir). Tratando-se de crimes de resultado, o omitente tem de prever o resultado «ao menos como consequência possível da sua conduta», bem como «representar a ação exigida ou imposta cuja ausência conforma o essencial do tipo de ilícito objetivo»38.
O agente será autor pela quebra do seu dever de evitar o resultado, e não devido a um eventual domínio do facto. Nos crimes de comissão por omissão se aquele que é titular do dever de garante lesa um bem jurídico, responde como autor independentemente do facto ser realizado por um outro sujeito. A autoria de um crime de comissão por omissão caberá, como se viu, ao titular do dever de garante que, embora esteja em condições de atuar, não realiza a ação que se prevê como adequada para impedir o resultado proibido39.
Assim, releva para o dolo a consciência do autor sobre o seu omitir (inação que permitiria evitar o resultado ou diminuir seriamente o risco da sua ocorrência) e sobre a sua capacidade de agir para impedir o evento. Ou seja, conhecedor da situação típica e consciente da sua própria possibilidade de atuar, decide deliberadamente permanecer inativo, querendo aquele resultado ou, no caso do dolo eventual, conformando-se com a possibilidade da sua ocorrência.
Tal como sucede nos crimes dolosos de ação, o omitente, quando representa como possível a realização do tipo e, apesar disso, não atua, tem de se conformar com aquela possibilidade preenchendo o ilícito a título de dolo eventual (cfr. art. 14.º, n.º 3, do Código Penal).
Existindo vários omitentes, tendo todos a posição de garante e não podendo afirmar-se a coautoria (artigo 26.º do CP) perante a eclosão de um certo resultado, em situação equiparável à ação (art. 10.º), as diversas ‘autorias’ qualificar-se-ão, como já se indicou, como autorias paralelas, em razão do cometimento de crime ou crimes de dever 40.
(cont.) O crime de homicídio qualificado por especial censurabilidade ou perversidade – n.º 1 e n.º 2, als. a), c) e h), do art.º 132.º do Código Penal
45. O crime de homicídio por que a recorrente vem condenada encontra a sua definição típica fundamental no artigo 131.º do Código Penal («CP»), segundo o qual quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. Porém, se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos, como estabelece o n.º 1 do artigo 132.º do mesmo diploma41.
Como repetidamente se tem afirmado, contém este preceito um tipo qualificado do crime de homicídio previsto no artigo 131.º, através de uma cláusula geral fixando um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa, agravada por virtude da particular censurabilidade ou perversidade relativas ao agente e ao facto, reveladas pelas circunstâncias do caso.
Combina-se esta cláusula geral com a enumeração não exaustiva, no n.º 2 do mesmo preceito, de um conjunto de exemplos-padrão, indiciadores de um grau especialmente elevado de culpa que, não sendo de funcionamento automático42, determinarão a concretização, na avaliação e valoração do caso concreto, da especial censurabilidade ou perversidade dos factos praticados, por realização da previsão típica de alguma das circunstâncias que integram tais exemplos-padrão ou de outras de idêntico sentido e conteúdo normativo.
Nos termos do artigo 132.º, n.º 1, se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze e vinte a cinco anos. (n.º 1), sendo que, nos termos do n.º 2, é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade (…), entre outras, a circunstância de o agente: ser ascendente da vítima (al. a); (…) praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade (al. c); (…) praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas (al. h).
46. O homicídio qualificado é uma forma agravada do crime de homicídio e constitui, como o homicídio simples, um delito material ou de resultado, de execução livre ou não vinculada.
O tipo objetivo de ilícito «consuma-se com a morte de uma pessoa, isto é, com o causar, por ação ou omissão, a morte de uma pessoa»43.
Tal como o homicídio simples (tipo fundamental do artigo 131.º), o homicídio qualificado é um tipo punível a título de dolo sob qualquer das suas formas previstas no artigo 14.º do Código Penal – dolo direto, necessário ou eventual44.
O dolo tem de referir-se aos exemplos-padrão: “A existência do dolo fundamenta, nestas circunstâncias, a atitude particularmente censurável do agente, uma atitude desumana e desapiedada, susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente”45.
47. As circunstâncias devem ser avaliadas no contexto de uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta e cujo fundamento assenta nas circunstâncias do facto e nas condições pessoais do agente, incluindo os traços da sua própria personalidade. Mas entende-se que só circunstâncias extraordinárias ou, então, um conjunto raro de circunstâncias possam anular o efeito do indício46.
O pensamento da lei é o de imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «especial perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas47.
Citando o acórdão de 15.02.2023, proferido no processo 1964/21.6JAPRT.P1.S148:
“A propósito dos conceitos normativos de “especial censurabilidade e perversidade” (artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal), escreveu-se no acórdão de 27.11.2019, (…) como também se recordou no acórdão de 12.07.2018, Proc. 74/16.2JDLSB.L1.S1): «a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor (…). Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete”.
E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit., apud mesmo acórdão de 12.07.2018):
«(...) a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício, e não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. (...)
O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível.
A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua atuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. (...)
O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação».
48. Assim, a verificação de exemplo padrão do n.º 2 do artigo 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. É um indício, a ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas.
Exige-se, pois, que as concretas circunstâncias da conduta do agente permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo suscetível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio (como se sublinhou no acórdão de 27.11.2019, citado)49.
49. A alínea a) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, aponta como exemplo-padrão a circunstância de o agente ser ‘descendente’ ou ‘ascendente’ da vítima.
Os laços familiares básicos com a vítima devem constituir «fatores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade, porque são assentes na ideia ‘forte’ das exigências inibitórias do trem de viver em comum, mesmo quando se está ‘ausente’ e dos laços que impelem ou impedem a reformação das vidas […] É certo que as relações familiares, presentes e pretéritas, e as relações parentais são também aquelas que permitem uma maior desinibição, mas essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado»50.
50. Consiste a circunstância da alínea c) em o agente «praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez».
Tem-se sublinhado, no essencial, o propósito de proteção da vítima em situação de «desamparo» e na «exploração» ou «aproveitamento» da situação da vítima «indefesa», conhecida pelo agente51.
Lê-se no acórdão de 26.11.2015, Proc. 119/14.0JAPRT.P1.S1 (em www.dgsi.pt):
“Pessoa particularmente indefesa neste contexto é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. De situação de desamparo fala Figueiredo Dias (Comentário, Tomo I, página 31). Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão. Certamente não por acaso Figueiredo Dias, no mesmo local, referindo uma situação susceptível de preencher este exemplo-padrão, fala de “uma ausência total de defesa”. E, na verdade, se pessoa indefesa é aquela que não se pode defender, pessoa particularmente indefesa, fazendo justiça ao sentido das palavras, será aquela que se encontra numa situação de completa ausência de defesa. O exemplo-padrão em discussão não se preenche com a simples superioridade em razão da idade, que não vai além de uma agravante de carácter geral. A especial maior culpa subjacente a esta circunstância qualificativa exige uma atitude bem mais distanciada dos valores”.
Assim se poderá afirmar que «a especial censurabilidade é determinada pelo abuso, aproveitamento ou exploração dessa situação de desamparo». «A especial censurabilidade da atitude do agente evidencia-se na exploração (“aproveitamento” da “situação de desamparo da vítima”), por quem, com conhecimento da grave impossibilidade de a vítima se defender ou da completa ausência de possibilidade de defesa, por causa da idade, de deficiência, doença ou gravidez, numa determinada situação de facto, é detentor de alguma forma de poder sobre a vítima»52.
51. A alínea h) contém um exemplo padrão composto, com três situações distintas: praticar o facto com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum. Traduzem, todas, a mesma ideia de particular perigosidade do meio empregado (seja diretamente para a vítima, seja para outros bens jurídicos protegidos) e da consequente maior dificuldade de defesa para a vítima.
No caso particular da prática de facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas, tem-se entendido que o adjetivo «juntamente» impõe a existência de, pelo menos, três agentes, na qualidade de coautores (à imagem do que exige o artigo 26.º: «É punível como autor quem executar o facto […] por acordo ou juntamente com outro ou outros»), que, por essa razão, revela uma perigosidade particular que causa especiais dificuldades de defesa53.
Aqui se devendo incluir, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do CP, a coautoria por ação e a coautoria por omissão (supra, 41 e 44).
52. É, pois, na presença deste quadro legal que passa a apreciar-se a situação dos autos.
(cont.) Apreciação: (a) quanto ao dever de garante
53. Refere a recorrente – repetindo o anteriormente afirmado no recurso para a Relação (pontos a) a e), w), x), y), z), aa), cc), dd), ee), das alegações de recurso conforme referido no acórdão recorrido) – que, «perante as suas fragilidades pessoais», «tão intensas pelo o que se deduz dos factos provados relativos ao seu passado e às características da sua personalidade – que resultam do relatório social», bem como «das regras da experiência que não possuiria as necessárias capacidades pessoais, mesmo estando fisicamente presente e prestando o que sabia, para evitar, a maior ou menor prazo, o resultado morte (…)», que «não se provou que a sua atuação foi no sentido de aderir e concordar com a atuação dos restantes arguidos (…)», que «não há elementos probatórios que indiciem que tinha conhecimento de que os arguidos podiam perpetrar as graves agressões descritas», mas «o Tribunal a quo entendeu que a recorrente tinha as capacidades mentais e parentais para prever a produção do resultado morte» (pontos 2, 3, 5, 7, 8 da motivação) e que, por essa razão, não podia assumir um dever jurídico de garante, inexistindo o nexo causal entre a conduta omissiva e o resultado morte (pontos 9, 14, 15 e 16 da motivação).
Reconduz-se esta argumentação a uma discordância do decidido quanto à matéria de facto já definitivamente decidida pelo tribunal da Relação, subtraída aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, pelo que, como já se afirmou (supra, 16-18), dela não se pode agora conhecer. Acrescentando-se que, como se viu, inexiste qualquer vício da sentença de conhecimento oficioso (410.º, n.º 2, do CPP) que cumpra conhecer (supra, 19 a 23).
54. Sem prejuízo, importa referir que a divergência da recorrente relativamente ao decidido é destituída de fundamento, pois que, ao contrário do que alega, não foram dados como provados quaisquer factos donde resulte que não é portadora de capacidades «mentais ou parentais» ou que estas nunca lhe foram reconhecidas, tendo, por essa razão, perdido o direito de exercício das responsabilidades parentais dos seus restantes filhos.
A este propósito, o tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
“[…] 51. AA tem mais 5 filhos de outros dois relacionamentos amorosos, todos mais velhos que FF, sendo que em junho de 2022, não se encontrava nenhum entregue aos seus cuidados.
52. AA verbalizava receio de que a guarda de FF lhe fosse retirada. […].”
A circunstância de os seus cinco filhos não se encontrarem aos seus cuidados à data dos factos, desacompanhada de outros elementos, não permite concluir que estivesse privada da sua capacidade enquanto mãe ou enquanto pessoa com poder de decisão de acordo com a sua vontade e que, por esse motivo, tenha sido inibida do exercício das responsabilidades parentais, de modo que daí se possa extrair que não tinha a capacidade para cumprir o seu dever de garante.
55. A afirmação da recorrente também não encontra suporte no relatório social sobre as suas condições pessoais e sociais.
Tal relatório, valorado conforme resulta da fundamentação da matéria de facto da decisão proferida pela 1.ª instância transcrita e subscrita pela decisão recorrida, dela fazendo parte integrante, foi considerado no acórdão recorrido para determinação da pena (nos termos dos artigos 369.º e 370.º do CPP) e não consta que dele resultasse qualquer elemento que tivesse sido negativamente considerado para efeitos de determinação da culpabilidade (verificação da ilicitude do comportamento omissivo – artigo 368.º do CPP).
Pode ler-se no relatório social:
“[…] Em termos afetivos, desenvolveu um primeiro relacionamento conjugal significativo, cerca dos 20 anos de idade, no contexto do qual nasceu a filha mais velha da arguida, MM, atualmente com 17 anos. Tratou-se de uma gravidez não planeada, tendo o relacionamento terminado ainda durante a gestação. A descendente, esteve desde o seu nascimento aos cuidados dos pais da arguida, com quem a arguida vivia à data do seu nascimento, com entradas e saídas de vários lares de acolhimento a partir os 14 anos, onde terá entrado por dificuldades dos avós em conter os comportamentos desajustados e pró-criminais que passou a manifestar. Atualmente, esta jovem tem indicação para internamento em Centro Educativo, mas desconhece-se o seu paradeiro.
No âmbito da intervenção neste processo não há referência da arguida no espectro da vida de MM, aparecendo a avó materna como ponto de ligação. […]
[…] Viveu, posteriormente, em união de facto cerca de cinco anos, com o pai do seu segundo filho, NN, cuja separação ficou a dever-se a violência doméstica de que era vítima. Este filho tem atualmente com 14 anos de idade, permaneceu à guarda do respetivo progenitor aquando da separação do casal […]
[…] Seguiu-se o casamento com OO, com quem teve três filhos, atualmente com 12 anos, 10 anos e 7 anos de idade. O mais velho, PP, vive com a respetiva avó paterna e os dois mais novos, com os avós maternos. A separação do casal ocorreu devido a comportamentos violentos por parte do, então, cônjuge que se alcoolizava diariamente. Relativamente a estas crianças, o contacto com os dois mais novos decorria da vivência em casa da avó materna; […]
[…] Aquando do nascimento de FF, a arguida já se encontrava a viver novamente com EE, tendo sido sinalizada situação pelo Hospital à CPG, dado o historial dos outros filhos, que se encontravam em acolhimento residencial. Assim, a CPCJ iniciou intervenção no sentido de efetuar diagnóstico e delinear intervenção, não tendo sido aplicada, todavia, medida por falta de colaboração dos progenitores que deixaram de comparecer às convocatórias. Dando por encerrada a legitimidade para intervir, a CPCJ remeteu o processo ao tribunal.
A arguida declarou que a responsabilidade pelos cuidados a prestar a FF foi entregue à sua progenitora pela CPG até esta ter completado um ano de idade, porém esta informação foi infirmada pela mesma entidade; […]
[…] Na sequência do referido processo judicial, houve intervenção técnica do Núcleo de Infância e Juventude do Centro de Distrital da Segurança Social de ... que, após avaliação da integração da FF no agregado familiar HH e AA, cessou o acompanhamento. […]”
Em síntese, daqui se extrai que os cinco filhos da recorrente, anteriores à vítima, ficaram, após o nascimento, à guarda dos avós ou do progenitor, não se fazendo qualquer referência ao que motivou tal acolhimento residencial, designadamente se terá sido por vontade unilateral da progenitora, por acordo entre progenitores ou por imposição judicial e, em qualquer dos casos, qual a razão da medida de proteção.
Pese embora se refira um comportamento errático relativamente ao acompanhamento do crescimento da vida destas crianças, entregues a familiares da recorrente, também por força do seu percurso de vida – no qual, conforme se indica no relatório social, «manteve relacionamentos de conjugalidade conturbados, referenciados por episódios de violência doméstica que ditaram o seu termo», o que revela, «ao nível do funcionamento relacional, acentuadas fragilidades reveladas em relações insipientes com os seus descendentes, seja pelo não comprometimento no processo socio educativo e emocional dos mesmos, seja pelo registo de relações de intimidade conturbadas, nas quais está maioritariamente patente uma postura de vitimização e desresponsabilização» – não se conclui que a recorrente revela uma incapacidade parental ou uma eventual falta de competências parentais, suscetível afastar a ilicitude ou a culpa.
56. Por outro lado, inexiste qualquer indício revelador de «incapacidade mental» ou sequer de uma «capacidade diminuída».
A este respeito importa, igualmente, ter em consideração o que refere o acórdão recorrido, que apreciou idêntica alegação:
“[…] Manifesta a recorrente a sua discordância da decisão condenatória contra si proferida apontando o julgamento incorrecto dos factos dados como provados nos pontos 13 (na parte onde se refere “em momento posterior a pelo menos um dos embates contra superfície dura a que se alude em 11”), 15, 16, 34, 35, 36, 37 (na parte onde se refere “que deliberadamente desprezou”) e 38 (na parte onde se refere que a recorrente “de forma livre deliberada e consciente, sabiam que as supra descritas condutas por ação e por omissão eram proibidas e punidas por lei, tinham efetivamente fizeram e, ainda assim, não se abstiveram de agir sempre contra a infância e contra a vida de FF, conformando-se com a sua morte”). Assenta a recorrente essa discordância na apreciação que faz a diversos meios de prova […]
[…] Mais acrescenta, por relação a esta qualidade como mãe, que requereu realização de perícia para avaliação da personalidade e das suas características psíquicas, independentes de causas patológicas, bem como sobre o seu grau de socialização, relevante para o apuramento da culpa do agente e a determinação da sanção, o que foi indeferido. Começando por esta última alegação, a consulta do autos permite-nos confirmar os argumentos desenvolvidos na resposta do M.º P.º quanto a este concreto aspecto argumentativo pelo que nos limitamos a seguir essa resposta pela linearidade e clareza do tratamento.
Assim, temos por adquirido pela consulta dos autos que na sua contestação, a ora recorrente requereu “a realização de perícia psiquiátrica nos termos do disposto nos artigos 154.º, 159.º e 160.º do Código de Processo Penal”, com a finalidade ali consignada de “o tribunal averiguar se a anomalia ou alteração psíquica de que padece a arguida é de molde a afectar o mesmo em termos que se verifique uma imputabilidade diminuída, e a provarem-se os factos ou alguns deles, se a conduta da arguida haverá de ser enquadrada, na determinação da medida concreta da pena, especialmente atenuada em virtude do disposto no n.º 1 do artigo 72.º do Código Penal.”
Como primeiro aspecto diremos que, ao contrário do que agora alega, a finalidade perseguida com o pedido de perícia abrangia a apreciação da sua imputabilidade (diminuída).
Ultrapassada essa concisão, tal requerimento e diligência de prova foram objecto de indeferimento por parte do tribunal, com o preponderante argumento de que “não existe o menor indício nos autos de que à data da sua prática a arguida pudesse padecer de qualquer patologia do foro mental suscetível de diminuir a sua imputabilidade.
Revelam ainda os autos que esse despacho, proferido em audiência, não foi objecto de qualquer recurso por parte da agora recorrente, tendo transitado em julgado, isto independentemente de o mesmo admitir a possibilidade de reapreciação posterior da questão. Para além disso, no decurso das diversas sessões da audiência de julgamento, tal requerimento, não foi renovado e, mesmo quando notificada do teor do relatório social para a determinação da sanção remetido pela Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, conformou-se com a decisão proferida, já que dela não foi interposto qualquer recurso.
Tendo transitado em julgado esse concreto despacho, a não realização da perícia mostra-se pacifica para os autos, não podendo ser retomada agora em sede de recurso, carecendo de sentido e fundamento a formulação de juízo de censura sobre o aludido despacho judicial por quem, em devido tempo – mormente em sede de produção de prova -, não suscitou, fundadamente, a questão da imputabilidade diminuída da recorrente, não se mostrando violados os preceitos legais invocados. […]”
57. Como se disse, o juízo sobre a capacidade mental da recorrente apenas poderia fazer-se a partir de relatório pericial, sendo que nunca foi colocada em crise a sua capacidade de decisão ao longo do julgamento ou em momento anterior. Tendo sido solicitada pela recorrente, foi a realização da perícia indeferida com o fundamento de que “não existe o menor indício nos autos de que à data da sua prática a arguida pudesse padecer de qualquer patologia do foro mental suscetível de diminuir a sua imputabilidade”, decisão com a qual a recorrente se conformou.
Conclui-se, assim, pela não verificação de fundamento que justifique a alegação de que a recorrente padecia de debilidade ou «especial fragilidade» pessoal de que resultasse que não tinha capacidade «mental» «e/ou parental para assumir a posição jurídica de garante face a FF, sua filha menor de três anos de idade», que pudesse determinar uma impossibilidade fática da ação devida ou esperada (supra, 38) ou de conhecer a situação de que lhe advinha o dever de agir para diminuir ou afastar o risco de produção do resultado morte (supra, 43).
58. Para além disso, também não procede o argumento de que a recorrente não tinha conhecimento de que os coarguidos podiam perpetrar as lesões descritas ou que aquela não aderiu nem concordou com a sua atuação.
Em face dos factos provados 13 a 21, tal conclusão é indefensável, pois a partir do momento em que entregou a sua filha FF no dia 14 de junho (factos provados 6 e 7), em bom estado de saúde, e é contactada a 19 de junho pelos coarguidos, constatando, por observação direta, as sevícias a que foi sujeita e o seu estado – cara queimada na zona do nariz e buço com equimoses visíveis na testa e faces, prostrada, sem abrir os olhos, sem falar, tendo ainda tido conhecimento em moldes não concretamente apurados, de que a mesma teria naquele dia, em movimento reflexo, enrolado a língua e revirado os olhos, ao mesmo tempo que todo o seu corpo tremia e se esticava – e, posteriormente, a 20 de junho – estava enrolada numa manta, permanecendo sem se mexer, falar, com os olhos sempre fechados, equimoses nas pernas, testa e faces, grandes peladas no couro cabeludo e a zona do rosto toda ensanguentada, ostentando uma queimadura no nariz e buço –, nenhuma dúvida subsiste de que tinha conhecimento de que eram capazes de atuar como atuaram, já que resultou provado que sabia que aquelas ferimentos ocorreram sob a guarda e cuidados dos arguidos, pessoas a quem entregou a menor e com quem a manteve ao cuidado (facto 34: «Apesar de estar convencida de que foram os arguidos BB, CC e DD, os responsáveis pelo aparecimento das lesões descritas no ponto 4 dos factos provados, a arguida AA, praticou os factos descritos no ponto 6, consciente de que expunha a sua filha ao perigo e que comprometia o seu bem-estar, a sua integridade física e o seu direito à infância, conformando-se.»)
De resto, o estado de qualquer criança de três anos evidenciando esse grau de ferimentos determinaria um adulto consciente e imputável a, perante essa situação, desencadear, de imediato, todas as diligências ao seu alcance para socorrer a criança e obviar o seu sofrimento físico, que era notório (as fortes pancadas e picadas/arranhões, esfacelos, beliscões e pequenos cortes, bem assim como as queimaduras e puxões de cabelos provocaram sofrimento e dor atrozes; a ação diária e sucessiva, incluindo na cabeça e sola dos pés, e a sujeição da zona do nariz, buço e boca à ação do calor extremos através de líquido fervente provocaram grande sofrimento e tortura - factos 27 e 29), e para que lhe fossem prestados os cuidados médicos e medicamentosos adequados.
E se esse seria o comportamento normal e previsível de uma pessoa comum, não é credível que uma mãe pela sexta vez não tenha manifestado um tal instinto de proteção ao ver a filha no estado descrito, nem tenha desenvolvido qualquer esforço no sentido de se assegurar que o seu estado não se agravaria. Com aquelas lesões e estado de apatia e prostração (não abria os olhos, nem falava) na sequência de convulsão, qualquer cidadão médio poderia concluir, de acordo com as regras da experiência, que existia uma grave situação de risco para a vida, que esse risco de vida era iminente e que esse risco obrigava a agir em conformidade para evitar o resultado morte, que efetivamente se verificou.
Assim, soçobra, mais uma vez, a argumentação da recorrente.
59. Neste sentido decidiu igualmente o acórdão recorrido, cuja fundamentação importa relembrar:
“[…] No caso vertente, tais regras não só legitimam, mas antes impõem a conclusão extraída e plasmada na factualidade provada ora questionada: a de que a recorrente tomou conhecimento directo, no dia 19 de Junho de 2022, do estado de saúde de sua filha e da extrema gravidade do mesmo, de que a sua vida corria perigo e que, não obstante, nada fez para evitar a sua morte, conformando-se com a mesma.
Estranhamente, por banda da recorrente não se mostra questionada a factualidade inserta nos pontos 3, 4 e 5 (este conexionado com o ponto 34), sendo certo que nos pontos 4 e 5 se refere que, aquando do regresso da residência dos arguidos GG, a menor apresentava diversas lesões externas e que, apesar desse facto e de ter sido aconselhada por II, a recorrente, convencida de que tais lesões foram provocadas pela família GG, não a levou a qualquer unidade hospitalar ou centro de saúde, a fim de aferir do estado de saúde daquela, nem apresentou queixa às autoridades. […]
[…] Os factos dados como provados em 33 e 34 assentam nos factos constantes dos pontos 4, 5 e 6, já mencionados e da conjugação de toda a restante prova, designadamente a descrita nos pontos 13 a 19, com regras básicas de experiência comum, sendo marcadamente mais evidente a consciencialização da iminência da morte de FF após presenciar a convulsão conforme descrito no ponto 15 dos factos provados.
Como se consignou no texto decisório, provando-se que AA ficou convencida que as lesões descritas no ponto 4 dos factos provados foram produzidas por BB, CC e DD, independentemente de assim ter ocorrido ou não, certo é que teria de saber que ao entregar novamente FF aos coarguidos nos termos descritos em 6, expunha a sua filha ao perigo, comprometendo o seu bem-estar, integridade física e infância.
Por maioria de razão, conhecedora que era de que a sua filha não sofria de epilepsia, ao tomar conhecimento da convulsão descrita no ponto 15 dos factos provados e ao visualizar a cara de FF, teve forçosamente de se consciencializar que a sua filha estava naquele momento em risco de vida e que carecia de socorro médico urgente, sob pena da mesma poder vir a morrer, como efetivamente ocorreu. Isto quanto ao dia 19 de junho, tudo se agravando no dia 20. […]”
60. Assim, a decisão do tribunal a quo quando afirma que a recorrente não tinha como desconhecer a situação de perigo em que a menor se encontrava face aos factos descritos e, consciente disso, se conformou com a possibilidade daquele desfecho, é lógica e corretamente fundada face aos factos provados, estando isenta de qualquer reparo. Improcedendo, pois, nesta parte, a argumentação da recorrente.
61. Salienta-se que, confrontada com o estado de saúde em que a menor se encontrava no dia 19 de junho, a recorrente nada fez para pedir ajuda ou para socorrer a filha, apesar de ter ao seu alcance os meios para o fazer e conhecer a gravidade das lesões que a criança exibia, desde logo, em face da convulsão que sofreu e do estado de prostração revelado, configurando e aceitando como possível a sua morte.
Estava, pois, em condições de levar a cabo a conduta devida ou esperada, qual seja, a de providenciar e assegurar que a sua filha fosse socorrida e lhe fosse prestado tratamento hospitalar, o qual, como resulta do acórdão recorrido, pode afirmar-se com um elevado grau de certeza, para além de qualquer dúvida razoável, face ao teor do relatório pericial e às declarações do senhor perito, teria diminuído ou evitado o risco de morte da menor se o socorro e tratamento tivessem ocorrido em tempo compatível com o daquela conduta.
O que justifica que se deva concluir pela imputação objetiva do resultado morte à conduta omissiva da recorrente (supra, 42).
62. Sendo mãe da vítima, que com ela vivia, e tendo a vítima três anos de idade, encontrava-se a recorrente numa «posição de garante», fonte do «dever jurídico» de garante da recorrente para com a menor, fruto do vínculo jurídico familiar entre pais e filhos reconhecido nos artigos 1874º, n.º 1, 1877.º, 1878.º do Código Civil (supra, 43).
O dever de solidariedade natural face à relação de «comunidade de vida» no âmbito do mesmo agregado familiar, inerente aos laços de proximidade que a mãe e a criança mantinham entre si, e os deveres parentais de proteção e assistência estabelecidos nessa relação impunham que a recorrente, conhecedora dos riscos que a sua filha corria, estando e continuando entregue aos cuidados dos coarguidos, agisse no sentido de garantir a integridade física, a saúde e a segurança desta, assistindo-a e prestando-lhe e diligenciando para que lhe fossem prestados todos os cuidados requeridos pela dependência própria da sua tenra idade e pela gravidade do seu estado de saúde e do risco de vida em que se encontrava (id. ibid.).
63. E também não subsiste dúvida de que, perante os factos provados, se deve concluir que a omissão da recorrente constituiu uma omissão da ação devida e adequada a evitar a morte da vítima, pois que é da experiência comum – e o relatório da autópsia e as declarações do perito o demonstram – que uma criança de três anos de idade, perecerá, fatalmente, se sujeita durante cinco dias consecutivos, a, pelo menos, 78 múltiplas e fortes pancadas e pressões por ação das mãos, punhos, pés e (ou) objeto(s) contundentes em todas as zonas do corpo, da cabeça à planta dos pés, 76 picadas, arranhões, esfacelos, beliscões e pequenos cortes ao nível da pele por todo o corpo por ação de unhas e objeto cortante e perfurante, queimadura na face, na zona do nariz, buço e boca, por ação de fonte de calor traduzida em líquido fervente, pelo menos, 3 fortes embates com a cabeça em superfície(s) dura(s) e fortes abanões com intensidade superior a 2 abanões por segundo e por período sempre superior a 5 segundos, como foi o caso.
Tal atuação integra a sua participação, em termos de comissão por omissão, em toda a atuação delituosa dos coarguidos, que levou à morte de FF, não obstante a possibilidade de poder intervir no processo de execução do crime, impedindo ou interrompendo o processo que conduziu à verificação do resultado morte. E não se identifica qualquer impossibilidade fática de intervir, na sua posição de garante da saúde e integridade física da sua filha, sendo que o esforço que, nas circunstâncias, se exigia à recorrente para intervir no sentido de evitar a morte de FF era mínimo, bastando pegar num telefone e chamar uma ambulância e (ou) a polícia à casa dos coarguidos, pedindo socorro para a filha.
Este dever era-lhe pessoal e particularmente imposto pelo menos desde o dia anterior ao da morte da criança: a recorrente esteve pessoalmente com FF no dia 19 de junho e nessa altura poderia ter conduzido ou diligenciado para que a menor fosse conduzida às urgências de um hospital ou centro de saúde, ter chamado o INEM, e caso receasse as consequências ou se visse impedida por terceiros, poderia ter chamado a polícia ou denunciado a situação, mesmo que anonimamente.
Efetivamente, como bem se infere das regras de experiência comum e já se teve oportunidade de referir, qualquer mãe de uma criança de três anos – diga-se: totalmente dependente em razão da idade –, face às lesões observadas, até pelo instinto natural de proteção, teria agido de imediato para retirar a criança da casa e da companhia dos coarguidos, para que a criança fosse socorrida e para que fosse garantida a prestação de cuidados médicos adequados à grave situação em que a criança se encontrava.
(cont.); (b) Quanto à qualificação do crime de homicídio
64. Alega a recorrente que o Tribunal «a quo não a poderia ter condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, uma vez que não resulta provada a especial censurabilidade ou perversidade, uma vez que que face ao artigo 29º, do Cód. Penal, cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes, sendo certo que foi condenada a título de dolo eventual» (pontos 18 a 21 da motivação).
65. Mantendo inalterada a decisão da 1.ª instância, o tribunal a quo, considerou que a conduta da Recorrente integra as qualificativas das als. a), c) e h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, nos seguintes termos:
«[…] Para a qualificação do crime de homicídio é essencial que dos factos resulte uma especial censurabilidade ou perversidade, que possa ser imputada ao agente a título de culpa adensada, ou seja, um tipo especial de culpa- isto na asserção seguida no Ac. TRL de 11/09/2013, relatado por Exmo. Desembargador José Reis e proferido no processo n.º 766/12.5GAMTA, acessível em ww.dgsi.pt/jtrl.
No caso vertente, a recorrente revelou, salvo melhor opinião, qualidades particularmente desvaliosas e censuráveis, demonstrando um comportamento profundamente distanciado relativamente à vida da sua filha menor que, mais do que qualquer outra pessoa, lhe incumbia defender, demonstrando um egoísmo sem limites, centrando-se essencialmente no seu sofrimento quando a única vítima foi a menor FF -, merecedor de grande reprovação, o que só poderia resultar na conclusão de que se mostram preenchidos os pressupostos da especial censurabilidade e da especial perversidade.
Como se menciona no acórdão recorrido, para além das alíneas tidas como preenchidas enquanto integrantes dessa especial censurabilidade encerrarem um acréscimo de culpa, encerram igualmente um acréscimo de ilicitude, designadamente as alíneas aplicáveis a esta arguida referente ao seu grau de parentesco, ao facto da vítima ser indefesa e ao facto de não ter chamado auxílio médico quando se apercebeu de que a vítima tinha sofrido atos de tortura e estava a morrer. Os atos praticados por uma mãe nestas circunstâncias são simultaneamente mais ilícitos e, obviamente também mais culposos. E neste caso, entende o Coletivo que a culpa da arguida é máxima a partir do momento em que esbarra com a realidade dos factos, o que terá ocorrido no dia 19 de junho ao final da tarde quando observa a filha prostrada, sem reagir, com equimoses e queimaduras na face, e toma conhecimento do episódio de convulsão recente conforme descrito no ponto 15 dos factos provados. Neste momento, o especial dever de garante a que está obrigada transporta-a para a assunção da ilicitude da conduta dos coarguidos e eleva a sua culpa de inação para um patamar superior ao dos coarguidos que praticaram por ação a conduta. Basta responder à seguinte questão. Quem, de todos os arguidos tinha o dever jurídico de garante em maior grau e, como tal, a obrigação de prestar socorro à vítima, no preciso momento em que ocorreram os factos descritos no ponto 15? E no ponto 18, quando recebeu a filha na manhã seguinte? É a arguida AA, por ser a mãe de FF. Do dia 14 à tarde do dia 19 de junho seriam os arguidos BB, CC e DD, porque poderia a arguida AA, queremos acreditar, desconhecer o real estado em que se encontrava a filha. Tivesse aí cessado a ação e viesse FF a morrer, o grau de culpa da arguida AA não poderia ser equiparado ao dos arguidos. Acontece que não cessou pelo que o grau de culpa desta arguida é elevadíssimo. A qualificação da conduta da recorrente não se mostra tido por assente apenas na relação de parentesco, mas também no facto de estar em causa uma vítima indefesa, uma criança de três anos de idade, sua filha. […]»
66. Tendo em conta o que anteriormente se observou (supra, 44-48), não se encontra motivo da divergência quanto ao juízo de especial censurabilidade ou perversidade que fundamenta a condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado da previsão do artigo 132.º do CPP, para o que basta o preenchimento de um dos exemplos-padrão enumerados no n.º 2 deste preceito, funcionando os demais como circunstâncias gerais de agravação da pena por via da culpa, a ter em conta nos termos do artigo 71.º do Código Penal54.
No entanto, se, em princípio, não se suscitam questões quanto ao preenchimento das circunstâncias das alíneas c) – prática do facto contra «pessoa particularmente indefesa» – e h) – prática do facto «juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas» – do n.º 2 do artigo 132.º do CP, o mesmo pode não se evidenciar, com idêntica liquidez, quanto à verificação da circunstância da alínea a) – relação familiar de «ascendente» da arguida em relação à vítima – do mesmo preceito.
67. A concretização da circunstância qualificativa da al. c) resulta da tenra e precoce idade da vítima, que tinha apenas três anos de idade (facto 2), que, por esse motivo («em razão da idade»), se encontrava na total dependência de terceiros para sobreviver das intermináveis, violentas e cruéis agressões sofridas (no interior da habitação das pessoas a cujos cuidados foi entregue pela sua própria mãe ), passíveis de equiparação a atos de tortura face à natureza daquelas e à capacidade de resistência de uma criança daquela idade (factos 6 a 11) e às suas consequências físicas (estado de prostração, convulsões, queimaduras, peladas – factos 13 a 18 e 22, 25). Encontrava-se, pois, a vítima totalmente impossibilitada de, por si, buscar e conseguir o auxílio que outros – em particular a recorrente, sua mãe – tinham o dever de prestar. Perante a evidência dos graves ferimentos sofridos pela vítima, impossibilitada de, por si, obter auxílio, o comportamento omissivo da sua mãe, a que se imputa a sua morte, justifica um juízo de censura agravado, não só pelas caraterísticas particularmente desvaliosas projetadas na omissão de agir, mas também na especial censurabilidade dessa omissão.
A concretização da circunstância da al. h) afirma-se num quadro de comparticipação dos arguidos na realização do resultado. Os atos foram praticados por três pessoas (factos 28 a 35), tornando impossível à menor qualquer possibilidade de defesa. A vítima FF estava a todos os títulos particularmente indefesa em razão da idade e do relacionamento familiar, de proximidade e em total dependência, circunstância que era sobejamente conhecida pela recorrente que nada fez para impedir ou interromper a conduta dos coarguidos, que sabia serem três, tendo-se conformado com o resultado fatal de morte da sua filha, como sucedeu.
Pode, pois, numa valoração abrangente das condutas dos vários arguidos, afirmar-se que o resultado morte ocorreu em razão dos ferimentos causados e das condutas, por ação e omissão, dos coarguidos. Embora adotando uma conduta omissiva, com prolongamento no tempo, ao omitir a conduta salvadora que lhe era exigida, agindo de livre vontade e com consciente aceitação do resultado, que também quis, o comportamento da recorrente traduz uma adesão à ação dos demais arguidos, podendo assim, concluir-se que ocorre a relação de comparticipação de, pelo menos, três pessoas, requerida para efeitos de preenchimento desta circunstância qualificativa. Uma equiparação da omissão à ação, incluindo todo o processo de realização do resultado morte, que ocorre em resultado da ação dos coarguidos e do não cumprimento do dever de garante, permite afirmar que a arguida, com a sua omissão, «agiu conjuntamente juntamente com outros», na aceção do artigo 26.º (autoria) do CP.
Embora não tenha existido um «acordo» expresso, identifica-se aqui uma «consciência e vontade de colaboração» de várias pessoas, incluindo a recorrente, na realização do crime, própria da «coautoria»55.
68. A circunstância qualificativa da al. a) do n.º 2 do artigo 132.º resultaria, segundo o acórdão recorrido, do facto de a recorrente ser mãe da vítima.
O que, em princípio, não suscitaria quaisquer dificuldades se a recorrente tivesse sido por autoria de um crime de homicídio cometido por ação. O que não é o caso.
69. No recurso para a Relação, a arguida questionou a «dupla consideração» da relação mãe/filha como «elemento do tipo de homicídio» e como «factor de agravação do mesmo crime», fazendo-o, todavia, à luz do princípio in dubio pro reo. O que foi apreciado nos seguintes termos:
«Se bem conseguimos penetrar na essência da argumentação, parece-nos manifestar a recorrente que existiu uma dupla consideração como elemento integrante objectivo do ilícito – o parentesco com a vítima- e ao mesmo tempo considerado o mesmo como elemento agravativos do mesmo ilícito de homicídio.
Vejamos:
Para a qualificação do crime de homicídio é essencial que dos factos resulte uma especial censurabilidade ou perversidade, que possa ser imputada ao agente a título de culpa adensada, ou seja, um tipo especial de culpa (…)
No caso vertente, a recorrente revelou, salvo melhor opinião, qualidades particularmente desvaliosas e censuráveis, demonstrando um comportamento profundamente distanciado relativamente à vida da sua filha menor que, mais do que qualquer outra pessoa, lhe incumbia defender, demonstrando um egoísmo sem limites, centrando-se essencialmente no seu sofrimento – quando a única vítima foi a menor FF -, merecedor de grande reprovação, o que só poderia resultar na conclusão de que se mostram preenchidos os pressupostos da especial censurabilidade e da especial perversidade. (…)
A qualificação da conduta da recorrente não se mostra tido por assente apenas na relação de parentesco, mas também no facto de estar em causa uma vítima indefesa, uma criança de três anos de idade, sua filha.
Na argumentação desenvolvida pela recorrente acerca da questão relativa ao elemento subjectivo que lhe foi definido na decisão recorrida, adianta a recorrente na sua conclusão jj) “O facto que lese ou afete uma só vez um bem jurídico, não pode ser criminalmente valorado duas vezes, sob pena de violação do princípio in dubio pro reo. Assim, entende-se que a eventual qualificação do homicídio não pode ter como fundamento uma circunstância que assume a natureza de elemento do tipo de crime de homicídio. Consequentemente, e seja qual for a perspetiva e enquadramento, não se vislumbra razão, no caso dos autos, para a qualificação do crime de homicídio”, isto numa, embora breve, referência a uma potencial violação do princípio in dubio por reo.
Tal alegação esbarra na sua essência logo pela necessidade de ter presente que o princípio in dubio pro reo, deve ser perspectivado e entendido, como remate da prova irredutivelmente dúbia, destinado a salvaguardar a legitimidade da intervenção criminal do poder público.
O Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente.
Consequentemente, só releva e restringe o seu âmbito de aplicação à questão de facto, é mais do que o equivalente processual do princípio da culpa, desligando-se, quanto ao fundamento, da presunção de inocência e abarcando, quer as dúvidas sobre o facto crime, quer a incerteza quanto à perseguibilidade do agente. E finalmente o controle da sua efectiva boa ou má aplicação está dependente de os tribunais cumprirem a obrigação de fundamentarem a sua convicção.
Os moldes em que a recorrente ataca essa concreta problemática desvirtua a aplicação do princípio para o campo da integração/subsunção jurídica dos factos, o que nos parece, no mínimo, deslocado e inoperante.
Na realidade, tal princípio significa, em síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para que pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresente.
Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção de inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).
No caso sub judice, lendo a decisão recorrida, designadamente na parte da indicação e do exame crítico das provas em que se baseou a convicção do tribunal a quo, não se vislumbra que esse mesmo tribunal tivesse dado como provado qualquer um dos factos que como tal enumerou tendo dúvidas sobre a sua verificação.
Mostra-se, pois, que não assiste razão à recorrente.»
70. A questão, sendo uma questão de direito que este tribunal pode e deve oficiosamente apreciar, situa-se, como reconhece o próprio acórdão recorrido, noutra dimensão: a da proibição da dupla valoração, que tradicionalmente se refere às circunstâncias relevantes para a determinação da pena, nos termos do artigo 71.º, n.º 2, do CP, segundo o qual, na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Porém, como observa Figueiredo Dias e tem vindo a ser aceite na jurisprudência, «não há razão bastante para afastar a incidência do princípio da proibição da dupla valoração relativamente a circunstâncias que devam também ser consideradas nas operações de determinação legal (…) da pena. Por outras palavras, a concreta circunstância que deva servir para determinar a moldura penal aplicável (…) não deve ser de novo valorada para quantificação da culpa e da prevenção relevantes para a medida da pena: o princípio deve valer não só perante elementos do tipo de ilícito, mas também perante elementos do tipo de culpa ou determinantes da punibilidade; e mesmo perante meras circunstâncias modificativas, atenuantes ou agravantes, nominadas ou inominadas, resultantes de exemplos-padrão (…). Ponto é apenas que tais elementos relevem já para a determinação legal (…) da pena»56.
A determinação da pena comporta, pelo menos, duas operações distintas: a determinação da pena aplicável (moldura da pena), por via da averiguação do preenchimento dos elementos do tipo legal de crime (tipo fundamental) e de circunstâncias modificativas, que podem conduzir à punição por um tipo de crime agravado ou privilegiado, e a determinação concreta da pena (medida da pena), em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal)57.
A investigação da moldura da pena tem, pois, o seu ponto de partida no tipo legal de crime, cabendo ao juiz subsumir os factos dados como provados em determinado tipo legal de crime.
71. Como já se afirmou, a tipicidade legal dos crimes «impuros» de omissão resulta, não de uma descrição típica da ação punível, mas da cláusula geral de equiparação do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do CP, através de uma valoração autónoma da ilicitude, o que só sucede se e quando sobre o agente recaia um «dever de garante», de obstar à verificação do resultado, resultante da «posição de garante» (supra, 38).
A «posição de garante», fonte do «dever de garante» constitui um elemento essencial do tipo incriminador, do tipo-de-ilícito, condição da equiparação da omissão à ação.
No caso, a conduta omissiva da arguida recorrente só é punível porque sobre ela pendia o dever jurídico de agir pelo facto de ser mãe da vítima (supra, 42). Não fora esta relação e os deveres de auxílio e socorro que se lhe impunham numa relação de proximidade e dependência, a omissão não constituía crime.
72. A qualificação do crime de homicídio pelo funcionamento do exemplo-padrão previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, por ser suscetível de revelar especial perversidade ou censurabilidade – decorrente, como é geralmente reconhecido, do facto de o agente vencer os «motivos inibitórios», as «contra motivações éticas» inerentes a essa relação familiar58 – resulta da circunstância de o agente ser ascendente da vítima; no caso, de a recorrente ser mãe da vítima.
O elemento formal da circunstância de agravação da culpa, conducente ao preenchimento desta circunstância qualificativa do crime de homicídio, e o elemento formal do elemento do tipo de ilícito de homicídio comissivo por omissão – isto é, a relação de filiação – são, pois, coincidentes.
Porém, daí não resulta que, face às exigências do n.º 2 do artigo 10.º e da al. a) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, a consideração deste elemento formal para as duas finalidades possa violar o princípio da proibição da dupla valoração. Enquanto a primeira comporta um juízo sobre a tipicidade (verificação e determinação do tipo de ilícito), a segunda traduz um juízo sobre a concreta gravidade (especial censurabilidade) do comportamento de violação do dever de garante imposto pela relação de filiação, para efeitos de agravação da culpa.
No caso, a violação do dever de garante (elemento do tipo de ilícito omissivo) – que compreende, mas não se reduz ao elemento formal da relação de filiação (supra, 43) – assumiu uma gravidade merecedora de especial censura (como elemento do tipo de culpa, pela energia criminosa que levou a vencer as contramotivações impostas por essa relação de filiação – supra, 49).
Em consequência, deverá também considerar-se verificada esta circunstância qualificativa do crime de homicídio.
73. Inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, conclui-se, assim, pela condenação da arguida AA pela prática de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), c) e h), do Código Penal.
Da medida concreta da pena
74. A recorrente considera excessiva a pena aplicada uma vez que foi condenada a título de dolo eventual e por prática de crime comissivo por omissão o que aponta para uma forma circunscrita de culpa, que convoca «duplamente» a atenuação especial da pena (artigos 73.º e 10.º, n.º 3, do Código Penal), que não foi aplicada.
Tendo em conta as conclusões da motivação, em causa está a observância do regime de determinação da medida da pena, fixada em 25 anos de prisão, e o respeito pelos critérios de adequação e proporcionalidade que lhe presidem, bem como a eventual atenuação especial.
75. A decisão sob recurso que aprecia a aplicação da pena, encontra-se fundamentada nos seguintes termos:
“[…] - Medida concreta da pena:
A recorrente manifesta a sua discordância da dosimetria da pena em que foi condenada com a alegação de que “a circunstância de nos encontrarmos perante uma forma circunscrita de culpa, que tem inscrita uma menor censura derivada da opção desvaliosa da recorrente, a qual se revela através da negligência grosseira (ou mesmo que se tratasse de dolo eventual). Por outro lado, a circunstância de nos encontrarmos perante um crime de comissão por omissão, situa-se num plano qualitativamente diferente da comissão por ação, pois que o nexo de ligação psicológica entre o agente e o facto é menos envolvente, ou seja, é menos intenso. Por tal facto o art. 10.º, n.º 2, do CP, refere que no caso previsto no número anterior (comissão por omissão) a pena pode ser especialmente atenuada;” o que podemos resumir a uma pretensão de a recorrente beneficiar de uma dupla atenuação da pena: uma, a que decorreria da forma subjectiva do cometimento dos factos – na sua visão, já supra desatendida, como sendo de negligência grosseira ou como dolo eventual - e, a outra, decorrente da forma de cometimento do crime – comissão por omissão.
Por relação a este último das possibilidades de atenuação especial o tribunal negou-a com os seguintes argumentos: “Aqui chegados importa atentar no que dispõe o n.º 3 do artigo 10.º do Código Penal que estabelece que nos casos em que deva ser punível a conduta de um arguido em comissão por omissão, a pena pode ser especialmente atenuada, o que significa que no caso do homicídio qualificado a moldura passaria de 12 anos a 25 anos de prisão para 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão. Se pode ser, por maioria de razão poderá não ser, devendo de acordo com o caso concreto ser decidida a eventual atenuação especial da pena de acordo com o grau efetivo de culpa do agente. Nos presentes autos, atento o grau de culpa muito elevado de todos os arguidos, em especial da arguida AA a partir de 19 de junho de 2022 à tarde, com contornos de alheamento confrangedores, eventual atenuação especial não seria socialmente tolerável e frustraria por completo os fins das penas.”
Vejamos.
Dispõe o art.º 10º CP, sob a a epigrafe “Comissão por acção e por omissão”:
“1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.”
Numa primeira abordagem temos a apontar à recorrente que a ali prevista atenuação especial é uma mera possibilidade de que julgador se pode servir, como decorre do termo verbal “pode”.
O estabelecimento dessa prerrogativa ao julgador radica na necessidade de salvaguardar aqueles casos extremos que, pela sua natureza e modo de cometimento, impõem o desaparecimento da diferença de gravidade entre a comissão por acção e a comissão por omissão. Tal é o caso com que somos confrontados como bem defende o Colectivo quando afirma, repetimos, “o grau de culpa muito elevado de todos os arguidos, em especial da arguida AA a partir de 19 de junho de 2022 à tarde, com contornos de alheamento confrangedores, eventual atenuação especial não seria socialmente tolerável e frustraria por completo os fins das penas.”, postura esta que merece a nossa integral adesão.
A segunda possibilidade de atenuação especial invocada pela recorrente mostra-se apontada ao tipo e grau de dolo que lhe foi atribuído – dolo eventual -, mostrando-se aqui espúria a apreciação dessa possibilidade sobre a perspectiva da negligência pois já se mostra afastada a integração desse elemento subjectivo.
O dolo eventual mostra-se previsto no art.º 14.º n.º 3 CPP - “Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.” - não se prevendo por via directa dessa qualificação qualquer atenuação especial, embora não deixe de relevar, por contraposição ao dolo directo ou necessário, na fixação da pena isto numa abrangente integração dentro do conceito de culpa do arguido.
A atenuação especial da pena encontra-se genericamente prevista no art.º 72º CP que dispõe:
“1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.”
Vejamos.
Quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para certo tipo de crime tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até casos de maior gravidade.
Porém, para ter em conta situações pessoais do agente em que a prevenção geral não imponha e a prevenção especial não exija uma pena a encontrar nos limites da moldura penal do tipo, e em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do art.º 72.° do Cód, Penal.
Para resolver os casos em que «a capacidade de previsão do legislador é necessariamente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade de situações reais da vida», «mandamentos irrenunciáveis de justiça, adequação (ou necessidade) da punição» impõem que o sistema disponha de uma válvula de segurança que permita responder a casos especiais, em que concorram circunstâncias que «diminuam de uma forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada relativamente ao complexo normal» de casos que o legislador terá previsto e para os quais fixou os limites da moldura respectiva (cfr. Jorge de Figueiredo Dias "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", 1990, pág. 302)
A esta ideia político-criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no art.º 72º, n.º 1 do Cód. Penal.
O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena - art.º 72°, n.º 1.
O n.º 2 enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da pena, ou seja, também diminuição das exigências de prevenção.
Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Mas acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída em relação aos casos para os quais está prevista a fórmula de punição, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, idem, pág. 306; e v.g., Acs. deste Supremo Tribunal, de 18/Out./2001, Proc. 2137/01, e de 30/Out./03, in CJ/STJ, Ano XI, Tomo III, pág. 208, e de 03/Nov./04, In CJ/STJ, Ano XII, Tomo III, pág. 217).
Ora este quadro de acentuada diminuição da culpa não se mostra, mesmo num patamar mínimo, percepcionável no quadro fáctico estabelecido na decisão recorrida, isto seja por relação ao momento da prática dos factos, seja por relação a momentos anteriores ou posteriores a esse último, seja uma qualquer diminuição, muito menos acentuada, da ilicitude ou da necessidade da pena.
Para completar a abordagem relativa à medida da pena, não deixamos de citar a decisão recorrida quando fixou a pena máxima de privação de liberdade também à recorrente:
“Nos termos do artigo 40.º n.º 1 do Código Penal, as penas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Importa assim considerar critérios de prevenção geral e especial.
Na prevenção geral utiliza-se a pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos e para incentivar a convicção na sociedade, de que as normas penais são válidas e devem ser cumpridas, servindo assim a pena para aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos e da comunidade em geral.
Na prevenção especial, a pena é utilizada no intuito de dissuadir o próprio delinquente de praticar novos crimes e com o fim de auxiliar a sua reintegração na sociedade, podendo variar nesta medida, quer a escolha da pena, quer a execução da mesma, conforme as especificidades de cada condenado.
Nos presentes autos as necessidades de prevenção geral são altíssimas. Não se antevê como pudessem ser maiores. A morte de uma criança gera sempre muita comoção o que justificará o forte mediatismo à volta deste processo. Acontece que esta criança não foi só morta, mas torturada de uma forma que as palavras não conseguem cabalmente descrever.
É fundamental aplicar aos arguidos uma pena em que a comunidade se reveja, reforçando a confiança nas instituições e o inerente sentimento de segurança, determinante para uma pacificação social.
As necessidades de prevenção especial são igualmente muito elevadas.
Os arguidos não mostraram arrependimento, nem qualquer empatia para com a vítima, cuja morte aparentam não valorizar.
Dispõe o artigo 71.º n.º 1 do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”
Já o n.º 2 dispõe que: “na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.
b) A intensidade do dolo ou da negligência
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram.
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica.
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Vejamos então.
O grau de ilicitude foi muito elevado quanto a todos os arguidos. A vítima era uma criança de 3 anos, e os arguidos BB, CC e DD por ação quanto a cada um e por omissão no que quanto aos outros não lograram impedir, torturaram FF com a mais grave das consequências que se possa imaginar traduzida na morte após longo e atroz sofrimento. O grau de violação dos deveres a que se vincularam ao aceitarem acolher uma criança indefesa em casa foi máximo e o resultado foi um ser humano indefeso que perdeu o direito à infância de uma forma medieval.
A intensidade nas ofensas que consubstanciaram a tortura antes da morte terá sido máxima para quem a praticou. O dolo eventual de homicídio dentro que se encontra abrangido pelo dolo eventual não poderia ser maior.
Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os motivos que o determinaram permanecerão uma incógnita, na certeza, porém, de que mesmo ascendendo ao plano da abstração e da hipótese, não se antevê nenhum sentimento ou motivo que pudesse abonar de alguma forma os arguidos.
As condições pessoais dos arguidos, todos sem exceção, são francamente negativas. Constatando a impossibilidade de utilizar a factualidade constante dos relatórios sociais junto aos autos que pudesse de alguma forma abonar os arguidos, desagravando as penas, optou-se por não levar aos factos provados tal matéria, para preservar a intimidade e privacidade dos arguidos, que poderia assim ser desnecessariamente devassada. Probabilidade com grau especialmente elevado nestes autos atenta a sua repercussão mediática.
No que concerne à conduta anterior, os arguidos a condenar não têm antecedentes criminais, mas considerando a tipologia e contornos do crime em nada releva este parâmetro.
A conduta posterior é negativa. Enquanto estiveram em liberdade nada fizeram para evitar o resultado e, de lá para cá não foi demonstrado qualquer arrependimento ou interiorização do desvalor da conduta. Pelo contrário, os arguidos continuaram a agir indiferentes aos efeitos da sua conduta para o termo da vida de FF e sempre focados naquilo que percecionaram, mal, ser o melhor para sua esfera jurídica, evidenciando uma personalidade autocentrada com total falta de empatia sobre a vítima e o sofrimento a que a sujeitaram.
Em suma, nada de relevante que se possa apontar abona os arguidos. Mais grave, nenhum elemento, com exceção dos antecedentes criminais, é inócuo, sendo tudo profundamente negativo.
Conclui-se que deverão ser ponderadas penas dentro dos limites máximos da moldura para todos os arguidos. E aqui chegados, olhando uma vez mais para as fotografias do corpo de FF, questionou-se este Coletivo sem encontrar resposta, de quantas mais pancadas, cortes, arranhões, beliscões e picadas teria de suportar FF? De quantas mais perversidades teriam de utilizar os arguidos GG e de quanto mais alheamento teria AA de evidenciar perante o sofrimento da filha, para estarmos perante o exemplo prático, paradigmático, do que é um crime de homicídio com especial perversidade e censurabilidade com dignidade para ser punido com a pena mais alta do ordenamento jurídico português?
A moldura está prevista para a prática de um crime no singular, sendo fundamental em sede de prevenção geral, transmitir à sociedade qual o limite, qual a linha vermelha que não poderá ser ultrapassada, sob pena de ser aplicada a pena mais gravosa. Compulsando os artigos 8 a 12 e 25, cremos que com menos metade das lesões descritas na transcrição do relatório de autópsia teríamos ultrapassado essa linha vermelha.
Apenas a culpa de cada um dos arguidos poderia limitar esta pena que se crê adequada, mas como por várias já se referiu, a culpa de cada um dos arguidos é muito elevada, não ficando comprometida com a aplicação da única pena que se afigura servir os fins das penas e as necessidades de prevenção geral e especial que neste caso se fazem sentir.”
Os termos acabados de citar merecem a nossa incondicional adesão, mostrando-se sem fundamento a pretensão da recorrente.
Decai o recurso na sua totalidade. […]”.
76. Percorrendo a motivação de recurso não se identifica qualquer argumento novo, distinto dos já invocados perante o Tribunal da Relação, mas apenas uma reedição daqueles mesmos argumentos, que agora devem ser apreciados por referência à decisão recorrida, que confirmou a condenação em 1.ª instância.
Convocando-se, antes de mais, o regime legal aplicável.
77. Dispõe o artigo 40.º do Código Penal que a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Nos termos do n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, em observância do critério de proporcionalidade com fundamento no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»59.
Para a medida da gravidade da culpa, de acordo com o artigo 71.º, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências e intensidade do dolo ou da negligência), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram e o grau de violação dos deveres impostos ao agente [als. a), b) e c)], bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade (condições pessoais e situação económica, conduta anterior e posterior ao facto, e falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. d), e), f)].
Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Aqui se incluem as consequências não culposas do facto (v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves, comportamento anterior e posterior ao crime (com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. a) e) e f)]. O comportamento do agente [als. e) e f)] adquire particular relevo em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.
Como se tem sublinhado, é na consideração destes fatores, determinados na averiguação do «grande facto» caraterizado pelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, constituem o substrato da determinação da pena, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), que devem pautar a sua aplicação60.
Não se podendo fundar em considerações de ordem geral pressupostas na definição dos crimes e das molduras abstratas das penas em vista da adequada proteção dos bens jurídicos postos em causa, sob pena de violação da proibição da dupla valoração, a determinação da pena dentro da moldura penal correspondente ao crime praticado há de comportar-se no quadro e nos limites da gravidade dos factos concretos, nas suas próprias circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal), na concreta gravidade do ataque ao bem jurídico protegido – no caso dos autos, a vida –, tendo em conta as finalidades de prevenção especial de ressocialização61.
78. Quanto ao instituto da atenuação especial da pena, mostra-se este previsto nos artigos 72.º e 73.º do Código Penal.
Dispõe o art. 72.º que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. (n.º 1), sendo consideradas para o efeito do disposto no número anterior, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta. 3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo (n.º 2).
Tal instituto reclama que se verifiquem circunstâncias, anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas dele, capazes de conferir ao facto uma imagem global com uma gravidade «tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo». «A acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial»62.
A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excecionais, quando não for possível, dentro da moldura geral abstrata escolhida pelo legislador para o tipo de crime, a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial. “[…] A ideia político-criminal que preside ao instituto é a de dotar o sistema de uma válvula de segurança quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo normal de casos que o legislador terá tido em mente quando fixou os limites da moldura penal respectiva, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. Assim, só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, pois para a generalidade dos casos, para os “casos normais”, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios. […]”63
Ou seja, as circunstâncias descritas só podem conduzir à atenuação especial da pena se tiverem a potencialidade de diminuir, por forma acentuada, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. São, pois, meramente indicativas e não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena.
79. Finalmente, no que respeita à atenuação especial prevista no artigo 10.º, n.º 3, do Código Penal, esta apenas se aplica aos crimes de omissão imprópria ou impura por reporte ao n.º 2 do mesmo artigo.
Trata-se de uma faculdade conferida pela lei, a ponderar em cada caso concreto, que se traduz num poder-dever do julgador quando o agente, sujeito ao dever de garante, não o cumpre com vista a evitar o resultado.
Como explicou Eduardo Correia na Comissão de Revisão do Código Penal, “matar e deixar morrer não é a mesma coisa, sendo a intensidade de violação do bem jurídico maior no primeiro caso do que segundo. A diferença não é, pois, nem tanto (..) uma diferença subjectiva, de censura, mas objectiva, de ilicitude, Com isto, porém, não se exclui que em certos casos extremos aquela diferença de gravidade possa desaparecer; por isso se consagrou no §2.º uma atenuação especial, sim, mas facultativa”64.
O carácter facultativo da remissão que é feita a partir do artigo 10.º, n.º 3, do Código Penal, para os termos da atenuação especial, concede ao juiz a faculdade de construir uma nova penalidade a que se chegará uma vez modificada, nos termos do artigo 73.º do Código Penal, a pena aplicável para um hipotético crime comissivo por ação.
Como é reconhecido, trata-se de uma solução razoável, que deve ser usada pelo tribunal desde que e só quando considerar que o concreto ilícito comissivo por omissão e a concreta culpa do omitente são menos graves – e em regra serão, salvo nos casos em que o conteúdo da ilicitude e da culpa da omissão não possa ser considerado menor que o do delito de ação –, devendo ser distinguidas as diferentes situações em que o crime é praticado65. Em que se inclui a maior ou menor intensidade do dever jurídico de agir – que, no caso dos pais, não pode deixar de ser mais elevada e tanto mais elevada quanto maior for o grau de dependência do filho e da proteção que lhe é devida –, o grau de controlo do processo causal do resultado e o grau de proximidade entre o omitente e a vítima, sendo de ponderar todas as circunstâncias em que ocorreu a omissão e outros elementos respeitantes à omissão concreta que teve lugar, em conformidade com o critério geral do artigo 72.º do CP 66
80. É, pois, neste quadro que importa determinar, no âmbito dos poderes deste tribunal de recurso, se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade que constitucionalmente se impõem nessa determinação.
Na apreciação da adequação e proporcionalidade da pena aplicada importa considerar as circunstâncias que, constituindo o respetivo substrato, a justificam, tendo presente que o recurso não se destina a proceder a uma nova determinação da pena, mas, apenas, a verificar o respeito pelos critérios que presidem à sua determinação, com eventual correção da medida da pena aplicada, se o caso a justificar67.
81. Relembrando a fundamentação, na determinação da medida da pena foram considerados, em síntese:
- As «altíssimas» necessidades de prevenção geral, não antevendo o tribunal recorrido que «pudessem ser maiores»: «A morte de uma criança gera sempre muita comoção o que justificará o forte mediatismo à volta deste processo. Acontece que esta criança não foi só morta, mas torturada de uma forma que as palavras não conseguem cabalmente descrever».
- As «igualmente muito elevadas» necessidades de prevenção especial: «Os arguidos não mostraram arrependimento, nem qualquer empatia para com a vítima, cuja morte aparentam não valorizar.»
- O «muito elevado» grau de ilicitude: «A vítima era uma criança de 3 anos e os arguidos BB, CC e DD por ação quanto a cada um e por omissão no que quanto aos outros não lograram impedir, torturaram FF com a mais grave das consequências que se possa imaginar traduzida na morte após longo e atroz sofrimento.»
- A intensidade nas ofensas «que consubstanciaram a tortura antes da morte terá sido máxima para quem a praticou».
- O dolo eventual de homicídio dentro que se encontra abrangido pelo dolo eventual não poderia ser maior.
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os motivos que o determinaram «permanecerão uma incógnita, na certeza, porém, de que mesmo ascendendo ao plano da abstração e da hipótese, não se antevê nenhum sentimento ou motivo que pudesse abonar de alguma forma os arguidos».
- As «francamente negativas» condições pessoais dos arguidos.
- No que concerne à conduta anterior: «não têm antecedentes criminais, mas considerando a tipologia e contornos do crime em nada releva este parâmetro».
- A conduta posterior é «negativa»: «Enquanto estiveram em liberdade nada fizeram para evitar o resultado e, de lá para cá não foi demonstrado qualquer arrependimento ou interiorização do desvalor da conduta. Pelo contrário, os arguidos continuaram a agir indiferentes aos efeitos da sua conduta para o termo da vida de FF e sempre focados naquilo que percecionaram, mal, ser o melhor para sua esfera jurídica, evidenciando uma personalidade autocentrada com total falta de empatia sobre a vítima e o sofrimento a que a sujeitaram».
Concluindo que: «em suma, nada de relevante que se possa apontar abona os arguidos. Mais grave, nenhum elemento, com exceção dos antecedentes criminais, é inócuo, sendo tudo profundamente negativo».
82. Sem perder de vista o princípio da proibição da dupla valoração (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal), segundo o qual, na determinação da medida da pena, não é permitido considerar novamente as circunstâncias que levaram ao preenchimento do tipo de crime, impedindo assim que a mesma circunstância seja valorada duas vezes – enquanto elemento do tipo e, simultaneamente, como circunstância agravante na determinação da medida da pena – importa considerar que aquele princípio não impede que para o efeito se valore o grau de intensidade da realização ou de concretização de um elemento ou de violação de um dever determinante da aplicação da norma que estabelece a moldura penal.
Como se consignou no acórdão de 09.10.201968, seguindo a jurisprudência e doutrina aí citada, a que adere: “[…] Não haverá dupla valoração quando as circunstâncias que preenchem um elemento típico ultrapassam, em razão da intensidade ou dos efeitos, a normalidade, adquirindo um carácter superlativo. Nesse caso, podem tais circunstâncias ser valorizadas em sede de medida da pena, sem que tal importe a violação da regra da proibição da dupla valoração. […]”
83. No caso concreto, verifica-se que o acórdão recorrido, na fundamentação do elevado grau da ilicitude, conferiu particular relevância ao facto de a vítima ter apenas três anos de idade, considerada no preenchimento da circunstância agravante do homicídio [al. c) do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal – pessoa particularmente indefesa «em razão da idade»] para condenar a recorrente por homicídio qualificado.
A concretização desta circunstância, aliada ao processo de tortura e sofrimento infligidos à vítima, evidenciando uma superior censurabilidade e mais elevada intensidade do desvalor da conduta omissiva da recorrente, em nada colide com a proibição da dupla valoração. O mesmo sucedendo quanto às demais circunstâncias das alíneas a) e h) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, que operam autonomamente.
Este comportamento omissivo é expressão da extremamente desvaliosa personalidade da recorrente que, com conhecimento do estado de saúde de FF e do risco de vida que corria, em gravíssima, continuada e persistente violação dos seus deveres de mãe, optou por seguir a sua rotina de vida (nomeadamente na noite anterior à morte, em que, depois de verificar o grave estado de saúde da vítima, decidiu ir “para a noite” divertir-se com o seu companheiro), nada fazendo para lhe prestar socorro e para, pelos meios ao seu alcance, evitar a morte da menina.
A extrema gravidade da atuação da arguida revela-se com particular nitidez na situação, prolongada no tempo, que conduziu à morte, na qual, como se viu, se define um quadro de comparticipação criminosa (coautoria): a morte da vítima apresenta-se como o resultado das condutas dos vários arguidos, por ação ou omissão, que, voluntariamente e de forma convergente, produziram esse resultado.
Com efeito, o processo que levou à morte iniciou-se com uma ação (positiva) da arguida, de entrega da vítima aos cuidados da arguida BB no dia 14 de junho de 2022, na residência desta, onde permaneceu até ao dia 20 de junho de 2022 (facto 6) e onde sofreu os cruéis atos de agressão e os ferimentos que lhe provocaram a morte (factos 7 e 8), depois de uma anterior entrega da vítima a essa mesma pessoa, antes de 8 de junho de 2022, no mesmo local, onde permaneceu por mais de 24 horas (facto 3), e onde lhe haviam sido produzidos ferimentos que, estava a arguida convencida, lhe haviam sido provocados pelos coarguidos (factos 4 e 5). Apesar disso, e sabedora do risco que a criança corria e expondo-a ao risco, previsível, de sofrer novas agressões, voltou a entregar a criança à mesma pessoa e no mesmo local cerca de uma semana depois, no dia 14 de junho. No dia 19 de junho, depois de chamada ao local, passando junto ao posto da GNR, onde podia pedir auxílio, verificou os ferimentos e agressões que a filha entretanto sofrera e o grave estado de saúde em que se encontrava e, apesar de estar convencida que estes tinham sido provocados pelos coarguidos, também nada fez para interromper essa situação e para socorrer e cuidar da saúde da vítima, mantendo-a com as mesmas pessoas e no mesmo local (factos 13 a 16). No dia seguinte, após várias chamadas, acabou por receber a filha que lhe foi entregue noutro local, pela manhã (cerca das 9:30h), e, apesar de verificar o gravíssimo estado em que se encontrava, levou-a para casa, deitou-a e deixou-a na cama e só pelas 15 horas, mais de 5 horas depois, é que pediu para ser chamado o INEM que conduziu a vítima ao hospital onde, apesar dos esforços de reanimação, esta veio a falecer pelas 16:27h.
A sequência descrita mostra que a omissão da arguida ocorreu num contexto em que esta também podia «dominar o facto», intervindo ativamente no processo que conduziu à morte, não voltando a entregar a sua filha, sabedora dos riscos que ela corria, e não retirando ou providenciando para que a sua filha fosse retirada da companhia das pessoas que causaram ou permitiram que fosse causadas as graves lesões de que resultou a morte e do local em que essas lesões ocorreram.
Esta circunstância agrava severamente a responsabilidade da arguida na omissão do dever de agir perante a situação criada, para que contribuiu, revelando a essencialidade do seu contributo para o resultado verificado.
84. As necessidades de prevenção geral, cuja avaliação se deve comportar nos limites da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP) em razão das circunstâncias que para o efeito relevam (artigo 71.º do CP), são, no caso, muito elevadas, atendendo ao modo como foi violado o bem jurídico protegido (a vida, bem supremo), ao grau de ilicitude e ao modo de execução do facto e às consequências não culposas do facto relacionadas com o seu impacto na comunidade, justificando uma resposta proporcional à sua gravidade, de modo a reafirmar a confiança nas normas violadas.
As necessidades de prevenção especial de socialização, visando a reintegração e o respeito pelos valores da vida em sociedade, avaliadas também nos limites da culpa, são, também, muito elevadas. De particular relevo na determinação da medida concreta da pena, também com relevo ao nível da culpa, militando contra a arguida, identifica-se nas circunstâncias do facto uma manifesta falta de preparação desta, como mãe, para manter uma conduta lícita, a revelação de sentimentos de completa indiferença perante as consequências das agressões (gravidade dos ferimentos e intensidade do sofrimento) e as necessidades de auxílio da vítima e um muito reprovável comportamento anterior e posterior à omissão das condutas devidas (entrega e manutenção da criança na companhia dos agressores e abandono por várias horas após esta lhe ter sido devolvida) e à duração e persistência destas no tempo, não revestindo, neste contexto, qualquer relevância a ausência de antecedentes criminais.
85. A consideração no acórdão recorrido de que a recorrente agiu com dolo eventual deve entender-se como reportada unicamente ao resultado («conformando-se com a sua morte» – ponto 38 da matéria de facto), o mesmo não se podendo dizer quanto à comparticipação direta nos factos que determinaram esse resultado. Com efeito, a arguida tinha perfeita consciência de que as lesões que foram sendo infligidas pelos coarguidos na sua filha eram muito graves e suscetíveis de colocar, como colocaram, a sua vida em risco, levando à morte, desde logo, face ao número de lesões e às zonas do corpo atingidas – de que se apercebeu, bem como das suas graves consequências – e à intensidade, reiteração e violência com que foram praticadas, e «deliberadamente» (facto 38) nada fez para retirar a vítima da situação em que se encontrava, apesar de o poder fazer, e a socorrer, o que não poderá deixar de ser severamente censurado, com decisivo valor negativo por via da culpa.
O elevado nível de ilicitude e especial censurabilidade do facto afastam decisivamente qualquer possibilidade de ponderação da atenuação da pena, nos termos do n.º 3 do artigo 10.º e 72.º do CP.
Não se apurou qualquer circunstância que pudesse explicar as agressões à criança, o que, não se podendo ser indiferente a este facto, além de revelar uma atitude de não colaboração na realização da justiça, exprime, sem qualquer manifestação de arrependimento, uma manifesta falta de consciência e interiorização da censurabilidade da conduta perante cuja gravidade não é possível identificar qualquer circunstância que possa ser considerada favoravelmente à arguida. Pelo contrário, antes se revela uma conduta omissiva extremamente censurável, mesmo cruel e arrepiante, reveladora de uma total insensibilidade própria de uma personalidade que menospreza o valor vida de uma criança de três anos, com quem a arguida tinha o mais estreito vínculo familiar por via da filiação e com quem partilhava uma vida em comum, já que a mesma integrava o seu agregado e dela dependia a todos os níveis. Estes elementos, revelam uma tal intensidade superlativa que impõe a sua consideração ao nível da culpa para a determinação da medida da pena sem pôr em causa a dupla valoração.
86. Assim sendo, face à extrema gravidade dos factos provados, tendo em conta as características desvaliosas da personalidade da recorrente neles projetada, a gravidade das circunstâncias e fatores mencionados relevando por via da culpa e da prevenção, nos termos anteriormente descritos, não se encontra fundamento que justificadamente permita constituir uma base de discordância quanto à pena aplicada e quanto ao respeito pelos critérios de adequação ou proporcionalidade que presidem à sua determinação.
Pelo que, nesta conformidade, se impõe concluir pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Quanto a custas
87. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
III. Decisão
88. Pelo exposto, acorda-se em conferência da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC.
Supremo Tribunal de Justiça, 14 de maio de 2025
José Luís Lopes da Mota (relator)
Jorge Raposo
Horácio Correia Pinto
_____________________________________________
1. Conforme orientação jurisprudencial expressa, entre outros, nos acórdãos de 20.01.2021, Proc. n.º 611/16.2PALSB.L1.S1, de 02.07.2020, Proc. n.º 989/17.0PZLSB.L1.S1, de 12.07.2018, Proc. n.º 74/16.2JDLSB.L1.S1, e de 29-04-2015, Proc. 791/12.6GAALQ.L2.S1.
2. Assim, designadamente, os acórdãos de 02.10.2019, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, e de 26.06.2019, Proc. n.º 174/17.1PXLSB.L1.S1, bem como a jurisprudência neles citada.
3. Cfr. por todos, os acórdãos de 08.11.2006, Proc. n.º 06P3102, e de 16.10.2024, Proc. n.º 253/21.0T9FND.C1.S1.
4. Que se distingue dos denominados crimes de omissão «próprios» ou «puros» – de que agora não se cuida, apesar de comungarem de elementos comuns – cujos pressupostos fáticos, de que deriva a obrigação de atuar, se estabelecem na Parte Especial do Código Penal (como sucede no exemplo paradigmático do crime de omissão de auxílio – artigo 200.º, n.º 1, do CP), em que a omissão é expressamente referenciada num tipo legal de crime.
5. Convoca-se, sobre o tema, de reconhecida complexidade e objeto de teorias diversas e larga elaboração doutrinária, Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2019, pp. 1055 ss, bem como Maria Paula Ribeiro de Faria, «Os Crimes de Omissão», Formas Especiais do Crime, Universidade Católica Editora, 2019, pp. 145ss, Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª ed., pp. 549ss, Lamas Leite, As «Posições de Garantia» na Omissão Impura, Coimbra Editora, 2007, e Fernando Torrão, Direito Penal – Parte Geral, pp. 50-83, Almedina, 2024, que, na determinação do sentido e alcance do artigo 10.º, se seguem de perto.
6. A epígrafe do artigo 10.º («Comissão por acção e por omissão») foi «retificada» pela Lei n.º 65/98, de 2/9, para exprimir corretamente o sentido do preceito. Diz-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 160/VII/3 (DAR II Série-A, de 29.1.1998, p. 527), que esteve na origem desta alteração: «Em matéria de omissão, rectifica-se um notório erro material, resultante da falta de duas palavras que constavam do n.º 1 do artigo 10.º da versão originária do Código Penal de 1982. Na verdade, ao identificar como facto criminoso não só a acção adequada a produzir o resultado como a omissão adequada a evitar o resultado, aquela norma equipara literalmente, por exemplo, à acção homicida a omissão que impede a morte de alguém. Ora, o que se pretende, diferentemente, é referir a omissão da acção que evitaria a morte da vítima, isto é, a omissão da acção salvadora.»
7. Notando a «irrepreensibilidade desta equiparação», no pressuposto de que tanto o facere como o omittere são «manifestações inequívocas do modo de ser humano» e que «o que releva para o juízo de ilicitude é o desvalor do resultado, que não o da ação e, muito menos o da intenção, sendo inócuo se o que lhe dá causa é a conduta que produz o resultado proibido ou a omissão que o deixa ter lugar», Faria e Costa, «Omissão – Reflexões em Redor da Omissão Imprópria», Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXII, Coimbra, 1996, Universidade de Coimbra, pp. 391-392.
8. Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal, «Pressupostos da Punição», CEJ, 1983. p. 54.
9. Lamas Leite, ob. cit. p. 78.
10. O que não significa que se deva limitar aos denominados crimes materiais ou de resultado [Lamas Leite, ob. cit. p. 314. Na conceção da «teoria da conexão do risco» a comissão por omissão abrangerá os tipos legais de crime que lesem (crimes de dano) ou coloquem em risco de lesão (crimes de perigo) dados interesses particularmente protegidos].
11. Que, na sua origem, se entendeu como diretamente referida aos casos em que o tipo de crime descreve uma forma de execução vinculada, embora se admita que o julgador não está impedido de concluir pela comissão omissiva de crimes de execução vinculada (Lamas Leite, ob. cit. p. 317.
12. Cfr. Figueiredo Dias, Jornadas, cit. p. 55, e, em termos não coincidentes, excluindo totalmente a equiparação nos chamados «crimes modais», Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Verbo, 1998, p. 48-49.
13. Miguez Garcia/Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial com Notas e Comentários, Almedina, 2015, anotação ao artigo 10.º.
14. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, cit., pp. 1080-1110, Lamas Leite, ob. cit. p. 81ss.
15. Figueiredo Dias, loc. cit.
16. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, cit., p. 383. Assim, o acórdão de 27.11.2013, Proc. 37/12.7JACBR.C1.S1, em www.dgsi.pt.
17. Taipa de Carvalho, Direito Penal, cit., p. 570-571.
18. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 18.ª ed., Almedina, 2007, anotação ao artigo 10.º.
19. Assim também Santiago Mir Puig, Derecho Penal – Parte General, Editorial Reppertor, Barcelona, 2016, p. 140.
20. Paula Ribeiro de Faria, Formas Especiais do Crime, cit. pp. 201-205.
21. Para além da «teoria da adequação», já citada e refletida na formulação do artigo 10.º, mencionam-se a teoria da «conexão do risco» (Figueiredo Dias), a designada «teoria intermediária» (Roxin) e a «teoria da conexão normativo-típica» (Taipa de Carvalho).
22. Cfr. Fernando Torrão, ob. cit., p. 52
23. Direito Penal, Parte Geral, cit., pp. 1080-1110, pp. 1082-1085. No mesmo sentido: Lamas Leite, ob. cit. p. 101, 104.
24. A propósito da denominada doutrina «intermediária» ou «conciliadora», de Roxin, de complementaridade entre um juízo ex ante e um juízo ex post, «segundo a qual o resultado não será imputável se a diminuição do risco só aparece como possível segundo uma consideração ex ante, mas já o será se, também segundo uma consideração ex post, se comprovar que aquela diminuição se teria efetivamente verificado» - loc. cit. p. 1085. Cfr. também Lamas Leite, loc. cit. pp. 105-106.
25. Propondo uma alternativa à teoria da conexão do risco, defendida por Figueiredo Dias, à doutrina de Roxin e à teoria da adequação (consagrada no art.º 10.º, n.º 1), que considera globalmente válida e apta a resolver os problemas da imputação do resultado (loc. cit. p. 316ss), reconhece que os casos que são ou não de verdadeira imputação do resultado à conduta omissiva «são resolvidos, adequadamente, pela teoria do risco, também são resolvidos corretamente pela teoria da adequação» (loc. cit. pp. 313-316ss).
26. Paula Ribeiro de Faria, Formas Especiais do Crime, cit. pp. 203.
28. Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. p. 1130, Lamas Leite, p. ob. cit, p. 140, e Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 206. Ver ainda José Manuel Vilalonga, «Acção e Omissão», in Maria Fernanda Palma e outros, Casos e Materiais de Direito Penal, Almedina, 3.ª ed., pp. 345ss.
29. Eduardo Correia, Direito Criminal II, Almedina, 1971, p. 254, e Figueiredo Dias, ob. cit. p. 1130
30. (cfr., entre outros, os acórdãos 06-10-2004 (Henriques Gaspar), Proc. 04P1875, de 5.6.2012 (Armindo Monteiro), Proc. 148/10.3SCLSB.L1.S1, e de 14.12.2017 (Francisco Caetano), Proc. 470/16.5JACBR.S1, em www.dgsi.pt)
31. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., GestLegal, 2019, pp. 894, 923 e 928
32. Como no sistema alemão – assim, Eric Hilgendorf/Brian Valerius, Direito Penal, Parte Geral, tradução da 2.ª ed., Marcial Pons Editora do Brasil, 2019, p. 250. Sobre estes pontos, cfr. Nuno Brandão, «Pacto para matar: autoria e início de execução, comentário ao acórdão do STJ de 16.10.2008, Proc. n.º 3867/07», em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 4/2008, p. 531-605
33. Figueiredo Dias, loc. cit. P. 925
34. Paula Ribeiro de Faria, loc. cit., p. 313.
35. Cfr. Fernando Torrão, ob. cit., p. 77-82.
36. Numa conceção «material-formal» das «fontes» ou «planos» de dever de garante, em que se incluem, nomeadamente, a lei, o contrato, a ingerência (obrigação de evitar o resultado por se ter provocado o perigo), o domínio da fonte de perigo e as comunidades de perigo, que atualmente se têm por adquiridas. Cfr. em particular Figueiredo Dias, ob. cit. pp. 1087-1110, Lamas Leite, ob. cit. pp. 147ss e Paula Ribeiro de Faria, ob. cit. pp. 170-200.
37. Assim, Figueiredo Dias, ob. cit. pp. 1094. Neste sentido, o acórdão de 20-03-2003 (Leal Henriques), Proc. 03P1677, com voto de vencido (Henriques Gaspar) sublinhando a necessidade de particular caraterização da posição de garante com verificação das «necessárias capacidades e qualidades», a que anteriormente já se fez referência, exigidas pela tipicidade (em www.dgsi.pt).
38. Assim, sobre este ponto, Figueiredo Dias, ob. cit. pp. 1110-1114.
39. Claus Roxin, Autoría y Domínio del Hecho en Derecho Penal, Traducción de la sexta edición por Joaquín Cuello Contreras y José Luís Serrano González de Murillo, Marcial Pons, ediciones jurídicas y sociales, S.A, Madrid, Barcelona, 1998, p. 499 e ss, apud Marisa Sofia Marra Todo Bom, «Crimes de omissão: a sua admissibilidade na instigação», Dissertação, Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 2015, p. 38, disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/34908/1/Crimes%20de%20Omissao%20A%20sua%20Admissibilidade%20na%20Instigacao.pdf
40. Garcia, Miguez/Rio, Castela, ob. cit., p. 93. A este propósito defende Damião da Cunha ser a autoria paralela a forma “normal” de cometimento do crime de dever (em que inclui a comissão por omissão), quando “não se verifique uma situação anómala de «verdadeiro domínio sobre o resultado»” («Algumas reflexões críticas sobre a omissão imprópria no sistema penal português», em Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 481ss e 534). Criticando esta posição, Lamas Leite, ob. cit. pp. 139-141, defendendo a coautoria em casos de comissão por ação e comissão por omissão – citando caso em que a morte de um filho tanto se ficou a dever a atuação positiva do pai como a não cumprimento do dever de garante da mãe (cfr. supra, ponto 41).
41. Sobre este ponto, cfr. o acórdão do STJ de 31.10.2024, Proc. 551/22.6GBGDL.S1, refletindo jurisprudência reiterada, que se segue.
42. Assim, entre outros, o acórdão do STJ de 15.02.2023, Proc. n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1, e jurisprudência e doutrina ali citadas, em www.dgsi.pt.
43. Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., p. 35.
44. Acórdão de 18.9.2018, Proc. n.º 359/16.8JAFAR.S1, em www.dgsi.pt, que se segue.
45. Teresa Serra, citando Jescheck e Wessels, em Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1997, p. 78.
46. Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 56.
47. Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 29.
48. Ainda a propósito dos conceitos normativos de “especial censurabilidade e perversidade”, cfr. também os acórdãos de 27.11.2019, Proc. n.º 323/18.2PFLRS.L1.S1, de 28.09.2011 Proc. n.º 68/08.1GAMGR.C1.S1, de 18.10.2007, Proc. n.º 07P2586, e de 26.09.2007, Proc. n.º 07P2591, em www.dgsi.pt.
49. Acórdão do STJ de 15.02.2023, Proc. n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1, cit.
50. Pinto de Albuquerque, ob. cit., pp. 349-350.
51. Assim, os acórdãos de 18.6.2008, Proc. 1414/08, Sumários Anuais, Criminal, 2008, e de 26.11.2015, Proc. 119/14.0JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt.
52. Miguez Garcia/Castela Rio, ob. cit., anotação ao artigo 132.º, e Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 511.
53. Figueiredo Dias/Nuno Brandão, loc. cit., p. 67, e Pinto de Albuquerque, loc. cit., p. 514.
54. Como é jurisprudência reiterada, revelando-se o crime qualificado por duas ou mais circunstâncias qualificativas (artigo 132.º do CP), apenas uma delas se deve considerar para esse efeito, relevando as outras por via da culpa, como agravantes de carácter geral, nos termos do artigo 71.º do CP (assim, o acórdão de 7.12.2024, Proc.º n.º 807/22.8PFLRS.L1.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência aí mencionada).
55. Eduardo Correia, Direito Criminal II, Coimbra Editora, 1971, p. 253. Cfr. supra, ponto 40 e 43.
56. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3.ª reimp., 2011, p. 237.
57. Assim, entre outros, o acórdão de 13.03.2019, Proc. 610/16.4JAAVR.C1.S1, em www.dgsi.pt. Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit. p. 256, e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, p. 40.
58. Assim, Eduardo Correia, Direito Criminal II, cit. p. 354, Maia Gonçalves, Código Penal, cit. p. 512, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Os Crimes Contra as Pessoas, 4.ª ed., Quid Juris, 2017, p. 70, Pinto de Albuquerque, Código Penal, cit. p. 510, Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense, cit., p. 57. Por todos, o acórdão de 27.5.2020 (Manuel A. Matos), Proc. 259/18.7PFSXL.L1.S1, em www.dgsi.pt.
59. Sobre estes pontos, que seguidamente se desenvolvem, na determinação do sentido e alcance do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, como em acórdãos anteriores, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357 – cfr., de entre muitos outros, o acórdão de 15.1.2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, e, de entre os mais recentes, o acórdão de 05.03.2025, Proc. 1524/23.7PBFAR.E1.S1, em www.dgsi.pt.
60. Assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.
61. Salientando este ponto, entre muitos outros, o acórdão de 29.4.2020, Proc. 16/05.0GGVNG.S1, em www.dgsi.pt.
62. Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas, cit., pp. 306-307.
63. Acórdão de 22.02.2017, Proc. n.º 327/15.7GDALM.L1.S1, em www.dgsi.pt., citando Figueiredo Dias, loc. cit Assim também, entre outros, o acórdão d de 07.10.2020, Proc. n.º 387/19.1PCSNT.S1, em www.dgsi.pt.
64. Atas CP/Eduardo Correia, 1965 a: 108, citado por Pinto de Albuquerque, in ob cit. supra, p. 75; no mesmo sentido, Victor Pereira e Alexandre Lafayette, explicam que a omissão, quando o agente, sujeito ao dever de garante, não cumpre o dever atinente de evitar o resultado, assume, por vezes, gravidade de elevado teor, [é] capaz de excluir o referido beneficio, in ob cit supra, p. 84.
65. Figueiredo Dias, Direito Penal, cit., p. 1079, Taipa de Carvalho, ob. cit. p. 572.
66. Paula Ribeiro de Faria, ob. cit. p. 167-170.
67. Assim, por todos, o acórdão de 17.12.2024, Proc. 77/12.6GTCSC.L2.S1, em www.dgsi.pt, e outros nele citados, reafirmando jurisprudência reiterada. Cfr., em particular, o acórdão de 21.12.2011 (Raul Borges), Proc. n.º 595/10.0GFLLE.S1, com exaustiva indicação de jurisprudência, também em www.dgsi.pt.
68. Proc. n.º 3145/17.4JAPRT.S1 (Raul Borges), com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/06/sumarios-criminal-2019.pdf. Também, no mesmo sentido, o acórdão de 26-11-2008 (Santos Cabral), Proc. n.º 3372/08 em www.dgsi.pt.