I. Sob pena de intempestividade o recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
II. Se faltar, igualmente a consagração de soluções de direito diferentes para idênticas situações de facto, então com base na não verificação de ambos os fundamentos, um de natureza formal e outro de natureza material, será de rejeitar o recurso para fixação de jurisprudência.
I. Relatório
1. A Sra. Procuradora Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação de Coimbra, por requerimento entregue a 17.3.2025, interpôs recurso para fixação de jurisprudência para pleno das secções criminais deste Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo dos artigos 437.º e 438.º do Código do Processo Penal, do acórdão ali proferido, a 22.1.2025, no processo 309/22.2GBCLD.C1, rematando o corpo da motivação com as conclusões que se passam a transcrever:
1 - O Acórdão recorrido decidiu revogar a decisão proferida em 1ª instância a qual considerou que a incapacidade judiciária do arguido impede a sua sujeição a julgamento no âmbito penal, devendo os autos ficar suspensos até à sua extinção, por alguma das formas previstas no artigo 127.º do Código Penal, ou, ainda, por prescrição.
2. Tendo tal Acórdão determinado expressamente o prosseguimento dos autos, com agendamento de audiência de julgamento, produzindo-se a prova necessária, nos termos do disposto no artigo 338.º/1 do Código de Processo Penal.
3. Sendo de excluir a decisão por simples despacho, prévia ao julgamento, a qual desprovida das garantias que resultam da publicidade da audiência e do contraditório assegurados pela realização da audiência de julgamento.
4. No decurso desta, cumpre analisar as conclusões constantes da perícia médico-psiquiátrica e comprovadas estas, haverá lugar, oportunamente, se o arguido vier a ser condenado, à aplicação do regime previsto no artigo 06.º do Código Penal.
5. Mais se verifica ter sido anteriormente decidido, por Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, exarado no Processo nº 32/23.0PBCTB.C1, datado de 6.11.2024 e já transitado, que sendo omissa a legislação penal e processual penal a tomar em caso de incapacidade processual do arguido ocorrida posteriormente à data da prática dos factos, não pode o processo prosseguir.
6. E, apesar de não constar dos artigos 118.º e 127.º do Código Penal, a extinção/arquivamento do procedimento criminal em caso de comprovada incapacidade total, processual, definitiva e irreversível do arguido é a solução mais conforme aos princípios do processo equitativo do direito pessoal de defesa e da dignidade humana.
7. As decisões proferidas nestes Acórdãos dizem respeito à mesma situação processual, na qual o arguido é acometido, após a data da prática dos factos, de doença a nível cognitivo/anomalia psíquica superveniente, que o impede de exercer de forma pessoal e plena a sua defesa.
8. Impondo-se decidir se o processo prossegue para julgamento, por forma a ser averiguada a responsabilidade criminal quanto à prova do facto ilícito, típico e culposo e à aplicação do regime previsto no artigo 106.º, do Código Penal.
9. Ou, ao invés, se o processo se suspende ou é extinto/arquivado o procedimento criminal, nos termos do disposto nos artigos 118.º e/ou 127.º do Código Penal, em conformidade com os princípios de processo equitativo, do direito pessoal de defesa e da dignidade humana.
10. Tendo ambas as decisões sido proferidas ao abrigo da mesma legislação, desde logo o disposto nos 118.º, 127.º, 106.º 311.º, 338.º/1 do Código de Processo Penal, na sua atual redação.
11. Estamos, assim, perante decisões assentes em soluções opostas para a mesma questão de direito, vindo, por isso, o Ministério Público interpor o presente recurso extraordinário, ao abrigo do disposto nos artigos 437º e 438º do Código de Processo Penal.
12 - De modo a que possa ser resolvido o conflito resultante desta oposição de julgados, através de fixação de jurisprudência no sentido considerado justo, na sequência da tramitação processual que deverá vir a ter lugar nesse Supremo Tribunal.
2. Não consta que haja sido apresentada resposta.
3. O processo foi instruído com certidão do acórdão recorrido.
4. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal, o processo foi com vista ao MP, tendo o Sr. PGAdjunto promovido se solicitasse ao processo onde foi proferido o acórdão recorrido a data do trânsito.
Assim se ordenou a solicitação de tal informação, que, de facto, não consta da certidão junta aos autos.
Obtida a informação que o acórdão proferido a 22.1.2025 transitou em julgado a 6.2.2025, em nova vista dos autos o Sr. PGA emitiu parecer concluindo que,
- embora as decisões tenham sido proferidas sob a vigência da mesma legislação;
- conquanto tenham apreciado, no essencial, situações fáctico-normativas similares;
- o certo é que não apreciaram, ponderaram e decidiram uma mesma questão de direito à luz de critérios diferentes, não consagrando por isso duas soluções jurídicas em oposição – o alegado antagonismo decisório teria atingido o estádio da oposição de julgados (e não apenas a sua virtualidade) se pela via do Acórdão-Fundamento não tivesse sido ordenada previamente a realização da nova perícia ao arguido;
- não há oposição de julgados, como pressuposto essencial (material) da previsão do recurso de fixação de jurisprudência, o que implicará a sua rejeição, nos termos dos artigos 437.º/1 e 441.º CPPenal.
5. No exame preliminar a que se refere o artigo 440.º/1 CPPenal, o relator considerou não estarem preenchidos, quer o pressuposto formal da tempestividade, quer o material da oposição de julgados.
6. Colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência para a decisão da questão preliminar, nos termos do nº. 2 do artigo 440.º CPPenal, pelo que cumpre conhecer e decidir.
II. Fundamentação.
1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado, artigo 445.º/3 CPPenal, relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.
O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no acórdão do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que “a uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito”.
O fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência está regulamentado no artigo 437.º CPPenal.
Dispõe esta norma que,
“1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público”.
Por sua vez, as regras respeitantes à interposição deste recurso extraordinário estão previstas no artigo 438.º CPPenal.
Dispõe esta norma que,
“1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo”.
Como refere Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, anotação ao artigo 437.º, “o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência insere-se numa preocupação específica do legislador assegurar alguma certeza às orientações jurisprudenciais, evitando ou anulando decisões contraditórias”.
“Por essa via, pretende-se fixar um sentido interpretativo geral e abstracto, replicável em casos similares definido pela cúpula das secções criminais – o seu Pleno – através da qual se logrará uma estabilização jurisprudencial, por força do efeito tendencialmente vinculativo dessa jurisprudência para todos os tribunais que, por regra seguirão essa orientação”, cfr. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, V, anotação ao artigo 437.º
A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende do preenchimento de requisitos formais e de requisitos materiais, que se extraem dos artigos 437.º e 438.º CPPenal.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido, de que constituem exemplo, entre muitos outros, os acórdão de 21.10.2021, processo 613/95.0TBFUN-A.L1 e de 22.9.2022, processo 37/21.6SXLSB-A.S1, que são requisitos formais,
- a legitimidade do recorrente,
- a tempestividade da interposição do recurso (prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido),
- a identificação do acórdão fundamento (com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição), incluindo se tiver sido publicado, o lugar da publicação e o trânsito em julgado do acórdão fundamento e,
requisitos materiais,
- que os dois acórdãos respeitem à mesma questão de direito,
- tenham sido proferidos no “domínio da mesma legislação”,
- “assentem em soluções opostas”,
- partindo de idêntica situação de facto,
- importando que as decisões em oposição sejam expressas.
Quanto a estes últimos requisitos, a saber, que sejam proferidas “soluções opostas a partir de idêntica situação de facto e que as decisões em oposição sejam expressas”, assinala-se naqueles dois acórdãos citados, que “constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1, 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).”
Isto é, a oposição de julgados exige que:
- as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental da direito;
- que as decisões em oposição sejam expressas;
- que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.
A expressão “soluções opostas”, pressupõe que nos dois acórdãos é idêntica a situação de facto, em ambos havendo expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos.
2. Aproximação caso concreto.
Conhecendo do objecto desta conferência, cumpre verificar a admissibilidade do recurso e a existência de oposição entre os julgados, nos termos do disposto nos nºs. 3 e 4 do artigo 440.º CPPenal.
Vejamos se, no caso concreto, estão ou não preenchidos todos os requisitos acima apontados.
Analisados os autos não há dúvida acerca da competência deste Supremo Tribunal, cfr. artigo 437.º/1 CPPenal e acerca da legitimidade e do interesse em agir do MP, nos termos do artigo 437.º/5 CPPenal.
2. 1. Quanto à tempestividade.
O recurso é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, artigo 438.º/1 CPPenal.
O acórdão recorrido transitou em julgado a 6.2.2025.
O recurso foi apresentado em 17.3.2025.
O prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido terminava a 10.3.2025.
Logo é extemporânea e intempestiva a apresentação do recurso.
Falha este requisito de ordem formal como falha o requisito de natureza material, substantiva, reportado à oposição de julgados.
Com efeito, além da intempestividade a conduzir à necessária rejeição do recurso, da mesma forma, também, a falta de verificação do pressuposto de que ambos os acórdãos assentem em soluções opostas, traduzidas em decisões expressas, tal solução impõe.
Refira-se, ainda, que a recorrente deu cumprimento à exigência de identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), identificando como tal o Acórdão datado de 6.11.2024 proferido no processo 32/23.0PBCTB.C1, acessível em www.dgsi.pt.
Não juntando aos autos, é certo, cópia do mesmo, sendo suposto que tenha transitado.
2. 2. Atentemos agora quanto aos pressupostos de natureza substancial.
Importa agora averiguar se estamos perante,
- a manifestação explícita de julgamento contraditório da mesma questão de direito;
- carácter fundamental da questão em debate;
- inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação de ambos os acórdãos;
- identidade entre as questões debatidas em ambos os acórdãos, ao aplicarem a mesma legislação a situações idênticas.
Esta identidade tanto se pode traduzir, em “mesma questão” ou questão diversas se, neste caso, se puder afirmar que para a sua decisão os dois acórdãos se pronunciarem de maneira oposta acerca de qualquer ponto jurídico neles discutido.
Assim, deve entender-se que se verifica oposição, ainda, quando os casos concretos apreciados apresentem particularidades diferentes, se tal não impedir que a questão de direito em apreço seja fundamentalmente a mesma e, haja sido decidida de modo oposto.
Isto dito, há que adiantar, desde já, que estamos perante uma evidente e ostensiva situação em que os autos não comprovam a consagração de soluções de direito diferentes para idênticas situações de facto.
Com efeito.
São os seguintes os acórdãos da Relação de Coimbra que, no entender da recorrente, se encontram em oposição: acórdão recorrido de 22.1.2024, processo 309/22.2GBCLD. e acórdão fundamento de 6.11.2024, processo 32/23.0PBCTB, ambos transitados em julgado.
A recorrente identifica a questão de direito decidida em sentido diverso nos dois acórdãos como sendo a reportada à consequência para o facto de se vir a constatar que o arguido, após a data da prática dos factos, foi acometido de doença a nível cognitivo/anomalia psíquica superveniente, que o impede de exercer de forma pessoal e plena a sua defesa.
Nas suas palavras importa decidir se,
- o processo prossegue para julgamento, por forma a ser averiguada a responsabilidade criminal quanto à prova do facto ilícito, típico e culposo - e à aplicação do regime previsto no artigo 106.º, do Código Penal;
- pelo contrário, o processo se suspende ou é extinto/arquivado o procedimento criminal, nos termos do disposto nos artigos 118.º e/ou 127.º do Código Penal - em conformidade com os princípios de processo equitativo, do direito pessoal de defesa e da dignidade humana.
Diz a recorrente que estamos perante decisões assentes em soluções opostas para a mesma questão de direito.
O equívoco reside precisamente nesta sede.
Se é certo que no acórdão recorrido se entendeu que o processo deve prosseguir para julgamento, já no acórdão fundamento não se decidiu que o processo não pode prosseguir.
3. Vejamos, primeiramente o que cada um dos processos evidencia em termos de matéria de facto.
1. No acórdão recorrido estava em causa o seguinte enquadramento e contexto de facto:
- remetidos os autos à distribuição para julgamento do arguido, pela prática, em concurso efectivo, de dois crimes de ameaça agravada, foi a acusação recebida, foi apresentada contestação e foi designada data para julgamento;
- entretanto veio o arguido apresentar requerimento a dar conta de que em momento posterior ao da apresentação da contestação sofreu um AVC isquémico parietal direito com sequelas físicas e cognitivas, defendendo que o processo não podia prosseguir para julgamento devendo, pelo contrário, ser suspenso, em face da sua incapacidade;
- solicitada perícia ao INML, foi feita perícia psiquiátrica forense de cujo relatório consta, para além do mais, o seguinte:
- o examinando apresentava à data da perícia uma anomalia psíquica compatível com o diagnóstico de Perturbação Neurocognitiva Major de instalação súbita (CID-102: F 01.0, OMS3, 1992) por AVC isquémico-hemorrágico ocorrido no dia 23/08/2023;
- esta situação de saúde é permanente e maioritariamente irreversível;
- os factos em apreço no presente processo terão tido lugar no dia 19/08/2022, data em que o arguido não apresentaria quaisquer indícios de doença (neuro)psiquiátrica, motivo pelo qual não se suscitam quaisquer dúvidas quanto à imputabilidade em razão de anomalia psíquica, que não apresentava nessa data;
- nesse sentido, a provarem-se os factos pelos quais está acusado, e para os quais não foi possível ao arguido fornecer a sua versão, encontram-se preenchidos pressupostos médico-legais de imputabilidade;
- na actualidade o arguido padece de anomalia psíquica–perturbação neurocognitiva major – com défices cognitivos e de linguagem que o incapacitam de compreender totalmente o que lhe é dito, bem como de se expressar, quer verbalmente, quer por escrito, pois apresenta uma afasia global. Esta situação é permanente e maioritariamente irreversível, já que não ocorreram melhorias significativas apesar do tratamento instituído nos últimos meses;
- ainda que à data dos alegados factos o arguido pudesse ter a capacidade para avaliar a ilicitude dos seus actos e/ou de se determinar perante a avaliação feita, na actualidade a anomalia psíquica de que padece não lhe permite compreender na globalidade a natureza do presente processo. Tal deve-se ao agravamento cognitivo consequência do AVC e das complicações do mesmo;
- independentemente de à data dos factos poder ter capacidades cognitivas e volitivas minimamente preservadas, na actualidade o arguido apresenta défices cognitivos de tal forma extensos que não lhe permitem ter capacidade para entender na plenitude que está a ser julgado, bem como para participar num julgamento e/ou conferenciar com o seu advogado a que acresce que a anomalia psíquica de que padece também condiciona que o mesmo já não seja influenciável pelas penas;
- na actualidade, consideramos que não há qualquer possibilidade de reversão do quadro clínico com eventuais tratamentos a ser instituídos, pelo que não se considera adequada a colocação numa regular enfermaria para doentes mentais, seja de Hospital Geral seja de Hospital Psiquiátrico, não estando um internamento psiquiátrico, nesta data, indicado;
- na actualidade o arguido necessita de cuidados permanentes de 3ª pessoa que podem ser assegurados no domicílio e/ou numa instituição vocacionada para o tratamento de indivíduos com estas patologias, quer em regime externo, quer em regime interno, desde que garantido o apoio de 3ª pessoa 24h/dia.
No acórdão fundamento está subjacente a seguinte realidade:
- o arguido foi submetido a perícia médico-legal de psiquiatria forense ainda em sede de inquérito, constando as seguintes conclusões do relatório elaborado:
1. o examinado é portador de uma síndroma demencial;
2. à data dos factos já apresentava défices cognitivos, que tinham por consequência uma maior dificuldade na capacidade de autodeterminação e uma maior impulsividade, situação condicionada pelos traços da sua personalidade;
3. mantinha contudo capacidade de distinguir o certo do errado, o lícito do ilícito, era capaz de avaliar as possíveis consequências dos seus atos e soubesse sobre quem os praticava;
4. médico-legalmente, nada obsta a que seja declarado como possuindo uma imputabilidade diminuída para os factos que lhe são imputados;
5 será expectável que factos semelhantes aos agora descritos venham a repetir-se;
6. porque a condição clínica se agravou, necessita por isso de um maior apoio institucional, uma maior supervisão, até para não se colocar em risco a si próprio, dada a gravidade da situação clínica atual;
7. revela-se igualmente incapaz de prestar declarações em tribunal e de compreender e apreender com as penas que eventualmente lhe forem aplicadas;
- entretanto remetido o processo para julgamento veio a ser apresentado pelo arguido requerimento a defender que não pode ser submetido a julgamento, sob pena de nulidade, dado que,
- não logra ter um discurso coerente, não consegue auxiliar na sua defesa, não consegue fornecer os elementos necessários à sua mandatária para que a mesma o possa aconselhar, sequer expressar a sua versão do sucedido. Como não compreende o que lhe está a ser imputado e não logra contraditar aquilo que venha contra si a ser referido em sede de audiência.
- não logra responder com um mínimo de racionalidade e/ou lógica a questões que lhe venham a ser efetuadas quanto à factualidade enunciada e ao crime que lhe está a ser imputado.
E, assim conclui que como tem defendido a Jurisprudência do TEDH, “a garantia de um processo justo, tal como consagrado no art.º 6 da CEDH só pode realizar-se com o sustar do processo ou com a exclusão do suspeito do sistema criminal, o que se requer.
2. O ponto de partida, em cada um dos processos.
2. 1. Reportado às decisões recorridas.
No acórdão recorrido, na sequência da junção do dito exame pericial, foi proferido despacho a determinar a manutenção da suspensão do processo e que os autos ficassem a aguardar a sua extinção por prescrição, com fundamento na circunstância de resultar do relatório pericial junto aos autos que o arguido não tem capacidade para entender que está a ser julgado nem para participar num julgamento ou conferenciar com o seu advogado, ou para perceber o alcance de lhe ser aplicada uma punição.
No acórdão fundamento, sobre o requerimento apresentado pelo arguido recaiu despacho a nomear curador provisório do arguido e, em consequência, determinando a citação deste para, no prazo de 10 dias, ratificar ou não o processado anterior, nos termos dos artigos 15.º, 17.º, 27.º/2 e 28.º/2 CPCivil ex vi artigo 4.º CPPenal, ficando a instância suspensa durante o referido prazo, artigo. 28.º/2 CPCivil ex vi artigo 4.º do CPPenal;
2. 2. Reportado aos recursos para a Relação.
No acórdão recorrido foi interposto recurso pelo MP, pugnando pela revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que providencie pela nomeação de um curador provisório ao arguido, suspendendo-se, entretanto, a instância.
No acórdão fundamento fora interporto recurso pelo arguido, pugnando pela revogação do despacho recorrido e substituição por outro que ordene a suspensão do processo sem sujeição do arguido a julgamento.
3. Na decisão recorrida identificaram-se como questões a decidir, as de saber se,
- em função da situação pessoal do arguido, deverá entender-se que este padece de incapacidade judiciária;
- devendo ser suprida nos termos previstos nos artigos 16° e 17° CPCivil, por força do disposto no artigo 4.º CPPenal, providenciando-se pela nomeação de um curador provisório e suspendendo-se, entretanto, a instância;
- se deve o processo prosseguir para julgamento.
No acórdão fundamento identificara-se como questões a decidir as de saber se,
- perante a incapacidade do arguido, há lugar à nomeação de curador e,
- quais as consequências para o processo da incapacidade de que atualmente é portador.
4. A fundamentação de cada um dos acórdãos.
No acórdão recorrido entendeu-se que,
- a anomalia psíquica, derivada do AVC que o arguido sofreu após a data da prática dos factos não o terá tornado criminalmente perigoso, em termos tais que se o agente fosse inimputável determinariam o seu internamento efectivo;
- vindo as conclusões do relatório a considerar-se comprovadas em audiência, haverá lugar, oportunamente, se o arguido vier a ser condenado, à aplicação do regime previsto no artigo 106.º CPenal.
- a incapacidade judiciária do arguido não deverá ser suprida nos termos previstos nos artigos 16.° e 17.° CPCivil, através da nomeação de um curador provisório, com a suspensão, entretanto, da instância.
No acórdão fundamento, na justificação,
- admite-se como boa e mais conforme aos princípios do processo equitativo, do direito pessoal de defesa e da dignidade humana uma extinção/arquivamento do procedimento criminal em caso de comprovada incapacidade total processual definitiva e irreversível;
- no entanto, sendo certo que resulta da perícia médica realizada ao arguido em momento prévio ao terminus da fase de inquérito (e portanto já nos autos quando foi designada a audiência de julgamento) que o mesmo não se encontra capaz de se defender – uma vez que se encontra igualmente incapaz de prestar declarações em tribunal e de compreender e apreender com as penas que eventualmente lhe forem aplicadas, mas que não consta do relatório pericial se esse estado de incapacidade do arguido é transitório ou definitivo/irreversível – o que carece de ser apurado em nova ou complementar perícia médico-psiquiátrica a realizar, decidiu-se, então, na procedência do recurso, que deverá o procedimento dos autos ser suspenso, sem prejuízo da sujeição do arguido a novo exame médico-legal a fim de aferir da definitividade e irreversibilidade ou não da sua incapacidade, reconhecida no relatório pericial já constante dos autos.
5. As decisões dadas em cada um dos processos.
No acórdão recorrido deu-se resposta positiva à primeira e à terceira questões e negativa à segunda e assim se decidiu – dando parcial provimento ao recurso - determinar que os autos prosseguissem para julgamento – (tendo, ainda, sido negado provimento ao recurso no segmento em que se pretendia a nomeação de um curador provisório ao arguido, com a suspensão da instância, nesse entretanto).
No acórdão fundamento - dando provimento ao recurso – considerou-se irregular o despacho recorrido e, em consequência, determinou-se a sua revogação e decretou-se a suspensão do processo, devendo, todavia, o arguido ser submetido a nova perícia psiquiátrica a fim de verificar se a sua incapacidade é transitória ou definitiva e irreversível, decidindo-se ulterior e oportunamente em conformidade.
4. Baixando ao caso concreto
Deste breve enunciado cremos resultar manifesto que não se verifica o exigido requisito da oposição.
Com efeito, as soluções encontradas em cada um dos acórdãos divergem por serem diferentes também as situações e contextos de facto que lhes subjaz.
E não nos referimos concretamente à origem das incapacidades dos arguidos, traduzida no caso do acórdão recorrido, numa doença superveniente, ocorrida já depois da remessa do processo para julgamento e, de no acórdão fundamento se ter verificado, afinal, um agravamento da patologia de que o arguido já sofria aquando da prática dos factos. Em ambos os casos a poder traduzir o mesmo resultado – doença definitiva e irreversível que não lhes permite ter capacidade para entender na plenitude que estão a ser julgados, que não lhes permite para participar num julgamento e/ou conferenciar com os seus advogados e que, por esse facto, já não sejam influenciáveis pela aplicação de uma pena.
Ainda que se possa entender, como entendemos, que estamos, na sua essência, potencialmente, perante uma idêntica situação de facto a traduzir, por isso, que a questão de direito em apreço seja, fundamentalmente, a mesma e, a demandar, uma idêntica solução jurídica, o certo é que o dispositivo, afinal, o decidido no acórdão fundamento não está em oposição com o dispositivo com o decidido no acórdão recorrido.
E, não está, dado que, como parece medianamente evidente, os pressupostos de facto não são, por enquanto, ainda, na realidade retratada no processo onde foi proferido o acórdão fundamento, não é a mesma, não é idêntica á subjacente ao acórdão recorrido.
O que faz toda a diferença, desde logo, na extensão, na abrangência e no sentido e conteúdo útil do dispositivo.
Com efeito aquela enunciada mesma questão de facto é real no acórdão recorrido e, por enquanto, meramente potencial, no acórdão fundamento.
A carecer aqui de confirmação e, por isso se decidiu pela realização do exame pericial complementar.
E, a solução aqui anunciada apenas terá aplicação prática nesse caso e, já, não em caso de se não confirmar a natureza definitiva e irreversível da patologia de que sofre o arguido.
O que resulta, por ora - que é o que aqui releva - é que os fundamentos do acórdão fundamento conduzem, apontam no sentido de uma solução jurídica oposta à adoptada na decisão recorrida.
Mas tal ainda não ocorreu.
Virá a ocorrer, no futuro, previsivelmente, dependendo do resultado do exame pericial complementar, cuja realização ali foi ordenada.
E, como vimos a oposição tem que se verificar, não entre os fundamentos, mas, entre o expressamente decidido.
As decisões são diferentes, mas não estão em oposição.
E, por outro lado e decisivamente, no acórdão fundamento apesar de na fundamentação se apontar em sentido, diametralmente oposto à solução encontrada no acórdão recorrido, o certo é que, tal não foi o que foi expressamente decidido.
O que aí se decidiu foi, afinal, relegar para momento posterior a tomada de decisão sobre a concreta questão jurídica aqui apontada como sendo divergente.
O que se decidiu, configura uma decisão intercalar, interlocutória, foi ordenar a submissão do arguido a exame pericial complementar, a fim de se aferir da definitividade e irreversibilidade ou não da sua, já reconhecida, incapacidade.
Para depois se decidir em conformidade, como, expressamente, se refere no acórdão fundamento.
É certo que se a resposta for positiva e, se se mantiver o entendimento que ali foi dado à subjacente e fundamental questão jurídica, então sim, estarão criadas as condições processuais – a confirmar-se a anunciada e enunciada solução jurídica – para se decidir, agora, sim de forma claramente oposta à que decidiu o acórdão recorrido.
Desde logo, no Tribunal de 1.ª instância, que, condicionado, agora, pelo entendimento sufragado no acórdão fundamento, poderá ser tentado a deferir ao requerido pelo arguido.
E, assim, a questão só voltará a ser dirimida pelo Tribunal da Relação, se agora for interposto recurso pelo MP.
E, então estará chegado o momento oportuno e decisivo, para a possibilidade de confirmação, em decisão expressa, agora, do entendimento constante da fundamentação do acórdão fundamento.
E, então, a ocorrer esta virtual e potencial tramitação se, e quando tal se verificar estará preenchido o pressuposto da oposição.
Até lá é manifestamente prematura a afirmação da sua verificação.
E todos os pressupostos, quer formais, quer substanciais têm de estar preenchidos à data da sua interposição, sob pena da sua rejeição, nos termos do artigo 441.º/1, primeira parte CPPenal.
Não estão, pois, os dois acórdãos em oposição em relação à questão de direito enunciada, pelo que o recurso não deve ser admitido
Decorrendo do exposto a ausência de pressuposto substancial nos termos que antes se expuseram, verifica-se – outra, a somar à intempestividade - causa de inadmissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, devendo este ser rejeitado em conferência, ao abrigo do disposto no artigo 441.º/1 CPPenal.
III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pela Magistrada do MP.
Não é devida tributação.
Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e, assinado eletronicamente por si e pelos Srs. Juízes Conselheiros adjuntos, nos termos do artigo 94.º/2 e 3 CPPenal.
Supremo Tribunal de Justiça, 2025MAI15
Ernesto Nascimento – relator
Jorge Jacob – Juiz Conselheiro 1.º adjunto
Jorge dos Reis Bravo – Juiz Conselheiro 2.º adjunto