I. O recurso extraordinário de revisão previsto no art. 449.º do CPP, apenas pode ser interposto de sentenças ou de despachos que ponham termo ao processo.
II. O despacho ou acórdão que não admite um recurso ordinário não põe termo ao processo.
III. É requisito do fundamento de revisão previsto na al. f) do n.º 1 do art. 449.º do CPP, que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral seja posterior ao trânsito em julgado da decisão revidenda.
IV. É também fundamento desse recurso que a norma declarada inconstitucional tenha servido de fundamento à condenação.
A – Relatório
A.1. A decisão sumária
Através de decisão sumária proferida a 17 de janeiro 2023, no Processo nº 2029/12.7TACBR.C1.S1, o Juiz Conselheiro Relator da 5ª secção, deste Supremo Tribunal de Justiça, decidiu o seguinte:
“Em conformidade com o exposto,decide-se rejeitar,por inadmissibilidade legal, o recurso interposto pelas arguidas AA, “M..., Lda.” e BB, quanto à parte criminal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n 1, al. b), 400.º, n.ºs 1, al. e), 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b), todos do C.P.P.”
A.2. O recurso para a Conferência
Inconformada com essa decisão, dela reclamou a arguida para a conferência que, por acórdão de 23 de março de 2023, decidiu o seguinte:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam, em Conferência, os Juízes Conselheiros da 5.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a reclamação da Decisão Sumária de rejeição por inadmissibilidade legal do recurso apresentado pelas arguidas AA, “M..., Lda.” e BB e, por via dela, confirmar a mesma decisão, com a ressalva ora exposta.”
A.3. O recurso extraordinário de revisão
A arguida vem, agora, interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no artigo 449.º, nº.1, al. f) do Código de Processo Penal, o que faz através de peça processual que encerra com as seguintes conclusões (transcrição parcial):
“CONCLUSÕES
A) Vem o presente recurso interposto da Decisão Sumária de 17/01/2023 e ainda da decisão de direito proferida pela 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça a 23/03/2023, nos termos das quais foi negado o direito ao recurso da Arguida e o consequente acesso a um 3.º grau de jurisdição.
B) A rejeição da Reclamação e do Recurso por si apresentados teve por base a norma do artigo 400.º n.º 1 al. e) do CPP, na versão dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, norma essa que foi, entretanto, declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018 tendo, em consequência, a sua redação já sido alterada por via da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro.
C) O presente recurso de revisão é interposto em razão da declaração, pelo Tribunal Constitucional, de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de uma norma de conteúdo menos favorável à Arguida, que serviu de fundamento à sua condenação, ou seja, ao abrigo do artigo 499.º n.º 1 al. f) do CPP.
(…)
AA) Nestes termos devem a Decisão Sumária de 17/01/2023 e o Acórdão de 23/03/2023, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo n.º 2029/12.7TACBR.C1.S1, e que vieram negar à Recorrente o exercício do seu direito de recurso em relação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2021, ser revogados em razão do juízo de inconstitucionalidade com força obrigatória geral a que aqui já fez referência.
BB) Devendo, em consequência, ser admitido o Recurso apresentado pela Recorrente nos presentes autos em 03/01/2022.
A.4. O parecer do Ministério Público
O Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer, o qual termina com as seguintes conclusões (transcrição integral):
“Não é susceptível de revisão o Acórdão proferido ao abrigo das disposição do art. 417º-6-b) e 8 do Código de Processo Penal, pois que não é uma sentença ou acto equiparado;
O objecto do recurso não se enquadra no âmbito normativo de qualquer dos motivos previstos na disposição do art. 449º/1 do Código de Processo Penal;
Motivo por que o presente recurso deve ser rejeitado, por ser legalmente inadmissível.”
* * *
O recorrente tem legitimidade para requerer a revisão (art. 450º, nº 1, c) do Código de Processo Penal).
O Supremo Tribunal de Justiça é o competente (art. 11º, nº 4, d) do C. Processo Penal)
* * *
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
B – Fundamentação
B.1. Introdução
O nº 6 do artigo 29º da Constituição da República Portuguesa estabelece que “(o)s cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”.
Também a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, no Protocolo 7, art. 4.º, refere que a sentença definitiva não impede “a reabertura do processo, nos termos da lei e do processo penal do Estado em causa, se factos novos ou recentemente revelados ou um vício fundamental no processo anterior puderem afectar o resultado do julgamento”.
O legislador ordinário, no artigo 449º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Fundamentos e admissibilidade da revisão”, estabeleceu as situações (taxativos) em que este recurso extraordinário (respeitante a decisões transitadas em julgado) é admissível, da seguinte forma:
“1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:
a. Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;
b. Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;
c. Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d. Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
e. Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;
f. Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;
g. Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.”
A propósito desta norma escreve Paulo Pinto de Albuquerque1 que “(esta) é uma norma excecional que prevê a quebra do caso julgado e, portanto, uma restrição grave ao princípio da segurança jurídica inerente ao Estado de direito.”
Conforme refere Pereira Madeira2 : ” O recurso extraordinário de revisão tem em vista superar, dentro dos limites que impõe, eventuais injustiças a que a imutabilidade absoluta do caso julgado poderia conduzir. “(…) “O princípio res judicata pro veritate é um princípio de utilidade e não de justiça e assim não pode impedir a revisão de sentença quando haja fortes elementos de convicção de que a decisão proferida não corresponde em matéria de facto à verdade histórica que o processo penal quer e precisa em todos os casos alcançar.”
Em igual sentido escreve Germano Marques da Silva3: “Há, porém, certos casos em que o vício assume tal gravidade que faz com que a lei entenda ser insuportável a manutenção da decisão. O princípio da justiça exige que a verificação de determinadas circunstâncias anormais permita sacrificar a segurança e a intangibilidade do caso julgado exprime, quando dessas circunstâncias puder resultar um prejuízo maior do que aquele que resulta da preterição do caso julgado, o que é praticamente sensível no domínio penal em que as ficções de segurança dificilmente se acomodam ao sacrifício de valores morais essenciais.”
Também a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem, de forma uniforme, considerado que este recurso (extraordinário) constitui um meio de reação processual excecional, que visa reagir contra erros judiciários manifestos e intoleráveis, pois só a evidência de erro permitirá sacrificar os valores da segurança do direito e do caso julgado, fazendo-se prevalecer o princípio da justiça material.
É, como é igualmente referido por este Alto Tribunal, uma solução de compromisso entre a segurança que o caso julgado assegura e a reparação de decisões que seria chocante manter. E, por outro lado, não pode ser confundido, nem pode servir para obter resultados que poderiam e deveriam ser alcançados com os recursos ordinários.
Assim, e a título de mero exemplo vejam-se os seguintes acórdãos:
“I - O instituto do caso julgado é orientado pela ideia de conseguir maior segurança e paz nas relações jurídicas, bem como maior prestígio e rendimento da atividade dos tribunais, evitando a contradição de decisões.
II - Embora o princípio da intangibilidade do caso julgado não esteja previsto, expressis verbis, na Constituição, ele decorre de vários preceitos (arts. 29.º, n.º 4 e 282.º, n.º 3) e é considerado um subprincípio inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio garantidor de certeza jurídica.
III - As excepções ao caso julgado deverão ter, por isso, um fundamento material inequívoco.
IV - Traço marcante do recurso de revisão é, desde logo, a sua excecionalidade, ínsita na qualificação como extraordinário. Regime normativo excepcional que admitindo interpretação extensiva não comporta aplicação analógica.
VIII - O recurso de revisão não pode servir para buscar ou fazer prevalecer, simplesmente, “uma decisão mais justa”. De outro modo, o valor do caso julgado passava a constituir a exceção e a revisão da sentença condenatória convertia-se em regra”
Ac STJ de 24 de fevereiro de 2021 – Processo 95/12.4GAILH-A.S1 in www.dgsi.pt
“A revisão de sentença é um recurso extraordinário e de utilização excecional com pressupostos de admissibilidade limitados e taxativos e não serve para obter efeitos que deveriam e poderiam ter sido alcançados por via do recurso ordinário, do qual os recorrentes não quiseram socorrer ou já se socorreram, ainda que sem êxito.”
Ac. STJ de 11 de julho de 2023 – Processo 5215/18.2T9CSC-A.S1 in www.dgsi.pt
* *
B.2. O caso dos autos
B.2.1. O iter processual
Os autos nos quais foi proferida a decisão impugnada tiveram, em apertada síntese e no que ora importa, a seguinte tramitação:
• No dia 28 de outubro de 2020, foi proferida, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Competência Genérica da ... – Juiz ...,e nos presentes autos, sentença que absolveu todas as Arguidas (incluindo a aqui Recorrente) da prática do crime de burla tributária qualificada, de que as mesmas vinham acusadas.
• Inconformado com essa decisão, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido a 17 de novembro de 2021, o julgou procedente, condenando, designadamente, “M..., Lda.” pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de burla tributária qualificada, p. e p. pelo art.87º, nº 3 do RGIT, aprovado pelo DL nº 15/2001, de 5 de junho, por decorrência legal dos arts. 6º e 7º do RGIT numa multa de 600 dias à taxa diária de 1.000,00 (mil euros)”;
• De acordo com o exposto pela recorrente, no dia 30 de novembro de 2021, apresentou esta um requerimento nos autos, “onde, para além de invocar uma série de nulidades do acórdão, desde logo ressalva o seu direito ao recurso em razão de alegada inconstitucionalidade do artigo 400.º n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal, na versão dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.”
• No dia 03 de janeiro de 2022, veio a aqui recorrente, recorrer do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, invocando a recorribilidade da decisão “atendendo à alteração legislativa ao artigo 400.º n.º 1 al. e) do CPP, proporcionada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, e ainda à inconstitucionalidade da antiga redação desta norma, nomeadamente ao facto desta redação não atender à natureza das pessoas coletivas.”
• Tendo sido admitido e remetido para este Alto Tribunal, foi esse recurso rejeitado, por decisão sumária proferida pelo Juiz Conselheiro Relator a 17 de janeiro de 2023 e com o seguinte dispositivo: “rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso interposto pelas arguidas AA, “M..., Lda.” e BB, quanto à parte criminal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n 1, al. b), 400.º, n.ºs 1, al. e), 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, al. b), todos do C.P.P.”.
• Interposta reclamação para a conferência, decidiu esta, por acórdão de 23 de março de 2023, “indeferir a reclamação da Decisão Sumária de rejeição por inadmissibilidade legal do recurso apresentado pelas arguidas AA, “M..., Lda.” e BB e, por via dela, confirmar a mesma decisão, com a ressalva ora exposta”.
• Continuando inconformada com essa decisão dela interpôs a arguida recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão sumária 289/2023, não tomou conhecimento do recurso.
• Finalmente, na sequência de reclamação e através acórdão de 9 de julho de 2023, o Tribunal Constitucional “decidiu indeferir as reclamações”.
• O trânsito do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 434/2023 mostra-se certificado em 11 de setembro de 2023.
B.2.2. A (in)admissibilidade do recurso
B.2.2.1. A (in)existência de sentença ou despacho que tenha posto fim ao processo
A recorrente fundamenta o seu recurso no disposto na alínea f), do nº 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal que estabelece, designadamente e para o que ora interessa, o seguinte:
1. A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:
(…)
f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamentação a condenação
2 - Para o efeito do disposto no número anterior, a sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.”
Assim, desde logo há que apurar se a decisão impugnada, não sendo uma sentença, pode ser considerada “despacho que tiver posto fim ao processo”.
Ora, acompanhando o parecer do Ministério Público, a resposta a esta questão tem de ser negativa.
Com efeito e como já atrás deixámos consignado, a natureza da intangibilidade do caso julgado, como subprincípio do princípio da segurança e certeza jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático, emergente do artigo 2.º, da Constituição, só pode ceder em casos excecionais, nos quais é patente a injustiça da decisão condenatória.
Assim e como tem sido entendido por este Supremo Tribunal de Justiça apenas podem ser objeto deste recurso os despachos que, de alguma forma, sejam equiparáveis a uma sentença4.
Com efeito, afirma-se no acórdão de 13 de março de 2004 deste Alto Tribunal5 :
"Susceptíveis de recurso extraordinário são, como a lei expressamente admite (artigo 454.º, n.º 2), tanto sentença, como despacho que tiver posto fim ao processo.
[...] Despacho «que tiver posto fim ao processo» é, neste sentido, a decisão que fizer terminar um processo com a fixação do sentido do direito do caso; em processo penal, com a definição, positiva ou negativa, da responsabilidade de um sujeito relativamente a matéria com relevo criminal, fundamentado em razões de substância, sejam factuais, sejam de projecção normativa material: será o caso do despacho de não pronúncia ou que aplique normas sobre prescrição.
Com efeito, só nesta medida se pode equiparar - no âmbito e funcionalidade processual - o despacho à sentença. A equiparação só pode ter sentido quando, funcionalmente, o despacho, tal como a sentença, definiu o direito do caso, com uma determinação final de facto ou de direito, mas relativa à substância, sobre a matéria da causa que esteja em apreciação."
Ou ainda, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 19 de dezembro de 20196.
“II. Despacho que põe fim ao processo é o despacho que faz cessar a relação jurídico-processual por razões substantivas ou adjectivas; é o que tem como consequência o arquivamento ou o encerramento do objecto do processo, ainda que não tenha conhecido do mérito; é o que obsta ao prosseguimento do processo para conhecimento do seu objecto, como o despacho de não pronúncia, de não recebimento da acusação, de arquivamento decorrente de conhecimento de questão prévia ou incidental em audiência, ou de nulidade (art. 338.º do CPP) ou a decisão sumária do Relator. Já não o despacho que revogou a suspensão da execução da pena.
III. A matriz da revisão é a de condenação/absolvição, aí estando em causa a justiça da condenação, o que por força da equiparação do n.º 2 do art. 449.º, tem de perpassar também pelo despacho que põe fim ao processo, como decorre das als. b) e c) do n.º 1 do art. 450.º do CPP, o que não acontece com o despacho revogatório da suspensão, onde desde logo não é a justiça da condenação decretada na sentença que é posta em causa, mas a justeza e a legalidade do despacho que ordenou o cumprimento da pena”
Ou, finalmente, no acórdão do Tribunal da Relação Coimbra, de 12 de maio de 2010, que, em caso muito similar ao ora em apreço, decidiu o seguinte7:
“Para efeito de revisão equipara-se à sentença o despacho que tiver posto termo ao processo –n.º 2 , do artº 449.º , do CPP
Objecto de revisão é o despacho judicial de 18.2.2008 que não admitiu o recurso.
Ora, o despacho, fundamento da revisão, tem de ser um despacho que ponha termo ao processo. Despacho que põe fim ao processo é aquele que, segundo jurisprudência pacífica do STJ , conhece da relação substantiva, pondo-lhe termo ou, não o conhecendo, tem por consequência o arquivamento ou encerramento do processo.
É aquele que determina o fim da relação jurídico-processual ou seja que importa o terminus da relação entre o Estado e o cidadão, sujeito processual , no âmbito de um concreto objecto processual, decidiu-se no Ac. do STJ , de 27/9/06, 3.ª Sec., P.º n.º 2798/06 A decisão que põe termo à causa nem sempre é uma decisão final, mas a decisão final é sempre uma decisão que põe termo à causa, definindo a existência ou inexistência da responsabilidade criminal e, quando for o caso, a culpa e a ilicitude, no sentido expresso no Ac. do STJ de 25.5.2005 , P.º n.º 1254 /05 -3 .ª Sec.
A decisão que conhece de contigências sobre a relação processual ou sobre uma questão avulsa, sobre incidências meramente processuais, próprias do desenvolvimento da relação processual, escapam ao conceito de decisão final e poderão, quando muito, constituir decisão que ponham termo ao processo –cfr. Acs. do STJ , de 4.5.2005 , P.º n.º 887/05-3 , de 25.5.2005 , P.º n.º 1254/04 -3.ª Sec. , de 8.7.2003 , P.º n.º 2298/03-5.ª e de 6.4.2006 , in CJ , STJ , Ano XIV, TII, 160 .
Na doutrina, decisão que põe termo à causa significa que a questão substantiva fica definitivamente decidida, que o processo não prosseguirá para a sua apreciação, esta a posição do Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª ed., Verbo 2000, 323.
O recurso extraordinário de revisão impõe a quebra de caso julgado e é permitido nos art.ºs 29.º n.º 6 da CRP e 4.º n.º 2, da CEDH, supondo a ocorrência de factos novos que são aqueles que eram desconhecidos do recorrente na data da decisão revidenda ou só posteriormente vieram ao seu conhecimento; são circunstâncias “ substantivas e imperiosas “ que devem permitir essa quebra de modo a não transformar-se o recurso numa apelação disfarçada “ appeal in disguise “ , no entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código de Processo Penal , pág. 1210 .
É essa novidade que há-de suportar grave dúvida, não qualquer dúvida, mas uma dúvida tal que quase atinja a certeza, sobre a justiça da decisão, enquanto verdadeira dimensão normativa do recurso, nos termos do art.º 449.º n.º 1d) , do CPP , e , visto o que dos autos consta é óbvio que o despacho aqui em causa não põe fim ao processo. Na verdade, a decisão que “definiu o direito e nesta medida pôs termo ao processo foi a sentença de 22/1/2008” que julgou improcedente a impugnação judicial que a arguida “J..., Lda.” apresentou contra a decisão da autoridade administrativa, esta sim pôs termo ao processo. O despacho aqui em causa apenas se pronunciou sobre a tempestividade do recurso.
Por todo o exposto, para fins do preceituado no art.º 449.º n.ºs 1 al d) e 2, do CPP, e cingindo-nos a esse pressuposto processual do recurso extraordinário de revisão, a pretensão do requerente não se enquadra no conceito de decisão pondo termo ao processo, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, está votada ao insucesso, denegando–se a revisão “
Ora, também a decisão recorrida e ora em apreço se limitou a não admitir o recurso, não tendo tomado qualquer posição quanto à justiça ou não da condenação da arguida e ora recorrente.
E, para finalizar, repare-se que, também a al. f) do nº 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal se reporta a “norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamentação a condenação” (sublinhado nosso)
Portanto e para concluir, tanto bastaria para se afirmar que a pretensão da recorrente não se enquadra no disposto na aludida norma e, por isso mesmo, o recurso de revisão tem de ser rejeitado.
De qualquer forma, permita-se-nos breves considerações complementares.
B.2.2.2. Notas complementares
Como atrás se referiu, o recorrente funda o seu recurso no disposto na al. f) do nº1 do artigo 449º do Código de Processo Penal.
Ora, como consignado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido a 12 de setembro de 2024 e relativo a recurso de revisão com fundamento na aludida alínea f) do nº 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal8:
“São requisitos deste fundamento de revisão:
- Que tenha sido declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido;
- Que a norma objecto da declaração tenha constituído ratio decidendi da condenação, portanto, tenha sido seu fundamento; e,
- Que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral seja posterior ao trânsito em julgado da decisão revidenda (João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Almedina, págs. 544-545, Henrique Salinas e Paulo Pinto de Albuquerque, op. e loc. cit., e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2010, processo nº 347/06.2GBVLG-A.S1, inwww.dgsi.pt).”
Ora, in casu, desde logo se constata que a norma que foi declarada inconstitucional pelo invocado acórdão 595/2018, de 13 de dezembro de 20189 (e que foi subsequentemente alterada pela Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro) -o artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal – não serviu de “fundamento à condenação”.
Por outro lado, o acórdão 595/2018 e a alteração legislativa atrás referidos foram proferidos / ocorreram em momento anterior à prolação das decisão sumária e acórdão colocados em causa.
*
Em suma, não ocorre o fundamento previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 449º do Código de Processo Penal, nos quais a recorrente assentou o seu pedido de revisão e que, por isso mesmo, tem de ser rejeitado.
C – Custas
Ao abrigo do disposto no artigo 524º do Código de Processo Penal e dos artigos 1º, 2º e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro), a Recorrente tem de pagar custas judiciais, cuja taxa de justiça varia, in casu e face à Tabela Anexa III ao aludido Regulamento, entre 5 e 10 unidades de conta.
Face ao exposto e tendo em conta a não complexidade da decisão, vai condenado em 5 (cinco) unidades de conta.
Por outro lado, a rejeição do recurso implica ainda a condenação da recorrente no pagamento de uma importância entre 6 UC e 30 unidades de conta (que não são meras custas judiciais, tendo natureza sancionatória), por força do disposto no artigo 456º do Código de Processo Penal.
Com efeito, são cumulativas a condenação em custas do incidente e em multa no caso de pedido manifestamente infundado, pois elas visam propósitos diferentes: uma tributa o decaimento num ato processual a que deu causa e a outra censura a apresentação de requerimento sem a prudência ou diligência exigíveis (Salvador da Costa, As custas Processuais, Coimbra: Almedina, 6.ª ed., 2017, p. 86).
Atendendo, por um lado, à não complexidade do objeto da decisão e, por outro, à manifesta falta de fundamento do recurso, considera-se ajustado fixar essa importância em 10 (dez) unidades de conta.
D – Decisão
Pelo exposto, acordam na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:
a. Negar a revisão – art. 456.º do Código de Processo Penal;
b. Condenar a recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) U.C., a que acresce a quantia de 10 (dez) U.C. – artigos 524º do Código de Processo Penal e 1,º 2º e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Judiciais e art. 456.º Código de Processo Penal.
Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada
(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Celso Manata (Relator)
Jorge Jacob (1º Adjunto)
José Piedade (2ª Adjunto)
Helena Moniz (Presidente da Secção)
_____________________________________________
1. “Comentário do Código de Processo Penal” II Vol. 5ª edição, pág. 755
2. “Código de Processo Penal Comentado” de Henriques Gaspar e outros, pág. 1609
3. ” Curso de Processo Penal”, III Vol., 1994, p. 359
4. Neste sentido cf. o acórdão.de uniformização de jurisprudência nº 1/2024, de 8/11/2023 (publicado no D.R, I série, de 2 de fevereiro de 2024) no qual se decidiu que o despacho que revoga a suspensão da execução da pena não é equiparado a uma sentença condenatória final e, portanto, não é passível de revisão extraordinária nos termos do artigo 449.º do CPP.
5. Proc. 03P4015, Relator Henriques Gaspar in www.dgsi.pt
6. Proc. 66/13.3PTSTR-A.1, Rel. Francisco Caetano, disponível em www.dgsi.pt
7. Proc. 877/05.3TBCBR.C1 disponível em www.dgsi.pt
8. Processo nº 2/04.8ACPRT-A.S1, Rel Vasques Osório e no qual o signatário foi adjunto , disponível no sitio do STJ - Jurisprudência
9. Que declarou “com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição”