RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
VOTO DE VENCIDO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
IN DUBIO PRO REO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA TESTEMUNHAL
VÍTIMA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME CONTINUADO
CONCURSO DE INFRAÇÕES
Sumário


I. O facto de o acórdão recorrido ter sido proferido por maioria – e não por unanimidade – não o torna nem mais nem menos válido ou convincente, do que se fosse por unanimidade, não constituindo a imediação proporcionada pela experiência da audiência uma presunção de correção ou acerto da matéria factual apurada pelo tribunal de 1.ª Instância.
II. O recurso do arguido, relativo à reversão, pela decisão recorrida do tribunal da Relação, do juízo absolutório do tribunal de 1.ª Instância, não implica a reapreciação da prova por este Supremo, mas apenas a ponderação da correção e acerto da fundamentação da decisão pelo tribunal recorrido, no culminar do procedimento recursivo, enformado pelo contraditório.
III. Face à inconclusividade da restante prova testemunhal apreciada, as declarações do arguido e o depoimento (em diversos momentos processuais) da vítima, devem constituir o principal suporte da decisão sobre matéria de facto, sopesando-se umas e outras, e decidindo em conformidade.
IV. Sendo um crime por natureza “oculto”, o depoimento da vítima deve merecer especial atenção, quanto à sua espontaneidade e consistência, como forma de aferir da sua verosimilhança e credibilidade.
V. Tendo sido realizada perícia de Psicologia Forense para aferir da credibilidade da vítima, resultando do teor do seu relatório bem como dos esclarecimentos da Senhora Perita em audiência de julgamento, nada contrariar a credibilidade da vítima, impõe-se, no confronto com o teor das declarações do arguido, que como se sabe, não se sujeitam ao dever de verdade, atribuir ao depoimento daquela especial credibilidade, pelo que se sanciona o juízo do tribunal recorrido.
VI. Não se afigura desproporcional e excessiva a medida das penas parcelares de 3 anos de prisão por cada um dos dezasseis crimes de abuso sexual de menor dependente, agravado, pp. pp. nos termos dos artigos 172.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
VII. A pena única do concurso, formada no sistema de cúmulo jurídico, que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.
VIII. A fixação da pena única em cinco (5) anos prisão (suspensa na sua execução por cinco anos, mediante condições de pagamento da indemnização arbitrada à vítima em duas prestações), numa moldura de 3 a 25 anos de prisão (face à regra do art. 77.º, n.º 2, do CP, sendo a soma material das penas parcelares de 48 anos de prisão) parece-nos contemplar – porventura até de forma muito benevolente – um forte fator de compressão da medida das penas remanescentes que integram a relação do cúmulo jurídico, ficando muito abaixo do ponto médio da moldura.
IX. Não divisamos razões válidas para discordar dos critérios enunciados pelo tribunal recorrido, ao aplicar as penas acessórias de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (05) anos, bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por igual período de tempo (artigos 69.º-C, n.º 2 e 69.º-B, n.º 2, do Código Penal), pelo que se mantém a medida das penas acessórias – coincidente com o limite legal mínimo aplicado em que o arguido foi condenado.
X. Tais penas acessórias, por serem de natureza diferente, não suscitam a necessidade de realização de cúmulo jurídico entre si.
XI. Não pode proceder, em face da matéria de facto relativa às consequências dos crimes para a vítima, a pretensão do arguido no sentido da redução do valor fixado para a compensação da vítima, por danos não patrimoniais, de € 20.000,00 para € 5.000,00.

Texto Integral


Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de .../Juiz ..., de 20 de março de 2024 (Ref.ª Citius .......40), foi julgado o arguido e ora Recorrente AA, melhor identificado nos autos, tendo sido deliberado o seguinte:

«a) DECLARAR este tribunal internacionalmente incompetente para o julgamento dos factos descritos na acusação, alegadamente praticados na Costa Rica – parágrafos 3 a 10 da acusação

b) ABSOLVER o arguido AA, da prática de 31 crimes de abuso sexual de menor dependente, na forma agravada, p.p. pelos artigos 172º, nº 1 alínea b) e 177º, nº 1 alínea b) ambos do Código Penal.

c) Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado por BB e, em consequência ABSOLVER o demandado AA, do pagamento àquela da quantia de €22.000 (vinte e dois mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a notificação até efectivo e integral pagamento.

*

Sem custas criminais.

Custas cíveis pela demandante, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, e sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficie.

*

Após trânsito, face à decisão de incompetência, extraia certidão do processado e remeta ao MP, para os fins tidos por convenientes».

2. Dessa decisão recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto (doravante, também “TRP”), em 24-04-2024 (Ref.ª Citius ......55), quer da decisão em matéria de facto quer em matéria de direito, colocando à consideração do tribunal superior os seguintes pontos:

«A. Do incorrecto julgamento da matéria de facto;

B. Da qualificação jurídica dos factos;

C. Da medida das penas parcelares e única a aplicar ao arguido;».

Concluiu o seu recurso nos seguintes termos:

« Deve, portanto, ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência:

A. Deve o acórdão recorrido ser alterado na decisão relativa à matéria de facto, por forma a ficar a constar entre os factos dados como provados pelo menos os seguintes que se devem ter por provados:

- O arguido e a mãe da ofendida BB casaram um com o outro em 02/09/2020;

- Em Junho de 2021, a BB começou a namorar com um rapaz e o arguido, mostrando-se ciumento, numa determinada ocasião em que ambos se encontravam no quarto dele, agarrou-a, ao que aquela reagiu, empurrando-o e fugindo para o quarto dela;

- O arguido foi atrás da BB e, querendo esta fechar a porta do seu quarto, o arguido impediu-a, ali entrando;

- Acto contínuo, o arguido agarrou-a pelos braços, tendo a BB dito: “Se não me largares, eu grito. Eu não quero mais”;

- Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2021, em data não apurada mas situada entre final de Agosto de 2021 e a primeira semana de Setembro de 2021, o arguido foi ter com aquela e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto;

- Estando sozinha com o arguido, a BB acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis erecto na vagina daquela.

- A partir dessa altura e até meados de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve pelo menos por mais quinze vezes relações sexuais de cópula completa com a BB;

- Em tais relações sexuais, que ocorriam quase sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB;

- Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade e que, como tal, carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual;

- O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.

B. Deve ser alterado o acórdão recorrido no sentido de condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, na forma agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171º, nºs 1 e 2, 172º, nº 1, al. b), e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal;

Sendo-lhe aplicadas as seguintes penas:

- a pena de 3 (três) anos de prisão por cada um dos crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171º, nºs 1 e 2, 172º, nº 1, al. b), e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal;

- em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, a pena única de 7 (sete) anos de prisão.

V. Exas., porém, decidirão como for de JUSTIÇA.»

3. O arguido respondeu ao recurso do Ministério Público, em 13-06-2024 (Ref.ª ......37), pugnando pela total improcedência do mesmo.

4. No TRP, o Ministério Público ali em funções emitiu parecer, nos termos do art. 416.º n.º 1, do CPP, em 16-09-2024 (ref.ª Citius ......60), no qual pugnou pela procedência do recurso.

5. Foi apresentada resposta ao parecer do Ministério Público, pelo arguido, em 30-09-2024 (Ref.ª ....39), em que conclui não ter havido qualquer erro de julgamento da matéria de facto, tendo o tribunal apreciado a prova segundo as regras de experiência comum e em obediência a critérios de razoabilidade, lógica e experiência, sendo que aquele está em melhores condições para apurar a verdade e a credibilidade dos depoimentos e das declarações prestadas pelas testemunhas, não resultando matéria que pudesse conduzir a outra interpretação das declarações proferidas ou erro de julgamento, i.e., não haver qualquer elemento de prova que imponha uma decisão diversa.

6. Por acórdão do TRP de 20-11-2024 (ref.ª Citius ......89), registando um voto de vencido, foi deliberado:

«(…) conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público nos autos e, em consequência decidem:

1. alterar a matéria de facto provada e não provada nos termos e em conformidade com o supra decidido;

2. consequentemente, revoga–se a decisão de absolvição do arguido, e substitui–se a mesma pela presente decisão e, EM CONSEQUÊNCIA, DECIDE-SE:

a. Condenar o Arguido AA pela prática de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 172º, nº1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, na pena, por cada um deles, de 03 (três) anos de prisão;

b. CONDENAR O ARGUIDO AA NA PENA ÚNICA DE 05 (cinco) ANOS DE PRISÃO.

c. Suspender a pena de prisão de cinco anos pelo período de cinco anos.

d. Condicionar a suspensão da pena de prisão, art. 51º, n º 1, al. a) do Código Penal ao pagamento do montante indemnizatório fixado em duas tranches, sendo a primeira até ao término da primeira metade do período da suspensão e a segunda no final daquele período.

3. Condenar o Arguido nas penas acessórias de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (05) anos, bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo mesmo período de tempo, nos termos dos artigos 69º-B e 69º-C do Código Penal.

4. ABSOLVE-SE O ARGUIDO DOS DEMAIS CRIMES IRROGADOS.

5. Condena-se, ainda, o Arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça no valor de 04 (quatro) Ucs.

O M.P. está isento de tributação (art. 522.º do CPPenal).

6. Condena-se o Arguido a pagar a BB a indemnização de vinte mil Euros (20.000,00€), acrescida de juros de mora desde da data desta decisão, até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se o Demandado do Demais peticionado.

7. Custas cíveis a cargo de Demandante e Demandado, na proporção do decaimento, sem prejuízo de eventual do benefício de apoio judiciário concedido – arts. 523º do CPC e 527º do CPC.

Oportunamente junto da primeira instância:

8. Face à matéria de facto provada, a qual se dá por reproduzida, e bem assim ao enquadramento jurídico que dela foi feito, determina-se, nos termos do disposto nos artigos 1º, nºs 1 e 2, e 8º, nº2, da Lei 5/2008, de 12/Fev., a recolha ao Arguido, após trânsito em julgado da presente decisão, do perfil de ADN para fins de investigação criminal. Antes da recolha deverá ser cumprido o direito à informação, de acordo com o previsto no artigo 9º, als. a) e e) da referida Lei. O perfil obtido deverá ser incluído na base de dados de perfis de ADN, nos termos do disposto no artigo 18º, nº3, do dito Diploma.

9. Comunique ao INML.

10. Ordenar a remessa de Boletins ao registo criminal - art. 374º, nº3, al. d), do CPP.»

7. De tal decisão do TRP, recorre o arguido AA para este Supremo Tribunal de Justiça (doravante, também “STJ”), em 11-01-2025 (Ref.ª ....80).

No final da motivação do recurso deste acórdão do TRP, o arguido apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

«(…)

1. AA, condenado, em segunda instância. pela prática, em autoria material, pela prática de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 172º, nº1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, na pena, por cada um deles, de 03 (três) anos de prisão e na pena única de 05 (cinco) anos de prisão suspensa na sua execução;

2. A suspensão da execução da pena de prisão ficou condicionada, nos termos do art. 51º, n º 1, al. a) do Código Penal ao pagamento do montante indemnizatório fixado em duas tranches, sendo a primeira até ao término da primeira metade do período da suspensão e a segunda no final daquele período;

3. Foi ainda condenado nas penas acessórias de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (05) anos, bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo mesmo período de tempo, nos termos dos artigos 69º-B e 69º-C do Código Penal;

4. O arguido, após ter sido objecto de um escrutínio criterioso da sua vida pessoal, com audição de membros da sua família, desde a suaesposa, a sogrose cunhados, e da sua enteada - ofendida nos autos -, foi absolvido dos crimes pelos quais vinha acusado, tendo assumido, naquela data, que tinha sido feita justiça;

5. Concatenados os meios de prova constantes dos autos e produzidos em audiência de julgamento, revela-se inequívoco para o Homem Médio, ou seja, de acordo com as regras da experiência comum, que a dúvida teria de ser instalada, como o foi, com a consequente absolvição do arguido, em pleno respeito pelo princípio in dúbio pro reo;

6. o recorrente considera, salvo melhor opinião, que não existem razões de facto, nem de direito que fundamentem a sua condenação nos moldes supracitados, por mor de circunstâncias ligadas não só à política criminal, mas também a circunstâncias intrínsecas ao caso concreto; Cumpre-nos, assim, enaltecer o princípio da presunção da inocência – previstono art.º 32.º, n.º 2 da CRP – um dos vectores cardiais do processo penal português, do qual se extrai que todo o arguido É considerado inocente até prova em contrário, cabendo, precisamente, à prova carreada para os autos infirmar tal presunção, situação que, salvo melhor opinião, não se encontra cabalmente assente, especialmente de forma objectiva;

7. Em segunda instância teve lugar uma inversão da lógica processual e, ao revés de ainda estar assente em sede de recurso, a presunção da inocência do arguido, denota-se uma presunção de culpa, em virtude de se assumir ab initio, de forma peremptória, que a verdade estaria do lado da ofendida;

8. O arguido, enquanto sujeito processual e não mero objecto/meio de prova, tem a garantia de que até prova cabal em contrário será encarado pela Justiça como alguém a quem estão a ser imputados determinados factos, mas cuja inocência é inabalável até prova em contrário, devendo ser respeitado nessa essência, nos termos do n.º 2 do art.º 32.º da CRP;

9. O princípio da presunção da inocência, para além de assento constitucional, encontra-se igualmente disseminadonoCEDH, no art.º6.ºe procura cimentarque a dignidade da pessoa humana e a defesa da posição individual perante a omnipotência do Estado, não deve ser perigada, impondo-se aos juízes durante todo o processado;

10. Já quanto ao in dubio pro reo, enquanto princípio material da prova, o seu conteúdo positivo, pode entrar em conflito com o negativo, dado que a instalação da dúvida, ao ser evidente para os demais, também o deve ser para o julgador;

11. Nos presente autos deparamo-nos com uma perplexidade, no sentido de se considerar que inexiste prova nos autos que pudesse implicar um juízo inabalável de certeza quanto à autoria dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, e tanto assim é que em primeira instância foi absolvido, precisamente com base na dúvida insanável instalada;

12. de acordo com as regras da experiência comum e trazendo à colação a figura do Homem Médio – se é que ainda nos é permitida a utilização de tal expressão sem consequências censurais – o recorrente considera que se revela impossível extrair dos elementos que se encontram nos autos, um juízo de certeza de foro condenatório, pelo que, atenta a ausência de contacto directo, imediato, ao jeito exigido pelo princípio da imediação, o Tribunal a quo não poderia ter revogado a decisão de primeira instância e condenado o arguido;

13. o recorrente não entende a extensão do juízo silogístico exarado no acórdão condenatório, para ser afirmado com veemência que AA praticou os crimes pelos quais foi condenado, em plena contradição com o que não foi dado como provado em primeira instância, apenas e tão só, devido a uma diferença de convicção quanto à credibilidade das declarações – incongruentes e lacunosas, entenda-se – de BB;

14. Para imputar um determinado comportamento a alguém é imprescindível que tal seja passível de ser afirmado, de forma inequívoca, através da prova constante dos autos, nomeadamente, testemunhal, documental e pericial, o que, salvo melhor opinião, não sucede no presente caso concreto, apesar de termos exemplos de todos aqueles meios probatórios;

15. Considera-se que a dúvida teria de ter sido instalada e era incontornável, e urgia absolver o ora recorrente, em pleno respeito pelo princípio in dúbio pro reo, enquanto emanação do princípio de presunção da inocência, previsto no art.º 32.º, n.º 2 da CRP, dado que a prova constante dos autos não permitia a prolação de um juízo inabalável de condenação;

16. Em primeira instância foram dados como não provados os factos A a K, ou seja, todos os que pudessem implicar a imputação de um comportamento jurídico-penalmente relevante, tendo em segunda instância tal raciocínio sido invertido e dados como provados todos aqueles;

17. Foi emitido Voto de Vencido no acórdão recorrendo, apelando ao princípio in dúbio pro reo e ao facto de a decisão revogada ser isenta de críticas no que tange à fundamentação subjacente a tal juízo, sendo igualmente aflorado o princípio da imediação e da livre apreciação da prova e a ausência de motivos para revogação, dado que a mesma não violou de forma manifesta as regras da lógica, da experiência comum ou do conhecimento científico;

18. O principío in dubio pro reo, para além de corolário natural do princípio da presunção da inocência, está umbilicalmente ligado ao princípio da livre apreciação da prova, positivado no art.º 127.º do CPPenal e ambos foram descurados na decisão recorrenda;

19. O Tribunal ao proceder ao juízo valorativo dos elementos de prova constantes nos autos, deve atender, igualmente, às regras da experiência comum e ao que seria concluído por um cidadão diligente, de modo a que a decisão não arrepie também a sociedade, pelo que se impunha, concatenados os elementos probatórios constantes do autos, a absolvição do arguido;

20. A livre apreciação da prova não pode ser arbitrária e imotivada, baseando-se em critérios de objectividade e respeitando as regras da experiência comum, apreensíveis pelos demais – não se tratando de um juízo meramente subjectivo ou arbitrário;

21. estando cimentada a dúvida, quanto ao se, ao quando e ao como os factos ocorreram, naturalmente que ao Tribunal de primeira instância, tendo tido um contacto directo e exaustivo com a prova, estava vedado outro caminho que não o da absolvição; a apreciação da prova e a fundamentação do acórdão proferido em segunda instância, não tem carácter originário mas derivado, precisamente por ausência de imediação quanto a`prova produzida em julgamento, designadamente no que concerne ao rumo atribuído à prova, que tem sempre por base o quadro decisório do Tribunal de primeira instância;

22. A fundamentação no acórdão revogado não merecia repreensão, sendo exaustiva no que concerne à motivação do juízo sobre a matéria de facto, desde enunciação dos depoimentos e seu sumário, acompanhado de uma valoração sobre a sua credibilidade, até à exposição do relatório pericial e seu confronto com as declarações da ofendida e esclarecimentos prestados em audiência;

23. Já no que se refere ao Acórdão recorrendo, considera-se que é efectuada uma apreciação subjectiva e não motivada da prova, atribuindo cegamente credibilidade à ofendida, devido a suposições não estribadas em dados científicos, trazendo igualmente à colação o facto de os perpetradores deste tipo de crime, em 99% dos casos negarem a prática dos factos, como se de uma assunção apriorística de culpa tratasse;

24. uma decisão judicial deve ter o caso concreto como o prius metodológico, não devendo generalizar o comportamento dos “prevaricadores” e alocar esse juízo genérico e sem base científica, aos autos, pois o que transparece é uma inversão da lógica processual, isto é, não atribuir credibilidade a um depoimento, pelo simples factode se ter assente que 99% daqueles mentem ou negam a prática dos factos, concluindo-se que tal também deverá ser o caso do ora recorrente, trata-se de uma assunção arbitrária e contrária ao espírito do processo penal e princípio da presunção da inocência, nos termos do n.º 2 do art.º 32.º da CRP;

25. Por seu turno, é afirmada de forma inquestionável a credibilidade de BB, na extensão total do seu depoimento, mesmo quando em contradição com as declarações para memória futura, o que se revela totalmente contrário às regras da experiÊcnia comum;

26. Também é contrário às regras da experência comum que uma criança/jovem de 16 e 17 anos, virgem, não tenha mostrado quaisquer sinais de abuso, tendo sido alegadamente vítima de sexo anal não lubrificado e sem proteção;

27. Também se revela contrário ás regras da experiência comum que uma jovem de 16/17 anos, virgem, em momento algum tenha manifestado a sua dor durante os atos sexuais, especialmente os de foro anal, não sendo tal comportamento detectado pelos demais membros do agregado familiar;

28. Concatenada a prova, o depoimento da ofendida é contrário às regras da experiência comum, impondo-se que a duvida insanável fosse instalada, absolvendo o arguido;

29. O único meio de prova que, porventura, poderia encontrar-se subtraído ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127.º do CPPenal, por referência ao disposto no n.º 1 do art.º 163.º do CPPenal, seria o relatório da perícia médico-legal, na área da psicologia, realizado pela perita Dra. CC, mas mesmo este não se revela bastante para condenar o arguido;

30. Colocando por outras palavras, a motivação patente no acórdão revogado não ofende as regras da experiência comum nem tampouco coloca em causa o raciocínio que se revela plausível de apreciação da prova constante dos autos, ou seja, estamos perante duas interpretações dos factos, sendo a diferença elementar o facto de a primeira instância ter tido um contacto directo com a prova, enquanto a segunda instância apenas o faz de forma indirecta ou derivada;

31. Salvo melhor opinião, atendendo aos princípios invocados, às regras da experiência comum e ao princípio da livre apreciação da prova, andou mal o Tribunal a quo ao revogar o acórdão absolutório proferido em primeira instância, precisamente porque oque vemexaradonoacórdão de que se recorre nãoresulta de um contacto directo e privilegiado da prova;

32. Somos de parecer que inexistiu erro na valoração da prova, nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 410 co CPPenal no que tange à decisão proferida em primeira instância, embora o mesmo já não se possa dizer quanto à decisão proferida em segunda instância;

33. Voltando aos princípios da imediação e da oralidade, o Tribunal de primeira instância teve um contacto privilegiado com a prova, fundamentando a sua convicção com base na acepção “na primeira pessoa”, o que implica um juízo originário sobre a mesma.

34. É no momento em que os actos são praticados oralmente – daí que não seja admitido o depoimento prestado, por exemplo, por procurador – que é possível discernir sobre a sua credibilidade, perante, nomeadamente, a espontaneidade das respostas, a emoção empregue nas mesmas, acompanhada da linguagem não verbal da testemunha, ofendido ou arguido.

35. O depoimento gravado, não presenciado, beneficia da oralidade, mas carece dos demais elementos que o compõem, os quais podem ser tão ao mais importantes do que o que está a ser verbalizado.

36. Tal ficou bem patente na decisão revogada pelo Tribunal a quo, o que já não sucede no acórdão recorrendo, não por erro, mas por impossibilidade originária;

37. Acrescenta-se ainda, e sem prescindir, que o Tribunal a quo, no acórdão condenatório, abstem-se de efectuar um juízo valorativo e pormenorizado, no que concerne aos concretos crimes que considera provados.

38. Isto é, o Tribunal ao condenar o arguido por teria de dar como provados momentos concretos de abuso, e não enveredar por uma imputação genérica não evidenciada no número de crimes pelos quais o arguido foi condenado.

39. O Tribunal deu como provados 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 172º, nº1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, tendo como único critério de aferição as declarações da ofendida.

40. O raciocínio do Tribunal considerou justo e adequado, ao revés de se ater com dados concretos e que foram relatados de forma pormenorizada pela arguida, limitou-se a um raciocínio ilógico e imotivado, no sentido de que – supostamente mais favorável ao arguido – teriam ocorrido de Setembro de 2021 até Fevereiro de 2022 dezasseis episódios de abuso, equivalendo, essencialmente, a três episódios por mês até Janeiro e uma vez em fevereiro;

41. Por conseguinte, revela-se inequívoco que a decisão recorrenda sempre será nula por omissão de pronúncia relativamente à factualidade típica que se exige verificada para imputação dos crimes em apreço, pois, para além de estarmos perante crimes específicos, estamos perante crimes de execução vinculada, que importam a verificação estrita de todos os elementos que o compõem, no que tange ao modus operandi inscrito na norma;

42. Posto isto, não sendo possível individualizar cada um dos crimes imputados ao arguido, não tendo, por conseguinte, o Tribunal expendido suficientemente sobre os elementos subjectivos e objectivos do tipo incriminador para cada um dos crimes alegadamente cometidos, impõe-se a (para já nem falar na absolvição do arguido) declaração de nulidade da decisão por omissão de pronuncia, nos termos do disposto no art.º 379.º, al. c) do CPPenal;

43. Ponderadas as circunstâncias do caso, atendendo à prevenção geral como ponto de partida e à prevenção especial como ponto de chegada e a culpa como seu limite, somos de parecerque a pena para cada umdoscrimes –cuja contabilização ainda nos parece imotivada, entenda-se – seria de um ano.

44. Atendendo a que moldura de concurso, perante o disposto no art.º 77.º do CPenal, se cifraria entre 1 ano e 15 anos de prisão, a pena considerada ajustada seria a de três anos de prisão, suspensa na sua execução, nos termos do art.º 50.º do CPenal, pelo período de cinco anos, atendendo ao pedido de indemnização formulado;

45. deverá ser revogada a pena acessória de probição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (05) anos, bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo mesmo período de tempo, nos termos dos artigos 69º-B e 69º-C do Código Penal;

46. Já no que se refere ao Pedido de Indemnização Civil, não resultou provado dos autos os danos não patrimoniais assumidos pela ofendida, denotando-se distanciamento da mesma relativamente aos factos em escrutínio nos presentes autos.

47. Atendendo à idade da ofendida aquando da prática dos factos, a ausência de resistência perante os mesmos e, bem assim, a voluntariedade dos actos alegadamente praticados com o arguido, o valor da indemnização deverá ser fixado em montante não superior a €5.000,00 (cinco mil euros), a satisfazer durante o período da suspensão.

48. Por conseguinte, dúvidas não restam que o acórdão condenatório enferma de vícios insanáveis, que importam a sua revogação e a sua substituição por outro depurado daqueles, rumando, naturalmente, no sentido absolutório, apenas assim se fazendo a vossa acostumada,

JUSTIÇA!»

8. Admitido o recurso, por despacho da Senhora juíza Desembargadora no TRP, de 19-12-2024 (Ref.ª Citius ......90), respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, em 17-02-2025 (Ref.ª Citius ....58), concluindo nos termos seguintes (transcrição):

«1 – O recurso interposto não observa os formalismos legais contidos no art. 412º, nº3, al. a) do Código de Processo Penal;

2– O que impede nãosó quesepossaefectuar uma respostaadequada a esse recurso como impede também que o tribunal de recurso possa apreciar devidamente o recurso interposto;

3 – Sem embargo, o tribunal recorrido fez uma correcta apreciação da prova produzida, ao abrigo do disposto no art 127º do Código de Processo Penal;

4 – Foi no exercício e na aplicação deste princípio que conferiu credibilidade ao depoimento da ofendida;

5 – Não é pelo facto do recorrente entender que aquelas declarações não merecem credibilidade que seja essa a versão dos factos que tenha de ser seguida;

6 – O, aliás douto, Acordão recorrido não enferma de nenhuma nulidade nem em erro de julgamento nem, muito menos, em erro na apreciação da prova;

7- Nas penas parcelares aplicadas, o tribunal sopesou não só as necessidades de prevenção geral e especial que impedem sobre o caso como também as circunstâncias atenuantes e agravantes que ocorrem na situação do arguido.

Nesta conformidade, o douto e bem elaborado Acordão recorrido deve ser confirmado integralmente.

Contudo, decidindo, V.as Ex.as farão a costumada

JUSTIÇA,»

9. Remetido a este Supremo Tribunal de Justiça, pelo Senhor procurador-geral-adjunto aqui em funções, foi emitido parecer nos termos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, em 13-03-2025 (Ref.ª Citius ......04), aderindo inteiramente à posição do Senhor Procurador-geral-adjunto no TRP, exarada na resposta ao recurso.

10. Notificado tal parecer aos sujeitos processuais (arguido e demandante-vítima), para, querendo, se pronunciarem, nada foi requerido.

11. Colhidos os vistos, não tendo sido requerida audiência, foram os autos julgados em conferência - artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

II.1. Fundamentação de facto

12. Pelo acórdão do TRP, na sequência da procedência do recurso do Ministério Público junto do tribunal de 1.ª Instância quanto à impugnação ampla da matéria de facto, foi estabelecido o seguinte acervo factual (transcrição):

Factos provados no acórdão de 1.ª Instância:

«1. Em data não concretamente apurada do ano de 2017 o arguido iniciou uma relação de namoro com DD, residindo ambos, à data, na Venezuela.

2. Uma vez que os pais da DD se opunham a tal relacionamento, em 1 de Dezembro de 2019 o casal decidiu passar a residir na Costa Rica, o que fizeram, juntamente com BB (nascida em ... de ... de 2004) e EE, filhas da DD.

3. Em Outubro de 2020, a DD e as filhas vieram residir para Portugal, fixando residência numa habitação pertencente aos pais da mesma, sita na Rua da ..., na ....

4. Tendo o arguido permanecido na Costa Rica, em Janeiro de 2021 o mesmo veio também para Portugal, voltando a residir com aquelas.

*

Das condições pessoais e certificado de registo criminal do arguido

5. Do relatório social junto consta:

«1 – CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS

O arguido (39 anos, natural da Venezuela, praticante de armazém) reside na morada indicada nos autos, juntamente com a esposa (DD, 39 anos, funcionária de cooperativa) e com a filha mais nova desta (EE, 10 anos, estudante). À data dos factos descritos no presente processo, a filha mais velha da esposa (BB, 19 anos, alegada vítima no processo) integrava o agregado familiar, encontrando-se o núcleo familiar emigrado na Costa Rica, desde dezembro de 2019. Dadas as dificuldades associadas ao processo de legalização, a esposa veio residir para Portugal, em outubro de 2020, juntamente com as filhas, passando a habitar um imóvel de propriedade dos pais daquela, sito na .... Passados cerca de quatro meses, o arguido reintegrou o agregado familiar. Em abril de 2022, data do início do presente processo, o casal alterou a residência para a atual morada, passando aí a residir, juntamente com a filha mais nova de DD.

Ao nível do enquadramento habitacional, o arguido mantém residência em moradia arrendada, com infraestruturas e boas condições de habitabilidade, e uma área de ocupação útil que, na perspetiva dos dois elementos do casal, assegura conforto e distribuição adequada de espaços comuns e individuais. O imóvel está inserido em zona habitacional da periferia, sem problemáticas sociais ou criminais.

O contexto e dinâmica relacional intrafamiliar é descrito, pelo arguido e pela esposa, como adequado e tranquilo, centrado na vivência de rotinas diárias de trabalho e acompanhamento das atividades escolares, havendo capacidade de articulação e de gestão de horários. A relação conjugal é, em todas as suas dimensões, vivenciada de forma positiva e gratificante, sendo descrita, pelos elementos do casal, como fonte de estabilidade e segurança. À data dos factos descritos nos autos, o casal debatia-se com alguma resistência, por parte dos pais de DD, face à relação afetiva que, entretanto, aqueles haviam estabelecido, facto que o arguido reconhece ter constituído um foco de ansiedade e pressão para o casal.

O arguido tem duas filhas (FF, 17 anos; GG, 11 anos), fruto de relação anterior, com quem mantém contacto, ainda que num registo de irregularidade, por motivo de incompatibilidade com a progenitora. Sobre esta relação, o arguido evidencia dificuldade na verbalização e na gestão emocional, descrevendo-a como experiência que o marcou de forma negativa, e que gradualmente tem vindo, na sua perspetiva, a superar.

De uma forma geral, e sem alteração sofrida no intervalo temporal decorrido entre a alegada prática dos factos e o momento atual, é associada ao arguido uma imagem social de adequação e de respeito para com as normas sociais e jurídicas vigentes. De acordo com a sua perceção, este processo não é conhecido no seu meio de residência, pelo que não sente, até ao momento, qualquer alteração na qualidade da interação que mantém com elementos da comunidade.

O arguido tem 9.º ano de escolaridade, e um registo de precocidade na integração em meio laboral. Sem registo de irregularidade ou períodos longos de desemprego, o arguido apresenta uma trajetória profissional em áreas diversas, referindo satisfação e motivação para o trabalho. Desde dezembro de 2021, exerce funções de praticante de armazém, em regime de contrato de trabalho.

Ao nível económico, o rendimento mensal fixo do agregado familiar, proveniente da atividade profissional dos dois elementos do casal, permite fazer face ao volume de despesas mensais fixas, não sendo referidas dificuldades ou limitações neste domínio.

Sem frequência de atividades de lazer ou recreativas, o arguido ocupa o seu tempo livre em contexto familiar. Mantém convívio pontual com elementos da comunidade próxima, num formato e periodicidade que caracteriza como adequado e pautado por cordialidade, sendo capaz de reconhecer características pró-sociais no seu grupo de amigos e conhecidos. Mantendo nesta análise a referência a data dos factos descritos no processo, não são observadas alterações neste domínio, quando consideradas as circunstâncias atuais.

2. REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO

O arguido demonstra capacidade de reflexão e descentração, denotando atitude crítica e censura moral quando confrontado com factos idênticos àqueles de que se encontra acusado, e perante os quais reconhece a importância e a necessidade de intervenção do Sistema de Justiça. De uma forma global, é observado um discurso congruente com um percurso vivencial norteado por valores e princípios socialmente adequados.

Do ponto de vista das repercussões da atual situação jurídico-penal, são destacados pelo arguido os sentimentos de tristeza, frustração e desgaste emocional, assim como a preocupação quanto ao impacto negativo que daí possa resultar, designadamente ao nível do contexto e dinâmica familiar.

3. CONCLUSÃO

Os dados recolhidos apontam para um processo de desenvolvimento em contexto familiar normativo, com veiculação de valores pró-sociais e presença/reconhecimento de figuras de referência. Ainda que sejam observados focos de vulnerabilidade e instabilidade ao nível da relação afetiva anterior, o atual enquadramento familiar é vivenciado como retaguarda de apoio, sendo a relação conjugal entendida, pelo arguido, como a principal fonte de segurança afetiva e de motivação para a prossecução de objetivos de vida. O arguido apresenta uma situação laboral que denota estabilidade e capacidade de manutenção de rotinas diárias.

Face ao exposto, na eventualidade de virem a ser provados os factos de que se encontra acusado, somos de opinião, caso a pena aplicada o permita, que o arguido reúne condições para a aplicação de uma medida penal probatória de execução na comunidade, com sujeição a plano de intervenção por estes serviços da DGRSP, especificamente direcionado para a problemática criminal em causa, beneficiando com a frequência do Programa da DGRSP - Programa para Agressores de Violência Sexual – Crimes Contra Crianças e Adolescentes – PAVS-CA.».

6. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.»

Factos que o TRP considerou que deveriam ter sido dados como provados, no seu acórdão recorrido:

«O arguido e a mãe da ofendida, DD, casaram um com o outro em 02/09/2020.»

«- Em Junho de 2021, o arguido numa determinada ocasião em que ambos se encontravam no quarto dele, agarrou-a, ao que aquela reagiu, empurrando-o e fugindo para o quarto dela;

- O arguido foi atrás da BB e, querendo esta fechar a porta do seu quarto, o arguido impediu-a, ali entrando;

- Ato contínuo, o arguido agarrou-a pelos braços, tendo a BB dito: “Se não me largares, eu grito. Eu não quero mais”;

- Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2021, em data não apurada, mas situada entre final de Agosto de 2021 e a primeira semana de Setembro de 2021, o arguido foi ter com aquela e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto;

- Estando sozinha com o arguido, a BB acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis ereto na vagina daquela.

- A partir dessa altura e até meados de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve pelo menos por mais quinze vezes relações sexuais de cópula completa com a BB;

- Em tais relações sexuais, que ocorriam quase sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB.»

Factos erradamente julgados como não provados os pontos I. a K. da matéria de facto não provada – correspondentes aos factos descritos nos parágrafos #20 a #22 da acusação deduzida nos autos:

«- Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade e que, como tal, carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual;

- O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.»

Factos respeitantes ao pedido de indemnização civil:

«L. Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade, o que ainda hoje se mantêm.

M. Em virtude da conduta do arguido, a ofendida apresenta dificuldades ou alterações de comportamento, mostrando-se emocionalmente instável, assim como evidencia sintomatologia ansiogena, verbalizando sentimentos de culpa por não ter conseguido impedir a continuidade da situação abusiva.

N. Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu naturalmente danos ao nível do ajustamento psicológico, evidenciando, além da ansiedade, perturbação e stress, que lhe despoletam medo e estados de nervos, de nojo e de choque, além da perturbação no exercício da sua sexualidade.»

II.2. Mérito do recurso

13. Os poderes de cognição do tribunal de recurso delimitam-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 434.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de Jurisprudência STJ n.º 7/95, DR-I.ª Série, de 28-12-1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), os quais, analisado o acórdão recorrido, não se verificam.

14. Das conclusões da motivação de recurso do arguido, extrai-se que o mesmo pretende colocar à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça, as questões seguintes:

i. Violação do princípio in dubio pro reo e erro na valoração da prova, nos termos da al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, relativamente à decisão de fixar a matéria de facto provada, por parte do TRP – Conclusões 1. a 36.;

ii. Nulidade por omissão de pronúncia do acórdão recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por falta de individualização de cada um dos (16) crimes que considerou provados – Conclusões 37. a 42.;

iii. Medida das penas principais, parcelares e única, bem como das penas acessórias, aplicadas – Conclusões 43. a 45.;

iv. Valor da indemnização civil – Conclusões 46. a 48.

Apreciemos.

15.

i. Violação do princípio in dubio pro reo e erro na valoração da prova, nos termos da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, relativamente à decisão de fixar a matéria de facto provada, por parte do TRP – Conclusões 1. a 36.;

O recorrente pretende demonstrar que o TRP, no seu acórdão recorrido, empreendeu um exercício de valoração e interpretação probatória que, no limite, atenta contra o princípio in dubio pro reo, pelo que o mesmo – ao reverter o juízo absolutório do tribunal de 1.ª Instância, e condenar o arguido nos termos em que o fez – deveria ser desatendido, mantendo-se a decisão absolutória do Juízo Central Criminal de Aveiro.

A conceção do nosso sistema probatório penal, convém esclarecer, é a de que não há qualquer modelo de “prova tarifada”, em que o legislador enumere as circunstâncias em que se deva dar como provado, ou não provado, um determinado facto.

Vigora, antes, como se presume ser um dado adquirido, um sistema norteado pelo princípio da livre apreciação da prova, plasmado nos artigos 125.º e 127.º do CPP, em que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

Ora, o princípio da livre convicção é um trivial princípio metodológico negativo, que consiste em rejeitar as provas legais como suficientes para dar como provado certo(s) facto(s), assim se evitando que se tenham como provados certos factos e que não se tenham como provados outros, sem que tal corresponda à realidade, só porque se obedeceu a um comando do legislador.

Porém, uma conceção de livre convicção obtida na «intimidade da livre consciência» ou «libérrima», «decisional» compreende, hoje, uma leitura subjetivista inaceitável.

Aquelas normas consagram o critério de valoração da prova em processo penal, que ao invés de ser um critério de prova legal – em que é o legislador a predefinir a admissibilidade, a espécie e o valor das provas –, é um critério de “prova livre”: a apreciação da mesma é, em princípio, deferida ao critério do intérprete e aplicador, de acordo com as regras da experiência comum e a convicção livremente fundamentada daquele.

A livre convicção não pode, pois, significar que seja um processo discricionário, arbitrário ou de puro subjetivismo, mas, sim, que o processo de valoração (e de convicção) do julgador tem de ser racionalmente fundamentado e motivado, sem que se atenda a um padrão epistemológico predeterminado pelo legislador, a não ser em casos particulares, como, p. ex., na prova pericial (art. 163.º, n.º 1, do CPP), cujo valor tem um regime específico, presumindo-se-subtraído ao princípio da livre apreciação. Há de ser, todavia, uma convicção ancorada numa motivação racionalmente fundamentada, passível de poder ser escrutinada enquanto objeto de recurso pelos sujeitos processuais afetados pela decisão. E à qual devem estar subjacentes raciocínios de tipo indutivo, que permitam medir o grau de probabilidade de confirmação do enunciado probatório a decidir, designadamente a partir da coincidência de indícios (ou de prova indireta dos factos), da sua corroboração e da não infirmação, da plausibilidade, da credibilidade da prova pessoal produzida, que formem um arco de probabilidade epistemológica conclusiva, de forma processualmente válida, e não uma certeza ontológica. Essa conceção encontra, obviamente, o óbice das proibições de prova (artigos 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º, do CPP).

Assim, por um lado, não há critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova. Por outro lado, o juiz tem o dever de perseguir a “verdade material” – sendo certo que esta será sempre uma verdade prático-jurídica, não ontológica, prosseguida de acordo com as proibições de provas constitucional e legalmente previstas – sempre num contexto de critérios objetivos suscetíveis de motivação e controlo. Esta verdade material é, por isso, “verdade processual”, assente em uma convicção pessoal que tem de ser sempre objetivável e motivável. Nesta perspetiva, é passível de se impor aos outros em termos de convencimento racional. Importa que o Tribunal tenha encontrado uma verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (beyond any reasonable doubt). Não basta o voluntarismo do tribunal que, de um modo subjetivista ou meramente decisional, seria imotivado e desprovido de racionalidade técnica e jurídica, tornando-se insindicável.

Por isso, não pode, desde logo, acolher-se o alegado no recurso do arguido, quando refere que «O único meio de prova que, porventura, poderia encontrar-se subtraído ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127.º do CPPenal, por referência ao disposto no n.º 1 do art.º 163.º do CPPenal, seria o relatório da perícia médico-legal, na área da psicologia, realizado pela perita Dra. CC, mas mesmo este não se revela bastante para condenar o arguido», em resultado do que o acórdão de 1.ª Instância não deveria ter sido revogado.

Tal asserção significaria que o resultado de um qualquer julgamento em que o arguido não confessasse e o tribunal não ficasse inteiramente convencido da culpabilidade do arguido por inexistir prova direta dos factos ilícitos, implicaria sempre a absolvição do arguido. Uma tal conclusão não pode aceitar-se, devendo o tribunal empreender um acrescido esforço de indagação e (auto)convicção, no sentido de perscrutar a verdade – processualmente válida, é certo – a que está obrigado.

É que o TRP, no acórdão recorrido, não invoca apenas o teor do relatório pericial de Psicologia Forense (mesmo reforçado pelos esclarecimentos em julgamento da Senhora Perita, autora da perícia). Antes, conjuga o teor desse relatório com os demais elementos probatórios produzidos nos autos, designadamente em sede de audiência de discussão e julgamento, concluindo por uma interpretação das inferências probatórias distinta da que fora realizada pelo tribunal de 1.ª Instância. O mesmo assume-se, porém, como elemento crucial no processo de convicção do tribunal recorrido.

O punctum crucis do presente recurso é, no fundo, a ponderação da credibilidade do(s) depoimento(s) – em dois momentos processualmente distintos, nas declarações para memória futura (em 04-11-2022) e em audiência de julgamento – da vítima, BB, no confronto com a demais prova produzida, concretamente com o teor das declarações do arguido, tendo como enquadramento normativo de fundo o princípio in dubio pro reo. É o que o próprio tribunal recorrido reconhece no acórdão sob escrutínio:

«Tendo presente as alegações de recurso no seu confronto com a decisão a quo está sobretudo em causa a credibilidade ou não conferida ao depoimento da ofendida.»

Como a este propósito refere Germano Marques da Silva, «Frequentemente a prova do crime é especialmente difícil porque os únicos meios de prova são o ofendido e o arguido. Pensemos nos crimes praticados «no escuro», como, por exemplo, os crimes sexuais e a violência doméstica, a título de exemplo.

Há por vezes a ideia de que afirmando ume negando outro não se chega a fazer prova. Pode suceder, mas não é necessariamente assim. Mesmo na falta de outros elementos de prova, o tribunal deve avaliar a que é produzida pelo ofendido e pelo arguido e agora tudo se passa e termos de credibilidade. O tribunal deverá averiguar da credibilidade objetiva e subjetiva, procedendo com a necessária cautela através do exame particularmente rigoroso e penetrante e que tenha em conta todos os elementos eventualmente emergentes do crime e as circunstâncias em que ocorreu. Tarefa extremamente difícil, por vezes, mas nada impede que a convicção do tribunal se forme na base de apenas um depoimento, do ofendido ou do arguido» (Direito Processual Penal Português – Teoria da Prova, vol. 2 – tomo I, Lisboa, U. C. Editora, 2024, pp. 192-193).

Como se refere no Ac TRP de 15-01-2014, proc. n.º 1924/13.0JAPRT “os crimes sexuais são crimes por natureza que vivem do secretismo em que são perpetrados e acobertados. Crimes que se cometem de portas adentro e para cuja impunidade muitas vezes o agressor confia na respeitabilidade social de que goza e no sentimento de medo e vergonha da vítima – causados, estes, pela iminente necessidade de exposição pública da ofensa ao seu pudor, aliada ao pressentimento da desvantagem em que se encontrará no confronto com o seu ofensor, quanto ao crédito que a sim mesma e a ele poderá ser dado”.

Não havendo, pois, por regra, nos crimes sexuais, prova direta, designadamente de natureza pessoal/testemunhal, produzida por terceiros, importa recorrer aos dados probatórios disponíveis, que se reconduzem ao depoimento da vítima e às (eventuais) declarações do imputado/arguido. Importa que o tribunal se rodeie de particulares cautelas na apreciação e valoração de tais elementos (assim, Isabel Pereira Ramos, «Valoração da prova nos crimes sexuais - Proteção do menor», Julgar online, março 2020, p 10). Daí que a fase da imediação da produção de prova na 1.ª Instância seja um momento privilegiado – mas não exclusivo, nem insubstituível – quando se apreciam crimes desta natureza, impondo-se que se atenda a “uma multiplicidade de fatores (…), a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto social e cultural, a linguagem gestual e até saber interpretar as pausas e o silêncio do depoente, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que muitas vezes não intencionalmente. Sendo a comunicação verbal efetuada através das palavras, este método, no entanto, é propenso a erros, que envolvem a antecipação, as expectativas, erros no discurso ou distorção na transmissão, podendo todos ou alguns destes problemas ocorrer quando se fala depressa ou quando se usa a fraseologia incorreta.” (Ac. TRG de 29-11-2004).

Na verdade, o que está definitivamente em causa no presente recurso é a densificação do princípio in dubio pro reo perante os elementos de prova disponíveis.

Tal princípio – conquanto não expressamente afirmado na lei fundamental, encontra suporte jurídico-constitucional no art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, enquanto corolário da presunção de inocência que neste tem assento – dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido, assim assegurando a presunção de inocência, enquanto elemento estruturante do processo penal. O princípio in dubio pro reo, apesar de não se encontrar expressamente afirmado em qualquer preceito da Constituição ou da legislação ordinária, é unanimemente reconhecido entre nós como princípio que se reporta às consequências da não realização de prova sobre a verdade de um facto, ou seja, a um estado de dúvida, de non liquet, cuja verificação implica que tribunal deve decidir o facto em sentido favorável ao arguido. Na síntese de Figueiredo Dias, “O princípio in dubio pro reo vale só, evidentemente, em relação à prova da questão-de-facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão-de-direito” (cfr. Direito Processual Penal, vol. I, reimp., Coimbra, Coimbra Editora, 1981, p. 215), pelo que a sua violação respeita inequivocamente à decisão da matéria de facto e não ao reexame da matéria de direito. Quanto a esta, prevalecerá o entendimento que se revelar mais correto (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed., 1974, reimp. 2004, Coimbra, Coimbra Ed., p. 215 e Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Coimbra, Almedina, 2016, p. 172).

Vem sendo assumido, genericamente, o entendimento de que tal princípio se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (art. 127.º, do CPP), do qual constitui uma das suas dimensões, e este último apenas comporta as exceções da prova proibida ou integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum. O princípio in dubio pro reo não é uma regra para a apreciação da prova, pois apenas se aplica depois de finalizada a valoração e apreciação crítica da prova, como ensina Claus Roxin. O princípio in dubio pro reo é apenas uma regra de decisão da prova. A mobilização do princípio in dubio pro reo só deve ocorrer quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, se lhe imponha decidir a favor do arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstrata ou de uma mera hipótese. A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dubio pro reo não é qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objetivável. Em primeiro lugar, deverá ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve todo o empenho no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza. Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trate de uma dúvida racional e argumentada. Por fim, deverá ser objetivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjeturas e suposições (cfr., neste sentido, Ac STJ de 12-01-2023 – Proc. n.º 569/20.3JAAVR.P1.S1; rel. Cons. Leonor Furtado).

Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, em moldes idênticos à demonstração do vício de erro notório na apreciação da prova, isto é, deve resultar do texto da decisão, de forma objetiva, clara e inequívoca, que o juiz ou o tribunal, tendo ficado na dúvida razoável sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida razoável sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

Enquanto parâmetro de valoração probatória, a dúvida razoável deve ser um dado subjacente ao princípio do in dubio pro reo. O acórdão recorrido tem dele um diferente entendimento relativamente ao tribunal de 1.ª Instância. Importa, pois, apreciar se o fez com acerto, ou não.

Por outro lado, a dúvida para este efeito relevante não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença, ou que é revelada, objetivamente, pelo respetivo texto (ac. do STJ de 27-04-2017, processo n.º 452/15.4JAPDL.L1.S1, in www.dgsi.pt).

A violação do princípio pode ser apreciada, como atrás se disse, em moldes análogos aos da consideração do erro na apreciação da prova, ao abrigo do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. O erro notório na apreciação da prova – como todos os demais vícios decisórios previstos no n.º 2 dos art. 410.º, do C. Processo Penal – constitui um defeito lógico da decisão penal, rectius, da sentença, e não, do julgamento, que se evidencia pelo respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, o que significa que, para a sua comprovação, não é legalmente admissível lançar mão de elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo. Ele ocorre quando o tribunal valorou prova contra as regras da experiência comum, contra critérios legalmente fixados ou contra as leges artis, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao homem médio, ao cidadão comum, por ser evidente, grosseiro, ostensivo. Dizendo de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que basicamente consiste em dar-se como provado o que não pode ter acontecido, ou como não provado o que reconhecidamente aconteceu, mediante a formulação de juízos ilógicos e/ou arbitrários (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3 vol., 3.ª reimp., Universidade Católica Portuguesa Editora, 2020, p. 326 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9.ª ed., Lisboa, Rei dos Livros, 2020, p. 81).

No caso vertente nos presentes autos, o TRP empreendeu um raciocínio lógico-discursivo no tocante à valoração da prova produzida distinto do que foi levado a cabo pelo tribunal de 1.ª Instância.

Antes de mais, importa dizer que o facto de o acórdão recorrido ter sido proferido por maioria – e não por unanimidade – não o torna nem mais nem menos válido ou convincente. Com efeito, não pode defender-se que o voto de vencida da Senhora Desembargadora no TRP possa ter a virtualidade de afetar a legitimidade ou autoridade do acórdão recorrido – materializando uma maioria aritmética juntamente com os juízes que proferiram o acórdão de 1.ª Instância, que, como tal, deveria ser acatada –, tanto mais que o teor daquele voto se prende com uma posição de apreciação e valoração probatória próxima da que o tribunal de 1.ª Instância manifestou, e não com outro qualquer entendimento jurídico.

Por um lado, contrariamente ao que defende o recorrente (cfr. motivação e conclusões 33.ª a 36.ª do recurso), a imediação e oralidade necessariamente proporcionadas no julgamento em 1.ª Instância não constituem, por si só, uma presunção de maior correção do juízo de valoração probatória feito por esse tribunal; se assim fosse, não haveria necessidade de instituir o regime de impugnação da matéria de facto em 2.ª Instância, e de cometer à Relação poderes cognitivos de facto e de direito, nos termos do art. 428.º, do CPP.

Por outro lado, também a Relação está obrigada a proceder a uma reinterpretação do resultado do julgamento – da matéria de facto e, concomitantemente, de direito (mas não uma “repetição” do julgamento) –, reapreciando os elementos probatórios anteriormente produzidos, sem exigir a replicação da prova pessoal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento em primeira Instância, por desnecessária, atento o seu registo.

No caso vertente nos presente autos, não só não houve qualquer alteração (substancial ou não substancial) dos factos imputados ao arguido, ou da sua qualificação jurídica, como houve uma redução da sua amplitude, relativamente à imputação formulada na acusação do Ministério Público, uma vez que o arguido fora acusado por cinquenta e um crimes (51) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, pp. e pp. pelos artigos 172.º, n.º 1, al. b), e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, vindo a ser condenado, em 2.ª Instância (no acórdão recorrido do TRP) apenas por dezasseis crimes.

A dúvida razoável é plausível de constituir obstáculo a uma decisão condenatória, mas não uma qualquer “dúvida” subjetiva, mais ou menos impregnada por preconceitos, que o recorrente pretenda subsistir no juízo decisório. A certeza processual (não ontológica) a que o tribunal pode chegar é uma certeza prático-jurídica, produzida por enunciados (hipóteses) factuais adquiridos por meios probatórios processualmente admissíveis, tendo como apoio as regras da experiência e da sã racionalidade.

Observando toda a decisão recorrida não emerge erro notório na apreciação da prova, visto como aquilo que se mostre evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e resulte do texto do acórdão conjugado com as regras da experiência comum, antes resultando que, ao invés da posição discordante, assente na leitura que o arguido dele retira, todo o processo de decisão se mostra coerente, lógico e racional, não se demonstrando ser o mesmo produto de arbítrio ou discricionariedade.

No acórdão recorrido, o TRP procurou demonstrar, com acerto, que, por um lado, o teor do relatório pericial de Psicologia Forense, com os esclarecimentos adicionais da Senhora Perita produzidos em sede de audiência de julgamento, não foi corretamente apreciado pelo tribunal de 1.ª Instância e, por outro lado, não pode exigir-se uma absoluta e total concordância do conteúdo dos depoimentos da vítima em diversos momentos processuais da sua produção, o que, de resto, poderia, isso sim, sugerir encenação e preparação de uma versão isenta de contradições e imprecisões.

É o que resulta dos seguintes excertos do acórdão recorrido:

«Dos esclarecimentos prestados pela ofendida em audiência de julgamento pode retirar-se o seguinte:

Que depois de já terem ocorrido factos da mesma natureza quando residiam na Costa Rica, numa altura em que o arguido já se encontrava a residir em Portugal com a mãe da ofendida, com a ofendida e com a irmã desta, pelo menos a partir de Fevereiro de 2021 voltou a procurar a ofendida para com a mesma manter relações sexuais;

Confrontada com a circunstância de não ter referido isso nas declarações para memória futura, referiu primeiramente que pensava já o ter relatado e mais adiante esclareceu que apenas referiu os factos a partir do episódio em que o arguido tentou forçar a entrada no quarto, porquanto essa foi a única vez em que o arguido tentou forçá-la a ter relações sexuais e para si foi uma surpresa;

A ofendida descreve a casa de morada de família em Portugal, percebendo-se que tem dois pisos, ficando os quartos no piso de cima, quintal e que os avós residem num anexo e não na casa principal – bem como reitera as anteriormente descritas rotinas dos membros da família, por forma a perceber-se que, como é natural, em casa não estão todos no mesmo sítio, ao mesmo tempo a fazer as mesmas coisas;

A ofendida reitera que passaram a ter relações de cópula depois de ter ‘perdido a sua virgindade’, tipo de relações que a mesma então situa terem ocorrido a partir de uma altura em que os avós já residiam em Portugal e que estima terem tido início em final de Agosto ou mesmo na primeira semana de Setembro;

A ofendida esclareceu que nesse período de tempo havia ocasiões, que duravam de uma semana a quinze dias em que o arguido, por estar aborrecido consigo, não a procurava e que, desde que passaram a ter relações de cópula, havia pelo menos uma semana por mês em que nada se passava;

Confrontada com a circunstância de antes não ter referido que havia períodos em que nada acontecia, esclareceu que não o referiu porque anteriormente só lhe perguntaram o que aconteceu e não o que não aconteceu;

Assim, em relação com os factos descritos na acusação, o que foi esclarecido pela ofendida – pressupondo que as relações de cópula se iniciaram pelo menos na primeira semana de Setembro, que duraram até meados de Fevereiro e que havia pelo menos uma semana por mês em que nada se passava – permite contabilizar, numa perspetiva mais benéfica para o arguido, que terão ocorrido pelo menos três vezes nos meses de Setembro a Janeiro e pelo menos uma vez em Fevereiro, totalizando pelo menos 16 (dezasseis) situações em que ocorreram relações de cópula.

Como se refere no acórdão recorrido, estando em causa crimes de natureza sexual, em regra só têm conhecimento direto dos factos o autor do mesmo e a sua vítima.

Daí a relevância que assume, perante versões contraditórias de um e de outro, o depoimento da vítima, que deve ser credível e estar em sintonia com as regras da experiência comum.

Daí decorre igualmente a relevância de outros elementos probatórios que permitem conferir credibilidade a tal depoimento.

Neste âmbito, cabe destacar o relatório de perícia médico-legal de psicologia junto a fls. 143 e ss. dos autos – relativo ao exame pericial de psicologia a que foi submetida a ofendida BB em 09/08/2022.

No mesmo, em resposta aos quesitos formulados, consta, além do mais, o seguinte que se destaca:

“(…)

- quais as características específicas da sua personalidade, designadamente, ao nível de ansiedade, introversão ou extroversão, capacidade de mentira e/ou efabulação, satisfação pessoal, reação a comportamentos sociais moralmente desadequados?

BB apresenta uma elevação relativamente à sintomatologia ansiosa, eventualmente reativa à situação atual. Tendencialmente é uma jovem extrovertida com propensão para experienciar um leque variado de emoções, quer positivas quer negativas.

Há uma propensão para aceitar ideias e valores menos convencionais, o que poderá levar a comportamentos social ou culturalmente questionáveis. Aliado a este fator não apresenta necessidade de aprovação social. Da avaliação efetuada não são encontrados indícios que indiquem tendência para comportamentos de mentira ou manipulação.

- qual a relação que mantém com o arguido?

BB refere sentimentos de ambiguidade relativamente a AA, durante o período dos alegados abusos (…)

À data da entrevista, apresenta sentimentos negativos extremados relativamente ao arguido, eventualmente relacionados com as consequências que a denúncia teve no afastamento com a sua mãe e na influência que acredita que AA teve na oposição que a família faz ao seu namorado (…)

- qual a sua reacção e vivência perante os actos de natureza sexual indiciariamente praticados pelo arguido?

BB demonstra ambiguidade relativamente à avaliação dos alegados atos cometidos, chegando a verbalizar ‘eu sentia-me entre o confortável e o inconfortável’. De facto, verbaliza que em certas ocasiões avaliou como algo que era errado e se sentiu confusa e compelida a dizer a verdade, não o fazendo por nutrir sentimentos amorosos pelo arguido

e por receio das consequências (…)

- se é credível o seu relato sobre tais acontecimentos?

No que diz respeito aos factos relatados, não existem discrepâncias entre os relatos constantes nos autos e na avaliação pericial. De forma a responder a este quesito procedemos a uma análise qualitativa em relação aos conteúdos produzidos por BB, tendo em conta os critérios que a literatura cientifica refere como indicadores de maior credibilidade. Assim, verificou-se a existência de coerência nas descrições, cuja verbalização foi espontânea (as questões são colocadas de forma aberta, não diretiva e não sugestiva).

BB consegue contextualizar as alegadas situações de abuso, referindo a idade em que estas tiveram inicio, as circunstâncias em que aconteceram e os locais. Menciona detalhes específicos quando relata episódios e também detalhes supérfluos (que são pouco comuns em situação de falsas declarações). Descreve interações e verbalizações entre ela e o alegado agressor, assim como menciona o seu estado mental.

Por último é importante referir à ambivalência de sentimentos face ao agressor, situação que é frequente em situações de abuso intrafamiliar.

Face ao exposto, somos da opinião que o relato produzido por BB contempla um conjunto de critérios que a literatura relaciona com um aumento da credibilidade”.

Como se alcança de tal relatório, entre os fatores de credibilização do relato da ofendida contempla-se não apenas a consistência dos sucessivos relatos (aspeto formal dos relatos), mas vários outros fatores de cariz intrínseco e relativos à qualidade de tais relatos, como sejam a espontaneidade das descrições, a contextualização dos eventos (por referência a marcos temporais como a idade, as circunstâncias e os locais), a referência a detalhes (uns específicos das situações, outros supérfluos) e as referências aos sentimentos vivenciados e ao seu estado mental quando dos eventos – detalhes que, como ali se refere, são pouco comuns em situações de falsas declarações.

Em relação com tal relatório pericial, cabe igualmente atentar nos esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento pela Dra. CC, perita que procedeu ao exame pericial em causa e subscreveu tal relatório.

Foi a mesma ouvida na sessão de 22/11/2023, encontrando-se as suas declarações registadas na plataforma Citius (ficheiro ............................23).

Refere-se no acórdão condenatório, a págs. 30/31 do mesmo, que a Sra. Perita esclareceu que “embora a BB apresente valores de fantasia elevados, a análise conjunta de todos os valores leva às conclusões do relatório no sentido da credibilidade do por si relatado”.

Tal afirmação do acórdão recorrido descontextualiza, relacionando-os, dois aspetos distintos dos parâmetros analisados e dos esclarecimentos prestados e inculca a ideia de que a Sra. Perita teria associado os valores de fantasia elevados com a qualidade do relato produzido pela ofendida – a poder dar a entender que o relato da ofendida poderia ser fantasioso – o que não corresponde ao ocorrido em audiência de julgamento.

Como se pode ver no aludido relatório pericial, as únicas referências ali contidas relativa a “Fantasia” constam da tabela de fls. 149 verso, que é relativa aos resultados instrumento de avaliação global da personalidade denominado NEO-PI-R e a fls. 150, subsequente explicação desses resultados. Como ali pode ler-se, tal referência a “Fantasia” é um dos fatores avaliados num dos domínios da personalidade, o da «abertura à experiência», que conforme ali se explica avalia fatores motivacionais e estruturais para a mudança. Nesse fator ‘fantasia’ a BB apresentou um valor interpretado como superior e acima da média, e não propriamente como ‘valores de fantasia elevados’ como referido no acórdão sob recurso. Explica-se que “este resultado indica o perfil de uma pessoa aberta à experiência, por conseguinte curiosa em relação ao seu mundo interior e exterior, sendo as suas vivências muito ricas. (…) Tendencialmente é curiosa, criativa, original, imaginativa e tem uma grande diversidade de interesses”.

Portanto, nada que se relacione com a qualidade dos relatos produzidos acerca dos factos.

(…)

Conforme se alcança do referido relatório pericial e dos esclarecimentos prestados, o referido parâmetro de ‘fantasia’ em nada está relacionado com a qualidade dos relatos produzidos.

Estes elementos de prova conjugados levam a considerar que os relatos produzidos pela ofendida BB, no seu essencial, no que respeita à ocorrência dos atos de abuso sexual imputados, se apresentam como credíveis.

O acórdão recorrido aponta-lhes várias “incongruências”.

Porém, não deixa de ser referido no próprio acórdão, a págs. 24, que “a ofendida prestou um depoimento bastante claro e objectivo, mantendo, na generalidade, a mesma versão dos factos, denotando pouca emotividade e grande assertividade”.

Ora, ouvidos os relatos da ofendida, resulta que a mesma mostrou por diversas vezes emotividade e angústia ao descrever os eventos, pelo que não se subscreve a menção por parte do tribunal a quo de por pouca emotividade.

Refere ainda a decisão a quo quando aí se afirma que a ofendida “De modo pouco claro e descontextualizado, relatou uma situação de extorsão vivida pela sua família materna na Venezuela que atribuiu ao arguido, denotando, desde logo a sua animosidade para com o mesmo (e sem que tal fosse referido por qualquer outra pessoa ouvida em sede de audiência de discussão e julgamento)”.

O relato de tal situação encontra-se ao minuto 07:03 em diante das já referidas declarações para memória futura e não surge como descontextualizado. Aquela refere a suposta ligação do arguido à máfia venezuelana e uma situação de alegada extorsão depois de perguntada pela Sra. JIC porque é que os seus avós não gostavam do arguido, sendo convidada insistentemente a especificar essa situação de suposta extorsão.

Por sua vez nenhuma das testemunhas ouvidas conseguiu apontar um motivo suficientemente sólido para que a ofendida tivesse imputado factos desta natureza ao arguido e que justificasse a sua falsidade, apontando as mesmas, sobretudo, para o facto de ele exercer funções parentais sobre a mesma e chamá-la a atenção.

Pelo contrário a razão invocada pela ofendida prende-se com o tomar consciência do errado da situação e da preocupação de que o mesmo venha a acontecer com a sua irmã mais nova.

Ouvidos os relatos feitos pela ofendida, seja na diligência de declarações para memória futura, seja em audiência de julgamento, nomeadamente nas passagens acima apontadas, verifica-se que a mesma, no seu essencial, mantém a mesma descrição dos factos no que respeita à ocorrência dos atos de abuso sexual.

Nesses relatos, a ofendida é capaz de contextualizar temporalmente, nomeadamente por referência a eventos pessoais e familiares, os atos em causa, apresenta detalhes para algumas situações, como a roupa que trajava e onde se encontrava, bem como as palavras trocadas com o arguido – referências e detalhes esses que mantém em ambos os depoimentos, não obstante a distância temporal desde os factos e entre esses dois relatos.

As incongruências que o acórdão recorrido aponta aos relatos sobre os atos abusivos, com exceção do relato relativo à ocasião em que o arguido retomou os seus atos abusivos quando já em Portugal, não se podem afirmar categoricamente como tal.

Trata-se de divergências que se têm por normais quando se repete várias vezes o relato de atos que ocorrem de forma reiterada e ao longo de um período considerável de tempo – além de que, quer as perguntas que iam sendo feitas à ofendida, quer por via disso as respostas que dava, se reportam ao que era habitual e mais frequente acontecer, a estimativas e a médias do número de vezes em que os atos ocorreram.

Sendo que, relativamente à referida discrepância acerca da ocasião em que foram reiniciados tais atos, a ofendida, conforme acima transcrito, acaba por explicar que se referiu à situação ocorrida em Junho porque esse dia foi o único dia em que o arguido estava a tentar forçá-la a ter relações sexuais com ele e por isso ficou mais gravado na memória.

Não podendo esquecer-se, como admitido, pela ofendida que os encontros sexuais tinham colaboração da mesma, no sentido de que quando procurada não exercia oposição, admitindo, até, que o via como homem nesses momentos e não como padrasto.

Igualmente, a ‘atrapalhação’ da BB quando confrontada com essa discrepância e o seu pedido para que o relato prosseguisse sem a presença do arguido na sala são compreensíveis. Se nos colocarmos na perspetiva da mesma, forçoso será compreender que – estando perante a pessoa que a mesma vê como sendo o seu agressor e então ser confrontada com uma incongruência, sendo-lhe ainda pedido que explicasse por que é que queria que o arguido saísse da sala – no subsequente relato feito se denotasse algum comprometimento.

De todo o modo, neste âmbito, cabe ter em consideração que os depoimentos podem ter partes em que são credíveis e partes em que não o sejam, devendo o Tribunal em tais casos ponderar e decidir em que medida e relativamente a que aspetos são merecedores de tal juízo de credibilidade, e não pura e simplesmente descartá-los em bloco.

No caso do depoimento da ofendida BB em audiência de julgamento, o que pode suscitar dúvida é a parte do mesmo em que, inovadoramente por reporte às declarações para memória futura, vem a relatar que os atos de abuso ocorridos em Portugal se iniciaram em Fevereiro de 2021.

Não pode é o Tribunal a quo, perante tal dúvida suscitada por tal parte do relato, considerar que fica posta em causa a credibilidade da totalidade dos depoimentos (as declarações para memória futura e as declarações prestadas em julgamento), nomeadamente na parte em que se referem aos demais atos de abuso ocorridos a partir de Julho/Agosto de 2021.

Ainda neste âmbito, cabe atentar, como se refere no relatório pericial de psicologia a fls. 153 dos autos, que “em teoria, a sensação de impunidade dos agressores pode levar a um empolamento das situações para que haja uma maior probabilidade de justiça, no entanto os acontecimentos relatados na perícia foram coincidentes com os relatos anteriores feitos por BB”.

Ora, como é explicitado na fundamentação da matéria de facto constante do acórdão recorrido, a ofendida BB viu-se confrontada com a postura de várias das testemunhas que pertencem ao seu núcleo familiar próximo, no sentido de não acreditarem nas suas queixas e mesmo de tentarem levá-la a ‘desistir’ do presente procedimento – nomeadamente, a sua avó HH (cf. págs. 14/15 do acórdão), a sua tia II (cf. págs. 16/18 do acórdão) e a sua própria mãe DD (cf. págs. 21/22 do acórdão).

No acórdão recorrido, na fundamentação da decisão acerca da matéria de facto, deixa-se expresso a págs. 31, que, por oposição à versão apresentada pela ofendida, a versão do arguido, que nega perentoriamente a prática dos factos, é secundada pela mãe da ofendida, que com ambos vivia e partilhava o dia a dia – ali se explicitando que o depoimento desta é o fundamento essencial da dúvida afirmada pelo Tribunal a quo.

Ora, a mãe da ofendida é a testemunha DD, esposa do arguido e mãe da ofendida, que, conforme ali é igualmente referido a págs. 20, denotou conhecimento direto de factos relevantes, como os hábitos, rotinas e horários familiares, mas não dos factos que vêm imputados ao arguido.

Como se refere mais adiante, a págs. 22, esta testemunha não entende como haveria possibilidade de o arguido praticar os factos que lhe são imputados, no número de vezes e locais indicados, face às rotinas e horários familiares, não existindo oportunidade para que os factos ocorressem como relatados na acusação.

Ou seja, a testemunha veiculou uma opinião acerca da possibilidade de os factos terem ou não ocorrido.

Porém, do respetivo depoimento em sede de audiência de julgamento, resulta que a mesma funda tal opinião em aspetos factuais que não podem levar a tal conclusão, aspetos esses relativos àqueles mesmos fatores (hábitos, rotinas e horários familiares).

E do que a testemunha a tal propósito relatou resulta confirmado o que a ofendida relatou quanto aos mesmos aspetos, os quais permitem concluir que havia vários momentos do dia-a-dia em que a ofendida poderia ficar sozinha com o arguido em casa ou em alguma divisão da casa, como pela ofendida relatado.

A testemunha DD prestou depoimento em audiência de julgamento em 13/12/2023, estando o mesmo registado na plataforma Citius (ficheiro ............................23 – sessão da manhã).

Das suas declarações, que deverão ser analisadas na sua globalidade, destacam-se as seguintes passagens:

- ao minuto 13:38 em diante:

Depois de indagada sobre as divisões da casa onde moravam na Costa Rica, refere que era um apartamento composto por dois quartos, cozinha, lavandaria, sala e casa de banho, com paredes de esferovite, e que do quarto, mesmo deitada, via a cozinha e parte da sala.

- ao minuto 16:34 em diante:

Depois de indagada sobre a altura, ainda na Costa Rica, em que tomava banho, afirmou que tomava banho e depois preparava o jantar, para que quando o marido chegasse a casa tudo estivesse pronto; sobre as divisões da casa, havia um quarto para as filhas e outro para o casal, sendo neste que estava a única televisão da casa.

- ao minuto 25:45 em diante:

Descreve como era a casa onde residiam em Portugal, de forma a perceber-se que os quartos de dormir são próximos, no mesmo piso, sendo que o dos seus pais (avós da BB) são situados noutra parte da casa, separada por um pátio interior.

- ao minuto 27:20 em diante:

Refere que em Portugal começou a trabalhar em Fevereiro de 2021, na E..., tendo um horário diurno, das 8 horas às 17 horas, sendo que o arguido só começou a trabalhar em Fevereiro ou Março de 2021 e chegava do trabalho às 7 horas da manhã, levando-a ao trabalho e voltando para casa.

- da hora 01:45:30 até 01:50:35 em diante:

Depois de perguntada, afirma que ao longo destes anos era impossível que em algum momento que fosse o arguido tivesse estado sozinho com a ofendida em algum lugar da casa, dizendo que no quarto sempre entravam e saíam todos juntos, que as idas às compras também; afirma que o seu marido e ela andam sempre juntos e têm muito boa comunicação; que estava sempre mais alguém da casa presente com a sua filha.

- da hora 01:53:15 em diante:

Acaba por referir que, já cá em Portugal, a testemunha e o arguido tomavam banho em momentos diferentes, mas depois de ambos estarem em casa.

- da hora 01:55:00 em diante:

Refere que o arguido trabalhou inicialmente como padeiro, no horário noturno, até Novembro de 2021, tendo um horário das 22 horas até às 7 horas; confirma que então ele permanecia em casa durante o dia; que começou a trabalhar noutro local (C...) em Novembro de 2021, mantendo um horário das 8 horas às 17 horas; que passou a trabalhar no L... em Dezembro de 2021, com horário das 8 horas às 17 horas; que a testemunha manteve sempre o mesmo horário; que nesse ano de 2021 nunca gozaram muitos dias de férias seguidos, tendo ela gozado férias em períodos separados de 5 dias a uma semana e que o arguido nunca gozou férias enquanto padeiro, sendo que no trabalho seguinte gozava dois dias de férias por mês.

De tais passagens do depoimento da testemunha DD resulta, pois, que a afirmação perentória da impossibilidade de a ofendida estar em casa ou em alguma divisão da casa sozinha com o arguido não encontra suporte nos dados objetivos por ela transmitidos acerca dos horários e rotinas da família – além de ser desconforme às regras da experiência para tal tipo de situação.

Como se vê da descrição feita sobre os horários de trabalho, períodos de férias e hábitos da família, ao longo do tempo em causa nos autos períodos houve em que o arguido permanecia em casa estando a testemunha a trabalhar, tiveram dias de férias em datas não coincidentes, a testemunha tomava banho estando o arguido e a filha em casa, mas fora da sua presença – tal como relatado pela ofendida. No período do Covid a ofendida permaneceu em casa em aulas on line e o arguido só trabalhava de noite.

Por outro lado, conforme é das regras da experiência comum, mesmo numa família numerosa, numa habitação composta por mais de um piso, com várias divisões e quintal e o caso com anexos da parte de trás, onde viveriam os avós maternos e se cozinhava separada da casa da frente por um pátio onde caberiam cerca de 8 carros, pelo menos, há sempre momentos em que os elementos do agregado não se encontram todos ao mesmo tempo em casa, nem sequer na mesma divisão/espaço – havendo múltiplas ocasiões em que duas pessoas possam estar num desses espaços sem que os demais se apercebam do que fazem ou aí se passa. Mormente quando inexiste motivo para que as demais pessoas estejam particularmente vigilantes das interações entre aqueles.

Face ao exposto, conclui-se que as apontadas incongruências dos relatos produzidos pela ofendida BB não são de molde a retirar credibilidade à parte de tais depoimentos que estão em relação com os factos que na acusação vinham imputados ao arguido sob os parágrafos #13 a #19 da acusação e correspondentes aos pontos B. a H. da matéria de facto não provada.

No que toca á invocada assertividade da ofendida relativamente ao seu discurso, não pode ignorar-se que estamos perante uma jovem já adulta que relata o trauma que alega ter passado e com competência de comunicabilidade como se pôde constar da sua audição, pelo que não se vê que tal possa toldar a sua credibilidade

Mais se conclui que a dúvida do Tribunal a quo suscitada pelo depoimento da testemunha DD, mãe da ofendida e mulher do arguido, é desprovida da fundamento objetivo, pois tal testemunha veicula uma mera opinião sobre a impossibilidade de ocorrência dos factos que se encontra em contradição com os factos que a própria relatou e relativos aos horários, hábitos e rotinas diárias do agregado familiar.

Acresce ainda que esta testemunha nunca acreditou na versão da filha e nunca fez um esforço sério para tal, o que também, diz a literatura a este respeito, resulta muitas vezes acontecer.

Assim sendo, entende-se que o Tribunal a quo, com base na prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a acima transcrita (declarações da ofendida BB, seja em declarações para memória futura, seja em audiência de julgamento, relatório de perícia psicológica e esclarecimentos prestados pela Sra. Perita em audiência de julgamento), decidiu contra as regras da experiência comum e não devia ter duvidado e deveria ter dado como provados pelo menos os seguintes factos:

- Em Junho de 2021, o arguido numa determinada ocasião em que ambos se encontravam no quarto dele, agarrou-a, ao que aquela reagiu, empurrando-o e fugindo para o quarto dela;

- O arguido foi atrás da BB e, querendo esta fechar a porta do seu quarto, o arguido impediu-a, ali entrando;

- Ato contínuo, o arguido agarrou-a pelos braços, tendo a BB dito: “Se não me largares, eu grito. Eu não quero mais”;

- Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2021, em data não apurada, mas situada entre final de Agosto de 2021 e a primeira semana de Setembro de 2021, o arguido foi ter com aquela e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto;

- Estando sozinha com o arguido, a BB acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis ereto na vagina daquela.

- A partir dessa altura e até meados de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve pelo menos por mais quinze vezes relações sexuais de cópula completa com a BB;

- Em tais relações sexuais, que ocorriam quase sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB

*

b) No que se refere aos factos atinentes à relação familiar e de confiança existente entre arguido e ofendida e ao estado subjetivo em que o arguido agiu.

Cabe em primeiro lugar notar, constar dos autos prova, aliás indicada na acusação, de que o arguido e a mãe da ofendida, DD, casaram um com o outro em 02/09/2020 – cf. assento de nascimento e seu averbamento constantes de fls. 17 a 19 dos autos.

Como se trata de documento autêntico e cuja situação matrimonial foi até confirmada pelo arguido e DD e insuscetível de ser colocada em questão, prescinde-se do cumprimento do art. 358º, n º 1 do CPP e fica a constar do elenco dos factos provados, sendo certo que mesmo a não constar não deixaria de se ter em conta o papel que o arguido desempenhava no seio da família enquanto padrasto, companheiro no exercício fáctico das responsabilidades parentais.

Como acima referido e na sequência do que se expendeu no anterior ponto(errado julgamento dos pontos B. a H. da matéria de facto não provada), consideram-se também erradamente julgados como não provados os pontos I. a K. da matéria de facto não provada – correspondentes aos factos descritos nos parágrafos #20 a #22 da acusação deduzida nos autos.

São tais factos do seguinte teor:

“I. Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha apenas 16 e posteriormente 17 anos de idade e que, como tal, carecia completamente de capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual.

J. O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha discernimento para o desvalor dos atos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade e ascendência económica, ameaçando aquela e os restantes membros da família, para conseguir os seus intentos.

K. Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo”.

Relativamente ao estado subjetivo em que o arguido agiu (conhecimento das circunstâncias das suas ações, consequências dos seus atos e vontade de os praticar), como é natural, mormente porque o arguido negou a prática dos factos, não existe prova direta da correspondente factualidade.

Pressupondo a prova dos factos propugnada no ponto antecedente (A. a) – relativos aos atos de abuso sexual), estamos perante uma situação em que o arguido tem as condutas objetivas que se entende deverem ser dadas como provadas.

Inexiste nos autos qualquer elemento de prova que sequer leve a suspeitar que o arguido não está dotado das capacidades mentais e cognitivas adequadas a perceber as circunstâncias em que age e a determinar-se em conformidade com o conhecimento que tem das mesmas.

Como refere o Tribunal a quo no acórdão recorrido, na fundamentação da matéria de facto e a propósito das declarações prestadas pelo arguido, o mesmo depôs de modo escorreito, sendo capaz de expor a sua posição sobre os factos e descrever, além do mais, as relações familiares, a sua situação pessoal, o seu percurso de vida e as rotinas do dia-a-dia.

No ponto 5. da matéria de facto dada como provada consta, entre o mais, que o arguido é pessoa com integração familiar e laboral, tem o 9º ano de escolaridade, apresenta uma trajetória profissional em várias áreas, apresenta capacidade de reflexão e identifica factos da mesma natureza dos imputados como censuráveis e a carecer de intervenção do sistema de justiça.

Ora, dizem-nos as regras da lógica e da experiência que se uma pessoa, na posse das suas capacidades cognitivas e de decisão, age de determinada forma, dentro de certas circunstâncias e com resultados por si domináveis, é porque quer agir dessa forma, nessas circunstâncias e pelo menos admite o resultado como consequência provável da sua conduta.

Assim sendo, seja partindo das premissas dadas como assentes pelo Tribunal a quo, seja partindo dos factos tanto quanto á factualidade objetiva, como quanto ao estado subjetivo e às capacidades do arguido, acima expostos – nomeadamente, dando como provado que o mesmo teve as condutas de abuso sexual acima referidas – forçoso será concluir:

- que o arguido agiu com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, que sabia que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade, que sabia que a ofendida carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, bem como que sabia que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da ofendida na esfera sexual;

- que o arguido sabia que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos atos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- que em todas as situações acima descritas, o arguido agiu de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.»

(…)

Tem-se por base o que a ofendida BB, além do mais nas declarações para memória futura prestadas em 04/11/2022, constantes da plataforma Citius (ficheiro ............................28), referiu-se à relação familiar com o arguido, entre o mais, nos seguintes passos:

- ao minuto 03:50 em diante:

Refere que o arguido casou com a sua mãe em 2020, depois de uma relação de namoro desde 2018 e de terem ido viver todos juntos para a Costa Rica em Dezembro de 2019;

Tal está em conformidade com o já referido assento de nascimento junto a fls. 17 a 19, do qual resulta averbado tal casamento ocorrido em 02/09/2020;

- ao minuto 11:30 em diante:

Esclarece que o arguido foi para a Costa Rica em Agosto de 2019 e a ofendida, a sua mãe e a irmã juntaram-se-lhe em Dezembro do mesmo ano, indo residir todos juntos para um apartamento, ali permanecendo cerca de 9 meses;

- minuto 33:50 em diante:

Explica como vieram da Costa Rica para Portugal, indo residir para uma casa de propriedade do avô na ..., em Outubro de 2020, sendo que nessa altura vieram apenas a ofendida, a sua mãe e a sua irmã.

- minuto 38:20 em diante:

Esclarece que o arguido se lhes juntou em Janeiro de 2020.

- minuto 39:44 em diante

Esclarece que o arguido, em Portugal, ficou a morar na mesma casa que a ofendida, a sua mãe e a sua irmã.

Nessas declarações, a ofendida igualmente descreve a forma como via o arguido, quer a posição deste no agregado familiar, quer na sua relação em particular consigo:

- minuto 28:45 em diante:

Depois de indagada o que sentia, nomeadamente em relação ao arguido, BB refere: “Ao início foi como me afastei, não queria nada dele, mas depois ele começou a procurar. E depois de algum tempo eu acho que comecei a gostar.

Depois de um tempo que isso começou eu fiquei coiso convencida e comecei a gostar. E houve uma época em que eu via o AA tanto como homem como como pai”;

Também o depoimento da testemunha DD em audiência de julgamento de 13/12/2023, se reporta a esta matéria;

Na sessão da manhã (registado na plataforma Citius: ficheiro ............................23), indagada sobre a relação do arguido com as suas filhas, referiu que ele sempre a ajudava muito com as meninas, sendo todas as decisões relativas às mesmas combinadas entre os dois – ao minuto 31:28 (da sessão da manhã) em diante;

Na sessão da tarde (registado na plataforma Citius: ficheiro ..........................23), esclareceu mais aspetos de tal relação – nomeadamente, ao minuto 27:31 em diante (da sessão da tarde), depondo sobre a relação do arguido com a ofendida BB referiu que era uma relação semelhante à de pai e filha; que tinham uma boa relação; que faziam várias atividades juntos, em família.

Analisados tais elementos conjugadamente, à luz das regras da experiência e da normalidade para idêntico tipo de situação, e visto o que ficou dado como provado nos pontos 2. a 3. e 5. (na parte relativa às condições pessoais e sociais) dos factos dados como provado, forçoso será concluir que, de facto, o arguido assumia naquele agregado familiar e assim também em relação à ofendida BB, a posição de figura paterna e que por via disso a ofendida nele depositava a sua confiança, bem como que enquanto figura paterna o mesmo era em relação às filhas menores da DD uma figura de autoridade.

Assim sendo, entende-se que o Tribunal a quo, com base na prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a acima transcrita (declarações da ofendida BB e declarações prestadas pela testemunha DD) deveria ter dado como provados pelo menos os seguintes factos:

- Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade e que, como tal, carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual;

- O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.

Por fim e porque decorre do supra exposto deve igualmente dar-se como provado que, e relativamente ao pedido de indemnização civil:

L. Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade, o que ainda hoje se mantêm.

M. Em virtude da conduta do arguido, a ofendida apresenta dificuldades ou alterações de comportamento, mostrando-se emocionalmente instável, assim como evidencia sintomatologia ansiogena, verbalizando sentimentos de culpa por não ter conseguido impedir a continuidade da situação abusiva.

N. Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu naturalmente danos ao nível do ajustamento psicológico, evidenciando, além da ansiedade, perturbação e stress, que lhe despoletam medo e estados de nervos, de nojo e de choque, além da perturbação no exercício da sua sexualidade».

O TRP demonstrou, no seu itinerário decisório, saber efetuar um exame crítico abrangente, atento, escrupuloso e sustentado da prova produzida nos autos para reverter a decisão (absolutória) de 1.ª Instância e considerar provados os factos que conduziram à condenação do arguido-recorrente pelos dezasseis crimes de abuso sexual de menor dependente, agravado, não resultando que a tomada de posição do TRP, enquanto tribunal de recurso, sido uma mera opção arbitrária, caprichosa ou imotivada.

Com efeito, o Tribunal da Relação do Porto procedeu à cuidadosa análise dos diversos elementos de prova existentes e produzidos nos autos, mormente em sede de audiência de julgamento – declarações do arguido e da vítima, declarações da Senhora Perita Psicóloga que elaborou a perícia de Psicologia Forense da vítima, das diversas testemunhas, entre as quais a mãe, os avós maternos, a tia materna da vítima, como veremos infra – de uma forma compatível com as regras da experiência que se aplicam a casos idênticos, concluindo por um juízo de maior credibilidade do depoimento da ofendida do que aquele que fora realizado pelo tribunal de 1.ª Instância, o qual, de resto, também lhe atribui credibilidade, “objetividade” e “assertividade”.

Só por isso se logrou inverter a interpretação e valoração probatória feitas em 1.ª Instância, que, por intercessão do princípio in dubio pro reo, conduziu à absolvição do arguido. E fê-lo em moldes perfeitamente aceitáveis, acolhendo a coerência e credibilidade do(s) depoimento(s) da vítima, cuja aparente falta de consistência o tribunal de 1.ª Instância não conseguiu suplantar, com base numa conceção (mais) restritiva do alcance do princípio in dubio pro reo.

O arguido sufraga, no seu recurso, uma conceção do in dubio pro reo à outrance.

Naquilo que é, em grande medida, um esforço de deteção da mentira, não devemos ignorar que o arguido não se encontra, em homenagem ao princípio da não autoincriminação declarativa ou nemo tenetur in se ipsum accusare, obrigado a declarar e, declarando, fazê-lo com verdade.

A testemunha – qualidade em que a vítima também intervém processualmente – está obrigada a fazê-lo (artigos 132.º, n.º 1, alíneas b) e d) e 145.º, n.º 3, do CPP).

Neste sentido, mesmo que se admita a inconclusividade do depoimento das restantes testemunhas – no sentido de uma indicação da culpabilidade ou da inocência do arguido –, sobrar-nos-ia o depoimento da vítima, em contraponto ao teor das declarações do arguido, que não reconheceu a prática de qualquer facto, alegando, sobretudo, questões de impossibilidade prática da sua verificação (em termos temporais e de localização das divisões da casa onde residiam), além de invocar uma suposta “despeita” da vítima por arguido e mulher (mãe da vítima, DD) discordarem da sua recente relação amorosa com um homem mais velho (de 41 anos), que mantinha aquando do julgamento.

No mais, nenhum elemento aponta decisivamente contra a falta de consistência ou credibilidade do relato dos factos feito pela vítima BB. A circunstância de ser um relato detalhado, com pormenores que, no essencial, não mudam nos diversos momentos processuais em que são produzidos, reforçam essa conclusão de consistência e de credibilização. Nenhum elemento probatório – além da negação do arguido – coloca em causa a credibilidade do relato.

O teor do relatório de Perícia de Psicologia Forense, bem como das declarações complementares da Senhora Perita que a realizou e subscreve o respetivo relatório, são inteiramente convergentes no sentido de não retirar credibilidade ao depoimento da vítima, antes pelo contrário, reforçando-a.

Outro fator a que se deve atribuir relevo para credibilizar o relato da vítima respeita ao modo pelo qual a mesma optou em dar notícia da situação dos abusos que sofria, comunicando-os ao seu pai – pessoa de quem estava relativamente distante, quer geográfica quer relacionalmente –, o qual, ciente do relato da BB, e admitindo a sua verosimilhança, preferiu dar do mesmo conhecimento à avó, em detrimento da própria mãe.

O opção de valoração probatória tomada pelo TRP, em sentido contrário ao do tribunal de 1.ª Instância, mostra-se, por isso, uma opção não apenas mais aceitável, mas mais fundamentada, sendo evidente o esforço lógico-argumentativo, no sentido de superar a “dúvida razoável”. Movendo-se na margem de densificação de tal “dúvida”, chegou a um resultado distinto da conclusão do tribunal de 1.ª Instância, concluindo pela credibilidade da denúncia – processualmente reiterada pela própria vítima – e do relato dos factos que a vítima produziu em momentos processuais diferenciados. E fê-lo, não isoladamente ou de forma segmentada, mas concatenando todos os elementos probatórios disponíveis produzidos, em que avulta a versão dos factos trazida pela vítima e o teor do relatório pericial de Psicologia Forense e esclarecimentos da Senhora Perita Psicóloga, os quais não podem deixar de assumir relevante significado. São, a este propósito, ilustrativos de tal sentido, os seguintes excertos de tal relatório:

«(…)

No que diz respeito aos factos relatados, não existem discrepâncias entre os relatos constantes nos autos e na avaliação pericial. De forma a responder a este quesito procedemos a uma análise qualitativa em relação aos conteúdos produzidos por BB, tendo em conta os critérios que a literatura cientifica refere como indicadores de maior credibilidade. Assim, verificou-se a existência de coerência nas descrições, cuja verbalização foi espontânea (as questões são colocadas de forma aberta, não diretiva e não sugestiva). BB consegue contextualizar as alegadas situações de abuso, referindo a idade em que estas tiveram início, as circunstâncias em que aconteceram e os locais. Menciona detalhes específicos quando relata episódios e também detalhes supérfluos (que são pouco comuns em situação de falsas declarações). Descreve interações e verbalizações entre ela e o alegado agressor, assim como menciona o seu estado mental.

Por último é importante referir à ambivalência de sentimentos face ao agressor, situação que é frequente em situações de abuso intrafamiliar.

Face ao exposto, somos da opinião que o relato produzido por BB contempla um conjunto de critérios que a literatura relaciona com um aumento da credibilidade.»

Nem a metodologia nem a objetividade do relatório pericial em apreço foram colocados em causa.

O TRP adotou uma grelha de avaliação probatória que, tendo acolhido os argumentos do recurso do Ministério Público junto do tribunal de 1.ª Instância, não nos merece censura, sendo certo que demonstrou ter efetuado em exercício de reapreciação e reinterpretação da prova de forma ampla e conjugada, de acordo com as regras de experiência e da sã racionalidade, não sendo legítimo dela discordar.

Não temos, pelo exposto, motivos que justifiquem a inaceitabilidade do juízo do tribunal recorrido, o qual, sendo agora confirmado, implica a improcedência, nesta parte, do recurso do arguido.

16.

ii. Nulidade por omissão de pronúncia do acórdão recorrido, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por falta de individualização de cada um dos (16) crimes que considerou provados – Conclusões 37. a 42.;

O recorrente ensaia este segmento argumentativo do seu recurso não sem algum grau de ambiguidade e de imprecisão.

O arguido sugere que:

«(…) o Tribunal ao condenar o arguido por teria de dar como provados momentos concretos de abuso, e não enveredar por uma imputação genérica não evidenciada no número de crimes pelos quais o arguido foi condenado.

39. O Tribunal deu como provados 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 172º, nº1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, tendo como único critério de aferição as declarações da ofendida.

40. O raciocínio do Tribunal considerou justo e adequado, ao revés de se ater com dados concretos e que foram relatados de forma pormenorizada pela arguida, limitou-se a um raciocínio ilógico e imotivado, no sentido de que – supostamente mais favorável ao arguido – teriam ocorrido de Setembro de 2021 até Fevereiro de 2022 dezasseis episódios de abuso, equivalendo, essencialmente, a três episódios por mês até Janeiro e uma vez em fevereiro;

41. Por conseguinte, revela-se inequívoco que a decisão recorrenda sempre será nula por omissão de pronúncia relativamente à factualidade típica que se exige verificada para imputação dos crimes em apreço, pois, para além de estarmos perante crimes específicos, estamos perante crimes de execução vinculada, que importam a verificação estrita de todos os elementos que o compõem, no que tange ao modus operandi inscrito na norma;

42. Posto isto, não sendo possível individualizar cada um dos crimes imputados ao arguido, não tendo, por conseguinte, o Tribunal expendido suficientemente sobre os elementos subjectivos e objectivos do tipo incriminador para cada um dos crimes alegadamente cometidos, impõe-se a (para já nem falar na absolvição do arguido) declaração de nulidade da decisão por omissão de pronuncia, nos termos do disposto no art.º 379.º, al. c) do CPPenal;»

Antes de mais, importa, preambularmente, proceder a uma retificação no que respeita a uma discrepância notória resultante da fundamentação do acórdão recorrido, que não se mostra inteiramente concordante com o dispositivo. Na verdade, ao longo da fundamentação do acórdão recorrido, alude-se, por vezes, a «quinze» (15) crimes de abuso sexual de menor dependente, enquanto na decisão final se fixa tal número em «dezasseis» (16) crimes de tal tipo.

Trata-se de evidente lapso de escrita, que importará retificar, sobre o qual não pode subsistir qualquer dúvida.

Em primeiro lugar, no recurso do Ministério Público do acórdão de 1.ª Instância, foi expressamente formulado o pedido de alteração do acórdão recorrido «(…) no sentido de condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, na forma agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171º, nºs 1 e 2, 172º, nº 1, al. b), e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal.»

A economia argumentativa do acórdão recorrido é integralmente no sentido de considerar provados dezasseis – e não quinze – crimes praticados pelo arguido, número que o recorrente não questiona, apesar de defender a manutenção do decidido no acórdão de 1.ª Instância, acarretando sua absolvição. É o que resulta, não só da conclusão 40.ª da sua motivação de recurso, como do ponto III. da sua motivação «Da nulidade por omissão de pronúncia».

O Tribunal escreveu coisa diversa daquela que queria escrever, cometendo apenas um erro que se materializou numa divergência entre a sua vontade real e aquilo que escreveu no acórdão.

Ora, como determina o artigo 249.º do Cód. Civil, “O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta.”

Como referem Rui Soares Pereira e Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário, «Qualquer erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial (Ia cui eliminazione non comporta una modificazione essenziale deli' atto, como também prevê o artigo 130.°, n.° 1, do CPP Italiano), incluindo imprecisões, erros de escrita e de cálculo, lapsos ou incorrecções na descrição dos factos provados e não provados, irrelevantes para a causa e, por isso, desprovidos da relevância própria dos vícios do artigo 410.°, n.º 2, como, por exemplo, a indicação de pena no dispositivo contrária à pena que consta da fundamentação (acórdão do STJ, de 27.2.1992, in CJ, XVII, 1, 49), a confusão de nomes ou de nacionalidades de pessoas físicas (acórdão do STJ, de 11.3.1993, in CJ, Acs. do STJ, 1, 1, 212, e acórdão do STJ, de 28.1 .2004, in CJ, Acs. do STJ, XII, 1, 183), e a "indicação da matéria provada em que se refere ter sido de 20 dias o tempo de doença sofrido pela assistente" (acórdão do STJ, de 3.7 .91, in BMJ, 409, 598) . Dito de outro modo, só cabem no artigo 380.° os erros e contradições que não tenham relevância para caber no artigo 410.°, n.° 2.

(…)

Por exemplo, é inadmissível a eliminação de um erro que importe uma “alteração da qualificação jurídica" encapotada (CLAUS ROXIN / HANS ACHENBACH, 2006: 354, com menção da jurisprudência do Bundesgerichtshof nesse sentido). O erro pode ser corrigido se se tratar da correcção de um «erro de escrita» ou de um «erro material» e não de um erro cuja eliminação importe apreciação do mérito da causa.» (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, vol. II, UCP Editora, 5.ª edição atualizada, 2023, anotação ao artº 380º, anotações 2 h e 3, pp. 496 e 497).

Em síntese, e conforme também decidiu este Supremo Tribunal, em acórdão de 13-02-2019, “I - À correção de erros de escrita ou de cálculo ou de inexatidões devidas a omissão ou lapso manifesto procede-se, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do tribunal que proferiu a sentença. Se desta foi interposto recurso que já subiu, cabe ao tribunal superior proceder à rectificação.

II - Ocorrendo um erro de aritmética em que incorreu o acórdão recorrido na soma das penas parcelares englobadas nos 2.º e 3.º blocos dos cúmulos jurídicos efectuados nestes autos, tal erro tem de ser reparado e este STJ, ao abrigo do disposto no art. 380.º, n.º 2, do CPP, pode e deve proceder à necessária rectificação.” (https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4278f59dc7a33c03802583a0004d5efa?OpenDocument ).

Tal implicará, ao abrigo do disposto no art. 380.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3, do CPP, a correção das expressões «Por cada um dos 15 crimes (…)», substituindo-a por «Por cada um dos 16 crimes (…)», uma vez que é percetível que resulta do próprio contexto do acórdão recorrido que se trata de lapsos de escrita e não importam modificação essencial da decisão.

De resto, num plano de operação de determinação da pena única, a discrepância poderá não ter qualquer efeito prático, uma vez que a moldura do cúmulo teria sempre como limite máximo os 25 anos de prisão, independentemente de se tratar de 15 crimes – caso em que o limite máximo das penas seria de 45 anos de prisão – ou de 16 crimes – caso em que o limite máximo ascende a 48 anos de prisão –, ou seja, seria sempre reduzido para o máximo legal, ao abrigo do disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP.

Na sequência do que antes se exarou, no tocante à confirmação do juízo de culpabilidade do arguido, o tribunal recorrido não permaneceu em estado de dúvida quanto à verificação dos pressupostos de que dependem a demonstração dos ilícitos típicos pelos quais o arguido foi condenado.

O recorrente revela compreender, como aliás demonstra na sua motivação e na conclusão 40.ª do seu recurso, que o raciocínio do tribunal a quo foi no sentido de, pelo menos, além do primeiro ato de abuso sexual (entre finais de agosto e início de setembro de 2021), considerar provada a prática de três atos de abuso sexual em cada um dos meses de setembro de 2021 até janeiro de 2022 e um ato de abuso sexual em fevereiro de 2022.

Ora, de acordo com o artigo 379.º do CPP:

«1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º

3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, excepto em caso de impossibilidade.» (negrito nosso).

Omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixou de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, seja esta questão suscitada, no recurso, pelos sujeitos processuais, seja a mesma de conhecimento oficioso.

É de difícil concretização o conceito de «questão que o tribunal devia apreciar». Porém a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é unânime no sentido de que:

«Só existe omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões cujo conhecimento lhe era imposto por lei apreciar ou que lhe tenham sido submetidas pelos sujeitos processuais, sendo que, quanto à matéria submetida pelos sujeitos processuais, a nulidade só ocorre quando não há pronúncia sobre as questões, e já não sobre os motivos ou razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão[20];” Ou seja, “As questões a decidir não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes: a estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido. Não ocorre a nulidade, por omissão de pronúncia, se não forem consideradas, na sentença, linhas de fundamentação jurídica que as partes hajam invocado» (cfr., por todos, Acórdão do STJ de 09-12-2014; P n.º 75/07.1TBCBT.G1.S1 - 1.ª Secção, acessível in www.stj.pt/jurisprudencia/sumários de acórdão/ Civil - Ano de 2014).

«A omissão de pronúncia circunscreve-se à não apreciação de questões em sentido técnico, questões essas que o tribunal tenha o dever de conhecer com vista à decisão da causa e de que não haja conhecido, apesar de não estarem prejudicadas pelo tratamento dado a outras» (acórdão do STJ de 23-04-2015; P n.º 2651/07.3TBSXL.L1.S1 - 7.ª Secção, acessível in www.stj.pt/jurisprudencia/sumários de acórdão/ Civil - Ano de 2015).

Também de difícil concretização e de especial relevância é a distinção entre «omissão de pronúncia sobre certa questão» e «erro de julgamento sobre determinada questão».

Quanto a esta matéria invoca-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 14-05-2015, proferido no processo n.º 405/13.7PHLRS.S1, 5.ª Secção, ao referir: «São coisas distintas omitir pronúncia sobre uma questão, que consiste em ela não ser, pura e simplesmente, objecto de qualquer ponderação, e tomar conhecimento da questão, decidindo-a mal. Na primeira hipótese verifica-se a nulidade do 1.º segmento da al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, na segunda hipótese ocorre um erro de julgamento». Neste mesmo sentido, o acórdão do STJ de 16-05-2012, proferido no processo n.º 30/09.7GCCLD.L1.S1 - 3.ª Secção: «Para haver omissão de pronúncia era necessário que perante questão suscitada pelo recorrente, o tribunal de recurso não se pronunciasse sobre ela, ao julgar o recurso».

Questão é o dissídio ou problema concreto a decidir que diretamente contendam com a substanciação da causa ou da lide e da pretensão processual em concreto, e só existe omissão de pronúncia quando não se pondera a questão, mas já não quando se faz uma errada ponderação da questão.

Conforme fundamentação que se expendeu antecedentemente, o TRP no seu acórdão, recorrido, reinterpretando o sentido da prova (essencialmente de natureza pessoal) produzida em julgamento, inverteu as conclusões probatórias do tribunal de 1.ª Instância, tendo dado como provada matéria factual que este tribunal dera como não provada, a saber:

«- Tendo o namoro da BB terminado em Julho de 2021, em data não apurada, mas situada entre final de Agosto de 2021 e a primeira semana de Setembro de 2021, o arguido foi ter com aquela e começou a tocar-lhe no corpo, tendo-lhe em seguida dito para irem para o quarto;

- Estando sozinha com o arguido, a BB acedeu ao seu pedido, acompanhando-o ao quarto, ali tendo depois mantido relação sexual de cópula completa, introduzindo o arguido o seu pénis ereto na vagina daquela.

- A partir dessa altura e até meados de Fevereiro de 2022, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, o arguido manteve pelo menos por mais quinze vezes relações sexuais de cópula completa com a BB;

- Em tais relações sexuais, que ocorriam quase sempre no quarto do casal, por vezes o arguido usava preservativo e noutras ocasiões não, sendo que destas vezes ejaculava fora da vagina da BB.» (negrito nosso).

Discorrendo sobre a quantificação das condutas, o TRP considerou que:

« Ora, no caso concreto, o arguido teve relações vaginais completas com a ofendida, à data dos eventos maior de 17 anos de idade pelo que dúvidas não há que praticou ato sexual de relevo, tendo presente o que dispõe o nº 2 do mesmo artigo 171º (aplicável à situação dos autos face ao disposto no artigo 172º, nº 1) ao prever que «2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos».

Não restam dúvidas que nos crimes tipificados no capítulo V do nosso Código Penal não se encontra qualquer referência a qualquer conceito de índole moral. Usando os ensinamentos de JOSÉ MOURAZ LOPES (in Os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual no Código Penal, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 16-17) «O direito penal, tem de manter distâncias em relação aos programas de ética sexual, qualquer que seja a sua orientação. (…) Importa não esquecer que é a liberdade sexual de um individuo que está em causa e que é tutelada e não a liberdade sexual de uma comunidade». Neste contexto, a lei deve ser interpretada em sentido absolutamente objetivo e, quando possível, de acordo com os critérios médicos aplicáveis.

Por fim, no caso dos autos o arguido vem acusado pelo crime na sua modalidade agravada, nos termos do disposto no artigo 177º, nº 1 alínea b), de acordo com o qual «1- As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: (…) b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, (…) e o crime for praticado com aproveitamento desta relação».

«A abordagem da questão tem de começar por apurar o que deve entender-se por “relação familiar” para este efeito.

É patente que, com a referida alteração, teve-se em vista alargar o âmbito da alínea a) do mesmo n.º 1 do artigo 177.º, passando a ser abrangidos pela alínea b) outros parentes de grau mais afastado do que os parentes em segundo grau a que alude aquela alínea a).

(…)

A razão de ser (a teleologia) da disposição normativa agravante é a mesma, quer na hipótese da alínea a), quer na previsão da alínea b): a existência de uma proximidade relacional entre o agente e a vítima que acentua a carga de ilicitude da conduta punível (assim, Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal – Parte Geral e Especial, com Notas e Comentários”, 2.ª edição, p. 782).

Nas situações de violência sexual infantil intra familiar, a conduta do agente é particularmente desvaliosa porque, quando era suposto que à criança fosse proporcionado um ambiente protector e afectivo (e ela confia que no ambiente familiar está segura e vai receber amor e carinho), ele trai essa confiança, violentando-a com o abuso sexual que comete sobre ela.

A essa violência, que deixa marcas indeléveis na criança, acresce a tentativa de ocultação, fenómeno que pode ser ostensivo ou manifestar-se de forma mais ou menos velada, mas que se traduz sempre em pressões, chantagens e pode chegar mesmo à ameaça física e/ou psicológica, incutindo-lhe medo e fazendo-a sentir-se culpada pelas possíveis consequências da sua denúncia.

Os possíveis agentes activos dessas situações de violência sexual intra familiar não se confinam aos parentes e afins (até ao 2.º grau) a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal. Situações em que o agressor é um tio e ofendido(a) um(a) sobrinho(a) são recorrentes e o legislador não podia deixar de ter em conta essa realidade» - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11.05.2016, relator NETO MOURA, processo 2334/14.8JAPRT.P1, in www.dgsi.pt.

No que diz respeito ao tipo subjetivo de ilícito, há que ter em consideração que se trata de um crime doloso. Como tal, passível de ser punido sob qualquer das formas daquele: direto, necessário ou eventual, atento o disposto no artigo 14.º do Código Penal.

O Arguido conhecia os factos dados por provados factos e agiu da forma porque o fez, usando a confiança e sua proximidade enquanto padrasto, sabendo que cometia factos punidos criminalmente.

Não ocorrem, enfim, no caso concreto quaisquer circunstâncias que justifiquem ter o arguido agido pela forma como o fez, nem que excluam a sua culpa.

Ele atuou com consciência de que a sua conduta não lhe era permitida por lei, devendo o seu procedimento ser objeto de juízo de censura penal por ter agido como agiu.

Como tal, cometeu pelo menos 15 crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravados, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 14º, 26º, 1ª parte, 171º, n.º 2, 172º, n º 1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, na medida em que a factualidade também permite subsumir a conduta do Arguido a esta última previsão normativa, porquanto compreendida no âmbito da relação familiar e de coabitação estabelecida com a vítima, a qual proporcionou a sua ocorrência.

(…)

Por outro lado, entende-se que o Arguido, estando apurado o circunstancialismo temporal dos atos por si cometidos, incorrerá na prática de tantos crimes quanto os atos praticados. Como tal, afasta-se a punição ao nível da configuração dos apontados crimes como “exauridos”, ou de “trato sucessivo”, cfr. Ac. STJ, proc. 19/15.7JAPDL.S1 de 06.04.16. in www.dgsi.pt.»

Pode, por isso, concluir-se legitimamente que o tribunal recorrido não quantificou em «dezasseis» as vezes que o arguido abusou sexualmente da BB. O tribunal recorrido convenceu-se de que, pelo menos por dezasseis vezes, o arguido abusou da BB.

E o arguido evidencia ter entendido o raciocínio do tribunal recorrido, quer na motivação, quer na conclusão 40.ª do seu recurso.

Assim, não só o tribunal recorrido não omitiu pronúncia a tal propósito, como o arguido entendeu perfeitamente o juízo lógico e o raciocínio motivado que aquele empreendeu para chegar a tal conclusão – do número (mínimo) de factos ilícitos típicos –, aliás concordante com a perspetiva do Ministério Público.

A discordância, por parte do arguido, das conclusões a que o tribunal chegou, não podem, todavia, confundir-se com o vício de omissão de pronúncia.

A indefinição do número de crimes não poderia colocar o tribunal recorrido no impasse de reconhecer a demonstração de um número mínimo de factos ilícitos típicos de abuso sexual de menor dependente, agravado, que, conjugado com a existência de uma só vítima teria como consequência a consideração do concurso efetivo de crimes, afastando a construção de uma unidade criminosa ou a existência de um crime de trato sucessivo.

Recordemos, de resto, que o arguido foi acusado da prática, em autoria material e em concurso real, no período em causa (finais de agosto de 2021 e meados de fevereiro de 2022), de 31 (trinta e um) crimes de abuso sexual de menor dependente, agravado, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

Do acórdão recorrido, pode compreender-se o raciocínio subjacente à redução do número de vezes que se julgou verificada a consumação das dezasseis condutas plúrimas e sucessivas típicas.

Sempre se dirá, porém, que entendemos que outra não poderia ter sido a decisão do tribunal recorrido, no que respeita à qualificação dos factos como concurso efetivo de crimes, e não como um crime (único) continuado de trato sucessivo, distinguindo-se conforme seja, ou não, possível determinar com exatidão os comportamentos ilícitos típicos.

Como se disse, entre outros, no Ac. do STJ de 14-03-2013 (P. 294/10.3JAPRT.P1.S2):

«(…) O art.º 30.º , do CP , regulando a figura do crime continuado, reconduz a uma unidade de infracções uma pluralidade de crimes ou a efectivação por vezes várias da mesma acção típica, protegendo primordialmente o mesmo bem jurídico, consumada por um modo similar de execução, no âmbito da solicitação de uma mesma situação, exterior ao agente, em termos de, ao nível de censura, esta se mostrar substancialmente reduzida e tem como antecedente histórico o art.º 33.º, do Projecto de Revisão do CP , tal como o autor do Projecto, o Prof. Eduardo Correia , o redigiu ( cfr. Actas da Comissão Revisora do Código Penal, 1965, I, vol., pág. 212) e foi votado na 13.ª Sessão, em 8 de Fevereiro de 1964 .

À Comissão foi presente a proposta de Maia Gonçalves no sentido de ficar a constar um § único pois “ convinha explicitar que a continuação não se verifica, porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima “, à semelhança do CP brasileiro , aditamento que foi credenciado pelo autor do Projecto ( cfr.op. cit, pág. 213), embora sem necessidade de consagração explícita no texto legal, uma vez que, disse, a conclusão que o § contém já se retira da expressão “ mesmo bem jurídico”.

Essa discussão não mereceu conversão na lei por se entender que o legislador reputou tal desnecessário, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado.

Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, da natureza das coisas, assim comenta Maia Gonçalves, in CP anotado ao preceito citado.

A continuação criminosa está excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.

Sendo bens eminentemente pessoais o conceito está arredado por tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa serem distintos com relação a cada acto individual sem se verificar a renúncia a valorações separadas, atenta a não identidade de bens jurídicos – cfr. Tratado de Derecho Penal , I , Parte Generale, I, ed. Bosh, pág. 652 e segs e Acs. deste STJ, de 10.9.2007, in CJ , STJ , Ano XV, TIII, 193 e de 19.4.2006, in CJ, STJ, Ano XIV, TII, 169.

A Lei n.º 59/2007, de 4/9, ao fim e ao cabo, consagrou aquela proposta, antes rejeitada, aditando o n.º 3, ao excluir a figura do crime continuado “contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima”.

A alteração deixou intacto o conceito jurídico e doutrinário de crime continuado, nada inovando ou suprimindo nesse domínio, nada dando a conhecer que o não fosse, mas não pode esquecer-se, contudo, o aditamento introduzido, excluindo a pluralidade de infracções no caso de uma só vítima ser suporte pessoal de plúrima violação.

Uma interpretação de tal Lei tomada ao pé do seu elemento gramatical, no sentido de a violação plúrima da mesma pessoa, quanto ao mesmo bem jurídico pessoal, era à total evidência chocante, conduzindo a resultados absolutamente inaceitáveis, sobretudo em se tratando de abusos sexuais de crianças, que são vítimas de quem exerce o poder paternal, tutelar, institucional, a curatela, ou em caso de dependência económica, laboral ou grave anomalia psíquica, em que se não dispensa um maior vigor exigência e tutela penal .

Por isso se impunha uma interpretação correctiva do legislador, que disse seguramente mais do que devia, atalhar-lhe o pensamento, interpretação em contrário que seria, até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no art.º 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais em ofensa ao disposto no art.º 18.º, da CRP , e muito especialmente o art.º 69.º do texto fundamental, proclamando o direito à protecção da criança, pela sociedade, Estado, de todas as formas de abandono, discriminação, opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e instituições.

Reconhecendo-se a frequência com que são vítimas de atentados sexuais as crianças e adolescentes, não correspondendo o texto legal aditado ao grau de protecção demandado pelo elemento histórico em que surge, um critério teleológico de interpretação da lei, capaz de levar a uma “ regulação materialmente adequada “, nas palavras de Larenz, in Metodologia da Ciência do Direito, pág. 471, ou seja a uma solução lógico-racional da questão, postulava a solução de mesmo em caso de violação plúrima de bens eminentemente pessoais inerentes à mesma pessoa afastar o crime continuado em se registando circunstâncias intrínsecas ao agente, por ele criadas, facilitando a prática do crime, reduzindo a resistência da vítima, precisamente por se não mostrar sensivelmente diminuída a culpa, pelo que o STJ não hesitou em excluir a prática do crime nos Acs. de 25.3.2009, CJ, STJ, XVII, I, 237 e de 25.6.2009, in CJ, STJ, II, 247.

A alteração introduzida pela Assembleia da República trouxe polémica interpretativa, e a Circular Interna da PGR n.º 2/2008-DE, de 9.8.2008, disse dever-se ter presente a errada divulgação da notícia pelos mais díspares meios de comunicação social de que a norma do n.º 3 viria permitir uma punição leve dos abusadores sexuais, fez questão de significar que “as críticas conhecidas não abalaram o entendimento firmado de décadas”, ou seja de que quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometido num quadro, em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, deve ter-se por arredada a figura do crime continuado, sem prescindir-se, como, aliás aquela Circular fez questão de sublinhar, da indagação casuística dos requisitos de tal crime afastando-o quando se não registarem.

A Lei n.º 40/2010, de 3/9, pondo fim à rejeição comunitária do tão criticado segmento em referência, amputou o aditamento “ salvo tratando-se da mesma vítima ”, trazido sem justificação pela antecessora, harmonizou o texto legal e fez constar do n.º 3 que o disposto no n.º anterior, onde se define o crime continuado não abranger os crimes cometidos contra bens eminentemente pessoais, reconstituindo a pluralidade de infracções, em função do número de crimes ou de vítimas, restringindo aquele a bens não eminentemente pessoais, sejam uma ou mais vítimas

Essa primitiva alteração legislativa, tomada num sentido puramente literal, no sentido de afastamento da pluralidade de infracções e imposição da figura da continuação criminosa, punida especialmente pela forma atenuada prevista no art.º 79.º, do CP, apresenta-se, em abstracto, na sucessão de leis penais, como mais favorável se comparativamente com a posterior alteração introdução introduzida pela Lei n.º 40/2010, de 3/9, porque em caso de sucessão de ofensa de bens eminentemente pessoas deve punir-se o concurso de crimes como efectivo, como intenção do julgador.»

Adere-se, por todas as razões aqui expendidas, a esta posição, que tem vindo a ser consagrada em jurisprudência preponderante e reiterada deste Supremo Tribunal, entre outros, nos acórdãos deste STJ de 07-04-2010, Proc. 202/08.1GBPSR.E1.S1, de 14-01-2016, Proc. 414/12.3TAMCN.S1, de 04-05-2017, Proc. 110/14.7JASTB.E1 e de 23-11-2022, Proc. 754/20.8JABRG.G1.

A violação repetida da mesma norma traduz uma pluralidade de negações do mesmo valor jurídico-criminal mediante uma pluralidade de processos volitivos merecedores de distintos juízos de censura, dentro de uma conceção de múltiplos sentidos sociais de ilícito.

Afirma-se, neste sentido, no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2019 (DR 1.ª série, 23-12-2019): «A consideração do bem jurídico e da pluralidade de juízos de censura, determinada pela pluralidade de resoluções, como referente da natureza efetiva da violação plural, tem sido indicada na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça como essencial para determinar se, em casos de pluralidade de ações ou pluralidade de tipos realizados, existe, efetivamente, concurso (…), na linha do pensamento de Eduardo Correia plasmado no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, com a consideração de elementos da posição doutrinária de Figueiredo Dias. (…) Outra jurisprudência inspira-se predominantemente, de forma direta, no pensamento de Figueiredo Dias, quando afirma que “é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes”. (…) Para Eduardo Correia o “número de vezes” que o mesmo tipo de crime foi preenchido deveria contar-se pelo número de juízos de censura, o que deveria reconduzir-se a uma pluralidade de processos resolutivos, de resoluções ou de decisões criminosas ou à renovação do mesmo processo. Esta pluralidade seria excluída, em regra, pela continuidade temporal das várias condutas, “sempre que, de acordo com as circunstâncias do caso, devesse aceitar -se que o agente executou toda a sua actividade sem ter que renovar o respectivo processo de motivação”» (§§ 22, 28).

De acordo com Helena Moniz, deve considerar-se que sempre que o crime é praticado em momentos diferentes se está na presença de mais um crime, tanto mais quanto a sua prática pressupõe a criação pelo agente das circunstâncias que a permitam e que, “em cada ato individualmente perpetrado a vítima é renovadamente lesada” («Crime de trato sucessivo (?)», Revista Julgar online, abril 2018, p. 22). Nesse artigo, a mesma Autora formula a seguinte questão: «vários abusos sobre a mesma vítima, em vários dias diferentes ao longo de um certo período, integram, analisando globalmente o comportamento, apenas um sentido social de ilicitude ou vários sentidos sociais de ilicitude? Considerando que o novo critério não tem por base nem a unidade de ação, nem a unidade do tipo legal de crime que integra aquela acção (…), mas sim ‘o substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico penal’, constituindo um problema de unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, tendo a considerar que há vários sentidos sociais de ilicitude autónomos a reclamar a punição por cada um deles, ou seja, uma pluralidade de factos puníveis. É que, nestes contextos, não se pode concluir por um sentido de ilicitude dominante e um dominado; trata-se sim de diversos sentidos de ilicitude em que não há um que se evidencie relativamente a outro(s), não há um dominante e outro dominado, e também não se pode falar em unidade de desígnio criminoso, quando o que ocorreu foi uma homogeneidade de um desígnio criminoso sucessivamente renovado e, portanto, plúrimo.» (loc. cit., p. 20).

Aderindo-se a este entendimento, a sua subscrição implica aceitar e sancionar a construção hermenêutico-aplicativa a que se procedeu no acórdão recorrido – em que se qualifica como concurso (efetivo) de crimes a prática reiterada no mesmo tipo de ilícito, mediante a renovação sucessiva de, pelo menos, dezasseis atuações criminosas autónomas praticadas pelo arguido.

Por cada facto ilícito típico relevante, embora praticado de forma essencialmente idêntica, havia uma procura de oportunidade e de facilidade da sua reiteração, por parte do arguido, escolhendo ocasiões em que não houvesse possibilidade de ser detetado por outros residentes na casa, mormente a mãe, irmã, avós e tia da vítima.

A factualidade demonstrada relativamente ao elemento subjetivo, que se relembra, não deixa margem para dúvidas sobre a renovação da intenção do arguido:

“I. Ao levar a cabo as condutas supra descritas, o arguido agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha apenas 16 e posteriormente 17 anos de idade e que, como tal, carecia completamente de capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual.

J. O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha discernimento para o desvalor dos atos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade e ascendência económica, ameaçando aquela e os restantes membros da família, para conseguir os seus intentos.

K. Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo” (negrito nosso).

Nenhuma objeção se suscita uma tal conclusão.

Pelo exposto, julga-se improcedente a invocada nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia.

17.

iii. Medida das penas principais, parcelares e única, bem como das penas acessórias, aplicadas – Conclusões 43. a 45.;

O arguido AA foi condenado pela prática de 16 (dezasseis) crimes de abuso sexual de menores dependentes, na forma agravada, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena, por cada um deles, de 3 (três) anos de prisão; e, em concurso efetivo, na pena única de 5 (cinco) ANOS DE PRISÃO, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, mediante a condição, ao abrigo do disposto no art. 51.º, n.º 1, al. a), do Código Penal de proceder ao pagamento do montante indemnizatório fixado em duas tranches, sendo a primeira até ao término da primeira metade do período da suspensão e a segunda no final daquele período

Mais foi, ainda, nos termos dos artigos 69.º-C, n.º 2 e 69.º-B, n.º 2, do Código Penal, condenado nas penas acessórias de:

- proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (5) anos, bem como, de

- proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo mesmo período de tempo (5 anos).

O recorrente questiona a medida das penas parcelares principais e acessórias em que foi condenado, bem como relativamente à medida concreta da pena única, resultante do cúmulo jurídico a que se procedeu. Argumenta que tal se deve operar «(…) atendendo à prevenção geral como ponto de partida e à prevenção especial como ponto de chegada e a culpa como seu limite, (…),» pelo que deveria ser-lhe aplicada a pena de um (1) ano de prisão a cada crime, em concreto.

Mais refere que, «44. Atendendo a que moldura de concurso, perante o disposto no art.º 77.º do CPenal, se cifraria entre 1 ano e 15 anos de prisão, a pena considerada ajustada seria a de três anos de prisão, suspensa na sua execução, nos termos do art.º 50.º do CPenal, pelo período de cinco anos, atendendo ao pedido de indemnização formulado;

45. deverá ser revogada a pena acessória de probição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (05) anos, bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo mesmo período de tempo, nos termos dos artigos 69º-B e 69º-C do Código Penal».

Em suma, pretende – para a hipótese de não ser absolvido – que lhe sejam aplicadas “quinze” penas parcelares de 1 ano de prisão, e uma pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por cinco anos.

As penas acessórias deveriam ser revogadas.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido e deste Supremo Tribunal de Justiça manifestou a sua discordância relativamente a tal pretensão, pronunciando-se pela manutenção do acórdão recorrido no tocante à medida das penas principais (parcelares e única) e acessórias.

As conclusões da motivação de recurso circunscrevem a nossa análise às concretas questões da determinação da medida das penas parcelares e única aplicada em resultado do cúmulo jurídico daquelas penas parcelares aplicadas ao arguido, bem como relativamente às penas acessórias.

Apreciemos, então, as distintas dimensões deste segmento do recurso.

17.1. Penas parcelares

Preambularmente, deve assinalar-se que evola do texto do acórdão recorrido uma discrepância, certamente resultante de lapso de escrita, quando se refere a dado ponto na fundamentação que se mostram consumados “15” crimes de abuso sexual de menor dependente, enquanto no dispositivo se menciona expressamente o número de 16 crimes de tal tipo, que é o número de vezes que, pelo menos, o Ministério Público sustenta ter sido cometido pelo arguido, considerando a descrição da cadência dos eventos de abuso sexual e o período durante o qual foram praticados. Tal discrepância, que reflete mero lapso de escrita, não só não foi expressamente questionada pelo recorrente, como nenhuma dúvida se (nos) suscita sobre o número (mínimo) de vezes que o arguido praticou o crime, importando, no entanto, ser ordenada a sua correção por este Supremo Tribunal, nos termos do art. 380.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3, do CPP.

Da análise do acórdão recorrido, nomeadamente quanto à fundamentação da determinação das penas (parcelares) que concretamente couberam às condutas com relevo criminal, não podemos concluir que tenha havido desvio aos critérios da escolha e determinação das penas, nomeadamente em violação do princípio da proporcionalidade, tornando-as injustas.

Relativamente a esta questão, do acórdão recorrido, resulta a seguinte fundamentação:

«(…)

A moldura penal para cada um dos 16 abusos sexuais, tendo presente o disposto no art. 30º, n º 1 e 3 do Código Penal, dado que estamos perante bens eminentemente pessoais é de 01 ano e 04 meses a 10 anos e 08 meses de prisão.

Nos termos do artigo 40º, do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”

Pelo que, a reação criminal ao facto ilícito nunca poderá ultrapassar a medida da culpa, e terá como objetivo a proteção de valores, a pacificação social e primacialmente a reintegração do agente na sociedade.

Donde resulta que o fundamento da pena se encontra estribado na culpa. Esta tem como função limitar a medida da pena, a qual é temperada por exigências de reintegração do agente na sociedade.

A culpa “enquanto pressuposto da pena, definirá o seu limite máximo, o pano de fundo, a moldura dentro, e só dentro, da qual as exigências da prevenção, como fins da pena, lhe fixarão a medida” - in DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português - as consequências jurídicas do crime”, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993.

Na verdade, decorre dos princípios básicos do sistema jurídico-penal “de que só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida” – in DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português - as consequências jurídicas do crime”, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993.

Nos termos do art. 70º, do CP., “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Sendo que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele...”

A definição da pena a aplicar deve ser feita em várias fases.

Primeiro, deve-se achar a moldura penal abstrata. Para tanto, parte-se do tipo de crime que o Arguido cometeu e verifica-se se a moldura penal encontrada é modificada, ou substituída por outra, em virtude da ocorrência de circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes.

De seguida, deve o julgador, uma vez encontrada aquela moldura penal abstrata, achar dentro dessa moldura a pena que cabe ao caso concreto.

Quando haja ao dispor mais do que uma espécie de penas, por exemplo pena alternativa ou de substituição, deve o juiz escolher a pena a aplicar.

*

No presente caso, a moldura do crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, agravado, p. e p. pelos artigos 171º, nº 2, 172º, n º 1, al. b) e 177º, nº1, al. b), do Código Penal, consiste em pena de prisão de 01 ano e 4 meses a 10 anos e 08 meses.

*

Atendendo às circunstâncias aduzidas no artigo 71º, nº2, daquele Código, atender-se-á à modalidade do dolo, a qual revestiu a forma mais intensa em todos os crimes em apreço.

De outra via, leva-se em consideração a tipologia dos atos desenvolvidos sobre a Vítima, e o lapso temporal em que os mesmos ocorreram.

Ao nível de desvalor de resultado o mesmo é elevado, ante as consequências psicológicas inculcadas na jovem.

A culpa do Arguido é acentuada visto reunir condições para adequar a sua conduta de acordo com o direito em todos os ilícitos cometidos.

Inexistiu qualquer ato de reparação ou arrependimento efetivo.

A seu favor o facto de não ter antecedentes criminais e estar bem inserido social e profissionalmente.

As exigências de prevenção geral são de acentuar sobremaneira, porquanto as mais das vezes as vítimas não se sujeitam ao procedimento criminal, quer por vergonha, quer por receio ou medo. O alarme social que este tipo de condutas desperta e a intolerância geral da sociedade para com os mesmos é enorme.

As exigências de prevenção especial não são grandes por inexistência de antecedentes criminais conhecidos.

Também não se pode esquecer que a vitima tinha 17 anos de idade e que também acedeu aos desejos libidinosos do arguido.

Assim, concatenando todos estes factores e atendendo à moldura penal acima sufragada, decide-se aplicar ao Arguido:

Por cada um dos 15 crimes de abuso sexual de menores agravados, p. e p. pelos artigos 172º, n º 1, al. b), 171º, nº 2, e 177º, nº 1, al. b), do Código Penal, a pena de três (03) anos de prisão.»,

devendo, aqui, corrigir-se a menção a «Por cada um dos 15 crimes (…)», substituindo-a por «Por cada um dos 16 crimes (…)», o que será oportunamente retificado no acórdão recorrido, uma vez que é percetível que a mesma resulta de erro de escrita e não importa modificação essencial, nos termos do art. 380.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3, do CPP.

O recorrente pede que, a não se considerar a sua absolvição, fossem aplicadas penas parcelares de um ano de prisão por cada um dos crimes provados.

O Ministério Público junto do tribunal de 1.ª Instância manifestou a pretensão de que o arguido fosse condenado, por cada um dos dezasseis crimes de abuso sexual de menor dependente, na pena de 3 anos de prisão, no que foi secundado pelo Senhor magistrado do Ministério Público junto do TRP.

O TRP, por seu turno, entendeu, na sequência do juízo de reversão da absolvição do recorrente, dar provimento a tal pretensão.

No caso em apreço, para além das elevadas exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir – pertinentemente assinaladas no acórdão recorrido, sendo as de prevenção especial relativamente ao arguido algo residuais, dado ser “primário” –, importa atentar nas graves consequências das suas condutas criminosas para a vítima, sua enteada, cujo processo de amadurecimento e socialização ficou indelevelmente marcado por comportamentos que violaram não só a sua liberdade de autodeterminação sexual, mas também o livre e equilibrado desenvolvimento da sua personalidade, a sua autoimagem e autoestima e o seu direito a não ser violentada na sua intimidade e no seu pudor, a sua dignidade; enfim, os seus direitos humanos mais essenciais. Todos estes funestos e lamentáveis eventos não deixarão de ter significativo impacto no seu futuro enquanto mulher e como pessoa, a quem o direito à cidadania plena foi violentado numa idade em que se forma a personalidade. Tais resultados apenas remota e indiretamente poderão ser mitigados pela decisão condenatória do arguido, a que o Estado se encontra obrigado, desde logo pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e as Raparigas e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21-01 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 13/2013, de 21-01, entrada em vigor em 01-08-2014), aplicável diretamente e indiretamente, através da adesão à mesma pela União Europeia, a partir de 01-10-2023 – artigos 1.º, n.º 1, al. a), 3.º, alíneas a), e) e f) e 36.º (Violência sexual, incluindo violação).

Por outro lado, a República Portuguesa subscreveu os principais instrumentos internacionais neste domínio – designadamente da Convenção de Lanzarote1 –, encontrando-se obrigado a incriminar a prática de atos sexuais com, em ou perante uma criança que não tenha atingido a idade legalmente prevista para o efeito; abusando de reconhecida posição de confiança, autoridade ou influência sobre acriança, incluindo o ambiente familiar; ou abusando de uma situação de particular vulnerabilidade, nomeadamente devido a uma situação de dependência.

Portugal está também obrigado a sancionar com uma pena máxima não inferior a oito anos de prisão quem praticar atos sexuais com uma criança, “recorrendo ao abuso de uma posição manifesta de confiança, de autoridade ou de influência sobre a criança” se esta não tiver atingido a maioridade sexual, e não inferior a três anos, se a criança tiver atingido essa maioridade; a punir com penas de prisão de igual moldura penal máxima a prática de atos sexuais com uma criança recorrendo ao abuso de uma situação particularmente vulnerável da criança, nomeadamente em caso de uma situação de dependência – art. 3.º, n.º 5.

A Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, e, posteriormente, a Lei n.º 15/2024, de 29 de janeiro, vieram, por seu turno, adequar as normas incriminatórias de condutas sexuais, agravando-as, de acordo com aqueles instrumentos normativos internacionais e da União, visando transpor para o ordenamento jurídico interno as disposições da Diretiva 2011/93/UE2 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, bem assim cumprir as obrigações assumidas por Portugal com a ratificação da Convenção do Conselho da Europa para Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais [Convenção de Lanzarote]. A Lei n.º 40/2020, de 18 de agosto, veio reforçar o quadro sancionatório e processual em matéria de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores e estabelecer deveres de informação e de bloqueio de sítios contendo pornografia de menores, concluindo a transposição da Diretiva 2011/93/UE.

Por seu turno, a “coabitação” não constituindo elemento do tipo de crime em apreço, é, isso sim, uma circunstância que funciona como agravante deste e de um alargado elenco de crimes contra a liberdade e contra a autodeterminação sexual, acrescentada pelo legislador ao art. 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal na alteração operada pela Lei n.º 103/2015, que, como se antecipou, visou essencialmente transpor para o ordenamento jurídico-criminal interno as recomendações da Convenção de Lanzarote e o regime da Diretiva 2011/93/UE que, repete-se, no art. 9.º, al. b) impõe o agravamento do crime de abuso sexual de menores, entre outras situações, também quando é cometido “por uma pessoa que coabita com a criança”, conquanto esta circunstância não constitua elemento do tipo.

Estes comandos impõem-se de forma imperativa ao Estado português, logo aos seus tribunais, não podendo o nosso sistema sancionatório penal deixar de se estruturar de acordo com os mesmos.

No caso em apreço nos autos, o quadro de atuações criminosas apurado nos autos, praticadas pelo arguido, é, inequivocamente, de elevada gravidade.

A culpa do arguido é elevada, sendo que a circunstância de a vítima BB ser sua enteada é já contemplado como circunstância modificativa agravante na previsão típica da conduta.

Por outro lado, ainda, a persistência na prática dos crimes de abuso sexual de menor dependente relativamente à vítima, num período relativamente longo (cerca de seis meses), indicia tratar-se de alguém com uma personalidade que não tem autocensura e que é indiferente às supra apontadas consequências para a vítima dos seus atos.

Conforme salienta alguma doutrina, «A dimensão traumática que a concretização de um crime sexual comporta para a vítima é um dado absolutamente evidente. (…) No que respeita aos menores vítimas de abuso sexual, a Perturbação de Stress Pós Traumático (PST) assume uma especial relevância como um dos efeitos essenciais de abuso sexual.» (assim, Mouraz Lopes e Caiado Milheiro, Crimes Sexuais - Análise substantiva e processual, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pp. 41 e ss.).

Segundo Teresa Pizarro Beleza, a ideia de atentado ao pudor foi substituída pela de desrespeito pela autodeterminação sexual, pois «já não é o pudor da criança ou do jovem (...) que está em causa – ele pode, até, ser inexistente e nem por isso o crime deixa de existir ou o Direito ficciona um pudor inexistente – mas a convicção legal (iuris et de iure, dir-se-ia) de que abaixo de uma certa idade ou privada de um certo grau de autodeterminação a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual».

«O bem jurídico ofendido por um acto sexual de relevo, que seja praticado com, em ou perante uma criança, já não é o pudor» – salienta esta autora –, «mas as potencialidades de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiado precoces» (“O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, I Volume, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 1996, p. 169). O crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º do Código Penal, protege um bem jurídico eminentemente pessoal – a autodeterminação sexual de uma forma muito especial, ou seja, a prática de atos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica gravemente o desenvolvimento global do próprio menor: abaixo de uma certa idade ou privada de um certo grau de autodeterminação «a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual», também nas palavras de Teresa Beleza (loc. cit., p. 169).

Por seu turno, a jurisprudência deste STJ tem afirmado de forma consistente que «O abuso sexual de crianças representa uma catástrofe na vida da vítima, produzindo uma devastação da sua estrutura psíquica. O abuso afecta o corpo da vítima do abuso sexual, o núcleo mais pessoal, mais íntimo da sua identidade» (assim, acs. de STJ de 28-04-2016 e de 25-10-2023, proc. n.º 321/19.9JAPDL.L3.S1: rel. Cons. Ernesto Vaz Pereira).

Como se fundamentou no Ac. STJ de 10-10-2012, Proc. n.º 617/08.5PALGD.E2.S1: rel. Cons. Armindo Monteiro, «O abuso sexual de crianças repugna à consciência colectiva, tanto no plano ético como moral, por um lado por ser um grave atentado a seres indefesos, salutar e desejável, em termos de interesse comunitário, que as crianças cresçam e se desenvolvam harmonicamente, por outro por ser frequente a prática de crimes desta natureza, gerando graves consequências à pessoa das vítimas, e também alarme e intolerância social, ataque à paz social, não se dispensando uma intervenção firme dos tribunais, como forma de apaziguar o tecido social afectado e demover potenciais delinquentes».

E, por outro lado, «Importa reafirmar serem prementes e muito elevadas as razões de prevenção geral que se fazem especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão– a autodeterminação sexual de crianças – e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando uma resposta punitiva firme, sendo ainda deter em conta os danos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas.» (ac. STJ de 28-04-2016, Proc. nº 252/14.9JACBR: Cons. Manuel Matos).

E como se sublinhou em mais recente ac. do STJ de 19-01-2022, Proc. 327/17.2T9OBR.S1: rel. Cons. Nuno Gonçalves, «O abuso sexual de crianças e de menores dependentes, violando a autodeterminação sexual e o harmonioso desenvolvimento da personalidade global das crianças na esfera sexual, demandam assertiva reafirmação da validade do bem jurídico e da vigência da proteção penal.»

Nem se diga que a vítima, enquanto adolescente, e movida por um sentido de curiosidade afetiva, ou, mesmo, sexual, foi o elemento “provocador” do comportamento do arguido. Este, sendo um indivíduo casado com a mãe da vítima, deveria, enquanto adulto, padrasto da vítima, ter evitado a prática de qualquer ato de abuso e deveria ter posto termo precocemente a qualquer impulso da BB no sentido de satisfazer os seus eventuais propósitos de descoberta de sensações afetivas e/ou sexuais.

Um tal quadro, que, de resto, não se mostra provado, não poderia corresponder a qualquer atenuação e, muito menos, justificação das condutas, reiteradas, do arguido.

Sendo a moldura abstrata do crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2, 172.º, n.º 1, al. b) e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, compreendida entre 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão, a medida concretamente fixada, de três anos de prisão, situada abaixo do terço do limite máximo, não pode considerar-se excessiva.

Não ocorrem, assim, motivos para fundadamente dissentirmos do que foi considerado no acórdão recorrido, no tocante aos critérios de fixação das penas parcelares, cujas medidas se mostram graduadas em medida proporcional, adequada e por isso, não injustas.

Improcede, pelo exposto, a argumentação do arguido a este respeito.

17.2. Pena única

Observemos se outro tanto se verifica quanto à fixação da pena única ou conjunta.

A esse respeito, diz-se no acórdão recorrido:

«(…)

Das regras da punição do concurso.

Nos termos do Código Penal, nomeadamente do

Artigo 77.º

1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.

No caso vertente, para além do que já deixámos escrito quanto às penas parcelares, importa atender que a atuação do Arguido derivou na prática de crimes que visam proteger o mesmo bem jurídico e cometidos sobre mesma vítima.

Por outra via, o Arguido não tem antecedentes criminais e encontrava-se socialmente inserido, sendo bem considerado pelos seus amigos.

A nível de relatório social, para além do mais, consta:

«1 – CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS

O arguido (39 anos, natural da Venezuela, praticante de armazém) reside na morada indicada nos autos, juntamente com a esposa (DD, 39 anos, funcionária de cooperativa) e com a filha mais nova desta (EE, 10 anos, estudante). À data dos factos descritos no presente processo, a filha mais velha da esposa (BB, 19 anos, alegada vítima no processo) integrava o agregado familiar, encontrando-se o núcleo familiar emigrado na Costa Rica, desde dezembro de 2019.

Dadas as dificuldades associadas ao processo de legalização, a esposa veio residir para Portugal, em outubro de 2020, juntamente com as filhas, passando a habitar um imóvel de propriedade dos pais daquela, sito na .... Passados cerca de quatro meses, o arguido reintegrou o agregado familiar. Em abril de 2022, data do início do presente processo, o casal alterou a residência para a atual morada, passando aí a residir, juntamente com a filha mais nova de DD.

Ao nível do enquadramento habitacional, o arguido mantém residência em moradia arrendada, com infraestruturas e boas condições de habitabilidade, e uma área de ocupação útil que, na perspetiva dos dois elementos do casal, assegura conforto e distribuição adequada de espaços comuns e individuais. O imóvel está inserido em zona habitacional da periferia, sem problemáticas sociais ou criminais.

O contexto e dinâmica relacional intrafamiliar é descrito, pelo arguido e pela esposa, como adequado e tranquilo, centrado na vivência de rotinas diárias de trabalho e acompanhamento das atividades escolares, havendo capacidade de articulação e de gestão de horários. A relação conjugal é, em todas as suas dimensões, vivenciada de forma positiva e gratificante, sendo descrita, pelos elementos do casal, como fonte de estabilidade e segurança. À data dos factos descritos nos autos, o casal debatia-se com alguma resistência, por parte dos pais de DD, face à relação afetiva que, entretanto, aqueles haviam estabelecido, facto que o arguido reconhece ter constituído um foco de ansiedade e pressão para o casal.

O arguido tem duas filhas (FF, 17 anos; GG, 11 anos), fruto de relação anterior, com quem mantém contacto, ainda que num registo de irregularidade, por motivo de incompatibilidade com a progenitora. Sobre esta relação, o arguido evidencia dificuldade na verbalização e na gestão emocional, descrevendo-a como experiência que o marcou de forma negativa, e que gradualmente tem vindo, na sua perspetiva, a superar.

De uma forma geral, e sem alteração sofrida no intervalo temporal decorrido entre a alegada prática dos factos e o momento atual, é associada ao arguido uma imagem social de adequação e de respeito para com as normas sociais e jurídicas vigentes. De acordo com a sua perceção, este processo não é conhecido no seu meio de residência, pelo que não sente, até ao momento, qualquer alteração na qualidade da interação que mantém com elementos da comunidade.

O arguido tem 9.º ano de escolaridade, e um registo de precocidade na integração em meio laboral. Sem registo de irregularidade ou períodos longos de desemprego, o arguido apresenta uma trajetória profissional em áreas diversas, referindo satisfação e motivação para o trabalho. Desde dezembro de 2021, exerce funções de praticante de armazém, em regime de contrato de trabalho.

Ao nível económico, o rendimento mensal fixo do agregado familiar, proveniente da atividade profissional dos dois elementos do casal, permite fazer face ao volume de despesas mensais fixas, não sendo referidas dificuldades ou limitações neste domínio.

Sem frequência de atividades de lazer ou recreativas, o arguido ocupa o seu tempo livre em contexto familiar. Mantém convívio pontual com elementos da comunidade próxima, num formato e periodicidade que caracteriza como adequado e pautado por cordialidade, sendo capaz de reconhecer características pró-sociais no seu grupo de amigos e conhecidos. Mantendo nesta análise a referência a data dos factos descritos no processo, não são observadas alterações neste domínio, quando consideradas as circunstâncias atuais.

2. REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO

O arguido demonstra capacidade de reflexão e descentração, denotando atitude crítica e censura moral quando confrontado com factos idênticos àqueles de que se encontra acusado, e perante os quais reconhece a importância e a necessidade de intervenção do Sistema de Justiça. De uma forma global, é observado um discurso congruente com um percurso vivencial norteado por valores e princípios socialmente adequados.

Do ponto de vista das repercussões da atual situação jurídico-penal, são destacados pelo arguido os sentimentos de tristeza, frustração e desgaste emocional, assim como a preocupação quanto ao impacto negativo que daí possa resultar, designadamente ao nível do contexto e dinâmica familiar.

3. CONCLUSÃO

Os dados recolhidos apontam para um processo de desenvolvimento em contexto familiar normativo, com veiculação de valores pró-sociais e presença/reconhecimento de figuras de referência. Ainda que sejam observados focos de vulnerabilidade e instabilidade ao nível da relação afetiva anterior, o atual enquadramento familiar é vivenciado como retaguarda de apoio, sendo a relação conjugal entendida, pelo arguido, como a principal fonte de segurança afetiva e de motivação para a prossecução de objetivos de vida. O arguido apresenta uma situação laboral que denota estabilidade e capacidade de manutenção de rotinas diárias.

Face ao exposto, na eventualidade de virem a ser provados os factos de que se encontra acusado, somos de opinião, caso a pena aplicada o permita, que o arguido reúne condições para a aplicação de uma medida penal probatória de execução na comunidade, com sujeição a plano de intervenção por estes serviços da DGRSP, especificamente direcionado para a problemática criminal em causa, beneficiando com a frequência do Programa da DGRSP - Programa para Agressores de Violência Sexual – Crimes Contra Crianças e Adolescentes – PAVS-CA.».

6. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.”

Ante o exposto, compaginando os vetores acima enunciados quanto às penas parcelares, sublinhando a natureza dos atos desenvolvidos, praticamente da mesma índole, o facto de terem ocorrido no mesmo local, a sua prolação no tempo, a personalidade do Arguido, o impacto sofrido no meio familiar e uma moldura penal abstrata compreendida entre 03 anos e 25 anos de prisão, ante o limite imposto pelo artigo 77º, nº 2, do Código Penal (o cúmulo material atingiria 45 anos), decide-se aplicar-lhe uma pena única de 05 (cinco) anos de prisão.»

A este propósito, preambularmente, diremos que se torna também necessário proceder à retificação da frase «(o cúmulo material atingiria 45 anos)», por ser notório que resulta de lapso de escrita, não importando modificação essencial da decisão recorrida, nos termos do art. 380.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3 do CPP, substituindo-a pela expressão «(o cúmulo material atingiria 48 anos)».

O recorrente pretende que a pena única não exceda três anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos.

O Ministério Público, no seu recurso do acórdão de 1.ª Instância, secundado pelo Senhor Procurador-geral-adjunto junto do TRP, no seu parecer, havia impetrado que a pena única correspondente ao cúmulo jurídico das penas parcelares se fixasse em sete anos de prisão, o que o MP junto do TRP não reiterou após a prolação do acórdão recorrido.

O artigo 77.º do Código Penal estabelece as regras da punição do concurso de crimes, dispondo no n.º 1 que «[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena», em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». O n.º 2 do mesmo preceito estabelece «[a] pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão (…), e como limite mínimo, a mais elevada daquelas penas concretamente aplicadas aos vários crimes».

Sobre a pena única e para os casos em que aos crimes correspondem penas parcelares da mesma espécie, considera Maria João Antunes que «o direito português adopta um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico» (Consequências Jurídicas do Crime, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Ed., 2015, p. 56).

A pena única do concurso, formada nesse sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

Na determinação da pena conjunta, impõe-se, igualmente, atender aos “princípios da proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso” (Ac. STJ de 10-12-2014, processo n.º 659/12.6JDLSB.L1.S1, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, Ano de 2014), impregnados da sua dimensão constitucional, pois que «[a] decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta – dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber – como já se aludiu – se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido», sem esquecer, que «[a] medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)» (assim, Ac. STJ de 27-06-2012, processo n.º 70/07.0JBLSB-D.S1).

Como este Supremo Tribunal de Justiça vem considerando de forma reiterada e preponderante, o critério da determinação da medida da pena conjunta do concurso – determinação feita em função das exigências gerais da culpa e da prevenção – impõe que do teor da decisão conste uma especial fundamentação, em função de tal critério. «Só assim – afirma-se no acórdão de 06-02-2014, proferido no processo n.º 6650/04.9TDLSB.S1- 3.ª Secção – se evita que a medida da pena do concurso surja consequente de um acto intuitivo, da apregoada e, ultrapassada, arte de julgar, puramente mecânico e, por isso, arbitrário».

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-12-2006 (Proc. n.º 06P3379), «na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita a avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso». Ainda no mesmo acórdão, pode ler-se que «na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente».

Cumpre sublinhar também que, como é referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de novembro de 2010, proferido no processo n.º 93/10.2TCPRT.S1-3.ª Secção: «Com a fixação da pena conjunta não se visa ressancionar o agente pelos factos de per si considerados, isoladamente, mas antes procurar uma “sanção de síntese”, na perspectiva da avaliação da conduta total, na sua dimensão, gravidade e sentido global, da sua inserção no pleno da conformação das circunstâncias reais, concretas, vivenciadas e específicas de determinado ciclo de vida do arguido em que foram cometidos vários crimes».

Neste âmbito, regista-se ainda o que no acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-05-2015, proferido no processo n.º 220/13.8TAMGR.C1.S1- 3ª Secção, se refere:

«(…) o Supremo Tribunal tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com “(…) a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, e, assim, [i]mportante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos (-), tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele(-)» (Acórdão de 12-09-2012, processo n.º 605/09.4PBMTA.L1.S1 – 3.ª Secção).

No processo de apreciação da escolha e da medida da pena, em sede de recurso, é pacífico que a intervenção do tribunal superior assume um carácter essencial de “remédio jurídico”, impondo-se, especialmente, identificar incorreções ou erros manifestos atinentes ao processo hermenêutico-aplicativo das normas constitucionais, convencionais e legais mobilizáveis, por parte da instância recorrida.

Só nessa medida é legítimo ao tribunal de recurso proceder à alteração do quantum da pena, quer parcelar, quer conjunta, em caso de cúmulo jurídico resultante do concurso efetivo de crimes. Assim, não pode proceder-se como se não existisse decisão anteriormente proferida, a qual, tendo respeitado aqueles procedimentos hermenêuticos e aplicativos, não legitima a intervenção do tribunal de recurso em termos de modificar, para mais ou para menos, a medida concreta da pena aplicada.

O escrutínio da adequação ou correção da medida concreta da pena em sede de recurso impor-se-á apenas em caso de manifesta desproporcionalidade (injustiça) ou de violação da racionalidade e das regras da experiência (arbítrio) no tocante às operações da sua determinação impostas por lei, como a indicação e consideração dos fatores de medida da pena. Só em tais circunstâncias se justifica uma intervenção corretiva do tribunal de recurso que altere a escolha e determinação da medida concreta da pena.

Tal consideração vale tanto para as operações de aplicação de penas parcelares, como para a pena única.

Como refere Cristina Líbano Monteiro, o Código Penal rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto, para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente. A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares, à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes («A Pena “Unitária” do concurso de crimes», RPCC, Ano 16.º, N.º 1, pp. 151 a 166).

Conforme também refere José de Faria Costa, «Seria redundante dizer-se que se prefere o sistema do cúmulo jurídico ao do material porque este último se revela de difícil exequibilidade, pois obrigaria o condenado ao cumprimento sucessivo das diferentes penas a que se chegou em cada uma das condenações. No entanto, embora esta razão seja inteiramente válida, aqueloutra pela qual o sistema do cúmulo jurídico se apresenta de maior justeza reside no facto de, com ele, se evitar que os factos penais ilícitos, após a aplicação das respetivas penas, ganhem uma gravidade exponencial porque vistos isoladamente ou compartimentados uns dos outros. Gravidade essa que, obviamente, se refletirá, em um primeiro momento, em uma culpa igual ou proporcionalmente grave e, em momento posterior, em pena de igual dosimetria à culpa. Isto é, a culpa reportada a cada facto ganha (...) um efeito multiplicador. Como consequência do que se acabou de dizer, sendo a culpa relativa a cada facto ilícito-típico, tal redundará na ultrapassagem do limite da culpa (...) podemos concluir que só o sistema do cúmulo jurídico é suscetível de ser dogmaticamente justificável porque é através dele que obtemos a imagem global dos factos praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global. Apenas efetuando (...) um exame dos factos em conjunto podemos perscrutar a ligação que os factos ilícitos isolados mantêm uns com os outros. Só através do cúmulo jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente e, dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não radica na sua personalidade, mas antes em fatores exógenos. (...) através do sistema do cúmulo jurídico a culpa é adequadamente valorada e, em consequência, a pena encontrada é, inquestionavelmente, mais justa» («Penas acessórias – Cúmulo jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]», Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 136.º, N.º 3945, pp. 326-327).

Nessa linha de abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no art. 71.º do Cód. Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 01-10-1995, com a proclamação de princípios ínsita no art. 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo art. 77.º, n.º 1, do CP – o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efetivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.

Por seu turno, conforme diz Figueiredo Dias, «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.» (As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, Editorial de Notícias-Æquitas, 1993, p. 286).

Importa, assim, averiguar do acerto e proporcionalidade da medida da pena única aplicada.

Não se ignora que, como já referido, é gravíssimo o atentado aos valores e bens jurídicos vulnerados que estão em causa nos autos.

O grau de culpa do arguido é elevado, contribuindo para a perturbação de um normal e sadio processo de desenvolvimento pessoal da vítima, que dificilmente ultrapassará os traumas sem adequado e especializado acompanhamento.

Todavia, a aplicação da pena não prescinde da observação de uma ecofisiologia sistémico-jurisprudencial, que perscrute a solução e decisão em casos idênticos, a fim de se procurar uma tendencial coerência na aplicação das penas.

Assim, fazendo um exercício comparativo com um acervo de decisões jurisprudenciais em casos semelhantes julgados neste STJ – que confirmaram ou alteraram as decisões dos tribunais recorridos em casos de arguido atuando isoladamente e com pluralidade de crimes e de vítimas –, e descontando, naturalmente, as especificidades e particularidades de cada um, podem observar-se em súmula, os seguintes resultados:

- Ac. STJ de 21-02-2024, Proc. 424/21.0PLSNT.S1.L1.S1: rel. Cons. Lopes da Mota: 34 crimes de abuso sexual de criança e de menor dependente – pena única de 9 anos de prisão;

- Ac STJ de 07-12-2023, Proc. 382/21.0JDLSB.L1.S1: rel. Cons. Leonor Furtado: 9 crimes de abuso sexual de criança e um crime de violência doméstica – pena única de 14 anos de prisão;

- Ac. STJ de 04-05-2023, Proc. 34/22.4JDLSB.L1.S1: rel. Cons. Teresa Almeida: 94 crimes de abuso sexual de menores dependentes e 4 crimes de pornografia de menores – pena única de 9 anos de prisão;

- Ac STJ de 15-03-2023, Proc. 4991/21.0JAPRT.S1: rel. Cons. Teresa Almeida: 10 (dez) crimes de abuso sexual de crianças agravado, na forma consumada – pena única de 6 anos de prisão;

- Ac. STJ de 27-09-2023; Proc. 2822/21.0JABRG.S1: rel. Cons. Lopes da Mota: 141 crimes de abuso sexual, da previsão dos artigos171.º, n.º 1, com a agravação do artigo 177.º, n.º 1, al. b) (coabitação) – pena única de 9 anos de prisão;

- Ac. STJ de 19-01-2022, Proc. 327/17.2T9OBR.S1: rel. Cons. Nuno Gonçalves: seis crimes de abuso sexual de menores dependentes e um crime de abuso sexual de crianças agravado – pena única de 10 anos e 6 meses de prisão;

- Ac. STJ de 24-02-2022, Proc. 889/20.7GLSNT.S1: rel. Cons. Adelaide Sequeira: 3 crimes de abuso sexual de criança, 1 crime de importunação sexual e 1 crime de violação – pena única de 8 anos de prisão;

- Ac. STJ de 13-07-2022, Proc. 429/20.8JACBR.C1.S1: rel. Cons. Ana Barata Brito: 14 (catorze) crimes de abuso sexual de crianças do art. 171.º, n.º 1, do CP, 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, do art. 171.º, n.º 2, do CP, 6 (seis) crimes de violação sexual agravada, dos arts. 164.°, n.º 2, al. b), na versão da Lei nº 83/2015, de 05.08, e 177.º, n.º 6, ambos do CP, e 2 (dois) crimes de actos sexuais com adolescentes, do art. 173.º, n.º 1 do CP – pena única de 10 anos de prisão;

- Ac. STJ de 23-11-2022, Proc. 754/20.8JABRG.G1.S1: rel. Cons. Lopes da Mota: 6 crimes de abuso sexual de criança e de menor dependente – pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, numa moldura abstrata da pena aplicável aos crimes, em concurso, de 3 anos e 8 meses a 12 anos e 8 meses de prisão;

- Ac. STJ de 14-07-2022, Proc. 42/19.2JAPTM.E1.S1: rel. Cons. Helena Moniz: 5 crimes de abuso sexual de criança de tenra idade – pena única de 10 anos de prisão;

- Ac. STJ de 07-10-2021, Proc. 39/18.0JAPTM.E1.S1; rel. Cons. Helena Moniz: dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal e um crime de violação agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos164.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma – pena única de 10 anos de prisão;

- Ac. STJ de 06-09-2021, Proc. 218/21.2JACBR.C1.S1: rel. Cons. Teresa Almeida: 4 crimes de abuso de sexual de menor adolescente e um crime de pornografia de menores agravado – pena única de 7 anos e 6 meses de prisão;

- Ac. STJ de 07-07-2021, Proc. 325/20.9PLSNT.S1: rel. Cons. Ana Brito: 10 crimes de abuso sexual de crianças, na forma agravada e 1 crime de abuso sexual de crianças - pena única de 10 anos de prisão;

- Ac. STJ de 05-02-2020, Proc. 366/17.3JAAVR.S1; rel. Cons. Conceição Gomes: 587 crimes de abuso sexual de criança previsto e punido pelos artigos 171º nº 1 e 177º nº 1 alínea b) do Código Penal, 116 (cento e dezasseis) crimes de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos artigos 171º nº 2 e 177º nº 1 alínea b) do Código Penal, 9 (nove) crimes de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos artigos 171º nº3 alínea b) e 177º nº1 alínea b) do Código Penal, e 4 (quatro) crimes de pornografia de menores agravado previsto e punido nos artigos 176º nº 1 alínea b) e 177º nº 1 alínea b) e nº 6 do Código Penal - pena única de 9 (nove) anos de prisão;

- Ac. STJ de 01-10-2020, Proc. 308/18.9GACDV.L1.S1: rel. Cons. Clemente Lima: 8 crimes de abuso sexual de criança e de 13 crimes de abuso sexual de criança - pena única de 6 anos e 6 meses de prisão;

- Ac. STJ de 22-05-2013, Proc. 93/09.5TAABT.E1.S1: rel. Cons. Armindo Monteiro: 4 crimes de abuso sexual de criança, 2 crimes de coação, 1 crime de detenção de arma proibida – pena única de 9 anos de prisão;

Como evola deste acervo comparativo de decisões jurisprudenciais do STJ, não pode considerar-se exagerada, desproporcional ou injusta – antes pelo contrário – a pena única que foi aplicada no presente processo, no acórdão recorrido.

Reaproximando-nos da configuração do caso em apreço nos presentes autos, a moldura penal do cúmulo jurídico é estabelecida entre o limite mínimo de 3 anos de prisão (pena parcelar aplicada mais elevada) e os 25 anos de prisão (limite máximo legal, uma vez que a soma total de todas as penas parcelares aplicadas é de 48 anos de prisão – art. 77.º, n.º 2, do Cód. Penal).

Ponderando, como atrás se antecipou, a gravidade objetiva das atuações do arguido, o grau e intensidade elevados da sua culpa, embora sem passado criminal registado, sendo certo que, não tendo de responder com verdade, o arguido ensaiou uma versão de negativa absoluta da autoria dos factos, não evidenciando, portanto, qualquer arrependimento ou interiorização do desvalor das condutas, afigura-se-nos que a fixação da medida da pena única – podendo, porventura, face às exigências de prevenção geral e especial, ascender a um patamar superior, como o impetrado pelo Ministério Público junto da 1.ª Instância – não pode deixar de quedar-se no ponto fixado pelo tribunal recorrido, face à proibição da reformatio in pejus.

A fixação da pena única em cinco (5) anos prisão (suspensa na sua execução por cinco anos, mediante condições) parece-nos contemplar – porventura até de forma muito benevolente – um forte fator de compressão da medida das penas remanescentes que integram a relação do cúmulo jurídico, ficando muito abaixo do ponto médio da moldura.

Parece, assim, de acordo com os critérios conformadores da fixação da pena única subjacentes à decisão, que nenhuma censura se justifica fazer ao decidido no acórdão recorrido.

Só uma tal medida concreta da pena permitiu, de resto, a aplicação de uma pena de substituição, ou seja, a opção pelo TRP de suspender a execução da pena única de prisão aplicada.

Sublinhando o que se escreveu no acórdão recorrido, relativamente à opção de substituição da pena (única) de prisão aplicada ao arguido:

«(…)

Suspensão

Nos termos do artº 50º CP “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, podendo subordinar a suspensão ao cumprimento de deveres e observância de regras de conduta.

No caso em análise o arguido mantém uma vida social e de trabalho normal, estando bem inserido, evidenciando-se apenas a questão dos abusos sexuais relativamente a jovem vitima, a qual já não reside com o agente do crime.

O arguido AA não tem antecedentes criminais e está bem inserido social e profissionalmente.

Nessa medida afigura-se-nos ser possível emitir um juízo de prognose favorável ao arguido, posto que fiquem salvaguardados tais aspetos e se promova a consciencialização do mesmo com vista a evitar esses comportamentos problemáticos, para o que será de conceder ajuda ao arguido. Neste sentido cf. o ac. STJ de 18/12/2008, www.dgsi.pt, expressando uma jurisprudência constante, “… não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.”

Afigura-se-nos por outro lado que só esta pena de substituição tem essa capacidade preventiva e reintegradora, pelo que a pena de prisão será substituída por pena suspensa por igual período com a obrigação de ressarcir a vitima, em duas tranches, do mal que lhe fez.

Visa-se com tal também consciencializar o arguido do comportamento inadmissível que teve, como os traumas que criou em face do aproveitamento que fez da sua relação de confiança com a jovem com quem então vivia, de modo a evitar o cometimento de novos crimes em idêntica situação e motivação e a gerar a capacidade de vencer a vontade de os praticar, evitando as situações propícias, tanto mais que, sabemos, reside com irmã menor da vitima.

Entende-se ser por estas razões de suspender a execução da pena pelo prazo de duração da pena.», ou seja, durante cinco anos.

Também neste concreto domínio, nenhuma censura se justifica fazer ao decidido no acórdão recorrido, improcedendo também o recurso do arguido nessa parte.

17.3. Penas acessórias

O recorrente pugna pela revogação da sua condenação nas penas acessórias que lhe foram aplicadas, ao abrigo do disposto nos artigos 69.º-B, n.º 2 e 69.º-C, n.º 2, do CP.

A fonte dos artigos 69.º-B e 69.º-C do Código Penal (na redação conferida pelo art. 3.º da Lei n.º 103/2015, de 24-08, versão aplicável à data dos factos) é o art. 179.º (do CP) – que foi revogado pelo art. 9.º da Lei n.º 103/2015, de 24-08 –, bem como o art. 10.º da Diretiva 2011/93/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13-12-2011 (relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substitui a Decisão-Quadro 2004/68/JAI do Conselho).

O referido art. 179.º do CP, na versão da Lei n.º 59/2007, de 04-09, previa a aplicação a quem fosse condenado por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser a) inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela, ou b) proibido de exercer profissão, função ou atividade que implique ter menores sob a sua responsabilidade, educação, tratamento ou vigilância, por um período de dois a quinze anos.

Por seu turno, o art. 10.º da Diretiva 2011/93/UE do Parlamento e do Conselho tem a seguinte redação:

Artigo 10.º

Inibição decorrente de condenações anteriores

1. A fim de evitar o risco de reincidência, os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para garantir que uma pessoa singular condenada por um dos crimes referidos nos artigos 3.º a 7.º seja impedida, temporária ou permanentemente, de exercer actividades pelo menos profissionais que impliquem contactos directos e regulares com crianças.

2. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para garantir que os empregadores, ao recrutarem pessoal para actividades profissionais ou para actividades voluntárias organizadas que impliquem contactos directos e regulares com crianças, tenham o direito de solicitar informação nos termos da legislação nacional, por qualquer meio apropriado, como o acesso mediante pedido ou através da pessoa em causa, acerca da existência de condenações penais por um dos crimes referidos nos artigos 3.º a 7.º constantes do registo criminal ou da existência de qualquer inibição de exercer actividades que impliquem contactos directos e regulares com crianças decorrente dessas condenações.

3. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para garantir que, para a aplicação dos n.ºs 1 e 2 do presente artigo, as informações sobre a existência de condenações penais por uma das infracções referidas nos artigos 3.º a 7.º , ou de inibição do exercício de actividades que impliquem contactos directos e regulares com crianças decorrente dessas condenações, sejam transmitidas em conformidade com os procedimentos estabelecidos na Decisão-Quadro 2009/315/JAI do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2009, relativa à organização e ao conteúdo do intercâmbio de informações extraídas do registo criminal entre os Estados-Membros (2), quando solicitadas ao abrigo do artigo 6.º da referida decisão-quadro com o consentimento da pessoa em causa.

Por outro lado, são as seguintes as infrações referidas nos artigos 3.º a 7.º da mencionada Diretiva: 3.º (crimes relativos ao abuso sexual com crianças); 4.º (crimes relativos à exploração sexual de crianças); 5.º (crimes relativos à pornografia infantil); 6.º (aliciamento de crianças para fins sexuais); e 7.º (instigação, auxílio, cumplicidade e tentativa).

Os referidos preceitos – dos artigos 69.º-B e 69-ºC do Código Penal – foram, igualmente, inspirados e adotados, tendo visto o cumprimento as obrigações decorrentes da ratificação da Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, assinada em Lanzarote, em 25 de outubro de 2007.

A introdução dos limites das penas acessórias dos artigos 69.º-B e 69.º-C do Código Penal é, todavia, da inteira e exclusiva responsabilidade do legislador nacional.

Relembre-se que o art. 179.º do Código Penal previa para tais penas acessórias os limites de 2 anos (mínimo) a 15 anos (máximo).

A moldura das penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B, n.º 2 e 69.º-C, n.º 2 do Código Penal oscila, atualmente, entre os 5 e os 20 anos.

Importa referir que as previsões “incriminatórias” dos (dois) referidos preceitos foram – posteriormente à data da prática dos factos – alteradas pelo artigo 3.º da Lei n.º 15/2024, de 29-01, justamente contemplando a possibilidade de aplicação das mesmas aos crimes previstos nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C, quando a vítima seja menor, assim deixando definitivamente arredada a hipótese de automaticidade de aplicação de tais penas acessórias, antes contemplada na versão anterior, de 2015.

Assim, tem de se assumir que, intercedendo uma versão incriminatória mais favorável ao agente, terá sido essa a que o TRP recorreu, embora sem efeito ou resultado prático distinto daquele que poderia ter ocorrido por efeito de aplicação da anterior versão dos preceitos em apreço.

As sanções previstas em tais preceitos constituem modalidades de punição adicional do agente de certos crimes, neles tipificados, e não uma medida de proteção de crianças, muito embora o seu fundamento último se encontre no superior interesse da criança. Isto mesmo foi, desde logo, referido por Figueiredo Dias na Comissão de Revisão do Código Penal de 1989-1991 (cfr. Actas da Comissão Revisora do Código Penal, 1993, p. 282).

A filosofia de intervenção penal no tocante às penas acessórias contempla a aplicabilidade de sanções acessórias, que complementam um quadro punitivo justificado por razões político-criminais, mas determinadas de acordo com os princípios que presidem aos fins das penas.

No direito vigente, a pena acessória aplica-se juntamente com a pena principal ou de substituição – como é o caso dos autos, em que é aplicada uma pena única de prisão suspensa na sua execução –, em função de exigências preventivas, limitadas pela culpa do agente, que ainda possam subsistir depois de ter sido concretamente determinada a pena a que se junta e o seu cumprimento se prolongue para além desta.

Isso é o que resulta, muito claramente, das penas acessórias que têm como pressuposto a natureza e a gravidade da pena a que se adscrevem. É este também o entendimento consolidado da doutrina e da jurisprudência. Em relação a certo tipo de crimes justificar-se-á, porém, que os agentes, ou determinados agentes, sejam punidos, cumulativamente, com uma pena principal ou de substituição e uma pena acessória. Nisto consistiria a referida aplicação a título principal de uma pena acessória. Com efeito, relativamente a certo tipo de crimes, quando praticados por determinados agentes, pode fazer sentido passar a prever expressamente a aplicação cumulativa de uma pena principal (de prisão ou de multa) e de uma pena acessória para a punição de determinados comportamentos: proibição de conduzir veículos motorizados; proibição do exercício de função, prevista no artigo 66.º do CP, entre outras.

Importa, na verdade, relativamente a muitos tipos de crimes, fazer uma cobertura mais alargada de consequências penais, em função das finalidades de proteção dos bens jurídicos tutelados em causa, ou da personalidade do agente – v.g. pela sua perigosidade ou por uma prognose de probabilidade de reincidência, como é o caso dos crimes sexuais contra crianças – sem o que a mera aplicação de uma pena principal seria ineficaz ou incompleta. A efetividade de uma pena acessória destina-se, no fundo, a complementar e a dar continuidade às consequências sancionatórias da prática do crime, bem como às exigências de prevenção, geral e especial.

Subjacente a esta filosofia está, portanto, um alargamento de proteção dos bens jurídicos, assim se logrando amplificar o âmbito de tutela dos mesmos, através da proibição ou de inibição – total ou parcial – de certos comportamentos, atividades profissionais ou funções, como são, paradigmaticamente, a proibição de conduzir veículos motorizados, a proibição do exercício de certas atividades, profissões ou funções, a proibição de exercer certas responsabilidades, designadamente parentais.

Dado que toda a intervenção penal – compreendendo todos os seus planos, desde a tipificação de condutas e recorte de sanções com relevo criminal ao estabelecimento de restrições de direitos durante o processo, até à imposição/condenação numa pena ou medida de segurança e à respetiva execução – implica a limitação de direitos pessoais e fundamentais, o princípio da proporcionalidade condicionará estruturalmente a conformação da legitimidade de tal intervenção, de acordo com uma noção de gravidade.

Uma correta economia de previsão de penas acessórias deve, por força, enquadrar-se numa sistemática coerente do sistema penal, maxime das reações penais.

Se uma pena a aplicar não pode ter [já] como finalidade evitar o crime cometido e comprovado, a verdade é que, tradicionalmente, a doutrina admite que o princípio da proporcionalidade em sentido estrito tem um alcance de correspondência entre a pena a impor e o crime praticado. Alguma doutrina, no entanto, já considera como mais acertado perspetivar a exigência de proporcionalidade entre a pena imposta e o crime praticado como decorrência do princípio da proporcionalidade em sentido amplo3, relegando a consideração do seu âmbito estrito para uma função da pena com finalidade preventiva, i. e, dirigida a acontecimentos futuros4.

A questão assume inequívoca importância na avaliação pelo legislador, secundada pela intervenção hermenêutica do julgador, na determinação do critério de proporcionalidade (da sua intensidade) das previsões incriminatórias, tanto no plano das penas principais, como das acessórias.

Assim, também uma pena acessória não deve ser desproporcionada ao facto e à culpa do agente demonstrados no processo, e deve, igualmente, ser concordante com a espécie e medida da pena principal aplicada ou aplicável.

Os limites de umas e de outras devem compreender-se entre pontos de distanciamento coerentes e concordantes.

Porém, a gravidade do crime não tem sempre uma relação de correspondência direta com a gravidade da culpa, uma vez que aquela deriva do ilícito, sendo a culpa a possibilidade – que pode ser ausente, diminuída ou integral – de imputar ao agente o desvalor do ilícito5. A gravidade emerge do dano (em sentido lato) suportado pelo bem jurídico-penal e nisso deve haver correspondência com o dano que a pena implica. Tal não significa que a ausência total ou parcial de culpa (inimputabilidade ou imputabilidade diminuída) não se traduza numa exigência de reação pela aplicação de uma medida de segurança – mediante a comprovação da perigosidade – ou de uma pena especialmente atenuada.

Em suma, num Estado plural e democrático, não totalitário nem confessional, com o figurino que o nosso pretende partilhar, a exigência de proporcionalidade é um critério que se impõe em todas as áreas da sua atividade, decorrendo da necessidade de considerar e resolver (todos) os interesses em conflito (atual6 ou potencial7).

Mas um tal Estado, ao pretender respeitar os direitos de todos os seus cidadãos, deve levar em linha de consideração não apenas os direitos das (reais ou hipotéticas) vítimas da criminalidade, mas o sacrifício que envolve para os direitos do agente do crime a proteção dos bens jurídicos das vítimas, através de uma pena.

Ao punir, o Estado não deve, pois, fazê-lo senão na medida do estritamente necessário para proteger os cidadãos, não ignorando os direitos de todos os sujeitos, incluindo os cidadãos delinquentes a quem é aplicada uma pena ou uma medida de segurança. A pena surgirá como resultado necessário para a prevenção do crime e, ao mesmo tempo, sujeita aos limites relacionados com os direitos do imputado, assumindo uma função de prevenção limitada (assim, S. Mir Puig, Derecho Penal, Parte General, 8.ª ed., Reppertor, Barcelona, 2008, pp. 93-95).

Como decorrência do princípio constitucional do direito penal do bem jurídico, e tendo em conta os princípios constitucionais da proporcionalidade e da necessidade da pena, toda a norma incriminatória, na base da qual não seja suscetível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, porque materialmente inconstitucional.

Revertendo ao caso em apreço nos autos, o TRP deliberou, no seu acórdão recorrido, aplicar as penas acessórias ao arguido, ao abrigo do disposto nos artigos 69.º-B, n.º 2 e 69.º-C, n.º 2, do Código Penal, com os fundamentos seguintes:

«(…) no caso dos autos estamos perante um crime do art.172, nº 1, al. B) agravado pelo art. 177, n º 1 al. b) do C.P, com penas manifestamente superiores às citadas pelo ac. do Tribunal Constitucional [Ac. TC n.º 688/2024], pelo que não tem aplicação ao presente caso.

De todo o modo, as sobreditas penas acessórias não são de efeito automático e estão sujeitas a um juízo de valoração e ponderação de aplicação no caso concreto. A respeito vide Acórdão n.º 688/2024 do Tribunal Constitucional, proc. N º 900/2023.

Assim, na esteira de tal juízo de raciocínio, de acordo com a factualidade assente, e considerando os vetores que enunciámos quanto às penas aplicadas, entende-se aplicar, a proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco (05) anos, bem como a proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por igual período de tempo

Ou seja, o tribunal recorrido aplicou a medida das penas acessórias ao arguido, independentemente do juízo de desconformidade constitucional que o respetivo limite mínimo possa merecer, fazendo, no entanto, após um juízo concreto de ponderação, coincidir tais medidas com os limites mínimos cominados para as mesmas, de cinco anos.

Tais medidas concretas, fixada a tais penas acessórias, são idênticas à medida da pena única (substituída), de cinco (5) anos de prisão.

Face às exigências preventivas que tais penas visam acautelar, a fixação da medida concreta das penas acessórias em quantum coincidente com o limite legal mínimo, não pode surgir, a qualquer título, como desajustada ou desproporcionada.

Não descortinamos, enfim, razões válidas para discordar dos critérios de determinação das penas acessórias concretas enunciados pelo tribunal recorrido, pelo que se mantém a medida de tais penas – coincidente com o limite legal mínimo aplicado – em que o arguido foi condenado, as quais, por serem de natureza diferente, não impõem a necessidade de realização de cúmulo jurídico entre si.

Improcede, assim, este segmento do recurso do arguido.

18.

iv. Valor da indemnização civil – Conclusões 46. a 48.

O Arguido e demandado AA foi condenado a pagar à demandante-ofendida BB a indemnização de vinte mil Euros (€ 20.000,00), acrescida de juros de mora desde a data da decisão recorrida até efetivo e integral pagamento.

O arguido-demandado sustenta que, a manter-se a sua condenação, impõe-se a necessidade da redução de tal valor compensatório para € 5.000,00, considerando a idade da vítima aquando da prática dos factos, a sua participação nos mesmos, e o distanciamento relativamente às suas consequências.

A fundamentação da decisão condenatória, no plano civil é, no essencial, a seguinte:

«No caso vertente, demonstrou-se, para além do mais, que, como consequência direta e necessária da atuação do arguido, BB sofreu ao nível psicológico, “sofreu tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade, o que ainda hoje se mantêm.

Em virtude da conduta do arguido, a ofendida apresenta dificuldades ou alterações de comportamento, mostrando-se emocionalmente instável, assim como evidencia sintomatologia ansiogena, verbalizando sentimentos de culpa por não ter conseguido impedir a continuidade da situação abusiva.

Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu naturalmente danos ao nível do ajustamento psicológico, evidenciando, além da ansiedade, perturbação e stress, que lhe despoletam medo e estados de nervos, de nojo e de choque, além da perturbação no exercício da sua sexualidade.”

Assim, a menor sofreu uma miríade de atos de jaez sexual na sua pessoa, por parte do Arguido, passível de atentar contra sua liberdade e autodeterminação sexual, o que equivale a dizer que merece ser ressarcida desses comportamentos.

Nessa esteira, considerando as condições económicas do responsável civil; as circunstâncias em que foram causados os comportamentos; a gravidade das consequências sofridas e um juízo de equidade, reputa-se adequado fixar a compensação pelos danos sofridos em € 20.000,00 (vinte mil Euros), mostrando-se prejudicada a atribuição oficiosa de uma indemnização, ante a procedência parcial do pedido de indemnização civil formulado nos autos.»

Apreciemos, pois, se se mostra justificada a condenação do recorrente no plano civil e, a confirmar-se, se um tal valor compensatório é justo e adequado.

De acordo com o preceituado no art. 129.º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos de qualquer natureza, que possam emergir da prática de crime, é regulada, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil, havendo assim que ter em conta o disposto nos artigos 483.º e ss. e artigos 562.º e ss. do Código Civil. Nessa medida, reconhece-se à reparação do dano emergente da prática de crime uma natureza não essencialmente penal.

Da análise daquele primeiro preceito do Código Civil, decorre que o instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos exige o preenchimento dos seguintes requisitos:

a) a existência de um facto voluntário do agente;

b) que esse facto seja ilícito, isto é, que se traduza na violação de um direito alheio ou de uma disposição destinada a proteger interesses alheios;

c) que exista um nexo de imputação do facto ao lesante ou, por outras palavras,

d) que da violação do direito subjetivo ou da lei sobrevenha um dano, e ainda

e) que haja um nexo de causalidade entre esse dano e o facto praticado pelo agente, de modo que possa afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.

Está em causa nos autos a atribuição à demandante BB de uma indemnização por danos não patrimoniais, sendo responsável o arguido-demandado.

Atento o disposto no art. 483.º, n.º 1, do Código Civil, a ilicitude civil do facto pode resultar da violação de um direito de outrem ou de norma legal destinada a proteger interesses alheios, sendo que a imputação dos factos ao arguido a título de culpa resulta da sua imputabilidade e responsabilidade penais e do disposto no art. 487.º, n.º 2 do Código Civil.

Nos termos do art. 496.º, n.º 1, do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, sendo a liberdade e autodeterminação sexual bens cuja dignidade e valor determinam que se entenda que a respetiva violação é suscetível de fundar direito a indemnização por danos não patrimoniais.

Na determinação do quantitativo indemnizatório dever-se-á ter em conta que, aplicando o n.º 4 do artigo 496.º do Cód. Civil, o mesmo fixar-se-á equitativamente, atendendo-se aos seguintes fatores do art. 494.º, para onde remete o disposto no n.º 3 daquele art. 496.º: “O grau de culpa do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso”.

A possibilidade de a vítima obter indemnização por danos causados pelo crime no âmbito do processo penal encontra a sua base jurídica nos artigos 129.º do Código Penal (que remete para o direito civil) e nos artigos 71.º e segs. do CPP (que, com as exceções previstas, obriga à dedução do pedido e à fixação no processo penal).

Rompendo com o modelo anterior e pondo termo à controvérsia doutrinária então instalada a propósito da sua natureza jurídica, tendo em conta o disposto no artigo 75.º, § 3.º, do Código Penal de 1886 – segundo o qual o condenado incorria “na obrigação de indemnizar o ofendido do danos causado” – e o princípio, então vigente, de obrigatoriedade de o tribunal “arbitrar aos ofendidos” “uma quantia como reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida”, nos termos do artigo 34.º, § 2.º, do CPP de 1929 – a determinar “segundo o prudente arbítrio do legislador, que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor” –, o regime instituído pelo Código Penal e pelo Código de Processo Penal atuais veio alterar profundamente a situação no que diz respeito ao carácter oficioso e aos critérios do arbitramento da indemnização.

Muito esquematicamente, o que agora importa sublinhar é que, como é sabido, a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime, na vigência do Código Penal de 1886 e do CPP de 1929, era considerada, segundo parte da doutrina, um efeito penal da condenação, uma “parte da pena” ou uma sanção penal reparatória, que não se identificava com a indemnização civil; hoje, porém, a questão releva exclusivamente no plano do direito civil (artigo 129.º do Código Penal). Mantendo-se o princípio de adesão obrigatória, nos termos do artigo 71.º do CPP, a condenação em indemnização só pode ocorrer na procedência de um pedido do lesado, isto é, da pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime (artigo 74.º do CPP), formulado no processo penal, com observância do disposto nos artigos 73.º e ss. do CPP (sobre este ponto, para maiores desenvolvimentos, cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra: Coimbra Ed., 2011, em particular §§ 13, 64 e 72, bem como, por todos, o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 1/2013, DR 1.ª série, pp. 58-62). Como se lê neste Acórdão n.º 1/2013: «Passando a ser determinada de acordo com os pressupostos e critérios, substantivos, da lei civil, por força da norma do art. 128.º do CP de 1982 (reproduzida posteriormente, no art. 129.º, do CP/95), a reparação passou a considerar-se, como pura indemnização civil que, sem embargo de se lhe reconhecer uma certa função adjuvante, não se confunde com a pena. No plano do direito adjectivo, o actual Código de Processo Penal (CPP), mantendo o sistema de adesão, veio conferir àquela acção de indemnização pela prática de um crime, formalmente enxertada no processo penal, a estrutura material de uma autêntica acção cível, acolhendo, inequivocamente, os princípios da disponibilidade e da necessidade do pedido (arts. 71.º, 74.º a 77.º e 377.º, do CPP)».

Como resultado dos crimes que aqui se dão como provados, importa, antes demais, relevar os danos relativos ao seu desenvolvimento sexual, desde logo por se ter provado que «Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade, o que ainda hoje se mantêm.» (L.) e «Em virtude da conduta do arguido, a ofendida apresenta dificuldades ou alterações de comportamento, mostrando-se emocionalmente instável, assim como evidencia sintomatologia ansiogena, verbalizando sentimentos de culpa por não ter conseguido impedir a continuidade da situação abusiva» (M.) e, ainda, porque «Em consequência da conduta do Arguido, a ofendida sofreu naturalmente danos ao nível do ajustamento psicológico, evidenciando, além da ansiedade, perturbação e stress, que lhe despoletam medo e estados de nervos, de nojo e de choque, além da perturbação no exercício da sua sexualidade» (N.)»

Por outro lado, foi dado como provado que o arguido e demandado, padrasto da vítima, «(…) agiu sempre com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que, aquando dos factos, a BB tinha 17 anos de idade e que, como tal, carecia de uma completa capacidade para se autodeterminar sexualmente, e não ignorando que, ao agir daquela forma, prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual;

- O arguido sabia também que, assumindo ele a figura paterna no seio do agregado familiar, a BB tinha confiança nele, e que, em virtude disso, a mesma não tinha completo discernimento para o desvalor dos actos por ele praticados, tendo ele também utilizado a sua autoridade para conseguir os seus intentos;

- Em todas as situações acima descritas, o arguido agiu sempre de forma voluntária e consciente e, não obstante ter o perfeito conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se absteve de as levar a cabo.»

Mostram-se, assim, demonstrados os danos e nexo de imputação objetivo e subjetivo, pressupostos pela responsabilidade civil extracontratual.

Passando a abordar a estrutura do dano não patrimonial e sua reparação, dir-se-á que «Dano não patrimonial» é o que não é, por natureza, suscetível de avaliação pecuniária, reconduzindo-se a prejuízos de carácter imaterial, espiritual ou moral, sendo que a sua ressarcibilidade se afere pela respetiva gravidade. Esta, por seu turno, depende de critérios objetivos, mas, face à insuscetibilidade da sua reparação, pretende-se a substituição dos prejuízos por uma indemnização pecuniária, que não é uma verdadeira «indemnização» – própria dos danos patrimoniais –, mas uma compensação, sendo por isso, distintos os seus pressupostos e finalidades.

No quadro da reparação dos danos não patrimoniais na sequência da prática de crimes, como os dos autos, de abuso sexual de menor dependente, pelo padrasto – pelo carácter irreversível e irreparável das suas consequências – importa sublinhar a insusceptibilidade de cálculo de um valor adequado a reparar tais danos. Tal incalculabilidade não significa que não se possa arbitrar um valor tendente a compensar e, nessa medida, ao menos parcialmente, reparar pecuniariamente a vítima de tais comportamentos.

O art. 496.º, n.º 4, do CC convoca a equidade para a determinação dos danos não patrimoniais. Apesar de tais prejuízos não terem uma exata tradução pecuniária, só através de uma indemnização de tal natureza poderá de algum modo, reparar-se aqueles danos. Na verdade, os danos ou o mal provocados à vítima são irreversíveis, sendo, num certo sentido, insuscetíveis de quantificação. É a não patrimonialidade dos danos – que são originariamente subjetivos (pense-se em realidades como a mágoa, sofrimento, dores, ansiedade, preocupação, privação, defraudação de expectativas, e outros estados de ânimo) – que justifica a intervenção da equidade. O grau de culpa do lesante e as situações económicas do lesante e do lesado são apenas critérios casuísticos auxiliares na determinação da indemnização de tais danos (neste sentido, Nuno Pires Salpico, Cálculo de Danos e Equidade - Aplicação, alcance e limites do artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil, Coimbra: Almedina, 2013, pp. 291-292).

Na determinação do quantitativo indemnizatório dever-se-á ter em conta que, aplicando o n.º 4 do artigo 496.º do Cód. Civil, o mesmo fixar-se-á equitativamente, atendendo-se aos seguintes fatores do art. 494.º, para onde remete o disposto no n.º 3 daquele art. 496.º: “O grau de culpa do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso”.

A equidade é um critério para a correção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.

Na atribuição dessa indemnização devem respeitar-se «todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida» (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., p. 501 e, entre outros, Ac. do STJ de 05-11-2008, in Proc. n.º 3266/08, da 3ª Secção).

Nessa medida, ultrapassando a questão da aplicabilidade, ou não, do disposto no n.º 3 do artigo 566.º do CPP à determinação da fixação de indemnização por recurso à equidade, importa densificar esta, por referência ao caso concreto.

Não há, no caso apreço, pressupostos que impusessem a limitação da indemnização, que, nos termos do artigo 494.º do CC são o “grau de culpabilidade” do agente, a “situação económica deste e do lesado” e as “demais circunstâncias” do caso, podendo, em certos casos, a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados.

Tais circunstâncias não ocorrem, pois já se antecipou que a culpa do demandado é elevada. A sua situação económica, não sendo de grande desafogo, é de relativa estabilidade decorrente do exercício de atividade profissional remunerada, ao passo que à demandante não só não é conhecido património, como depende economicamente de terceiros, sendo certo que as demais circunstâncias recomendam a atribuição de uma indemnização compatível e adequada à natureza e gravidade dos danos não patrimoniais.

É consensual que as perturbações e traumas provocados por abusos sexuais na infância têm consequências múltiplas, causando danos psicológicos e emocionais que persistem ao longo da vida, sendo, muitas vezes, a sua completa perceção pela vítima, quando muito jovem, adquirida já em idades distantes da prática dos factos, comprometendo o seu desenvolvimento físico, psíquico e social e afetando os seus futuros relacionamentos íntimos e sociais. Daí que, embora normalmente dotadas de resiliência, as pessoas que foram vítimas de abusos, não deixam de sofrer consequências permanentes de tais atos.

A menor BB suportou abusos sexuais do arguido, seu padrasto, na casa em que coabitava com este e a mãe, a irmã, os avós maternos, a tia e um primo, sendo vítima de pelo menos dezasseis crimes de abuso sexual de menor dependente, na forma agravada, cometidos pelo arguido, tendo-se consubstanciado em relações de cópula vaginal.

Todos estes factos ocorreram por via do aproveitamento da falta de experiência e esclarecimento da vítima, ainda criança, com quem o recorrente tinha uma relação de “pai-filha”, aproveitando-se dessa relação de confiança para satisfazer os seus instintos sexuais, com total desprezo pela sua idade e condição. Sendo certo que, na sua posição, lhe incumbia velar pela segurança, educação, proteção e desenvolvimento harmonioso da criança, e que, com os factos descritos, o recorrente infringiu gravemente esses deveres, com perfeito conhecimento da perturbação que os seus comportamentos provocariam na formação e desenvolvimento da personalidade da menor.

A intensidade e duração de tais factos, bem como a gravidade das suas repercussões, não poderão deixar de ter especial impacto no são e equilibrado desenvolvimento da sua personalidade. Tudo isto a evidenciar o elevado grau de culpabilidade do recorrente, nas concretas circunstâncias do caso, que a lei (artigo 496.º, n.º 4, do CC) impõe que seja levada em conta na determinação do quantitativo da indemnização, a título de danos não patrimoniais, de acordo com a equidade.

Importa, por outro lado, para integração do critério de equidade, ponderar a situação económica e patrimonial da vítima-lesada e do demandado-lesante.

Também no contexto da reparação civil se deve atender a uma ideia de recentramento da vítima no sistema penal.

A fragilidade da situação económica da vítima é notória: não tem rendimentos próprios, encontrando-se num relacionamento afetivo com pessoa de escalão etário mais avançado.

Ao contrário, o arguido é (ou foi) ajudante de armazém, tendo desempenhado outras atividades profissionais, como panificador por conta dos sogros, dispondo de capacidade de angariar meios para garantir a efetivação de um valor de indemnização que represente um montante adequado à reparação exigida nos autos, ignorando-se se detém poupanças que possam, no imediato, responder pela satisfação, total ou parcial, daquele.

É legítimo inferir que, da prática, pelo arguido-demandado, dos factos criminalmente relevantes, provados nos autos, resultam, entre outras, as seguintes consequências para a ofendida:

- tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade, o que ainda hoje se mantêm;

- dificuldades ou alterações de comportamento, mostrando-se emocionalmente instável,

- sintomatologia ansiogena, verbalizando sentimentos de culpa por não ter conseguido impedir a continuidade da situação abusiva e, ainda,

- danos ao nível do ajustamento psicológico,

- ansiedade, perturbação e stress, que lhe despoletam medo e estados de nervos, de nojo e de choque, e

- perturbação no exercício da sua sexualidade.

Em suma, mostram-se provados efeitos nocivos no desenvolvimento, bem-estar, saúde, autoestima, na relação familiar e na vivência normal e integral da sua juventude e na integração social da vítima. Efeitos que, como é sabido, se repercutem, em muitos casos, ao longo de anos.

Os danos que devem ser compensados não são apenas (como se fosse pouco) o sofrimento passado, mas o sofrimento futuro, algo sempre difícil de prever, quantificar e determinar com exatidão, pela imprevisibilidade das condições de vida que a vítima venha a enfrentar.

Por isso, nenhum obstáculo existe a que não se limite a indemnização a valor inferior ao que corresponde aos danos. A respetiva quantificação deverá convocar critérios de equidade, como já se antecipou. A equidade, enquanto modalidade de realização da justiça do caso concreto, visa suprir incertezas e dúvidas do material probatório, bem como a temperar a rigidez de certos resultados de pura subsunção jurídica, na busca de uma justa composição do pleito, apelando a dados de razoabilidade e de equilíbrio, como a normalidade, proporcionalidade e adequação às circunstâncias concretas do caso, sem resvalar para o arbítrio ou para a superação da falta de prova de certos factos.

Entre o risco da subcompensação e da sobrecompensação, a lei aponta, no art. 566.º, n.º 3, do C.C., para que privilegie esta última, a favor do lesado, como forma de superar a impossibilidade de uma certeza epistemológica e normativa, face ao que é impossível quantificar ou calcular (assim, também, Nuno Salpico, ob. cit., pp. 242-243).

Os factos que resultaram apurados no caso vertente, que traduzem a violação de um direito de personalidade, absoluto, da vítima-ofendida, enquanto menor, na vertente do direito à integridade pessoal e inviolabilidade da sua personalidade física e moral (cfr. também art. 70.º, n.º 1, do C. Civil), constituem violação de uma das mais significativas dimensões da dignidade humana, valor fundacional de um Estado de direito.

O período de duração em que persistiram os abusos em causa – cerca de seis meses – ocasionou, inevitavelmente, graves consequências psicológicas para a demandante, que inquestionavelmente se projetarão na vida futura.

Mostrando-se provado que todos os atos foram praticados contra a liberdade de autodeterminação da demandante, que era menor, o que agrava tal violação, fica igualmente provada a ofensa ao desenvolvimento da personalidade e ao saudável desenvolvimento psicológico e afetivo e da sua consciência sexual, da sua autoimagem, das suas competências de relacionamento íntimo futuro.

Os estudos científicos das perturbações e doenças resultantes de crimes desta natureza revelam que os efeitos danosos se estendem, muitas vezes, ao longo da vida e que a sua completa perceção pela vítima, quando muito jovem, é adquirida, em número considerável de casos, em idades distantes da prática dos factos (assim, entre outros, Ac. STJ de 15-03-2023; P. 4991/21.0JAPRT.S1 – rel. Cons. Teresa de Almeida).

Sintetiza, neste sentido, Laura Jardim Maciel, «No que se refere ao primeiro objetivo, o abuso sexual na infância ou adolescência é um fator de risco para sintomas de stress, ansiedade e depressão, bem como para a versatilidade do comportamento desviante no início da idade adulta. Relativamente à saúde mental, estes resultados são congruentes com os estudos de Spataro, Mullen, Burgess, Wells e Moss (2004) e Afifi e colaboradores (2014) que sugerem que a presença de sintomas de ansiedade, stress e depressão são proeminentes em adultos que experienciaram abuso sexual infantojuvenil, sendo assim possível hipotetizar que, tal como demonstrado na literatura, esta população específica detém uma maior probabilidade de desenvolver perturbações de humor, ansiedade e stress (Collin-Vézina & Hébert, 2005; Pollio et al., 2011; Spataro et al., 2004). Este estudo sugere, por conseguinte, um vínculo associativo entre o abuso sexual infantojuvenil e indicadores de psicopatologia ao longo da vida.» («Abuso sexual infanto-juvenil e as suas características: impacto na saúde mental e comportamento desviante», ISPA, 2018, p. 33 (in: https://repositorio.ispa.pt)).

A defraudação do direito a uma existência saudável na infância – e cuja violação se repercutirá na vida adulta –, do que era, de certa forma, garante o demandado-arguido, enquanto padrasto da demandante, não se confunde com a violação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, justificando-se, assim, autonomizar tal direito. Como referem Mafalda Miranda Barbosa e Tomás Prieto Álvarez, «Situando-nos nas relações entre privados, significa isto que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade vai implicar o poder de exigir dos demais membros da comunidade a abstenção de todo e qualquer comportamento que possa despersonalizar o homem, transformando-o num objeto técnico-funcional, e de todo e qualquer comportamento que implique a submissão do sujeito a campanhas de manipulação da vontade» (O Direito ao livre desenvolvimento da personalidade – Sentido e Limites, Coimbra: Gestlegal, 2020, pp. 120-121 ).

Adscrever-se-á às demais consequências dos crimes, ainda, a privação futura do normal e saudável convívio com a família natural, em consequência dos factos praticados pelo demandado, gerando sentimentos ambivalente por parte da demandante e distintas reações e posicionamentos por parte dos familiares.

No processo de atribuição de tal compensação, há de ser, naturalmente, levado em conta o estatuído no art. 8.º, n.º 3, do C.C. – «3. Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito» –, designadamente no tocante ao nivelamento por outros montantes de compensação atribuídos em casos idênticos.

Porém, se, por um lado compreendemos que tal valor não se deva distanciar de outros atribuídos em casos semelhantes, importará considerar as circunstâncias particulares e singulares da presente situação, não podendo o arco dos montantes pecuniários fixados noutros casos semelhantes constituir fator de imobilismo paralisante para a fixação de outros valores mais atualizados, condignos e adequados.

Não se justifica, enfim, intervir corretivamente no tocante ao montante da indemnização fixado pelo TRP, no acórdão recorrido, perante a pretensão formulada pelo arguido no sentido da sua redução.

Em consequência, julga-se improcedente o pedido do demandado no sentido de o montante da indemnização civil por danos não patrimoniais ser reduzido para o valor de cinco mil Euros (€ 5.000,00), mantendo-se a sua condenação no montante de vinte mil Euros (€ 20.000,00).

III. Decisão

Por tudo quanto se expôs, acordam os juízes Conselheiros desta secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- determinar, ao abrigo do disposto no art. 380.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3, do CPP, a correção das expressões «(o cúmulo material atingiria 45 anos)», substituindo-a pela expressão «(o cúmulo material atingiria 48 anos)», bem como «Por cada um dos 15 crimes (…)», substituindo-a por «Por cada um dos 16 crimes (…)», uma vez que é percetível que as mesmas resultam de lapsos de escrita e não importam modificação essencial da decisão, e,

- no mais, julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido-demandado AA, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido - art. 513.º, n.º 1 do CPP, fixando-se a taxa de justiça em sete (7) UC, nos termos do art. 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III a ele anexa.

Custas na parte cível, pelo demandado-recorrente - artigos 523.º C. P. Penal e 527.º do C. P. Civil.

*

*

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 15-05-2025

Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos (art. 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

Os juízes Conselheiros

Jorge dos Reis Bravo (relator)

Ernesto Nascimento (1.º adjunto)

Ana Paramés (2.ª adjunta)

_____________________________________________

1. Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, assinada em Lanzarote em 25 de outubro de 2007, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 90/2012 de 28 de maio e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 75/2012, pub. no DR 1.ª série - N.º 103 - 28 de maio de 2012, entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa em 01-12-2021 (cfr. https://www.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-do-conselho-da-europa-para-protecao-das-criancas-contra-exploracao-sexual-e--0).

2. Numeração retificada pela declaração publicada no JOUE de 21-02-2012, L 18/7, de 21 de janeiro de 2012, uma vez que na publicação original era designada como «Diretiva 2011/92/EU». Cfr. nota 19 do Parecer do CC da PGR n.º 35/2016, de 23-03-2017.

3. De acordo com Gloria Patricia Lopera Mesa, o objetivo de proteção contra o crime não seria suficiente para justificar a necessidade de uma proporção entre crime e pena. Seria necessária uma segunda finalidade: «reduzir a violência punitiva do Estado» (Principio de proporcionalidad y ley penal. Bases para un modelo de control de constitucionalidad de las leyes penales, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2006, pp. 197 ss, 213 ss).

4. Cfr. Santiago Mir Puig, «O princípio da proporcionalidade enquanto fundamento constitucional de limites materiais do direito penal», RPCC, Ano 19, N.º 1, jan.-mar. 2009, pp. 17 ss. De acordo com este Autor, dentro da abordagem da incidência do princípio da proporcionalidade, deve adotar-se uma perspetiva «ex ante que é própria da prevenção» e «Se o crime é cometido, a sanção deve ser imposta não como retribuição do acontecimento passado, mas para confirmar a seriedade da ameaça legal e manter a sua eficácia de prevenção, assumindo ainda os efeitos de prevenção especial para o criminoso» (loc. cit., pp. 21 e 22).

5. O facto de a culpa do agente imputável ser intensa (total) na prática de um crime pouco grave, não aumenta a sua gravidade, enquanto tirar a vida a outrem pode ser levado a cabo sem culpa ou com culpa diminuída, o que também não reduz, neste sentido, a gravidade do homicídio.

6. Quando se estabelecem conflitos em casos concretos, entre princípios conflituantes, dotados de idêntica dignidade.

7. Quando o legislador pretende antecipar a regulação do conflito entre interesses, através de regras precisas e prévias, preferencialmente consagradas em lei escrita.