RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
IDENTIDADE DE FACTOS
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
ABUSO DO DIREITO
INTERESSE EM AGIR
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I. É requisito substancial do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência que acórdão recorrido e acórdão fundamento assentem, de modo expresso, e não meramente tácito ou implícito, em opostas soluções de direito, partindo de idênticas situações de facto.
II. As situações de facto objecto do acórdão recorrido e do acórdão fundamento não são idênticas pois, no primeiro, o despacho recorrido admitiu um jornalista, no exercício da sua actividade profissional, a intervir como assistente em processo criminal [fase de inquérito] que tinha por objecto crimes catalogados na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal, e no segundo, o despacho recorrido revogou a qualidade de assistente, a jornalista, no exercício da sua actividade profissional, em processo criminal [fase de instrução] que tinha por objecto crimes catalogados na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal, com fundamento em abuso de direito e falta de interesse em agir do jornalista/assistente.
III. A diversidade de situações de facto determinou que a Relação, no acórdão recorrido, fosse chamada a decidir sobre a verificação dos pressupostos materiais de que depende a aquisição da qualidade processual de assistente, e no acórdão fundamento, diferentemente, fosse chamada a decidir sobre a existência ou não, de abuso de direito na constituição de assistente e de falta de interesse em agir de jornalista já constituído assistente.
IV. Desta diversidade resulta que acórdão recorrido e acórdão fundamento, não apreciaram nem decidiram a mesma questão de direito sob distintos critérios e dando-lhe opostas soluções jurídicas.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

O recorrente AA, com os demais sinais nos autos, vem, nos termos e para os efeitos dos arts. 437º e seguintes, do C. Processo Penal, interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Dezembro de 2023 (acórdão recorrido), proferido nos autos (processo nº 5340/17.7T9LSB-AR.L1), por entender que o mesmo está em oposição com o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de 13 de Outubro de 2020 (acórdão fundamento), proferido no processo nº 122/13.8TELSB-BJ.L1, terminando o requerimento de interposição do recurso com a formulação das seguintes conclusões:

I) DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

1. Com base no mesmo núcleo de factos, o Tribunal da Relação de Lisboa chegou a decisões diametralmente opostas, estando reunidas as condições para a verificação da oposição de julgados e, consequentemente, para a apreciação do presente recurso por este Colendo Tribunal nos termos e para os efeitos dos artigos 437.º, n.º1 e 2, e 438.º, todos do CPP.

II) Do Acórdão Recorrido:

2. Nos presentes autos, por despacho proferido no dia 29.07.2023 pela Srª Juíz de Instrução Criminal foi admitida a constituição como Assistente do ora recorrente ao abrigo da alínea e), do n.º 1, do artigo 68.º do CPP.

3. Não se conformando com a sobredita decisão, a Exma. Senhora Procuradora do Ministério Público (MP) interpôs recurso do despacho proferido pelo Tribunal Central de Instrução criminal tendo o mesmo sido julgado procedente e em consequência, pelo Acórdão ora recorrido foi revogada a decisão da Exma. Senhora Juiz de Instrução e substituída por outra que retirou a qualidade de Assistente ao Jornalista nos presentes autos.

4. Considerou o Acórdão recorrido ser ilegítima a constituição do jornalista ora recorrente como Assistente nos presentes autos, tendo em conta a alegada incompatibilidade das suas funções profissionais com os deveres do estatuto do Assistente e a realização da justiça no caso dos crimes previstos na alínea e), n° 1, artº 68º do CPP.

5. Este Acórdão já transitou em julgado e não é suscetível de recurso ordinário, nos termos previstos no artigo 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, uma vez que a decisão recorrida é uma decisão que não conhece, a final, do objeto do processo.

III) Do Acórdão Fundamento

6. Por sua vez, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no dia 13 de outubro de 2020 no âmbito do Processo nº 122/13.8TELSB-BJ.L1 já junto Doc. 1 deu resposta diversa à mesma questão fundamental de direito que está em discussão no presente recurso.

7. Por despacho proferido em 10.02.2015 pelo Juiz de Instrução Criminal, o Jornalista do Jornal “...” BB foi admitido a intervir na qualidade de Assistente nos autos de inquérito relativos ao Processo n.º122/13.8TELSB (Operação Marquês).

8. A 21 de novembro de 2019, no âmbito dos mesmos autos, o Tribunal Central Criminal de Lisboa proferiu despacho através do qual retirou a qualidade de sujeito processual de Assistente ao jornalista BB, por considerar que haveria abuso de direito na posição processual e atribuições de Assistente em face da profissão exercida pelo requerente.

9. Inconformado com esta decisão o jornalista BB interpôs recurso da mesma para o Tribunal da Relação de Lisboa.

10. Conhecendo deste recurso, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 13 de Outubro de 2020 proferido no processo 122/13.8TELSB- BJ.L1 já transitado em julgado, revogou o despacho recorrido, voltando o jornalista a assumir a qualidade de Assistente nos autos.

11. Este Acórdão não é suscetível de recurso ordinário, nos termos previstos no artigo 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, uma vez que a decisão recorrida é uma decisão que não conhece, a final, do objeto do processo.

IV) Da verificação dos pressupostos do presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência

12. Resulta do exposto que a mesma questão de direito foi decidida em sentidos opostos pelo Acórdão recorrido e pelo Acórdão fundamento, na vigência da mesma legislação.

13. Na verdade, a questão de direito que foi submetida à apreciação deste Tribunal nestes autos e em que foi proferido o Acórdão fundamento é precisamente a mesma: admissibilidade da constituição como Assistente por jornalista ao abrigo da alínea e) do artigo 68º do CPP no âmbito de processos de manifesto interesse público.

14. É manifesto que os dois acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação, pois está em causa a constituição como Assistente de jornalista, formulados ao abrigo da alínea e) do artigo 68.º, n.º 2, do CPP, não se tendo registado qualquer alteração relevante do parâmetro legislativo relevante para a decisão da questão, desde a data da prolação do acórdão fundamento até à data da prolação do acórdão recorrido, mormente das disposições previstas no CPP.

15. Dúvidas não restam que a questão de direito supra identificada foi decidida em sentido oposto pelo Acórdão fundamento e pelo Acórdão recorrido, uma vez que, no primeiro se julgou que o jornalista se poderia constituir como Assistente ao abrigo da alínea e) do artigo 68º e 69º do CPP tendo sido “devolvida” essa qualidade ao recorrente, não existindo qualquer incompatibilidade entre a figura do assistente enquanto colaborador do MP e o papel do jornalista e ao invés, no segundo, foi decidido “retirar” a qualidade de Assistente ao jornalista por se considerar que o mesmo não revestia legitimidade para o efeito, “fugindo ao escopo” do abrigo da alínea e) do artigo 68º e 69º do CPP por se considerar que a figura do Assistente não é compatível com a função do jornalista.

16. Esta divergência é expressa, porque os mesmos preceitos legais foram interpretados e aplicados em sentido diverso a uma situação idêntica.

17. No Acórdão fundamento foi revogada a decisão do Tribunal de Instrução criminal que havia retirado ao jornalista a qualidade de Assistente ao abrigo da alínea e) do artigo 68º do CPP tendo sido “devolvida” essa qualidade ao recorrente.

18. Já no Acórdão recorrido foi revogada a decisão do Tribunal de instrução que havia admitido a constituição como assistente do jornalista ora recorrente, tendo-lhe sido “retirada” essa qualidade de sujeito processual.

19. Em consequência e como se viu, pelo Acórdão fundamento julgou-se legítima a constituição como Assistente do jornalista ao abrigo da alínea e) do nº1 do artigo 68º e 69º do CPP e pelo Acórdão recorrido, julgou-se ilegítima nos termos das mesmas disposições legais aplicadas.

20. A orientação perfilhada no Acórdão recorrido não está de acordo com a perfilhada no Acórdão fundamento.

21. Perante uma coincidência entre a questão jurídica conhecida no Acórdão recorrido e a conhecida no Acórdão fundamento, foram acolhidas soluções antagónicas da mesma questão fundamental de direito.

22. Por tudo o exposto, estão reunidos os pressupostos legais para a admissão do presente recurso, fixados no artigo 437.º do CPP, uma vez que a mesma questão de direito foi decida em sentidos opostos por dois acórdãos deste Tribunal da Relação da Lisboa, proferidos no domínio da mesma legislação e que não admitem recurso ordinário.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá proferir-se Acórdão que julgue verificados os pressupostos legais do presente recurso e que, em consequência, o considere admissível, determinando-se o seu prosseguimento com as devidas consequências legais.

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Foi cumprido o disposto no art. 439º, nº 1, do C. Processo Penal, tendo respondido a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, em síntese, que acórdão recorrido e acórdão fundamento têm por thema decidendum a mesma questão no quadro da mesma legislação, a legitimidade da constituição de jornalista como assistente, ao abrigo do disposto no art. 68º, nº 1, e), do C. Processo Penal, que no acórdão recorrido foi decidido admitir o jornalista como assistente, enquanto no acórdão fundamento foi decidido revogar o despacho que havia admitido o jornalista como assistente, que aparenta existir oposição de julgados e que o recorrente tem legitimidade, e concluiu pela verificação dos pressupostos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.

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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o nº 1 do art. 440º do C. Processo Penal, emitiu douto parecer, que rematou como segue:

III

Em síntese:

Não é viável extrair qualquer relação de oposição de julgados nas duas decisões identificadas nos autos, reportando-se:

-A Decisão-Recorrida, a deliberar pela inadmissibilidade da constituição de jornalista como assistente, em virtude da incompatibilidade legal das duas qualidades jornalista (cfr, o art. art. 68º/1-e) do Código de Processo Penal);

-A Decisão-Fundamento, a deliberar, tão-só, que a retirada da qualidade de assistente a jornalista pecou por falta de contraditório e de elementos indiciários do “abuso de direito” e da ausência de “de interesse em agir”.

IV Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

Deve ser rejeitado o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.

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Assegurado o contraditório, respondeu ao parecer o recorrente, alegando, em síntese, que a questão a dirimir é a de saber se um jornalista pode constituir-se assistente em processo de manifesto interesse público, tendo por objecto a prática de crimes elencados na alínea e) do art. 68º do C. Processo Penal, questão esta que foi decidida em sentidos opostos por acórdão recorrido e acórdão fundamento, assim produzindo decisões contraditórias e sendo manifesta a oposição de julgados, e concluiu pela verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.

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Foi realizado o exame preliminar referido no nº 1 do art. 440º, do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência, nos termos do nº 4 do mesmo artigo.

Cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

Âmbito do recurso

A questão objecto do recurso, tal como é configurada pelo recorrente AA é a de saber se existe oposição de julgados entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido relativamente à legitimidade de um jornalista para, nesta qualidade profissional, se constituir assistente em processo que tenha por objecto os crimes elencados na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal.

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Da verificação dos requisitos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência

1. O recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, regulado nos arts. 437º a 448º, do C. Processo Penal, pode configurar três distintas espécies: o recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio; o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada; e, o recurso no interesse da unidade do direito.

In casu, cabe analisar a primeira espécie, por nela se integrar o presente recurso.

O recurso de fixação de jurisprudência em sentido próprio radica na necessidade de compatibilizar a independência e liberdade do juiz na interpretação da norma, por definição, geral e abstracta, no caso concreto, e a diversidade de interpretações da mesma, de forma a impedir que situações semelhantes obtenham diferentes soluções de direito, com a consequente afirmação da segurança jurídica e da igualdade perante a lei, enquanto requisitos do princípio de Estado de direito democrático (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2025, processo nº 170/23.0GAOFR.C1-A.S1, in www.dgsi.pt).

Visa, em síntese, alcançar uma interpretação uniforme da lei e, portanto, uniformizar a jurisprudência.

O seu regime legal encontra-se regulado nos arts. 437º e 438º, do C. Processo Penal.

Sob a epígrafe «Fundamento do recurso» dispõe o primeiro destes artigos:

1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 – O recurso previsto nos nºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

Por sua vez, estabelece o art. 438º, com a epígrafe «Interposição e efeito»:

1 – O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 – No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3 – O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.

Das normas transcritas retiram-se, como é entendimento pacífico, os requisitos formais e substanciais do recurso (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2ª Edição revista, 2016, Almedina, págs. 1438 e seguintes, Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo V, 2024, Almedina, págs. 415 e seguintes e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2020, processo nº 6755/17.6T9LSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt). Assim:

São requisitos formais de admissibilidade:

i) A legitimidade do recorrente – pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público; e o interesse em agir, sendo recorrente o arguido, o assistente ou a parte civil;

ii) A tempestividade – deve ser interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

iii) A identificação no recurso do acórdão fundamento, com junção de cópia do mesmo ou a indicação do lugar da sua publicação;

iv) O trânsito em julgado do acórdão recorrido e do acórdão fundamento;

v) A justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

São requisitos substanciais de admissibilidade:

i) A existência de julgamentos da mesma questão de direito por dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, por dois acórdãos de tribunal de relação ou por um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e por um acórdão de tribunal de relação;

ii) Assentarem os acórdãos em confronto, de modo expresso, e não meramente tácito ou implícito, em opostas soluções de direito, partindo de idêntica situação de facto; a oposição deve verificar-se entre duas decisões e não, entre uma decisão e os fundamentos de outra;

iii) Terem sido os acórdãos em confronto proferidos no domínio da mesma legislação, portanto, quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

Note-se que a admissibilidade deste recurso extraordinário requer a verificação cumulativa e contemporânea da sua interposição, de todos os requisitos referidos, sendo a falta de qualquer deles insusceptível de ser suprida posteriormente, sem prejuízo de ser completado o suporte documental necessário.

Note-se, por último, que tendo o recurso de fixação de jurisprudência natureza excepcional, a interpretação das normas que o disciplinam deve ser feita de acordo com esta sua natureza, assim se evitando que se transforme num recurso ordinário (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 201 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 2017, processo nº 175/14.1GTBRG.G1-A.S1, in www.dgsi.pt).

2. Vejamos agora se estão verificados os enunciados requisitos.

a. Relativamente aos requisitos formais de admissibilidade, não se duvida da sua verificação. Com efeito:

- Tendo o recorrente, na qualidade de jornalista, sido admitido como assistente onde foi proferido o acórdão recorrido, acórdão este que revogou aquela sua qualidade, atenta a natureza e efeitos deste recurso extraordinário e sendo uma das suas soluções finais a de manter a qualidade de assistente do recorrente, deve a este ser reconhecida legitimidade e interesse em agir para a sua interposição, não obstante o trânsito em julgado da decisão que lhe retirou a questionada qualidade processual (art. 437º, nº 5 do C. Processo Penal);

- O acórdão recorrido foi proferido em 20 de Dezembro de 2023 e, conforme certidão junta (referência ......61), foi notificado aos Ilustres Mandatários, via Citius, em 22 de Dezembro de 2023 e ao Ministério Público no mesmo dia, pelo que, tendo-se efectivado a notificação dos primeiros a 26 de Dezembro de 2023, o respectivo trânsito em julgado ocorreu a 25 de Janeiro de 2024. O requerimento de interposição do recurso entrou em juízo a 1 de Fevereiro de 2024 (conforme certificação da mesma certidão) portanto, depois do trânsito do acórdão recorrido e antes de decorridos 30 dias sobre esse trânsito, pelo que, é tempestivo o recurso (art. 438º, nº 1 do C. Processo Penal);

- O recorrente identificou o acórdão fundamento – acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Outubro de 2020, proferido no processo nº 122/13.8TELSB-BJ.L1 –, e procedeu à junção de cópia do mesmo;

- O acórdão recorrido e o acórdão fundamento mostram-se transitados em julgado; e,

- O recorrente justificou a oposição de julgados que, no seu entendimento, causa o conflito de jurisprudência a dirimir (art. 438º, nº 2, do C. Processo Penal).

b. Relativamente aos requisitos materiais de admissibilidade, o mesmo não acontece, como se passa a demonstrar.

Como dissemos, estão causa dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, um, o acórdão recorrido, proferido em 20 de Dezembro de 2023, no processo nº 5340/17.7T9LSB-AR.L1, transitado em julgado em 25 de Janeiro de 2024, outro, o acórdão fundamento, proferido em 13 de Outubro de 2020, no processo nº 122/13.8TELSB-BJ.L1, igualmente transitado em julgado.

Nem o acórdão recorrido – que julgou procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e revogou a admitida qualidade de assistente do ora recorrente –, nem o acórdão fundamento – que julgou procedente o recurso interposto pelo assistente, e revogou o despacho que a este havia retirado tal qualidade processual –, eram susceptíveis de recurso ordinário, atento o disposto no art. 400º, nº 1, c), do C. Processo Penal.

O acórdão recorrido e o acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação, pois os arts. 68º e 69º, do C. Processo Penal mantém-se, para este efeito, inalterados.

Com efeito, tendo a alínea e) do nº 1 do art. 68º, do C. Processo Penal, antes da entrada em vigor da redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro, a redacção «e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.» e depois da referida entrada em vigor, a redacção «e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.», a alteração verificada, consistente na inclusão de mais um crime – o de recebimento ou oferta indevidos de vantagem – no catálogo que consta da alínea e) em referência, não tem qualquer influência no objecto do recurso.

Atentemos agora na afirmada existência de oposição de julgados, portanto, na questão de saber se os acórdãos em confronto assentam, de modo expresso, em opostas soluções de direito, partindo de idênticas situações de facto.

i) O acórdão recorrido, tal como dele consta, identificou como questão a decidir: É legítima e válida a decisão do juiz de instrução criminal de admitir a constituição de um jornalista como assistente, na fase de inquérito de um processo penal, em que a investigação do Ministério Público tem por objecto um dos crimes enunciados no art. 68º, nº 1, e), do C. Processo Penal?

E dela conheceu como segue:

“(…).

Tal como bem foi já mencionado nos presentes autos, o jornalista AA, apresentou um pedido de constituição como assistente nos presentes autos, invocando como base legal do seu pedido, o disposto no artigo 68°, n° 1, alínea e), do CPP e a circunstância, segundo refere, de o presente inquérito ter "como objecto a investigação de factos suscetíveis de configurar a prática de crimes de corrupção ativa e passiva, tráfico de influência e oferta ou recebimento indevido de vantagem no fenómeno futebol”.

Ora é verdade que a investigação processual levada a cabo pelo M.P no caso presente, tem por objecto os crimes acima mencionados e que os tipos penais convocados, de facto, se encontram incluídos no catálogo a que a referida alínea e) do n° 1 do artigo 68° se reporta.

Tal constatação, porém, não implica, automaticamente, o reconhecimento do preenchimento de todos os pressupostos normativos de que depende a constituição como assistente.

E, menos ainda, que se reconheça sem mais, a partir desta constatação, a legitimidade do requerente jornalista ora recorrido, para assumir o estatuto de assistente nos presentes autos.

Importa desde logo sublinhar, que os presentes autos no Tribunal de 1ª instância:

- encontram-se em fase de inquérito, sujeitos a segredo de justiça externo; encontrando-se o Ministério Público, ainda, a desenvolver diligências de investigação; foi também já preferido um despacho pelo Ministério Publico a restringir a consulta das informações coligidas no Apenso AL durante a fase de inquérito, por se encontrarem sujeitas a sigilo profissional;

- por fim os presentes autos são compostos por centenas de Anexos e Apensos sujeitos a diferentes sigilos – sigilo bancário, sigilo profissional, sigilo das telecomunicações, sigilo fiscal e disciplinar – cfr informação obtida oficiosamente em 7.12.2023 por este Tribunal de recurso.

Poderemos assim partir para a análise da questão objecto deste recurso, lembrando que o MP sustentou a sua posição, com base em quatro linhas de orientação:

- o facto de o recorrido não requerer a sua constituição como assistente enquanto cidadão comum mas na sua qualidade de jornalista;

- o facto de não parecer ser legalmente compatível com o estatuto de jornalista, a posição de assistente (uma vez que o estatuto de assistente comporta o direito a requerer diligências, deduzir acusação, interpor recurso);

- que o indeferimento de constituição de assistente não é contraditório com o direito constitucional da liberdade de informar, de ser informado e da liberdade de imprensa dos artigos 37° e 38° da CRP;

- e que o requerimento de concessão do estatuto de assistente a jornalista pode configurar um abuso de direito.

Na análise que faremos a seguir, procuraremos abordar todos este pontos acima sistematizados.

Começaremos pelo último ponto, para dizer que o STJ já veio falar na existência de abuso de direito, sempre que tal constituição de assistente seja comprovadamente usada para outros fins, como sucedeu no Acórdão relatado pelo SR Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, de 09/09/2015, Proc. nº 499/12.2TTVCT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt: "O estatuto material do assistente e a natureza dos interesses que a qualidade e posição processual se destinam a assegurar nos casos de legitimidade «popular», previstos no artigo 68°, n° 1, alínea e) e em disposições de leis avulsas - realização do direito de colaboração com o MP no exercício da ação penal para a realização do interesse público ­impedem a apropriação da qualidade quando através da constituição de assistente se pretendem prosseguir outros interesses, fora ou em desvio das finalidades da atribuição do estatuto de sujeito processual; exemplo típico de utilização desviaste e em clara situação de abuso de direito (abuso de direito de constituição de assistente) será o caso, de invenção recente, de jornalistas que requerem a constituição como assistentes utilizando a legitimidade «popular», não com qualquer intenção ou interesse de colaboração com o MP na prossecução das finalidades do processo e da realização da justiça, mas apenas com o objectivo de recolha de informação do processo, contornando as regras sobre o segredo de justiça, através do acesso que a qualidade de assistente lhe permite. Em tais casos, com fundamento em carência dos pressupostos materiais que justificam a qualidade de assistente e também no abuso de direito, não deve ser admitida a intervenção conto assistente, ou, se a verificação resultar de comportamento subsequente à admissão, deve ser retirada a qualidade de sujeito processual" em Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª Edição Revista Almedina pág.220.

De acordo com estabelecido no artigo 334º, do Código Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O abuso de direito configura-se como um princípio fundamental da ordem jurídica, perspectivada na sua unidade – daí a sua aplicação transversal a todos os ramos do direito, ainda que o seu conceito seja dado a conhecer no Código Civil – traduzindo-se em que o exercício dos direitos tem limites, pelo que a titularidade de um direito não confere um complexo de poderes absolutos inerente ao seu exercício.

Todavia e sem prejuízo do acabado de expor, podemos adiantar em resumo que ressalvando a existência da figura do abuso de direito – a qual não nos parece poder ser aqui invocada a priori e em abstracto, apenas podendo ser invocada em concreto, perante uma determinada actuação que viesse a ser desenvolvida pelo jornalista, contrária às finalidades subjacentes ao instituto do assistente, se o mesmo viesse a ser admitido como assistente no âmbito dos presentes autos), entendemos que assiste razão ao M.P e acompanhamos e subscrevemos a sua argumentação em geral, que aqui fazemos nossa, em especial o defendido nos pontos 6. e 9 das suas conclusões que aqui damos por reproduzidas.

Para iniciar, concedemos ser este um tema naturalmente controverso, dada a tensão que sempre existiu entre os meios de comunicação social e o decurso de um qualquer processo penal (em especial quando estão em causa processos que envolvem crimes de corrupção ou outros ilícitos ligados a importantes interesses desportivos, económicos e financeiros da nossa sociedade), devendo reconhecer-se à partida, que são objecto desta discussão, distintos direitos e interesses, todos eles com tutela constitucional entre nós.

Entendemos porém, ser obrigação do julgador, proceder a uma interpretação que seja, não literal e linear das normas legais e princípios gerais aqui aplicáveis, mas sim sistemática e conjugada de todos os diferentes elementos relevantes, procurando respeitar a lógica e equilíbrio do sistema jurídico globalmente considerado, para que daí possam resultar soluções jurídicas adequadamente harmoniosas, o que sem dúvida se reconhece não ser uma tarefa fácil.

Voltemos então ao caso concreto.

Encontrando-se os presentes autos na fase de inquérito e sujeito a segredo de justiça nos termos acima referidos, o jornalista AA requereu em 2.3.2023 na 1ª instância, a sua constituição como assistente e foi admitido como tal por despacho proferido pela Srª JIC em 29.7.2023, ao abrigo do estabelecido na alínea e), do nº 1, do artigo 68º, do CPP, segundo a qual “podem constituir-se assistentes no processo penal (…) qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.”

Por via desta norma, quanto a determinadas categorias de crimes, denominados “sem vítima”, como os ali elencados, permite-se a qualquer pessoa que se constitua assistente, tendo assim intervenção no processo penal.

Já o dissemos atrás, não haver dúvidas que nos presentes autos se investigam crimes de corrupção activa e passiva, tráfico de influência e oferta ou recebimento indevido de vantagem e como tal, esses crimes estão claramente incluídos no catálogo a que se refere a alínea e) do nº 1 do artº 68º do C.P.P.

Todavia, concordamos com o MP recorrente, no sentido de que o estabelecido no aludido normativo não pode ser interpretado isoladamente, mas antes em conjugação com o plasmado no artigo 69º do CPP, segundo o qual, o assistente, ainda que sendo um sujeito processual, tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção, mais até quando for deduzida a acusação pública, com as excepções que a lei determina.

Todavia e sem prejuízo, há que reconhecer também, que o assistente tem o direito de intervir no processo, não estando, porém, obrigado a fazê-lo e muito menos de acordo com o juízo de oportunidade ou com a vontade do Magistrado do Ministério Público titular do processo (ou do Juiz de Instrução Criminal), porquanto a subordinação não impede que face aquele tenha autonomia, mas na realidade, não deixará nunca de ser um colaborador do M.P.

Daí que, o escopo que a lei visa quanto à constituição de assistente, quando em causa está algum dos crimes catalogados na dita alínea e), seja o de proporcionar o exercício de uma “cidadania activa” em colaboração com o Ministério Público e não quaisquer outros propósitos de natureza iminentemente subjectiva, como seja o de mais fácil obtenção de informação pelo assistente, para ser utilizada na sua actividade profissional – no caso do jornalista, para a usar em peças jornalísticas relativas a matéria constantes dos auto e seus intervenientes.

Seguindo este tipo de pensamento, defendemos por isso que apenas a posteriori, se poderia vir reivindicar estarmos perante um manifesto abuso de direito, quando comprovadamente se viesse a demonstrar que um determinado jornalista assim procedesse em concreto, isto é, num determinado processo, usasse claramente o instituto da constituição de assistente para outros fins diferentes, nos termos acabados de expor e nessa medida, defendemos que o actual estado dos autos, não nos permite apontar desde já, para a existência de um manifesto “abuso de direito” por parte do jornalista AA, como fundamento para sustentar a posição do M.P.

Contudo e sem prejuízo, não se ignora que a abordagem deste tema pressupõe uma resposta à questão de saber, se nos casos como aquele que é objecto do presente recurso – em que temos um jornalista nessa qualidade e no pleno exercício do seu mester, a requerer a sua constituição de assistente – tal pretensão surge:

- apenas porque pretende ser um mero colaborador do M.P, nos termos permitidos pelo artº 69º do C.P, isto é, se a sua actuação se vai desenvolver de acordo com o fim para o qual a norma legal do CPP prevê essa constituição ?

- ou se vai utilizar o estatuto do assistente para prosseguir outros fins, que não foram aqueles que o legislador previu, quando regulou este instituto?.

Dizemos também, que seguiremos aqui de perto e faremos nossas, as conclusões (a que de resto faremos expressa referência ao longo da nossa análise), constantes do estudo de Antonieta Arcoverde Nóbrega, Juíza de Direito no Estado de Paraíba, Brasil e Mestranda em Ciências Jurídico Criminais pela FDUL, publicado num artigo, que constitui o seu relatório de Mestrado Científico em Ciências Jurídico Criminais apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa com o título “O Jornalista assistente no processo penal português”.

É nossa convicção que no artº 68º/1 e) do C.P.P, com a utilização da expressão “qualquer pessoa”, o legislador não delimitou a priori quem pode requerer o estatuto de assistente, antes quis deixar claro que à partida, todos podem requerer tal estatuto, isto é, todos são elegíveis à partida.

Mas naturalmente que a resposta final sobre a procedência de tal admissão, terá que ser dada pelo Juiz em cada caso concreto, depois de analisada a posteriori a pretensão formulada, em função de todos os condicionalismos atinentes quer ao processo em si (por ex atinentes à fase processual em que o pedido é formulado e se o mesmo tem ou não natureza sigilosa), quer à pessoa que em concreto requer esse estatuto.

Com efeito, importa sublinhar que para nós, o jornalista não é propriamente «qualquer pessoa», querendo com tal significar que por força do seu estatuto profissional está sujeito a certos deveres e é titular de certos direitos, que o distinguem do comum dos cidadãos e que tal realidade pode chegar mesmo a condicionar ou afectar o exercício da sua cidadania.

Tal como acontece aliás a outras profissões – por ex como é sabido, os médicos e bancários estão sujeitos ao sigilo profissional e os magistrados judiciais por exemplo estão sujeitos ao dever de sigilo e de reserva, de acordo com o qual lhes está vedado proferir declarações ou fazer comentários em praça pública sobre qualquer processo judicial, assim como também não podem revelar informações ou documentos a que tenham acesso no exercício das suas funções que estejam cobertos por segredo (artº 7º-B do EMJ aprovado pela Lei nº 21/85 de 30.7 na versão dada pela Lei nº 2/2020 de 31.3).

Nesta sequência, iremos de seguida fazer algumas considerações sobre a função do M.P enquanto titular do inquérito, sobre a função profissional do jornalista e sobre o estatuto do assistente (com base no já referido estudo de Antonieta Nóbrega).

Para podermos concluir depois, subscrevendo a argumentação do recorrente M.P, que se verifica no caso em apreço, na fase processual em que o pedido de constituição de assistente foi formulado, uma incompatibilidade entre o exercício da actividade dum jornalista (no caso o recorrido AA), que se deve pautar pela objectividade e independência e a função de assistente no processo-crime, com as atribuições próprias que a lei lhe concede (cf. artigo 69º 1 e 2 do Código de Processo Penal) e que tal incompatibilidade permite fundamentar a recusa da sua pretensão aqui formulada.

Segundo nos ensina a autora Antonieta Nóbrega no já mencionado estudo (com sublinhados nossos): “(…) “Utilizando-se do permissivo legal que legitima qualquer pessoa a constituir­-se assistente no processo penal para apuração de crimes do interesse público, jornalistas portugueses têm insistentemente se habilitado nesses processos, com o fim exclusivo de obter informações constantes dos autos para publicá-las através dos veículos de comunicação em que trabalham.(…) havendo casos em que expressamente o jornalista veio publicamente reconhecer que não se constituiu assistente no processo penal para colaborar com a investigação ou com a acusação mas o fez com o fim de obter informações para repassar ao leitor do sistema de comunicação para o qual escreve (…).

A partir dessas declarações surgem diversos questionamentos que passam pela esfera de direitos fundamentais, como os direitos de informar e de ser informado, a liberdade de crônica e a liberdade de expressão, além da proteção legal da personalidade, com os meandros do segredo de justiça e da publicidade processual, até se perquirir sobre a função normativa dos sujeitos processuais, nomeadamente a do assistente, e sobre sua compatibilidade, ou não, com a atividade do jornalista – revelando que nesta matéria existe uma permanente tensão entre os vários interesses em causa, nomeadamente entre o interesse dos Media em informar e o interesse do M.P em que a investigação processual decorra na fase de inquérito longe dos olhares públicos, porque assim o requerem as boas práticas processuais para conservação da genuinidade da prova e por respeito ao princípio da presunção da inocência daquele que é denunciado pela prática de um crime.

Uma coisa é certa e constitui o ponto de partida da nossa análise subsequente: - as atribuições do assistente no processo penal português encontram-se muito bem delineadas no artº 69º CPP, não havendo hipótese de constituição com finalidades outras.

Nesse prisma, em face dos recorrentes casos em que jornalistas se constituem assistentes com finalidade exterior ao processo penal, surge o questionamento acerca da legitimidade dessas habilitações, à luz do que preceituam os arts. 68º e 69º CPP português.

Concordamos pois com o MP recorrente, repetimos, no sentido de que o estatuto de jornalista em exercício de funções (no caso o recorrido AA), briga com a constituição de assistente na fase actual do processo, em que tal pretensão foi formulada.

Tal como sustenta nas suas alegações de recurso, é legítimo a partir da "carência dos pressupostos materiais que justificam a qualidade de assistente”, defender que a alínea e) do número 1 do artigo 68° do CPP não pode servir como uma porta sempre aberta para todo e qualquer jornalista poder requerer a constituição como assistente, fazendo entrar pela janela aquilo que o legislador não quis deixar entrar pela porta, como a experiência nos vem mostrando ter vindo a suceder com frequência nos últimos tempos, na sociedade portuguesa.

Com efeito, concordamos com a argumentação sobre o papel do assistente, constante do referido estudo de mestrado, que fazemos nossa e aqui se deixa transcrita:

(…) A atuação do assistente tem especial relevância no processo penal, visto que se propõe a coadjuvar o órgão acusador na produção da prova e no acompanhamento dos atos processuais, sobretudo nos sistemas e hipóteses em que a ação é pública.(…).

E depois de fazer uma breve análise por outros sistemas europeus (França, Itália e Alemanha) conclui assim a autora: “Assim, apesar de algumas semelhanças, não se verifica na legislação estrangeira qualquer precedente que se equipare à figura do assistente com a extensão conferida no Direito Processual Penal português, como destacado por Silva Dias, nos moldes que se verá a seguir.

Não obstante seja definido no artº 69º CPP português como mero colaborador do MP, a cuja atividade fica subordinada sua atuação, salvas as exceções legais, percebe-se que o assistente por aqui vai muito além desse papel de auxiliar, caracterizando-se, na verdade, como autêntico sujeito processual, conforme bem explicitado por Sousa Mendes e grande parte da doutrina.

Sua constituição pode se dar desde as fases preliminares do processo penal, como o inquérito, sendo-lhe facultado oferecer provas e requerer diligências, até a dedução de acusação, independente do MP, o requerimento de abertura de instrução e a interposição de recurso das decisões que lhe digam respeito, nos moldes do artº 69º, nº 2, als. a), b), c) c/c artº 284º, nº 1; artº 285º, nº 1 e artº 287º, nº 1, al. c), todos do CPP.

A constituição como assistente opera-se por despacho fundamentado do juiz, depois de ouvidos o MP e o arguido acerca do requerimento do interessado, podendo se dar em qualquer fase do processo, através de pedido formulado ao magistrado até cinco dias antes do início dos debates instrutórios ou da audiência de julgamento.

Note-se que o assistente será sempre representado por advogado, sendo um só advogado para todos os assistentes, cabendo ao juiz decidir acerca do advogado, quando houver divergência entre os assistentes, excetuando-se dessa regra os casos em que sejam vários os crimes apurados, hipótese na qual os assistentes podem constitutir um advogado para acompanhar de cada crime.

Mister destacar que a ação penal é pública e seu titular é o MP, motivo pelo qual o assistente é definido em lei como colaborador.

No entanto suas atribuições vão muito além do papel de coadjuvante, pois, na verdade, tem capacidade autônoma que lhe permite divergir do órgão acusador oficial; acusar por fato diverso daquele da acusação oficial; requerer abertura de instrução quando o MP assim não fizer e pedir o arquivamento do inquérito; requerer julgamento com intervenção do júri e interpor recurso das decisões que o afetem, mesmo que o MP não o tenha feito.(…) somente se justifica definir o assistente como colaborador do MP porque depois de fixado definitivamente o objeto do processo, com a dedução da acusação, ele passa a ter atuação subordinada à do MP, destina­tário último de seus atos, seja por via dos atos estimulantes da atividade do órgão acusador público ou de controle de sua atividade. Destaca o Autor, por outro lado, que na fase do inquérito a atuação do assistente é mais intensa e desvinculada do MP, contribuindo efetivamente para a delimitação do objeto do processo.

Registre-se, por oportuno, que a subordinação do assistente ao MP não se consubstancia em subserviência ou necessária concertação de posições, mas, importa dizer que o assistente contribui para que os interesses confiados ao MP através da ação penal sejam mais eficazmente realizados.

Vê-se, dessarte, que o assistente tem ampla atuação no processo penal português, merecendo análise acurada de alguns pontos de maior relevância para o presente estudo, nomeadamente, acerca de quem tem legitimidade de constituir-se para o mister.

Nesse aspecto é que o processo penal pátrio se diferencia dos demais sistemas conhecidos, posto que a legitimidade para se constituir assistente ultrapassa a pessoa do ofendido e seus sucessores, chegando a alcançar qualquer pessoa, nos casos previstos em lei, que envolvem o interesse público.

Percebe-se logo do artº 68º, nº 1, al. a) CPP, que, embora a jurisprudência dominante restrinja o conceito de ofendido ao titular do interesse direta, imediata e predominantemente protegido pela incriminação, o legislador, ao tutelar o interesse que a lei especialmente quis proteger, permite, em consonância com a melhor doutrina, um alargamento desse conceito, baseado nos modernos parâmetros da vitimologia, com ampliação da participação processual da vítima, servindo o processo como autêntico meio de pacificação social.(…).

Registre-se, finalmente, a possibilidade de qualquer pessoa se constituir assistente, nos casos que tratam de crimes contra a paz e a humanidade, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação econômica em negócio, abuso de poder e fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, nos termos do artº 68º, nº 1, al. e) CPP 18, que neste trabalho ficam todos englobados na designação genérica de crimes do interesse público, para evitar enfadonhas repetições da longa lista de crimes acima enunciada.

(…) Em recente decisão, proferida aos 18 de novembro de 2015, o Tribunal da Relação de Coimbra diferenciou esses conceitos, pontuando que o conceito de ofendido recepcionado pelo Código Penal, artº 113º, nº 1, com base no qual se confere a legitimidade para constituir-se assistente à luz do artº 68º, nº 1, a) CPP, é o conjunto de pessoas a quem a lei quis especialmente proteger com a incriminação, e não, o conceito lato de ofendido disposto no direito civil. No mesmo sentido, o Acórdão do STJ, nº 1/2003.

Há que se reconhecer, então, que a habilitação de qualquer pessoa como assistente no processo penal português não se dá pela elasticidade no conceito de ofendido, mas, em razão do interesse público envolvido nos crimes enumerados em lei, face à relevância do bem jurídico tutelado nesses tipos penais especí­ficos.

Conclui-se, pois, que o objetivo da lei com essas habilitações resume-se em política criminal que visa uma maior transparência na administração da justiça e um combate mais eficaz a certas formas de criminalidade. (…)

Ora, (…) a lei não exige sequer que a pessoa de que trata a alínea e), do n° 1, artº 68° CPP, seja cidadão português, sendo suficiente que tenha capacidade para estar em Juízo.

Assim, difícil vislumbrar que tipo de colaboração com a acusação poderia proporcionar, por exemplo, pessoa estrangeira, mormente quando residente fora de Portugal, que justificasse seu interesse processual.

Nesse norte, difícil compreender o interesse processual de qualquer pessoa, para participar de um processo penal, ainda que como auxiliar do MP, mas com status de sujeito, se a sua atuação pode e deve ser absorvida pela própria atividade inerente ao órgão acusador público.(…)”

A subordinação da intervenção do assistente ao Ministério Público, sobretudo no caso de crimes de natureza pública, é compreensível na medida em que no processo criminal está em causa, acima de tudo, um interesse público que é a realização da justiça e reposição da ordem jurídica violada.

Mas como se pode ler na passagem acima transcrita, esta autora chama a atenção para o facto de o conceito de colaboração e de subordinação, não significar obviamente que a intervenção do assistente não possa entrar em directo conflito com as decisões do MP.

O que se pretende dizer é, isso sim, que o interesse que o assistente eventualmente corporize (que tem de ser um interesse particular, autónomo) tem que estar subordinado ao interesse público, pelo que a actuação do assistente, fundada no interesse particular, só assume relevância (processual) na medida em que contribua para uma melhor realização da administração da justiça (ou, no caso concreto, um melhor exercício da 'acção penal').

Em todo o caso, mesmo nessas situações de autonomia, o assistente é sempre um colaborador do Ministério Público, no sentido de que, com a sua actuação, contribui para uma melhor realização dos interesses cometidos ao Ministério Público, ou seja, para uma melhor realização da justiça.

Assim sendo cumpre averiguar em cada caso, se existem fundamentos para a atribuição do estatuto de assistente, na fase de inquérito dirigida pelo M.P (artº 262º e artº 263 do C.P.P) relativamente a pessoas que, tal como sucede com o jornalista AA, apenas pretendem adquirir o mesmo, não para exercer qualquer prerrogativa inerente a esse estatuto, em sede de requerer diligências, de oferta de provas ou de dedução de acusação, mas sim, para utilizar a informação a que acedem dentro do processo para, no âmbito da sua profissão de jornalistas, produzirem peças, publicadas por órgãos de comunicação social.

Ora no caso presente, não foi apresentado de forma minimamente estruturada, a existência de um qualquer interesse legítimo do jornalista AA, para agir no exercício de uma cidadania activa e assim colaborar com o M.P na investigação em curso nos presentes autos.

Assim sendo, é legítimo concluir que o fundamento para a constituição como assistente deste Jornalista no caso em apreço, consiste basicamente em poder ter acesso à informação contida nos autos e não, tal como diz o artigo 69º nº 1 do CPP, em colaborar com o Ministério Público no âmbito de uma cidadania activa.

Contudo, cumpre referir uma vez mais, tal como já acima ficou expresso, que o espírito do legislador ao conferir legitimidade a «qualquer pessoa», para intervir nos autos como assistente, quando estão em causa crimes de natureza supra-individual, é o de conferir aos cidadãos a possibilidade de exercerem uma cidadania activa, participativa e de colaborarem com Ministério Público na realização da justiça e não o de conferir aos jornalistas, o acesso a informação contida nos autos ou um interesse de através de um estatuto «de privilégio», obter informação de forma mais fácil – situação que ocorre nos presentes autos e levou o M.P à interposição do presente recurso.

Na verdade, a norma contida na aliena e) do citado artigo 68º nº 1 do CPP, não visa garantir o direito constitucional de acesso à informação, consagrado no artigo 38º da CRP, mas somente o exercício de uma cidadania activa.

Para garantir o direito de acesso às fontes de informação, o legislador processual penal consagrou o regime legal previsto nos artigos 88º e 90º do CPP e artigo 8º do Estatuto do Jornalista.

Posto isto, centremos agora a nossa análise na questão da incompatibilidade do estatuto de assistente, com o papel de um jornalista, em exercício de funções.

Consideramos que a constituição de um jornalista como assistente, nos termos e com as finalidades acima referidas, para além de constituir uma violação do espirito da lei, nos termos acima mencionados, suscita ainda questões ao nível do próprio estatuto do jornalista, no que concerne à sua obrigação de neutralidade e objectividade, em virtude de o assistente assumir a posição de colaborador e de subordinação ao MP.

Idêntica posição foi assumida na deliberação proferida a 3-11-2015 pelo plenário da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (com sublinhados nossos):

«A CCPJ, reunida em Plenário, deliberou considerar incompatível com o exercício da profissão de jornalista a respectiva constituição como assistente em processos penais sobre os quais desenvolva trabalho, atentos os seguintes fundamentos sumários:

Aos jornalistas, tal como a qualquer pessoa, é lícita a constituição como assistente em processos penais em que se averiguem crimes contra a paz e a humanidade, bem como os crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção (artº 68º/1, e) do Código de ProcessoPenal);

Porém, a constituição de jornalistas como assistentes em processos sobre os quais desenvolvam trabalho é incompatível com o exercício da profissão, uma vez que a natureza e a função desse sujeito processual, tal como legalmente definidas, comprometem a independência, integridade profissional e dever de imparcialidade desses jornalistas».

Voltaremos mais adiante, quando falarmos do regime de acesso dos jornalistas ao processo, que se encontra específicamente regulado no nosso C.P.P., a esta questão da integridade profissional e da imparcialidade, que devem pautar o trabalho de um jornalista na sua função de informar com objectividade a opinião pública, tornando-se assim tal função incompatível com o papel de colaborador do M.P. (por assumir este último uma visão necessariamente parcial, já que representa a acusação).

Em face de tudo o acima exposto, neste ponto da nossa argumentação e em resumo, podemos dar como assentes os seguintes pontos:

A constituição de assistente nos processos relativos aos crimes referidos no artº 68º/1 al e) do C.P.P, é considerada pelo legislador como uma expressão do exercício de um direito de cidadania, em face da natureza e relevância comunitária dos valores universais da dignidade da pessoa humana, e não individualizáveis em direitos próprios – protegidos pelos crimes referidos.

O que está subjacente nesta alínea é o principio de legitimar a toda e qualquer pessoa a exercer o seu direito e a colaborar com o Ministério Público investigação.

E tal resulta, não pela elasticidade no conceito de ofendido, mas em razão do interesse público envolvido nos crimes aqui em apreço, face à relevância do bem jurídico tutelado nesses tipos penais específicos.

Desse modo, a habilitação a qualquer pessoa para se constituir assistente nos crimes ali enumerados visa a transparência da justiça e a colaboração da sociedade para o efetivo combate aquele tipo de criminalidade, que envolve o interesse público por ter como bem jurídico ofendido, o património público, a paz ou a humanidade.

Por esse motivo, é que a lei não exige sequer por exemplo, que a pessoa de que trata a alínea e) do artigo 69° do CPP seja sequer cidadão português.

Uma vez assentes estes factos, iremos prosseguir na nossa análise para dizer o seguinte:

Sem prejuízo do resumo acima exposto e como já atrás deixámos expresso, o legislador no artº 68º/1 e) do C.P.P, quando nos apresenta o conceito de “qualquer pessoa”, apenas pretendeu significar que a priori nenhuma pessoa pode ficar de fora, ou seja, que para ser admitida como assistente, o legislador considera em abstracto elegível qualquer pessoa.

Mas tal não significa porém, que a posteriori, o Juiz não seja obrigado a avaliar em cada caso concreto que lhe for apresentado, se o requerente reúne ou não todos os requisitos para a sua pretensão poder ter acolhimento legal, dentro do nosso sistema processual globalmente considerado.

Ora no caso dos jornalistas em exercício de funções, que venham a formular tal pretensão ao abrigo deste preceito, como sucedeu no caso presente, entendemos que tal pretensão não poderá ser atendida, pelas razões já acima afloradas e que de seguida melhor serão explicadas.

Desde logo, não se diga como faz o jornalista AA na sua resposta ao recurso, que se vai negar um direito a um cidadão, recusa essa motivada única e exclusivamente na profissão que o mesmo exerce.

Ou que o Ministério Público, promove o indeferimento deste direito a um cidadão, motivada única e exclusivamente na profissão que o mesmo exerce.

Na verdade, recordemos que o jornalista AA vem (quanto a nós sem razão) defender a seguinte tese: “Estamos perante uma norma que é aplicável a todas as pessoas, negar ou vedar tal direito a um cidadão, e neste caso, por desempenhar uma função de jornalista, configura uma clara e expressa inconstitucionalidade, bem como uma incompreensível e flagrante discriminação aos agentes que exercem esta profissão.”

É nosso entendimento porém, que inexiste aqui qualquer violação da CRP.

Em 1ª lugar porque a constituição de assistente, nos crimes previstos no artº 68º/1 e) do C.P.P, visa um propósito concreto que não é o de permitir aos jornalistas ter acesso privilegiado à informação sobre os factos em investigação, nos termos acima expostos;

Em 2º lugar, porque os jornalistas sempre poderão ter acesso ao processo pela via própria, que se encontra regulada no artº 88º do C.P.P, não precisando por isso de se constituir assistentes para o efeito, nem de se sentir descriminados por efeito da sua profissão.

E por fim, em 3º lugar, quando for ultrapassada a fase de inquérito (a qual se encontra em segredo de justiça nos presentes autos, nos termos acima mencionados), e a publicidade do processo crime ganhar a sua verdadeira dimensão, com o pleno exercício do contraditório, então o pedido de constituição de assistente poderá ser formulado pelos senhores jornalistas, já sem os constrangimentos impostos na fase de inquérito, em que estão a ser desenvolvidas diligências de investigação sob a direcção do M.P, as quais se impõe que decorram longe do olhar público, a bem da realização da justiça.

O que se acaba de dizer em 3º lugar, é válido não apenas para os crimes a que se refere o artº 68º/1 e) do C.P.P, mas também para todos os crimes sob investigação pelo M.P, pois que a prática tem revelado no nosso país, que a proatividade dos jornalistas assistentes, vai no sentido de eles se aproveitarem para seu beneficio próprio, da posição de assistentes para ter acesso privilegiado às provas colacionadas nos autos e divulga-las nos jornais para a qual trabalham.

Analisemos agora a questão da publicidade do processo versus segredo de justiça

O processo crime é em regra, por força do artigo 86º nº 1 do CPP, público.

Por sua vez, dispõe o artigo 90º nº 1 do CPP que, qualquer pessoa que nisso revelar interesse legítimo, pode pedir que seja admitida a consultar auto de um processo que não se encontre em segredo de justiça (…).

Sendo a regra do processo penal a publicidade, esta constitui um requisito fundamental para a realização da justiça, quer se encare esta do ponto de vista dos sujeitos processuais, do Tribunal ou da sociedade.

Nesta medida, podemos compreender que se os sujeitos processuais devem colaborar com as autoridades judiciárias, com vista ao esclarecimento da verdade, nada melhor para conseguir esse desiderato do que permitir-lhes o conhecimento dos factos.

Por outro lado, também quanto à actividade do Tribunal e do M.P, é compreensível que se os mesmos agirem à vista de todos, se poderá evitar mais facilmente críticas de parcialidade.

«O princípio da publicidade (…) funciona como garantia para os sujeitos processuais particulares, pois assegura-lhes que a verdade não será abafada por uma jurisdição cega e parcial»; para o tribunal, porque a sua actuação torna-se transparente, ficando acima de críticas uma vez que a prova é produzida à vista de todos; para a comunidade em que o tribunal se insere, que verá nessa justiça a afirmação de que, em caso de lesão dos seus direitos, eles serão protegidos», ver, EIRAS, AGOSTINHO, Segredo de Justiça e Controlo de Dados Pessoais Informatizados, Coimbra Editora, Colecção Argumentum, 1992, pp. 27 a 29 e pp. 12 e 13, e, JÚNIOR, AMÉRICO BEDÊ e SENNA, GUSTAVO, Princípios do Processo Penal, Entre o Garantismo e a Efectividade da Sanção, Editora Revista dos Tribunais,2009,p.318.

A publicidade do processo implica os direitos de assistência, nomeadamente às audiências, pelo público em geral, à realização dos actos processuais, bem como à narração dos actos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social, assim como à consulta do auto e obtenção de cópias, extractos e certidões de quaisquer partes dele.

A CRP consagra no artigo 37º, «liberdade de expressão e informação”, estatuindo que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”.

Consagra ainda no artigo 38º a “liberdade de imprensa e meios de comunicação social” a liberdade de expressão, o direito dos jornalistas ao acesso às fontes de informação e à protecção da independência e do sigilo profissionais, a independência dos órgãos de comunicação social, perante o poder político, económico, cabendo a uma entidade administrativa independente assegurar nos meios de comunicação social a “regulação da comunicação social»

Dispõe o artigo 22º nº 1 b) da Lei de Imprensa que constituem direitos fundamentais dos jornalistas, com o conteúdo e a extensão definidos na Constituição e no Estatuto do Jornalista: «A liberdade de acesso às fontes de informação, incluindo o direito de acesso a locais públicos e respectiva protecção».

Artigo 6º al. b) do Estatuto do Jornalista consagra «A liberdade de acesso às fontes de informação».

Artigo 8º nº 3 do Estatuto do Jornalista, «O direito de acesso às fontes de informação não abrange os processos em segredo de justiça, os documentos classificados ou protegidos ao abrigo de legislação específica, os dados pessoais que não sejam públicos dos documentos nominativos relativos a terceiros, os documentos que revelem segredo comercial, industrial ou relativo à propriedade literária, artística ou científica, bem como os documentos que sirvam de suporte a actos preparatórios de decisões legislativas ou de instrumentos de natureza contratual.

Daqui resulta que os meios de comunicação social concretizam sem dúvida um direito constitucional e um direito internacional, ao noticiarem a actividade da justiça, de acordo com o princípio da publicidade do processo penal.

Para além disso, concordamos que a divulgação de actos processuais, pela comunicação social, desde que devidamente enquadrados e transmitindo a verdade material, constitui um forte contributo para a educação cívica, para o conhecimento dos direitos e deveres, para o acautelar de situações que o vulgar cidadão desconhece em relação a certa legislação, contribuindo outrossim para a formação cívica e informação da justiça.

Aqui chegados, cumpre sublinhar porém, que a liberdade de informar, apesar da protecção constitucional, não é um direito absoluto.

Desde logo, os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e objectividade.

Artº 3º da Lei de Imprensa – Lei 2/99, de 13.1- estatui:

A liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática.”

Com efeito, os direitos fundamentais consagrados na Constituição não são ilimitados. Melhor dizendo, não existem direitos ilimitados, porque sempre que haja outros interesses constitucionalmente protegidos eles não poderão ser esquecidos.

Tudo isto para dizer em resumo, que embora no nosso sistema processual vigore a regra geral da publicidade do processo penal (artº 86º/1 do C.P.P), ela só assume verdadeiramente toda a sua plenitude na fase do julgamento, ainda que após a dedução da acusação e também na fase da instrução (caso a mesma tenha lugar nos termos do artº 286º e segs do C.P.P) já possa haver uma maior abertura ao exterior.

É claramente o que resulta desde logo da expressão “ressalvadas as excepções previstas na lei” enunciada no nº 1 do artº 86º do C.P.P e da conjugação dos regimes delineados ao longo de todo o referido artº 86º, e nos restantes preceitos artºs 87º, 88º, 89º e 90º do C.P.P.

Da leitura destes preceitos, percebe-se que o legislador regula especificamente qual o condicionalismo e momento processual em que os vários interessados podem aceder ao processo, resultando claro que esse acesso ao longo da vida toda do processo, não é sempre livre, na total e plena acepção daquilo que dá sentido a esta palavra.

Com efeito, estabeleceram-se legalmente certas restrições no acesso ao processo penal, que se impõem não apenas quando é fixado o segredo de justiça, mas também mesmo que esse segredo não seja fixado, desde que simplesmente o processo se encontre em fase de inquérito – veja-se nomeadamente no artº 88º/2 a) do C.P.P, onde surge a cominação de crime de desobediência simples, haja ou não segredo de justiça, para a reprodução por parte dos senhores jornalistas, até à sentença de 1ª instância, de peças processuais ou documentos incorporados no processo, que não tenham sido obtidas por meio de certidão com menção do fim a que se destinam.

Na verdade, é claro para todos, que ao abrigo do artigo 88º nº 2 al. a) do CPP, fica proibida aos jornalistas, sob pena de cometimento de crime de desobediência simples, até à sentença de 1ª instância, a reprodução de peças processuais, incluindo gravações áudio de diligências, ou documentos incorporados no processo.

Desta forma, aquando da consulta dos autos, por parte de Jornalistas naquele contexto, deverá a secção no Tribunal identificar a pessoa em causa, mediante a carteira profissional e fazer constar no processo, através de cota, o dia e a hora da consulta.

Assim sendo, damos como assente e com relevo para a discussão em causa, que dada a fase processual em que foi requerida a constituição de assistente nos presentes autos – inquérito em segredo de justiça nos termos acima mencionados - a publicidade do processo penal não é plena (artº 86º a 90º do C.P.P).

E essa imposição legal acontece, justamente pelo facto comprovado de que a investigação penal, para poder ser conduzida de forma eficaz, é exigível que a mesma decorra com algum resguardo do olhar público, sob pena de muito elevado risco de manipulação das provas (documental ou testemunhal) que as partes visadas na investigação sempre tentariam sempre levar a cabo, se entrassem na posse da informação sobre as diligências de investigação em curso potencialmente incriminatórias e também em nome do princípio da presunção da inocência – para não se atingir o bom nome de cidadãos na praça pública, antes de haver indícios sérios recolhidos pelo M.P, no decurso da investigação.

A necessidade desse «recato», isto é a necessidade dessas diligências probatórias durante a fase do inquérito, decorrerem longe do olhar público, parece assim óbvia para qualquer cidadão médio, com mínimo conhecimento sobre a natureza e objecto dos processos penais e compreende-se também a opção feita pelo legislador de que o processo crime só seja público em plenitude, a partir da audiência de julgamento – sendo assim fundamentado o artº 86º/1 do C.P.P quando estipula “o processo penal é sob pena de nulidade público, ressalvadas as execpções previstas na lei”.

Daqui resulta que o nosso legislador, ao criar o regime legal acima referido, teve sem dúvida como objectivo, a preservação da presunção de inocência do arguido e da imparcialidade do poder judicial.

Tendo em conta o caso concreto, não podemos pois esquecer que estão em jogo outros direitos e interesses constitucionalmente relevantes, como é o caso do interesse na realização da justiça, a presunção de inocência (artigo 32º nº 2 da CRP), a reserva da vida privada, bom nome e reputação (artigo 26º da CRP), os quais poderão entrar em rota de colisão, motivo pelo qual cumpre encontrar um critério com vista à harmonização dos vários direitos e interesses em conflito.

Em face do exposto e tendo em conta a natureza dos vários interesses e direitos constitucionais em conflito, podemos concluir que o acesso aos autos, por parte dos jornalistas, não pode ser absoluto e terá que ser harmonizado nomeadamente com o interesse da realização da justiça, por forma a não perturbar o normal funcionamento desta fase processual, bem como os dados relativos à reserva da vida privada dos arguidos e demais intervenientes.

Nesta linha de pensamento, em conformidade com a nossa posição que vimos expondo, deixa-se aqui transcrito (com sublinhados nossos), pelo seu interesse, uma passagem relevante do mencionado estudo da autora Antonieta Nóbrega, sobre este específico ponto:

O processo penal é público e essa é uma importante garantia para o visado e para a credibilidade do sistema de justiça, não podendo, contudo, essa publicidade ser confundida com banalização da criminalidade ou desrespeito à moral e à dignidade dos sujeitos processuais, através da dramatização dos fatos dedu­zidos nos autos e do sensacionalismo desvirtualizador da realidade judicial.

A imprensa livre e independente tem papel de extrema importância na democracia e não deve ser confundida com espionagem ou outras atividades que tenham por fim desmantelar o estado ou sua ordem. Ao contrário, ela traz à tona situações que muitas vezes são ocultadas por interesses escusos, mas que devem ser reveladas para a garantia do estado de direito democrático.

A informação é, sem sombra de dúvida, direito de todos e pilar da democracia. Contudo, há que se ponderar que nem toda informação chega ao público de forma revestida de legalidade, e mais, nem toda informação levada a público se consubstancia na verdade dos fatos, inclusive daqueles levados à esfera dos Tribunais.

Em um mundo no qual imperam a liberdade de expressão e a liberdade de crônica, não se pode exigir da imprensa menos que informação verdadeira, adquirida através de fontes credíveis, com críticas aceitáveis nos limites da reserva da privacidade e do respeito à moral, ainda que esta seja mitigada nos casos em que a notícia é sobre personalidades públicas. Além disso, deve-se observar o respeito à administração da justiça, como forma de manter a esta­bilidade das instituições públicas e preservar o estado democrático de direito.

Contudo, há que se reconhecer que frequentemente a mídia extrapola os limites da razoabilidade e publica os atos processuais, até mesmo quando revestidos pelo escudo do segredo de justiça, causando prejuízos ao processo, à credibilidade da justiça e às pessoas envolvidas no caso.(…)

A informação pelo meio massivo, dessarte, é bem de interesse jurídico, na medida em que tem papel formador no saber do homem médio, capaz de influenciar suas decisões para o próprio destino, o da sua família, a escolha do partido político e da religião, que se refletem na sociedade em que vive.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), em seu artº 10º, e a Constituição da República Portuguesa (CRP), artº 37º, garantem os direitos de informar, de ser informado e a liberdade de expressão, enquanto que a liberdade de imprensa, advém nos artigos seguintes, de ambas as normas – artº 11° CEDH e artº 38° CRP.

Frise-se, que os três direitos, ou liberdades, são autônomos entre si, embora correlatos, até mesmo por se entrelaçarem na manifestação comunicativa.

Registre-se que o Direito à informação deve ser compreendido em duas variantes, o direito de informar e o direito reflexo de ser informado. Por isso mesmo, o direito de informar deve ser exercido dentro dos parâmetros da verdade, transparência e imparcialidade, paradigmas que também devem guiar a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. (…). Por outro lado, não se pode olvidar que os chamados direitos da personalidade, fundamentais para uma vida digna e livre, também encontram previsão nos sistemas jurídicos modernos, inclusive na seara constitucional.

A legislação portuguesa, em todas as esferas – constitucional, civil e penal –, tem avançado nessa proteção, incluindo nos direitos da personalidade, dentre outros, o direito da reserva da vida privada e da intimidade, o direito à palavra, o direito à imagem, o direito à autodeterminação informacional e o direito ao sossego.

Depreende-se, daí, que nenhum direito é irrestrito, eis que, toda pessoa é detentora de direitos que, de uma forma ou de outra, findam por limitar os direitos das demais e assim sucessivamente. Isso nada mais é do que o princípio da relatividade dos direitos fundamentais.

No mais, os direitos da personalidade, elencados no artº 26°, n.°s 1 e 2 CRP, são hodiernamente considerados corolários da dignidade da pessoa humana, tida como metaprincípio fundamental, que constitui alicerce de toda sociedade livre e democrática, posto que norteia os direitos e deveres da pessoa, bem como a posição do estado perante elas.

Ainda, a própria CRP, no artº 37°, n° 3, preserva os bens jurídicos protegidos pelo direito criminal, dispondo expresso limite constitucional à liberdade de imprensa e ao direito de informar, ao chancelar a tutela penal para proteção desses bens, em geral atrelados aos direitos da personalidade, como é o caso da honra, imagem, intimidade, e ainda, alguns outros de natureza pública, como é o caso preservação da investigação, da presunção de inocência do arguido e da proteção das vítimas e das testemunhas.

O resguardo dos direitos da personalidade vai muito além no processo penal, como por exemplo nas chamadas proibições de provas que evitam danos muitas vezes irreparáveis à pessoa dos sujeitos processuais e equilibram a paridade de armas entre acusação e defesa; na presunção de inocência do arguido, ou através da instituição do tipo incriminador do artº 371°, n° 1 do Código Penal (CP), para os casos de violação do segredo de justiça.

Com efeito, nos moldes já analisados, a liberdade de expressão e a de imprensa, assim como o direito de informar, devem ser entendidos à luz do artº 335° do Código Civil (CC), segundo o qual, na colisão de direitos deve-se obedecer ao princípio da ponderação, com conformação da concordância prática para direitos iguais ou de mesma espécie e utilizando-se o princípio da proporcionalidade para resolver os casos em que um direito deve ser sacrificado para a realização essencial de outro de superior magnitude.

Assim sendo, Costa Pinto alerta para o fato de que o direito de informação, assim como as liberdades de expressão e de imprensa, não é ilimitado ou absoluto, já que seu exercício pode implicar na ofensa a bens jurídicos que, por sua magnitude, merecem a tutela criminal, com proteção garantida pela Lei fundamental.

Por outro lado, (…) adverte-se para o cuidado que o penalista deve ter para não limitar desmesuradamente a comunicação social, face à proliferação de novas categorias de crime que terminam por constituir uma forma de pressão do poder estatal sobre a imprensa, através de leis penais simbólicas, que surgem como tutela avançada a alguns bens jurídicos, através da criminalização de comportamentos afetos a essa categoria.

Nesse norte, impõe-se refletir acerca da extensão que se deve permitir à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa e ao direito de informar, pois neles também se encontra o direito reflexo de ser informado e, não se pode aceitar da imprensa menos que informações verdadeiras e obtidas de forma amparada em lei, além de revestidas de verdade, ética e moralidade, mormente em razão do papel formador de opinião que detém a mídia e do seu largo poder de alcance popular (…).

Depreende-se, dessarte, que a liberdade de crónica ou imprensa, assim como a liberdade de expressão e o direito à informação, encontram limites solarmente delineados na Constituição da República Portuguesa, destacando-se, dentre outros, a preservação dos direitos da personalidade, a presunção de inocência e o segredo de justiça, que constituem bens jurídicos igualmente tutelados na esfera constitucional, sobretudo por irem de encontro ao interesse público e contribuírem com a harmonia e a estabilidade das relações sociais em seus múltiplos aspectos, favorecendo a tão almejada paz social.

E igualmente seguimos esta mesma autora, Antonieta Nóbrega, numa sua reflexão constante do referido estudo, sobre o segredo de justiça, que aqui se deixa transcrita (com sublinhados nossos), cuja salvaguarda se impõe tutelar, também no caso em apreço, sob pena da causação de graves prejuízos que resultariam da divulgação para o exterior de informação contida no processo e suas provas – prejuízos não somente para o arguido, mas também para o ofendido, os investigadores e os próprios julgadores, além de se poder perder a genuini­dade da prova indiciária.

A publicidade é regra inerente a todo estatuto processual dos estados democráticos, como garantia que ampara não somente a sociedade, mas, também, a credibilidade e a lisura do sistema de justiça e do próprio processo.

Nos exatos termos do n° 1 do artº 86° CPP, o processo penal português é público, ressalvadas as exceções previstas em lei, caso em que será decretado o segredo de justiça pelo magistrado, ou, na fase de inquérito, pelo Ministério Público, com necessária validação do juiz.

Exceção a essa regra é o segredo de justiça, que somente deve ser decretado em situações especiais, para garantia da privacidade em casos, como o tráfico de pessoas e os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, ou naqueles casos em que o sigilo se preste a garantir a coleta de prova idônea, nas fases e atos processuais em que seja imprescindível.

O segredo de justiça consagrou-se como garantia constitucional no artº 20°, n° 3 CRP, por alteração ditada pela Lei Constitucional n° 1/97, de 20 de setembro daquele ano, vinculando, desde então, o legislador ordinário à sua emolduração.

Sua natureza jurídica, ao contrário do que parece, não é de direito subjetivo do arguido, eis que extrapola o plano individual de titularidade de direitos, perpassando pelo interesse e pelo dever do estado de promover a eficácia da investigação e a boa administração da justiça.

(…) Sabe-se que o processo penal português tem estrutura acusatória ditada pelo artº 32°, n° 5 CRP, com separação material e funcional absoluta entre órgão acusador e órgão julgador, não obstantes os posicionamentos no sentido de que nenhum sistema processual da atualidade é impermeável, havendo quem os classifique quase que na totalidade como mistos.

Seguindo essa linha, o processo penal pátrio tem duas fases bem distintas, a da investigação, tendencialmente secreta enquanto perdura o inquérito, e a do julgamento, pública por sua própria natureza, sobretudo no que tange à audiência de publicação da sentença.

Na verdade, o sigilo na fase do inquérito visa garantir a eficácia do princípio da presunção de inocência do investigado; a eficiência da investigação com preservação de certos meios de prova e a proteção de vítimas e testemunhas contra retaliações e vinganças que poderiam advir numa fase ainda tão distante do julgamento, que afinal poderá nem acontecer, como nos casos de arquivamento.

Por tais razões, no inquérito, o segredo de justiça é, via de regra, interno e externo, ou seja, o sigilo é resguardado não somente para o público exterior ao processo, mas também, no que tange a alguns dos sujeitos processuais como o arguido, em alguns casos; o denunciante; o ofendido; as testemunhas e o assis­tente, nos termos dos arts. 86º, n°s 2, 3, 4, 5; 389°, n° 2 e 262°, todos do CPP.

Nesse contexto, há casos em que o suspeito toma conhecimento, através da mídia, de que está sendo investigado, antes mesmo de ser formalmente cientificado do processo.

Mister esclarecer, entretanto, que apesar da possibilidade de decretação do segredo de justiça interno com relação ao arguido, não fica este totalmente desprotegido em seu direito de defesa, posto que, na forma do artº 86º, nº 6, c/c artº 89°, n° 1, ambos do CPP, poderá consultar o auto do inquérito, e dele obter cópias, extratos e certidões.

(…) com a dedução da acusação e abertura da instrução, o sigilo transmuda-se em apenas externo, face à necessidade de oferecimento de defesa; do contraditório e da busca da verdade material, arts. 289° e 297° ss., todos do CPP.

A essa altura, os sujeitos processuais passam todos a ter acesso aos autos, por força do artº 89°, n°1 CPP, permanecendo vinculados a manter o sigilo acerca dos atos, provas e documentos que ainda estiverem sob o manto do segredo de justiça.

Interessante notar, que a partir da leitura da sentença, todo processo se torna público, por comando do artº 87°, n°5 CPP, decaindo o segredo de justiça anteriormente decretado, a não ser quanto a peças protegidas pela reserva da vida privada dos sujeitos processuais ou de outrem, que podem ser, inclusive destruídos ou desentranhados do processo, quando não mais forem importantes para seu deslinde, conforme já acima assinalado.

A essa altura, os sujeitos processuais passam todos a ter acesso aos autos, por força do artº 89°, nº1 CPP, permanecendo vinculados a manter o sigilo acerca dos atos, provas e documentos que ainda estiverem sob o manto do segredo de justiça.

Interessante notar que a partir da leitura da sentença, todo processo se torna público, por comando do artº 87°, n° 5 CPP, decaindo o segredo de justiça anteriormente decretado, a não ser quanto a peças protegidas pela reserva da vida privada dos sujeitos processuais ou de outrem, que podem ser, inclusive destruídos ou desentranhados do processo, quando não mais forem importantes para seu deslinde, conforme já acima assinalado.(…)”.

Atentemos que um jornalista em exercício de funções, que deve obediência a um estatuto próprio (artº 1º/1 e artº 3º/1 c) do Estatuto de jornalista aprovado pela Lei nº 1/99 de 1.1.1999 com as modificações decorrentes da Lei nº 64/2012 de 6.11 e a Lei nº 114/2012 de 20.1), não tem o mesmo regime de acesso ao processo que outro qualquer cidadão.

Na verdade, uma vez ponderado esse seu estatuto legal, o nosso legislador processual penal definiu no artº 88º do C.P.P um regime próprio de acesso ao processo por parte da comunicação social.

Assim, se na fase de inquérito se admitisse a constituição de assistente dos jornalistas, nos exactos termos em que tal pretensão foi formulada nos presentes autos, nos crimes a que alude o artº 68º/1 e) do C.P.P, estava encontrada a forma de qualquer jornalista poder contornar esse regime legal previsto no artº 88º do C.P.P (o qual define de forma mais restritiva as condições em que o mesmo pode ter acesso ao processo), permitindo-lhe por via da sua admissão como assistente, ter acesso a informação processual, fora das condições estabelecidas no artº 88º do C.P.P.

Na verdade, nesse condicionalismo, ou seja, nos crimes a que alude o artº 68º/1 e) do C.P.P, ficaria aberta a porta para o jornalista poder usar o instituto da constituição de assistente, como meio de ter acesso privilegiado à informação sobre os factos objecto do processo em fase de inquérito e diligências de investigação em curso, que poderia livremente publicitar (uma vez que o seu estatuto profissional não o obriga a revelar as fontes), colocando dessa forma em risco o bom funcionamento da justiça.

Com efeito, resulta evidente para todos, que uma vez dentro do processo, tal e qual um “agente infiltrado”, o jornalista no exercício das suas funções, vai procurar matéria factual para informar o público, como o exigem os seus deveres profissionais (invocando quase sempre o interesse público das matérias em investigação) e poderá sempre fazer uso da informação recolhida, sem ser obrigado a revelar as suas fontes, donde resultarão grandes dificuldades de se lograr implementar um controlo externo sério.

Neste condicionalismo e ponderadas as normas do seu estatuto profissional, resultaria muito difícil a posteriori, isto é, uma vez publicada a notícia, executar-se um controlo efectivo da sua concreta actuação para a divulgação da mesma, quer do ponto vista interno (por parte do conselho dos jornalistas com poderes de fiscalização), quer por parte da justiça (em termos de responsabilização, a experiência tem-nos revelado ser sempre muito difícil, conseguir demonstrar onde surgem as fugas de informação processual e quem é responsável pela violação do segredo de justiça) muitas vezes com sérios danos para a realização da justiça.

Neste sentido, acompanhamos também as pertinentes considerações da autora Antonieta Nóbrega, constantes do já supra citado estudo, que evidenciam existir nos crimes artº 68°, n° 1, al. e) CPP , uma incompatibilidade entre a figura da constituição de assistente e o exercício da função de jornalista (com sublinhados nossos):

(…) O permissivo do artº 68°, n° 1, al. e) CPP português, autoriza qualquer pessoa a se constituir assistente nos processos para apuração dos crimes do interesse público que elenca em seu bojo, objetivando, conforme foi visto, maior transparência na administração da justiça e um combate mais eficaz a certas formas de criminalidade, através da colaboração da sociedade para com a investigação e a prova a ser produzida nos autos.

Não é demais lembrar a advertência (…), no sentido de que esse instituto é absolutamente desligado do conceito de ofendido, sobretudo porque as incriminações nele inseridas tutelam interesses públicos, impassíveis de particularização do sujeito passivo. (…)

Vê-se, então, que a habilitação do assistente, mesmo no caso dos crimes previstos na alínea e), n° 1, artº 68° CPP, o vincula a uma posição de proatividade nas investigações e na acusação, condição indispensável para que tenha legitimidade de figurar nos autos.

Inicialmente, convém registrar, a prática forense tem demonstrado, em análise empírica, que geralmente os jornalistas se constituem assistentes com o fim exclusivo de recolher e divulgar informações processuais, o que, por si só, torna ilegítimas essas habilitações, por não se afinarem com o que determina artº 69° CPP. (…)

Na realidade, assistentes que não colaboram com as investigações ou com a acusação, seja requerendo provas ou praticando efetivamente atos processuais, padecem da falta de interesse processual e tornam ilegítima sua posição de sujeito auxiliar da acusação. Mas, no caso dos jornalistas, a situação vai além.

Com efeito, mesmo nos raros casos em que os jornalistas efetivamente atuam no processo, em evidente manobra para se legitimarem na tão polêmica constituição como assistentes, essa posição não se coaduna com o exercício de suas profissões, por diversas razões, que passo a elencar.

Estabelece o Estatuto do Jornalista – Estatuto do Jornalista – Lei n.º 1/99, de 1 de janeiro de 1999, com as modificações decorrentes da Lei n. 64/2012, de 6 de novembro, e Lei n.º 114/2012, de 20 de dezembro -, em seu artº 1., n° 1, que: “1 – São con­siderados jornalistas aqueles que, como ocupação principal, permanente e remunerada, exercem com capacidade editorial funções de pesquisa, recolha, selecção e tratamento de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou som, destinados a divulgação, com fins informativos, pela imprensa, por agência noticiosa, pela rádio, pela televisão ou por qualquer outro meio electrónico de difusão.”

Nessa esteira, observa-se que o jornalista tem atividade bem definida em seu estatuto profissional, revestida de função social, com importante papel formador de opinião no cenário das comunicações sociais, conforme já foi destacado ao se tratar das liberdades de imprensa e de expressão, ao lado do direito de informação, que são direitos fundamentais não somente do jornalista, mas também do povo que acessa a informação.

Analisando, então, a atividade característica do jornalista, tem-se que é seu dever pesquisar, recolher, selecionar e tratar fatos, notícias ou opiniões, para divulga-los, com fins informativos, pela imprensa.

Ora, o acesso ao processo penal não se pode prestar à recolha de notícias para divulgação midiática. E essa recolha e divulgação de notícia, nada mais são, do que atividade característica das funções do jornalista, notória mola propulsora de suas habilitações no processo.

Ao permitir o ingresso do jornalista no processo como assistente, não se pode retirar dele o exercício de suas funções laborais, presumindo-se, então, que utilizará as informações ali colhidas para divulga-las, como é imanente à sua atividade.

Essa divulgação precipitada, no entanto, poderá prejudicar a fideidignidade da prova a ser produzida, perturbar a serenidade dos sujeitos processuais e obstar o bom andamento do processo.

Ademais, o artº 3° do Estatuto da classe que disciplina as funções incom­patíveis com a atividade do jornalista, em sua alínea c), do n° 1, dispõe sobre a incompatibilidade entre o exercício do jornalismo e os serviços de informação e segurança, além de qualquer organismo ou corporação policial.

Ora, se a prática do jornalismo não se coaduna com as atividades de investigação e de polícia, evidentemente, também não se compatibiliza com o mister de investigar e julgar, inerentes ao sistema de justiça, materializado no processo, do qual se deve extrair uma decisão justa, livre dos vícios advindos de pressões e exposições da opinião do momento, matéria prima para o mercado midiático.

Nesse viés, ressalta a Juíza conselheira do TC Fátima Mata-Mouros in “Direito à Inocência – ensaio de processo penal e jornalismo judiciário” (vd sobre a disparidade entre a verdade jornalística e a verdade judicial in Mata-Mouros 2007, 27-31) que a verdade projetada pela imprensa é de partida, mas apresenta-se ao público como palavra final, enquanto que a verdade produzida no processo é amadurecida pelo tempo, com a dilação probatória e o contraditório.

Destaca esta autora que a verdade noticiosa é verdade de partida, porque surge logo com a notícia do fato e é repassada para a opinião pública sem sofrer obrigatório controle de plausibilidade ou contraditório, abrindo espaço para que o público interessado faça a seu respeito um juízo de valor aleatório.

A verdade noticiosa ou midiática, dessarte, pode trazer em si inquietação, escândalo, perplexidade, que muitas vezes só vem a ser serenada depois do longo transcurso de um processo, quando é noticiada a sentença, com a verdade apurada judicialmente.

Ao revés, a verdade que surge nos autos, salienta a autora, é uma verdade amadurecida pela produção equitativa de prova, refinada pelos debates legítimos de todos os sujeitos processuais, transmudando-se através da sentença em veredicto que deve ter o condão de restabelecer a serenidade e a paz social, através do sentimento de efetivação da justiça que atinge não somente os sujei­tos processuais, mas, igualmente, a sociedade que dela toma conhecimento.

Dessa forma, a midiatização dos atos judiciais prejudica a sociedade que, através de fragmentos do processo, pensa conhecer toda a sua realidade, formando julgamentos paralelos e muitas vezes equivocados, o que tumultua a administração da justiça, na medida em que põe em risco sua credibilidade, sem motivos plausíveis para tal.

Além disso, com a midiatização, direitos dos sujeitos processuais são desrespeitados, pois, através das notícias, rapidamente o arguido se torna condenado, pela opinião pública, sem sequer ter se concluído processo e julgamento judicial, com as garantias a que faz jus.

A razão de todo esse desalinho é que, para se apresentar como prova em juízo, o depoimento ou documento colacionado passa pelos rigores técnicos do processo, com o contraditório, perícias e outras providências que venham a ser necessárias, enquanto que, para o jornalista, ao contrário, é assegurado o sigilo da fonte, nos termos do artº 11º, nºs 1 e 2, Estatuto do Jornalista, pelo que a notícia obtida até mesmo por fonte sigilosa, e nem sempre idônea, é jogada para a opinião pública, sem a necessária filtragem de veracidade, que devem informar a prova que leva a uma condenação.

Isso ocorre porque a mídia se alimenta do imediatismo, sob pena de perder espaço para a concorrência.

Oportuna, dessarte, a preocupação de alguns autores (…) com a atual feição que tem tomado a atividade jornalística, uma vez que para atender às exigências de mercado, a mídia compete pela audiência, pela publicidade, pelas fontes e pelos investidores, na procura de retorno dos investimentos e visando o lucro, o que torna a informação um bem de consumo, deixando de ser bem de interesse público, para ser bem de interesse comercial, sujeito ao sensacionalismo, a tabloidização, o infotainment e a superficialidade.

Destaca ainda a referida autora Mata-Mouros que, se por longo período a justiça portuguesa se manteve em silêncio midiático, hoje as questões a ela relacionadas têm agenda diária na imprensa, com a cobertura de processos judiciais, sobretudo os criminais, posto que, ao despertar emoções, o crime vende, transformando-se em excelente produto, em um jornalismo cada vez mais marcado pela cultura mercantilista.

Tudo isso, sem sombra de dúvida, é incompatível com a serenidade, certeza e imparcialidade que garantem a efetivação de boa justiça, através da atuação dos sujeitos no processo judicial.

Nesse passo, com a atuação do jornalista como assistente no processo criminal, as notícias levadas a público, ora a partir de uma prova do processo, ora por informação obtida alhures, com fonte sigilosa, terminam por se fundir para o público, ficando todas com a aparência de algo que saiu dos autos, através do assistente, favorecendo a criação de juízos equivocados pela sociedade e gerando a expectativa de um julgamento muitas vezes divorciado da real prova dos autos.

Aliás, nesse tocante, outra situação que se repete é a violação do segredo de justiça, que, ao contrário do que se pensa à primeira vista, não visa resguardar direitos do arguido, posto que, na fase investigatória, até mesmo ele pode ser incluído nas vedações do segredo interno. Na verdade, o segredo de justiça, nos casos excepcionais em que é decretado, visa, sobretudo, prezar pela originalidade da prova e a garantia da eficácia da prestação jurisdicional. Por isso, sua violação desestabiliza o processo e prejudica seu bom andamento, sendo contudo, prática contumaz do jornalista assistente, como é de se prever, ante as peculiaridades de sua profissão.

Nesse ponto, há de se convir que mais uma vez a habilitação do jornalista, profissional que tem a notícia como matéria prima e sua recolha e divulgação como finalidade laboral, não se coaduna com as obrigações impostas ao assistente no artº 69º CPP, que somente comporta as excepções expressamente previstas em lei.

Demais disso, no momento em que se constitui assistente no processo, o jornalista passa a ser acusador, afastando-se da imparcialidade que deveria ter para noticiar o fato, segundo a deontologia e o estatuto da sua profissão, a fim de garantir a qualidade e a isenção da informação que leva ao público e cumprir o relevante papel social de seu ofício.

Por fim, a alegação de alguns jornalistas no sentido de que se constituem assistentes para fiscalizar a atividade do Ministério Público, (…) também não merece ser acolhida.

Não se pode perder de vista que essa fiscalização é apenas atribuição reflexa do assistente, bem como de toda a sociedade, e dos órgãos designados em lei para o desiderato, não podendo se constituir em única premissa para justificar a sua habilitação no processo.

Sabe-se que a fiscalização recíproca entre os órgãos de soberania dispostos no artº 110º ss., CRP e, até mesmo na estrutura interna dos Tribunais, entendendo-se como tal todo o sistema de justiça não somente da magistratura, mas também do MP e dos advogados, com acompanhamento mediato da sociedade, têm perfeitas condições de realizar o controle da administração da justiça, não havendo qualquer necessidade fiscalização direta dos jornalistas assistentes nos processos criminais, para garantir essa transparência.

Aliás, conforme multimencionado, a atuação dos jornalistas nos processos, muito mais que oportunizar transparência da administração da justiça, a tem prejudicado, ante a instabilidade criada a partir da divulgação de notícias que nem sempre refletem a realidade processual.

Frise-se, as liberdades de imprensa ou crônica, expressão e informação são pilares da democracia, e engrandecem a atividade do jornalista, que, no entanto, não tem qualquer função a desempenhar no processo penal.

Não se pode permitir que o processo se torne mera fonte de notícia para qualquer dos seus sujeitos.

Diante de tudo isso, percebe-se que a intervenção de jornalistas como assistentes, ao invés de servir como auxiliar na persecução criminal, consubstancia-se em fator de perturbação processual, eis que não se reveste da objetividade e da imparcialidade que devem informar o processo penal.

Por todos esses motivos, tenho como ilegítima a constituição do jornalista como assistente no processo penal, ante a incompatibilidade das suas funções profissionais com os deveres do assistente, além de considerar que, muito mais que contribuir para a eficácia do combate à criminalidade ou para uma justiça mais transparente, como requer o instituto da assistência, essa habilitação tumultua o processo e lhe traz prejuízos..

Não podíamos estar mais de acordo com todas as considerações acima reproduzidas, sobre as funções de um jornalista à luz do seu estatuto profissional em Portugal, e sobre os efeitos nefastos que podem advir para a realização da justiça, da sua admissão como assistente nos processos crimes em fase de inquérito, no caso dos crimes previstos na alínea e), n° 1, artº 68° CPP.

Na verdade, entendemos que não será uma mera condenação de alguns jornalistas, por uma eventual violação do segredo de justiça que se venha a lograr comprovar a posteriori, que poderá ter a virtualidade de salvar as diligências probatórias em curso em determinada fase do processo e que por força dessa violação se perderam ou foram minadas e desvirtuadas para sempre, apenas devido à precipitada e precoce divulgação pública de factos que deveriam ser resguardados do conhecimento público, antes de se atingir a fase do contraditório processual, nos termos legais.

Nem se diga ainda, que com a negação desta pretensão nos termos pretendidos pelo MP recorrente, se estará a descriminar o jornalista face aos demais cidadãos violando-se assim a CRP.

Como já acima ficou expresso, não nos parece que se possa falar aqui em descriminação e muito menos em violação da C.R.P, apenas é sabido que há certas profissões onde o estatuto legal que lhes é inerente, exige uma contenção ou restrição ao exercício de certos direitos, por terem os mesmos que ser conciliados com outros, igualmente tutelados na nossa ordem jurídica.

Por exemplo, no que respeita aos magistrados judiciais, para além do dever de sigilo e reserva acima referido, também não podem exercer qualquer outra função pública ou privada, de natureza profissional (artº 8ºA nº 1 do referido EMJ) e não é por estas e outras restrições impostas por força do exercício das suas profissões, que os magistrados judiciais vão invocar que são menos cidadãos que os demais ou que são descriminados face à lei.

Mutatis mutandis, o mesmo sucede com o recorrido, o jornalista AA.

Entendemos que o exercício de funções de jornalista é incompatível com a constituição de assistente na fase de inquérito do presente processo, uma vez que tal admissão no caso em apreço, briga ou coloca em sério risco, o direito a uma justiça penal independente, objectiva, eficaz e célere sob a égide directa do MP na fase da investigação processual – direitos esses que a nossa CRP e CPP também tutela e urge aqui salvaguardar.

Entendemos assim que o recurso do M.P deve ser julgado provido, porquanto a denegação da pretensão de constituição de assistente ao jornalista AA, no caso dos crimes previstos na alínea e), n° 1, artº 68° CPP., na fase de inquérito (onde os interesses da investigação exigem que a mesma decorra longe dos olhares públicos, nada obstando a que o jornalista possa ser admitido enquanto tal numa fase posterior do processo, logo que o segredo de justiça cesse) não lesa de forma definitiva o direito à informação (já que o C.P.P estabelece os termos em que a mesma pode ter lugar, não carecendo o exercício desse direito de informar da constituição de assistente figura que serve outros desígnios que não são claramente servir de suporte para um acesso privilegiado e alargado às diligências de prova que o M.P se encontra a desenvolver).

Sob pena de assim não sendo, dando cobertura à pretensão do jornalista ora recorrido, se criar um sério risco de acontecer a divulgação pública de informações sobre factos em investigação em fase de inquérito e tal resultado conduzir à frustração dos próprios objectivos da investigação em curso (risco de manipulação da prova documental/testemunhal e perda da genuinidade da mesma), com claro prejuízo para a realização da justiça e para a manutenção da paz social.

Como já acima ficou dito, o olhar do jornalista que acede ao processo numa sua fase inicial como é a fase do inquérito, nunca será um olhar de quem tem já acesso à prova em termos mais globais (como irá suceder numa fase posterior do processo onde já se admite o pleno exercício do contraditório, após a acusação ou despacho de pronúncia).

Nessa medida, a divulgação precoce de informações sobre determinados factos em investigação, criará escusadamente inquietação e sobressalto na opinião pública, além de que dificilmente poderá ser uma informação totalmente objectiva e imparcial, pois que o assistente não deixa de ser um colaborador do M.P que é quem dirige a investigação e vai deduzir a acusação.

Neste mesmo sentido, vejam-se as pertinentes conclusões da autora Antonieta Nóbrega, com as quais concordamos inteiramente e aqui deixamos transcritas de seguida (com sublinhados nossos):

A constituição do assistente no processo penal português apenas se justifica para que o sujeito possa colaborar com o Ministério Público, promovendo atos e requerendo provas que favoreçam o jus puniendi do estado, podendo habilitar-se para tal o ofendido, ou qualquer pessoa, nos casos em que o crime a ser apurado envolva o interesse público.

Na hipótese prevista no artº 68º, nº 1, al. e), CPP, o permissivo de que qualquer pessoa pode se constituir assistente nos crimes ali enumerados visa a transparência da justiça e a colaboração da sociedade para o efetivo combate àquele tipo de criminalidade, que envolve o interesse público por ter como bem jurídico ofendido, o patrimônio público, a paz ou a humanidade. A participação do jornalista no processo penal, na qualidade de assistente, fulcrada no dispositivo acima mencionado, ainda que restrita aos processos de apuração de crimes do interesse público, em nada auxilia na efetivação de justiça ou no combate à criminalidade, ao contrário, serve de meio para a obtenção de interesses meramente pessoais e exteriores ao processo, desequilibrando-o e tumultuando-o.

Observa-se do artº 1º do Estatuto do Jornalista, que é seu dever funcional recolher e tratar notícias para divulga-las através da mídia. Atente-se que essa é a função essencial do jornalista.

O processo penal, no entanto, não pode servir de mero instrumento de recolha de notícias para posterior divulgação, mormente em se tratando dos sujeitos ou participantes nele habilitados, com funções disciplinadas em lei, como é o caso do assistente, auxiliar do MP, a quem cabe intervir no processo, com amplos poderes, outorgados na legislação processual pátria, a teor do artº 69º, n.ºs 1 e 2 CPP.

Questiona-se, pois, a legitimidade dessas habilitações, mesmo em se tratando daquelas em que há disfarçada atuação processual para justificar a constituição do jornalista, uma vez que efetivamente incompatíveis com a atividade laboral do jornalista e porque se fundam em motivação e interesse exteriores ao processo penal.

Não se pode olvidar que com a mercantilização da imprensa e a concorrência entre os sistemas, o processo penal é ambiente fértil para notícias, sobretudo quando trata de pessoas com destaque político ou social, de quem, naturalmente se mitiga o direito à reserva da vida privada.

Contudo, o processo não é bem de consumo e não pode ser utilizado para estimular condenações sociais antecipadas acerca dos casos ainda pendentes de julgamento pelo Tribunal.

Com efeito, uma divulgação equivocada de atos e provas do processo, não somente traz prejuízos de ordem moral para os sujeitos processuais e pessoas a eles relacionadas, como também, cria ambiente instável para a própria realização da justiça, uma vez que possibilita formação de convicção e até pré-julgamento paralelo pela sociedade, muitas vezes dissociado do conjunto probatório dos autos.

Não resta dúvida, tal situação pode abalar a fideidignidade da prova a ser colhida, influenciando testemunhas ou gerando pressões que venham a abalar a serenidade dos sujeitos processuais. Além disso, informações que não refletem a totalidade do caderno processual, favorecem julgamentos sociais distorcidos e têm reflexo na credibilidade da sentença vindoura, que se aterá à analise apurada da prova existente no processo, amadurecida pelo contraditório e demais garantias instrumentais, para a efetivação de uma decisão justa.

Por tudo isso, vê-se que a atividade do jornalista, consistente na recolha, tratamento e divulgação de notícias, segundo preconiza seu estatuto, é incompatível com o acesso ao processo como assistente, ante a indiscutível utilização do conteúdo processual como matéria prima para seu mister profissional, trazendo notórios prejuízos à administração da justiça e ao bom andamento do processo, ao invés de colaborar no combate à criminalidade, como requer o instituto da assistência.

Percebe-se, pois, verdadeira incompatibilidade de funções entre o exercício do jornalismo e os deveres do assistente, por evidente conflito de interesses, que deve ser resolvido em prol do interesse público, consubstanciado no resguardo da efetividade da prestação jurisdicional, livre da influência de sujeitos que desestabilizam e tumultuam o processo.

A análise acurada dessas situações conduz à incontestável conclusão de que a habilitação de jornalista como assistente no processo penal não se reveste de legitimidade, eis que foge ao escopo do artº 68.º, nº 1, al. e), c/c artº 69º, nºs 1 e 2, ambos do CPP

Por tudo o acima exposto, o recurso do M.P procede.

(…)”.

Por seu turno, o acórdão fundamento, tal como dele consta, identificou como questão a decidir: Suscita-se a apreciação da admissibilidade legal da decisão de retirar ao recorrente a qualidade de assistente.

E dela conheceu como segue:

“(…).

7.2. O recorrente BB foi admitido como assistente nos autos ao abrigo do estabelecido na alínea e), do nº 1, do artigo 68º, do C.P.P., segundo o qual “podem constituir-se assistentes no processo penal (…) qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.”.

Por via desta norma permite-se a qualquer pessoa, quanto a determinadas categorias de crimes, denominados “crimes sem vítima”, como os elencados, que se constitua assistente, tendo intervenção no processo penal.

Como se assinala no acórdão desta Relação de 15 de Outubro de 2019, Recurso nº 122/13.8TELSB-BE.L1, o estabelecido no aludido normativo, “não pode ser interpretado isoladamente, antes em conjugação com o plasmado no artigo 69º, do CPP, segundo o qual, o assistente, ainda que sendo um sujeito processual, tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua intervenção, mais até quando deduzida foi a acusação pública, com as excepções que a lei determina.

Daí que, o escopo que a lei visa quanto à constituição de assistente quando em causa está algum dos crimes catalogados na dita alínea e), seja o de proporcionar o exercício de uma “cidadania activa” em colaboração com o Ministério Público e não quaisquer outros propósitos de natureza iminentemente subjectiva, como seja o de mais fácil obtenção de informação pelo assistente para ser utilizada na sua actividade profissional. No caso do jornalista, para a usar em peças jornalísticas relativas a matéria constantes dos autos e seus intervenientes.

E, não se trata de sindicar se uma constituição de assistente com esse propósito é deontologicamente reprovável ou não, se eventualmente viola deliberação do plenário da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista ou o Estatuto do Jornalista - pois tal não é da competência do Juiz de Instrução – antes de saber se a actuação do assistente se desenvolve de acordo com o fim para que a norma admite a constituição como tal.”.

Mais adiante, “o assistente tem o direito de intervir no processo, não estando, porém, obrigado a fazê-lo e muito menos de acordo com o juízo de oportunidade ou a vontade do Magistrado do Ministério Público titular do processo (ou do Juiz de Instrução Criminal) porquanto a subordinação não impede que face aquele tenha autonomia.

Elucida o Conselheiro Henriques Gaspar, como de forma curial trazido à colação foi pela 1ª instância, que “o estatuto material do assistente e a natureza dos interesses que a qualidade e a posição processual se destinam a assegurar nos casos de legitimidade «popular», previstos no artigo 68º nº 1 e) e em disposições de leis avulsas – realização do direito de colaboração com o MP no exercício da acção penal para a realização do interesse público – impedem a apropriação da qualidade quando através da constituição de assistente se pretendem prosseguir outros interesses, fora ou em desvio das finalidades de atribuição do estatuto de sujeito processual; exemplo típico de utilização desviante e em clara situação de abuso de direito (abuso do direito de constituição de assistente) será o caso, de intervenção recente, de jornalistas que requereram a constituição como assistentes utilizando a legitimidade «popular», não com qualquer intenção ou interesse de colaboração com o MP na prossecução das finalidades do processo e da realização da justiça mas apenas com o objectivo de recolha de informação do processo, tentando contornar as regras sobre o segredo de justiça através do acesso que a qualidade de assistente lhe permite, em tais casos, com fundamento em carência dos pressupostos materiais que justificam a qualidade de assistente, e também por ser caso de abuso de direito, não deve ser admitida a intervenção como assistente, ou, se a verificação resultar de comportamento subsequente à admissão, deve ser retirada a qualidade de sujeito processual” – em Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª Edição Revista, Almedina, pág. 220.”.

De acordo com o estabelecido no artigo 334 do Código Civil, “é legítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O abuso de direito configura-se como um princípio fundamental da ordem jurídica, perspectivada na sua unidade – daí a sua aplicação transversal a todos os ramos de direito, ainda que o seu conceito seja dado a conhecer no Código Civil – traduzindo-se em que o exercício dos direitos tem limites, pelo que a titularidade de um direito não confere um complexo de poderes absolutos inerente ao seu exercício.

Por um lado, o exercício dos direitos está limitado pela boa-fé e pelos bons costumes, e, por outro lado, pelas finalidade de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito” – cfr. Acórdão do STJ de 09/09/2014, Proc. nº 499/12.2TTVCT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.

E ainda reportando-se ao entendimento de Pires de Lima-Antunes Varela, diz-nos o mesmo aresto que “a nota típica do abuso de direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim do próprio direito, o do contexto em que ele é exercido”.

Em 12 de Março de 2019, o J.I.C. proferiu despacho que vedou “o acesso aos actos de instrução por parte dos assistente/jornalistas” e determinou a não “entrega aos assistente de cópia de autos de inquirição ou de interrogatório de arguido”.

Desse despacho recorreu BB, tendo a Relação de Lisboa, por acórdão de 31 de Outubro de 2019, concedido provimento ao recurso (Recurso nº 122/13.8TELSB-BF.L1), revogando a decisão recorrida.

Tendo tomado conhecimento do acórdão desta Relação de Lisboa de 15 de Outubro de 2019, no âmbito do Recurso nº 122/13.8TELSB-BE,L1, relativo à recorrente CC, o ora recorrente BB apresentou requerimento o qual consta a fls. 54819.

Por despacho de 21 de Novembro de 2019, o J.I.C. decidiu retirar ao recorrente a qualidade de assistente no processo.

O despacho recorrido sanciona o recorrente por considerar existir da sua parte “falta de interesse em agir” e “abuso de direito”.

Assim seria porque no entendimento efectuado no despacho recorrido, apesar de o recorrente Azenha não se encontrar dentro do tribunal:

- Os meios de comunicação social ... e ... estariam a transmitir, em tempo real, o conteúdo do auto de interrogatório no dia 4 de Novembro de 2019, o que indiciaria que alguém no interior da sala estaria a transmitir essa informação para o exterior.

- No dia 3 de Novembro de 2019, na ... foram reproduzidos excertos de intercepções telefónicas realizadas no âmbitos dos autos e nesse programa participaram os jornalistas assistentes CC e BB.

Ora se o recorrente não se encontrava na sala não se vislumbra como pode ser-lhe assacada a responsabilidade pessoal por qualquer daqueles factos ainda que transmitidos naqueles meios de comunicação, e por outro lado o facto de o jornalista ser assistente não o impede de participar em programas televisivos e de trabalhar no que é a sua profissão.

Do texto da decisão, não resulta qualquer imputação concretizada pessoalmente ao recorrente, nem de qualquer conduta também em que se consubstancie a alegada “falta de interesse” e invocado “abuso”, justificativos da sanção aplicada, fazendo-se um juízo genérico sobre a ausência de intervenção processual dos vários assistentes, imputando a todos eles, de forma global e não individualizada e concreta, a falta de interesse em agir e o abuso de direito, o que parece ter como substrato, aliás, o entendimento de que o recorrente BB, por ser jornalista, não poderia constituir-se assistente no processo.

A liberdade de imprensa constitui, também, uma garantia de escrutínio das instituições democráticas e dos seus servidores, que por seu lado estão sujeitos a tal escrutínio pela própria natureza das suas funções.

Como lapidarmente afirmado por William Blacke:

“Quando a imprensa não fala, o povo é que não fala. Não se cala a imprensa. Cala-se o povo.”.

Atente-se também, que ao ora recorrente, por despacho de 12 de Março de 2019 do mesmo J.I.C., fora vedado o acesso aos actos de instrução, e decidida a não entrega ao mesmo de cópia de autos de inquirição ou de interrogatório de arguido, o que foi revogado por acórdão de 31 de Outubro de 2019 desta Relação de Lisboa (Recurso no Processo nº 122/13.8TELSB-BF.L1), razão por que não se vislumbra em que se traduziu, após aquele despacho, o exercício abusivo do direito por parte do recorrente BB, que o despacho recorrido refere que “honesta e transparentemente” confessa que o seu propósito ao constitui-se como assistente foi o de ter acesso, como jornalista, à informação e aos elementos do processo e que “apenas mediante a presença nos actos de instrução é que o recorrente, na qualidade de Assistente, conseguirá relatar, com rigor, um caso de manifesto interesse público”.

O acto de informar, só por si, servindo o interesse público, com a informação que seja relevante, segundo o critério do próprio jornalista, não é contrário à posição de Assistente nos autos, desde que seja cumprido o respeito pelos limites legais impostos à divulgação do que seja proibido divulgar, ou do que ultrapasse o objecto do processo, e finalmente, concorrentemente, com os limites da violação do âmbito dos direitos de estrita privacidade dos intervenientes processuais, além de que, por outro lado, pode propiciar a aparecimento de eventuais novos intervenientes que possam, alertados pela discussão pública da causa, querer contribuir com informações relevantes para a descoberta da verdade material, como, finalmente, poder desencadear os actos próprios do jornalismo de investigação, que historicamente desde o caso Watergate se desenvolvem em benefício da democracia.

No caso concreto do recorrente BB e do órgão de comunicação para o qual trabalha, é conhecida a contribuição no processo na averiguação do património imobiliário dos arguidos, o que foi do conhecimento dos mesmos como reflectido em amplas conversações interceptadas espelhadas nos autos, e por isso também é imprópria e até falsa a afirmação de que o recorrente se limitara a retirar informação dos autos, quando é inegável que também contribuíra para a informação recolhida nos mesmos.

Finalmente, o despacho recorrido, relativamente ao recorrente BB, não contém a indicação de qualquer elemento mínimo e concreto que permitam sequer indiciariamente suspeitar ou sugerir fundamentadamente o invocado “abuso de direito” e muito menos a alegada falta de “interesse em agir” que lhe são genericamente imputados, tal despacho não tem sustentação factual, nem razão legal de ser, pelo que cumpre conceder provimento ao recurso.

(…)”.

ii) Aqui chegados, tenhamos presente que o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência é um recurso normativo que visa definir a melhor interpretação de uma norma e que tem uma eficácia expansiva extraprocessual, embora com um efeito consequencial directo no processo onde foi interposto (e naqueles outros suspensos ao abrigo do art. 441º/2, cf. art. 445º/1) “rompendo” o caso julgado (Tiago Caiado Milheiro, op. cit., págs. 426-427), e que

O que nele cumpre dirimir é a oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito, conceito este que nem sempre é fácil de precisar.

José Alberto dos Reis (citado por Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 213) entendia existir oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas, integrando no conceito a oposição expressa e a oposição implícita, e a oposição entre decisão e fundamentos.

Para Simas Santos e Leal Henriques, é essencial saber se para a resolução do caso concreto os tribunais, em dois acórdãos diferentes, chegaram a soluções antagónicas sobre a mesma questão fundamental de direito, pressupondo a expressão legal soluções opostas que nos dois acórdãos seja idêntica a situação de facto, que em ambos exista expressa resolução de direito e que a oposição respeita às decisões e não aos fundamentos (op. cit. e nota 2), no mesmo sentido caminhando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (acórdãos de 19 de Fevereiro de 2025, processo nº 1399/18.8T9PBL-A.S1, de 29 de Janeiro de 2025, supra identificado, de 29 de Maio de 2024, processo nº 2589/18.9T9BRG.G2-A.S1, de 9 de Março de 2023, processo nº 1831/12.4TXLSB-V.C1-A e de 12 de Janeiro de 2023, processo nº 11/20.0GAMRA.E1-A.S1, todos in www.dgsi.pt).

Pois bem.

Alguma semelhança existe entre as situações de facto que integram o objecto do acórdão recorrido e o objecto do acórdão fundamento. Mas apenas isso.

Em ambas está em causa a qualidade de assistente de um jornalista, em processo penal por crime sem vítima.

No processo onde foi proferido o acórdão recorrido, o juiz de instrução criminal admitiu o jornalista a intervir nos autos como assistente [despacho de 29 de Julho de 2023].

O Ministério Público recorreu.

A Relação de Lisboa, por acórdão de 20 de Dezembro de 2023 [acórdão recorrido], julgou procedente o recurso, revogando o despacho do juiz de instrução criminal e determinando a sua substituição por outro que não admita a constituição de assistente.

Brevitatis causa, a Relação fundamentou a decisão nas seguintes premissas:

- A circunstância de a investigação levada a cabo no inquérito pelo Ministério Público ter por objecto crimes enumerados no art. 68º, nº 1, e), do C. Processo Penal, não implica automaticamente o preenchimento de todos os pressupostos de que depende a constituição de assistente, não podendo o referido artigo ser interpretado isoladamente, antes devendo sê-lo em conjugação com o art. 69º, do mesmo código, designadamente, com a posição do assistente como colaborador do Ministério Público, a cuja actividade deve subordinar a sua intervenção processual, embora não esteja obrigado a intervir no processo e muito menos, a intervir de acordo com o juízo de oportunidade ou com a vontade do Ministério Público;

- O fim visado pela lei com a constituição de assistente, estando em causa crimes de catálogo da alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal, é proporcionar o exercício de uma cidadania activa com a colaboração do Ministério Público, e não, propósitos subjectivos, como a obtenção de informação capaz de ser usada na actividade profissional, in casu, no jornalismo, e por isso, apenas a posteriori, isto é, só depois de admitido o requerente/jornalista como assistente e face ao seu concreto comportamento processual, se poderá avaliar se este comportamento, por se consubstanciar naquele propósito subjectivo, se traduziu num abuso de direito [não permitindo a situação dos autos, desde já, apontar ao recorrido assistente um abuso de direito];

- Na situação, como a que é objecto do recurso, em que o jornalista, nesta qualidade e no exercício da sua profissão, requer a constituição como assistente, a resposta à questão de saber se apenas pretende, na requerida qualidade, exercer os poderes conferidos pelo art. 69º do C. Processo Penal em conformidade com o seu escopo, ou, pelo contrário, se pretende utilizá-los na prossecução de outros fins, terá de ser dada pelo julgador, caso a caso, em função dos condicionalismos do processo, v.g., a fase processual em que foi requerido o estatuto, e a qualidade da pessoa que o requereu;

- No caso, não foi apresentada a existência de interesse legítimo do jornalista recorrido para agir no exercício de uma cidadania activa e de, por esta via, agir em colaboração com o Ministério Público na investigação em curso, sendo legítimo concluir que a sua constituição como assistente visou, basicamente, poder ter acesso à informação contida nos autos e não, tal como preceitua o art. 69º do C. Processo Penal, colaborar com o dominus do inquérito, no exercício da referida cidadania activa, sendo certo que a norma da alínea e) do nº 1 do art. 68º do mesmo código não visa garantir o direito constitucional à informação;

- Por outro lado, a admissão de um jornalista a intervir como assistente, no circunstancialismos descrito, para além de violar a ratio da lei, levanta questões ao nível do Estatuto do Jornalista, no que respeita às obrigações de neutralidade e objectividade, pois o atribuído estatuto processual impõe-lhe a posição de colaborador subordinado ao Ministério Público;

- Assim, na fase de inquérito em que é investigado crime de catálogo do art. 68º, nº 1, e), do C. Processo Penal, a admissão como assistente de jornalista, nos exactos termos em que a pretensão foi apresentada pelo recorrido, permitiria aos profissionais da informação contornar o regime do art. 88º do mesmo código – que define de forma restritiva as condições do seu acesso ao processo –, facultando-lhes, pela via daquela qualidade processual, o acesso privilegiado à informação sobre a investigação, que poderia livremente tornar pública, com as inerentes consequências para o bom, funcionamento da justiça.

No processo onde foi proferido o acórdão fundamento, o juiz de instrução criminal admitiu o jornalista a intervir nos autos como assistente [despacho de 10 de Fevereiro de 2015].

O juiz de instrução retirou ao jornalista a qualidade de assistente, com fundamento na falta de interesse em agir e em estar a mesma a ser exercida com abuso de direito [despacho de 21 de Novembro de 2019].

O jornalista recorreu.

A Relação de Lisboa, por acórdão de 13 de Outubro de 2020 [acórdão fundamento], julgou procedente o recurso, revogando o despacho do juiz de instrução criminal.

Brevitatis causa, a Relação fundamentou a decisão nas seguintes premissas:

- [Citando o acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Outubro de 2019, processo nº 122/13.8TELSB-BE.L1] O art. 68º, nº 1, e), do C. Processo Penal não pode ser interpretado isoladamente, mas em conjugação com o que se dispõe no art. 69º do mesmo código, nos termos do qual, o assistente, ainda que sujeito processual, tem a posição de colaborador do Ministério Público, a cuja actividade subordina a sua actuação, daí que, o escopo visado pela lei relativamente à constituição de assistente quando está em causa um crime de catálogo da referida alínea e), seja o de proporcionar o exercício de uma cidadania activa em colaboração com o Ministério Público, e não outros propósitos de natureza iminentemente subjectiva, como seja o de mais fácil obtenção de informação pelo assistente para ser utilizada na sua actividade profissional de jornalista;

- Não está em causa averiguar se a constituição de assistente com tal propósito é ou não deontologicamente censurável, por violação do Estatuto do Jornalista, mas saber se a conduta do assistente/jornalista se desenvolveu de acordo com o fim para que a norma admite a constituição como tal;

- [Citando Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2ª Edição, 2016, Almedina, pág. 220] A natureza dos interesses que a qualidade de assistente assegura nos casos de exercício de cidadania activa previstos na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal, portanto, a realização do direito de colaboração com o Ministério Público no exercício da acção penal para a realização do interesse público, impede que, pela assunção da qualidade de assistente possam ser prosseguidos outros interesses, em desvio da finalidade da lei, como sucede com o jornalista que requer essa qualidade nestes casos de legitimidade popular, apenas e só com o propósito de obter informação do processo, assim frustrando as regras do segredo de justiça, em flagrante abuso de direito, não devendo, por isso, ser admitida a sua intervenção nessa qualidade processual, ou, verificando-se a conduta abusiva depois da admissão como assistente, devendo ser-lhe retirada tal qualidade;

- O despacho recorrido sanciona o jornalista/recorrente por considerar existir da sua parte “falta de interesse em agir” e “abuso de direito” porque, apesar de não se encontrar no interior do tribunal, dois meios de comunicação estavam a transmitir em tempo real, o conteúdo do interrogatório judicial, pelo que, alguém estaria na sala onde decorria a diligência judicial, transmitindo informação para o exterior, não se percebendo como, não estando na dita sala, lhe possa ser assacada qualquer responsabilidade pessoal na transmissão daquela informação, sendo certo que no texto do despacho recorrido não é imputada ao recorrente qualquer conduta concreta que demonstre a invocada falta de interesse em agir e o invocado abuso de direito justificativos da ‘sanção’ aplicada, o que parece ter como substrato, aliás, o entendimento de que o recorrente (…), por ser jornalista, não poderia constituir-se assistente no processo;

- No caso concreto do recorrente, é conhecida a contribuição para o processo na averiguação do património imobiliário dos arguidos, sendo inegável que também contribuiu para a informação recolhida no mesmo;

- Em conclusão, o despacho recorrido, relativamente ao recorrente, não contém qualquer elemento concreto que permita suspeitar ou sugerir fundamentadamente o invocado “abuso de direito” e alegada falta de “interesse em agir” que lhe são genericamente atribuídos, não tendo, pois, sustentação factual, nem razão legal de ser, pelo que cumpre conceder provimento ao recurso.

Como se vê, não obstante as semelhanças que apresentam, as situações de facto objecto do acórdão recorrido e do acórdão fundamento não são idênticas.

No primeiro, o despacho recorrido admitiu um jornalista, no exercício da sua actividade profissional, a intervir como assistente em processo criminal [fase de inquérito] que tinha por objecto crimes catalogados na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal.

No segundo, o despacho recorrido revogou a qualidade de assistente, a jornalista, no exercício da sua actividade profissional, em processo criminal [fase de instrução] que tinha por objecto crimes catalogados na alínea e) do nº 1 do art. 68º do C. Processo Penal, com fundamento em abuso de direito e falta de interesse em agir do jornalista/assistente.

A diversidade de situações de facto determinou que a Relação, no acórdão recorrido, fosse chamada a decidir sobre a verificação dos pressupostos materiais de que depende a aquisição da referida qualidade processual, isto é, sobre os pressupostos materiais da constituição de assistente resultantes da interpretação conjugada dos arts. 68º, nº 1, e) e 69º, do C. Processo Penal, sendo requerente um jornalista em exercício de funções, e no acórdão fundamento, diferentemente, fosse chamada a decidir sobre a existência ou não, de abuso de direito na constituição de assistente e de falta de interesse em agir de jornalista já constituído assistente, isto é, da verificação ou não de factos demonstrativos da falta de interesse em agir e de abuso do direito de constituição de assistente, por jornalista investido nesta qualidade processual.

Desta diversidade resulta, tal como afirmou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal, no parecer emitido, que acórdão recorrido e acórdão fundamento, não apreciaram nem decidiram a mesma questão de direito sob distintos critérios e dando-lhes opostas soluções jurídicas.

Com efeito, ambos os acórdãos aceitam os mesmos pressupostos de direito, afirmando que a admissão como assistente, em processo por crime de catálogo do art. 68º, nº 1, e), do C. Processo Penal, de jornalista no exercício da sua profissão, impõe a interpretação conjunta, daquela disposição legal com o art. 69º do mesmo código, dela resultando que o fim visado pelas identificadas normas é o de proporcionar o exercício da cidadania activa em colaboração com o Ministério Público, e não, o de mais facilmente obter informação a ser utilizada na sua actividade profissional, ocorrendo abuso de direito, quando se verifique este desvio de fim.

Porém, enquanto o acórdão recorrido, entendendo que o jornalista que pretendeu constituir-se assistente [e viu esta pretensão deferida pela 1ª instância] não demonstrou interesse legítimo para agir no exercício de uma cidadania activa, inferiu que a sua constituição como assistente visou apenas o fim de ter acesso à informação contida nos autos, em absoluto desvio ao fim legal – o de colaboração com o Ministério Público no exercício da referida cidadania activa –, na aplicação da interpretação conjunta dos arts. 68º, nº 1, e) e 69º, do C. Processo Penal, supra referida, revogou o despacho recorrido, não confirmando a constituição do jornalista recorrido como assistente, o acórdão fundamento deparou-se já, com um jornalista constituído assistente, e que a posteriori, por causa da sua conduta processual, viu ser-lhe retirada tal qualidade pelo juiz de instrução criminal, mas porque o despacho recorrido não continha factos concretos demonstrativos dos fundamentos de direito invocados – abuso de direito e falta de interesse em agir –, foi com tal fundamento que o revogou, não chegando, pois, a debruçar-se sobre a questão da verificação, ou não, de desvio de fim no exercício da qualidade de assistente [embora, indirectamente, tenha negado esse desvio, ao considerar que o jornalista assistente fez chegar aos autos matéria relevante para a investigação].

Em suma, os acórdãos em confronto não interpretaram nem aplicaram os arts. 68º, nº 1, e) e 69º, do C. Processo Penal, em sentidos divergentes, desde logo, porque também não eram idênticas as respectivas situações de facto.

3. Em conclusão, não estando verificada a imprescindível identidade das situações de facto e das questões de direito no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, que constituem requisito material de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, deve o mesmo ser rejeitado, nos termos do disposto no art. 441º, nº 1, do C. Processo Penal, pela inexistência de oposição de julgados.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em julgar não verificada a oposição de julgados e, em consequência, nos termos do disposto no art. 441º, nº 1 do C. Processo Penal, rejeitam o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo recorrente AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça, em 3 UC (arts. 513º, nºs 1 e 3 e 514º do C. Processo Penal), a que acresce, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 420º, nº 3, 441, nº 1 e 448º, todos do C. Processo Penal, a condenação no pagamento da quantia de 4 UC.

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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).

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Lisboa, 15 de Maio de 2025

Vasques Osório (Relator)

Jorge Gonçalves (1º Adjunto)

Jorge Reis Bravo (2º Adjunto)