I. Ao pedido de apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e do pagamento da compensação de defensor oficioso, ambas verdadeiras modalidades de apoio judiciário, a que foi cumulado o pedido de substituição do defensor nomeado, apresentados à segurança social, no âmbito de um processo de natureza penal, não é aplicável o disposto no nº 4 do art. 24º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho e, consequentemente, também não é aplicável o disposto no nº 5 do mesmo artigo;
II. Compete ao tribunal substituir o defensor nomeado, a solicitação do arguido, com fundamento em causa justa, mantendo-se aquele em funções enquanto não for substituído (art. 66º, nºs 3 e 4, do C. Processo Penal), sem que a apresentação do requerimento do arguido com tal propósito, constitua causa de interrupção de eventual prazo processual que esteja a decorrer, designadamente, do prazo de recurso da sentença, em conformidade com o disposto no nº 19 do art. 39º, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.
III. Não tendo ocorrido, no decurso do prazo de recurso da sentença condenatória, qualquer causa da sua interrupção, com o termo do mesmo transitou em julgado a sentença, adquirindo a partir de então força executiva (art. 467º, nº 1, do C. Processo Penal);
IV. Assim, a prisão do requerente, para cumprimento de pena de privativa de liberdade imposta na sentença transitada, não viola, de forma manifesta e incontestável, qualquer disposição legal.
I. Relatório
1. AA, em cumprimento de pena à ordem do processo especial sumário nº 68/24.4... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Local Criminal de ... – Juiz ..., através de Ilustre Mandatário, veio requerer ao Exmo. Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus, por prisão ilegal, nos termos que se transcrevem:
“(…).
1. O arguido foi condenado, no âmbito do processo-crime 68/24.4..., que correu termos junto do Juízo Local Criminal de ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, a uma pena de prisão efetiva de um ano e dois meses de prisão.
2. O arguido não esteve presente no julgamento, porquanto, à data do mesmo, encontrava-se em França a trabalhar.
3. Mal o arguido tomou conhecimento que estariam à sua procura para ser notificado, sendo informado pela sua companheira, apressou-se a regressar e foi notificado da decisão em 16/02/2025, pela Guarda Nacional Republicana, tendo o Posto Territorial do ... recebido o mandado em 10/01/2025. (doc.1)
4. Após ter sido notificado, o arguido procurou ajuda para recorrer da decisão condenatória, mas o defensor que lhe havia sido nomeado não se prontificou a submeter o recurso ordinário para o Tribunal da Relação de Évora.
5. Inconformado com a inoperância do seu defensor nomeado, o arguido submeteu um pedido de proteção jurídica, que o dispensasse do pagamento das taxas de justiça e que determinasse a nomeação de um novo defensor e a respetiva compensação do mesmo. (doc. 2)
6. Para que não restassem dúvidas de que se tratava da nomeação de um novo defensor, o arguido explicou no campo respetivo: “PRETENDO AJUDA PARA PAGAMENTO DAS DESPESAS DO TRIBUNAL E QUE ME SEJA NOMEADO NOVO DEFENSOR POIS O ATUAL RECUSA-SE A RECORRER DA DECISÃO EM QUE FUI CONDENADO”. (doc. 2)
7. O arguido seguiu a tramitação correta, e o procedimento teria interrompido o prazo do recurso, depois de ter sido comunicado ao tribunal, o que aconteceu em 7 de março de 2025. (doc. 2)
8. O arguido havia sido notificado da decisão em 16 de fevereiro de 2025, pelo que estava em prazo. (Doc. 1)
9. Nos termos do art.º 24.º n.º 4 da Lei 34/2004 de 29 de julho, o procedimento interrompia o prazo para recurso, que só começava a ser contabilizado novamente com a notificação ao novo defensor, com o conhecimento do arguido, tudo nos termos do n.º 5, al. a) da mesma Lei e Ac. do TC n.º 515/2020.
10. Contudo, o Núcleo de Assuntos Jurídicos do Centro Distrital de ..., do Instituto da Segurança Social IP, interpretou erradamente o pedido do arguido como sendo um vulgar pedido, no âmbito de um processo penal já em curso, com defensor nomeado, em que o arguido somente pretendia a dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e o pagamento de compensação de defensor oficioso. (doc. 3)
11. Pela análise dos documentos do pedido fácil é de concluir que o pedido foi concedido incorretamente, pela leitura do despacho de concessão, o que resultou na detenção ilegal do arguido para cumprimento de pena de prisão. (doc. 3)
12. O correto seria a nomeação de defensor e o início de novo prazo para recurso, o que não aconteceu.
13. O arguido foi detido pela Guarda Nacional Republicana em 08/05/2025, em cumprimento de mandado de detenção e condução ao estabelecimento prisional, para cumprimento de pena. (Doc. 4)
14. Assim, nos termos do art.º 222.º, n.º 2, al. b) do CPP, o arguido está, neste momento, preso ilegalmente no Estabelecimento Prisional do ..., à ordem do processo referido no início, quando deveria estar em liberdade, aguardando pela nomeação de novo defensor para, então, interpor o recurso da decisão condenatória, para o Tribunal da Relação de Évora.
15. Claro, está, que com a procuração junta aos presente autos, o signatário está em condições de interpor o desejado recurso ordinário, para o Tribunal da Relação de Évora,
16. Assim, V. Exa. defira a providência pedida, terminando o desiderato criado pelo erro do Instituto da Segurança Social IP, na resposta apresentada junto dos autos, ao procedimento de proteção jurídica.
17. E seja concedido o prazo para recorrer, como decorre da Lei do Acesso ao Direito.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, requer-se a V. Exa. que se digne:
a) Admitir a presente providência de Habeas Corpus;
b) Ordenar a imediata libertação do arguido, AA, por se encontrar ilegalmente preso;
c) Providenciar pelas demais diligências legais.
(…).
2. Foi prestada a informação referida na parte final do nº 1 do art. 223º do C. Processo Penal, nos termos que se transcrevem:
“(…).
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 223.º do Código de Processo Penal consigno que dos presentes autos resulta que:
- tiveram início em 17.05.2024 por participação da Polícia de Segurança Pública, da qual resulta ter AA sido detido por, no referido dia, pelas 1.25h, se encontrar a exercer a condução de veículo ligeiro de passageiros, sem possuir habilitação legal, tendo sido posteriormente devolvido à liberdade e notificado para comparecer em Tribunal no dia 20.05.2024, pelas 10.00h;
- foi realizada audiência de discussão e julgamento, com a observância do formalismo legal, sem a presença do arguido, tendo-lhe sido nomeado defensor oficioso, tendo proferida sentença condenatória em 05.07.2024 – foi-lhe aplicada a pena de um ano e dois meses de prisão efectiva;
- a referida sentença foi notificada pessoalmente ao arguido em 16.02.2025;
- em 10.03.2025 deu entrada em Tribunal um requerimento do arguido, instruído com comprovativo de pedido de apoio jurídico, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo e nomeação e pagamento da compensação de patrono;
- do pedido de apoio jurídico consta, em observações a seguinte menção: “Pretendo ajuda para pagamento das despesas de Tribunal e que me seja nomeado novo defensor pois o actual recusa-se a recorrer da decisão em que fui condenado.”
- tendo o arguido defensor nomeado, e nenhum requerimento de recurso tendo dada entrada em Tribunal, entendeu o Tribunal ter o processo transitado em julgado em 18.03.2025;
- Em 26.03.2025 foi emitido mandado de detenção para cumprimento por parte do condenado da pena aplicada;
- Em 28.03.2025 deu entrada em Tribunal a decisão de deferimento do pedido de apoio jurídico, na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo e pagamento de compensação a defensor oficioso;
- O mandado de detenção emitido foi cumprido em 08.05.2025, pelas 13.40h, pela GNR, Posto Territorial do ..., tendo o condenado sido conduzido ao Estabelecimento Prisional de ....
Assim, em síntese, entende o Tribunal que a decisão de recorrer ou não da decisão judicial por parte do defensor oficioso não implica a necessária substituição do mesmo, tendo sempre o arguido a possibilidade de outorgar procuração a mandatário, caso discorde da opção jurídica do defensor que já lhe tinha sido nomeado. Assim sendo, entende-se que a entrega de requerimento de protecção jurídica não interrompe o prazo de recurso, pelo que a decisão transitou em julgado.
Em face do exposto, entende-se que carece de fundamento a providência apresentada.
É quanto me cumpre informar.
(…)”.
*
Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Ilustre Mandatário do requerente, realizou-se a audiência com observância das formalidades legais, após o que o tribunal reuniu e deliberou (art. 223º, nº 3, segunda parte do C. Processo Penal), nos termos que seguem.
*
*
*
II. Fundamentação
A. Dos factos
Com relevo para a decisão do pedido de habeas corpus, dos elementos que instruem o processo e da consulta ao processo electrónico extraem-se os seguintes factos:
1. Na madrugada do dia 17 de Maio de 2024, o requerente AA foi detido em flagrante delito pela Polícia de Segurança Pública, quando conduzia na Rua do ..., em ..., um veículo automóvel, sem estar habilitado com título que lhe permitisse tal condução, tendo sido constituído arguido, prestado termo do identidade e residência e notificado para comparecer no Tribunal de ... no dia 20 de Maio de 2024, pelas 10h, para participação em acto processual;
2. Remetido o expediente ao Departamento de Investigação e Acção Penal da Procuradoria da Comarca de Setúbal, por despacho de 20 de Maio de 2024 da Digna Magistrada do Ministério Público, além do mais, foram validadas a detenção e a constituição de arguido, foi determinado se providenciasse pela nomeação de defensor oficioso ao arguido caso este não comparecesse ou comparecesse sem mandatário, e foi ordenada a remessa dos autos para julgamento imediato em processo especial sumário, pela prática dolosa de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, com referência aos arts. 107º e 123º, do C. da Estrada;
3. O requerente, apesar de devidamente notificado, não compareceu à audiência de julgamento de 20 de Maio de 2024, na qual lhe foi nomeado defensor oficioso, nem compareceu a nenhuma das demais audiências de julgamento, e apesar de ter sido determinada a sua detenção para comparência, a mesma não pôde ser efectivada, por não ter sido encontrado;
4. Por sentença de 5 de Julho de 2024, depositada a 8 do mesmo mês, proferida nos autos [processo especial sumário nº 68/24.4...], foi o requerente condenado pela prática, em autoria material e como reincidente, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelos arts. 3º, nºs 1 e 2, do Dec. Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro e 75º e 76º, do C. Penal, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão;
5. Porque não estava presente na audiência em que foi publicitada a sentença, foi ordenada a sua notificação pessoal ao requerente, notificação que veio a ser efectivada a 16 de Fevereiro de 2025;
6. Em 7 de Março de 2025 o requerente juntou aos autos cópia de requerimento Protecção Jurídica que nesse mesmo dia apresentou na Segurança Social – ISS, IP, Distrito de ..., S.A. ..., no qual assinalou, como modalidade pretendida, 4.2 Apoio Judiciário, nas espécies, Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e Nomeação e pagamento de da compensação de patrono, em 4.2.2 Oportunidade do pedido, assinalou a opção SIM, à pergunta, O requerimento é apresentado antes da primeira intervenção processual do requerente?, e em 4.3 Observações, explicou a sua pretensão como segue:
«Pretendo ajuda para pagamento das despesas de Tribunal e que me seja nomeado novo defensor pois o actual recusa-se a recorrer da decisão em que fui condenado»;
7. Em 26 de Março de 2025 foi certificado nos autos que o trânsito em julgado da sentença ocorreu a 18 de Março de 2025;
8. No mesmo dia 26 de Março de 2025 foram emitidos mandados de detenção do requerente, para cumprimento da pena de 1 ano e 2 meses de prisão, imposta nos autos;
9. Em 28 de Março de 2025 a Segurança Social – ISS, IP – Centro Distrital de ..., informou os autos da decisão proferida, relativamente ao pedido Protecção Jurídica apresentado pelo requerente, remetendo cópia da mesma;
10. Integra o expediente que constitui esta cópia, a notificação feita ao requerente, por correio normal datado de 26 de Março de 2025, da qual consta que, o pedido de Protecção Jurídica foi deferido com base nos fundamentos da decisão anexa;
11. Nestes fundamentos é referido:
- Modalidades de Protecção Jurídica requeridas: Pagamento da compensação de defensor oficioso, Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo;
- Finalidades do pedido: Pedido de apoio judiciário referente a Penal. Tipo de acção Processo Penal e acções conexas. Intervir em processo pendente – Processo nº 68/24.4..., que corre no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – JL Criminal – Juiz ...;
- Oportunidade do pedido: Pedido apresentado antes da primeira intervenção processual do requerente;
12. E a Decisão de Deferimento tem o seguinte teor:
Atento o exposto, defiro o pedido de Protecção Jurídica, por reunir as condições legais, na(s) seguinte(s) modalidade(s) Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, Pagamento da compensação de defensor oficioso.
13. Em 8 de Maio de 2025 foram cumpridos os mandados de detenção do requerente, tendo este sido entregue no Estabelecimento Prisional de ...;
14. Em 8 de Maio de 2025 o requerente constituiu Mandatário Judicial;
15. Em 9 de Maio de 2025 foi apresentada em juízo a presente providência de habeas corpus.
B. A questão objecto do habeas corpus
Cumpre apreciar se o requerente da providência se encontra em situação de prisão ilegal, nos termos da alínea b) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, por não se ter ainda verificado o trânsito em julgado da sentença proferida no processo especial sumário nº 68/24.4..., que o condenou na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, que actualmente cumpre.
C. Do direito
1. Nascida, na sua configuração moderna, no sistema judicial britânico no século XVII, a providência de habeas corpus foi pela primeira vez levada ao topo do sistema jurídico português na Constituição de 1911, foi mantida na Constituição de 1933, e está também presente na actual Constituição da República Portuguesa, como garantia expedita e extraordinária contra situações ilegais de privação da liberdade.
Dispõe o art. 31º da Constituição da República Portuguesa:
1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.
Na configuração constitucional o habeas corpus, como garantia que é, tutela o direito fundamental liberdade, quando gravemente afectado por situações de abuso de poder, em consequência de prisão ou detenção ilegal.
Pode ser requerido pelo interessado ou por qualquer cidadão, assim se aproximando da acção popular (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 509), e deve ser decidido pelo juiz competente no prazo de oito dias.
Na lição dos Mestres citados, trata-se, essencialmente, de uma providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, portanto, de uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros que, como única garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, afirma a especial importância do direito à liberdade (op. cit., pág. 508).
No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, para quem o habeas corpus não é um recurso, é uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade (Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, Revista e actualizada, 2002, Editorial Verbo, pág. 321).
Para Jorge Miranda e Rui Medeiros o habeas corpus é uma providência judicial que tem como objecto imediato o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, tutelando a liberdade física ou de locomoção (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra Editora, pág. 342).
A nível infraconstitucional o habeas corpus encontra-se regulado nos arts. 220º e 221º do C. Processo Penal, quando seja determinado por detenção ilegal, e nos arts. 222º e 223º do mesmo código, quando seja determinado por prisão ilegal.
No primeiro caso têm cabimento as privações da liberdade ainda não validadas pela autoridade judiciária portanto, quando o cidadão se encontra detido à ordem de uma autoridade administrativa ou militar. No segundo caso têm cabimento as privações de liberdade já validadas pela autoridade judiciária portanto, encontrando-se o cidadão detido à ordem desta autoridade.
No requerimento apresentado o requerente invoca expressamente, como fundamento do pedido, o disposto na alínea b) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, por estar preso no Estabelecimento prisional de Setúbal, quando deveria estar em liberdade, aguardando a nomeação de novo defensor para interpor recurso da sentença condenatória.
É, pois, evidente haver lugar à convocação do regime do habeas corpus em virtude de prisão ilegal.
2. Dando exequibilidade ao regime constitucional do habeas corpus, estabelece o art. 222º do C. Processo Penal:
1. A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2. A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Os fundamentos da ilegalidade da prisão para efeitos de pedido de habeas corpus são os taxativamente previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal.
In casu, a petição tem por fundamento a alínea b), cuja previsão é susceptível de ser preenchida em diversas situações, v.g., a falta de trânsito em julgado da decisão condenatória, mas a sua verificação terá sempre de resultar da matéria de facto processualmente adquirida, conjugada com a legislação aplicável ao caso concreto.
Sempre indispensável, é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário (Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 909).
Em jeito de conclusão, diremos que o habeas corpus é um remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação da liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescido aos recursos (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2010, processo nº 139/10.4YFLSB.S1, in www.dgsi.pt).
D. O caso concreto
1. O requerente sustenta a providência de habeas corpus no seguinte travejamento argumentativo:
- Foi condenado por sentença proferida no processo nº 68/24.4..., pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão;
- Foi notificado da sentença no dia 16 de Fevereiro de 2025, e porque o defensor que lhe havia sido nomeado no processo não se prontificou a interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, submeteu um pedido de protecção jurídica que o dispensasse do pagamento de taxa de justiça e determinasse a nomeação de um novo defensor e compensação do mesmo tendo, para que dúvidas não restassem, esclarecido que pretendia ajuda para pagamento das despesas do tribunal e que me seja nomeado novo defensor pois o atual recusa-se a recorrer da decisão em que fui condenado;
- Este procedimento, porque correcto, interrompeu o prazo do recurso, nos termos do art. 24º, nº 4, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, depois de, a 7 de Março de 2025, por ter sido comunicado ao tribunal, prazo que só voltaria a correr com a notificação ao novo defensor, com conhecimento seu, nos termos da alínea a), do nº 5 do mesmo artigo;
- Sucede que o Centro Distrital de ... do ISS, IP, interpretou o pedido, erradamente, como sendo um pedido em processo penal já em curso, em que apenas pretendia a dispensa de taxa de justiça e demais encargos e o pagamento de compensação de defensor oficioso, quando o correcto, seria a nomeação de novo defensor e o início de novo prazo para o recurso, o que não aconteceu;
- Vindo a ser ilegalmente preso, em cumprimento de pena.
a. É fundamento da providência de habeas corpus requerida, conforme dito, a ilegalidade da prisão por não estar transitada em julgado a sentença que condenou o requerente na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, que agora cumpre, desde 8 de Maio de 2025, por se ter verificado causa de interrupção do prazo para o recurso da sentença, nos termos do disposto no nº 4 do art. 24º da Lei nº 34/2004, prazo este que só correrá de novo com a notificação prevista na alínea a) do nº 5 da mesma lei.
Vejamos se assim é.
i) A Lei nº 34/2004 contempla o sistema de acesso ado direito e aos tribunais, de forma a que a ninguém seja dificultado ou impedido, por qualquer razão, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos (art. 1º, nº 1), sendo estes objectivos concretizados através de informação jurídica e de protecção jurídica (nº 2).
A protecção jurídica reveste a modalidade de consulta jurídica e de apoio judiciário (art. 6º, nº 1).
O apoio judiciário compreende, além de outras, as modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento da compensação de patrono e pagamento da compensação de defensor oficioso (art. 16º, nº 1, a), b) e c)).
O procedimento do apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeita, não tendo, em regra, repercussão no andamento desta (art. 24º, nº 1).
Como excepção – com particular relevo para a presente providência de habeas corpus – dispõe o nº 4 do art. 24º da lei em referência que, quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência da acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo. E na sequência, estabelece o nº 5 do mesmo artigo que, o prazo interrompido por aplicação do disposto no número anterior inicia-se, conforme os casos:
a) A partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação;
b) A partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono.
A nomeação de patrono, sendo concedida, é realizada pela Ordem dos Advogados, nos termos da Portaria nº 10/2008, de 3 de Janeiro (art. 30º, nº1 da lei em referência) e por esta notificada ao requerente e ao patrono nomeado e comunicada ao tribunal (art. 31º, nº 1, da mesma lei).
O beneficiário do apoio judiciário pode, em qualquer processo, requerer à Ordem dos Advogados a substituição do patrono nomeado, mediante apresentação de pedido fundamentado (art. 32º, nº 1, da lei em referência).
ii) A síntese de procedimento feita em i), que antecede, respeita ao apoio judiciário requerido em processo civil.
Para o processo penal, a Lei nº 34/2004 prevê, no seu Capítulo IV, um regime especial.
Assim, a nomeação de defensor ao arguido, a dispensa de patrocínio e a substituição de defensor são feitas nos termos do C. Processo Penal, do referido Capítulo IV e da Portaria nº 10/2008 (art. 39º, nº 1).
Convocando o regime do C. Processo Penal, cumpre notar que a regra é a de que o arguido pode constituir advogado em qualquer altura do processo (art. 62º, nº 1).
Por outro lado, é obrigatória a assistência de defensor, além de outras situações, nos interrogatórios de arguido detido ou preso, no debate instrutório e na audiência e nos recursos (art. 64º, nº 1, a), c) e e)).
Não constituindo o arguido advogado, nem solicitando a nomeação de defensor (cfr. art. 61º, nº 1, e)), ser-lhe-á nomeado um, nos termos estabelecidos na Portaria nº 10/2008.
Por outro lado, o tribunal pode substituir o defensor nomeado, a requerimento do arguido, com fundamento em causa justa (art. 66º, nº 3), mantendo-se o defensor em funções, enquanto não for substituído (nº 4 do mesmo artigo). Da conjugação destas duas normas resulta que a apresentação do requerimento do arguido para substituição do defensor nomeado não interrompe eventual prazo processual que esteja a decorrer, designadamente, o prazo de recurso da sentença (Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo I, 2021, Almedina, pág. 739), em linha, aliás, com o art. 39º, nº 10, da Lei nº 34/2004, nos termos do qual, o requerimento para a concessão de apoio judiciário não afecta a marcha do processo, entendimento este que o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional (acórdão nº 487/2018, DR-II, nº 225/2018, de 22 de Novembro).
b. Aqui chegados, revertendo para a matéria de facto relevada, dela decorre que o requerente da presente providência de habeas corpus, notificado da sentença condenatória e insatisfeito com a conduta do defensor que lhe havia sido nomeado no processo, apresentou um pedido de Protecção Jurídica no ISS, IP, assinalando as modalidades de Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e Nomeação e pagamento de da compensação de patrono, mas esclarecendo, no item Observações, que pretendia ajuda para pagamento das despesas de Tribunal e que me seja nomeado novo defensor pois o actual recusa-se a recorrer da decisão em que fui condenado.
Na verdade, até porque o pedido foi formulado num processo de natureza penal, o que o requerente pretendia, e deixa claro no esclarecimento dado [aliás, confirmado, nos artigos 4 a 6 da petição de habeas corpus], para além da Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e do Pagamento da compensação de defensor oficioso, ambas verdadeiras modalidades de apoio judiciário (art. 16º, nº 1, a) e c), da Lei nº 34/2004), era a substituição do defensor nomeado, questão que, como vimos, é regulada pelo art. 66º, nº 3, do C. Processo Penal, e que não é, evidentemente, uma modalidade de apoio judiciário, mas um seu incidente, cuja decisão não compete à segurança social.
Não estando em causa nos autos um pedido de nomeação de patrono em processo de natureza cível, não é aplicável, contrariamente ao pretendido pelo requerente, o disposto nos nºs 4 e 5 do art. 24º, da Lei nº 34/2004.
Com efeito, o referido nº 4 é inaplicável ao processo penal, porque o requerimento de apoio judiciário não afecta a marcha do processo (art. 39º, nº 10, da Lei nº 34/2004), salvo quando vise a constituição de assistente, para efeitos do art. 68º, nº 2, do C. Processo Penal (Salvador da Costa, O Apoio Judiciário, 9ª Edição, 2013, Almedina, pág. 154).
Assim, a junção aos autos pelo requerente, no decurso do prazo de recurso da sentença condenatória, de cópia do requerimento de apoio judiciário que havia apresentado na segurança social, não interrompeu o decurso daquele prazo.
Diga-se também que, se, por mera hipótese de raciocínio, se pretendesse ver no questionado requerimento de apoio judiciário, uma substituição de patrono, ao abrigo do disposto no art. 32º, nº 1, da Lei nº 34/2004, não só, também aqui, não estaríamos perante uma modalidade de apoio judiciário, como a competência para a respectiva decisão seria da Ordem dos Advogados, como ainda, o requerimento do beneficiário requerendo a substituição do patrono nomeado, não teria efeito interruptivo de qualquer prazo judicial a decorrer, por a lei o não prever (acórdão da Relação de Coimbra de 14 de Março de 2023, processo nº 982/22.1T8SRE-A.C1, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, contrariamente ao pretendido pelo requerente, não vemos que o ISS, IP – Centro Distrital de ... tenha erradamente interpretado o requerimento que o mesmo apresentou.
O que aconteceu foi que, apercebendo-se do equívoco em que o requerente incorreu – apresentação de um pedido de substituição de defensor nomeado em processo penal, à segurança social –, o ISS, IP analisou o pedido e deferiu as modalidades de apoio de apoio judiciário peticionadas, cabidas nas suas competências.
Terminando agora, porque está em causa um pedido de apoio judiciário relativo a um processo de natureza penal, no qual, para além das modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação de defensor oficioso, ambas deferidas pela segurança social, foi cumulado um pedido de substituição do defensor nomeado, não tendo o respectivo requerimento, conforme já dito, aptidão para afectar a marcha do processo, a junção aos autos de cópia sua, não constitui causa de interrupção de qualquer prazo judicial, designadamente, do prazo de recurso da sentença.
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Em conclusão:
- Ao pedido de apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e do pagamento da compensação de defensor oficioso, ambas verdadeiras modalidades de apoio judiciário (art. 16º, nº 1, a) e c), da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho), a que foi cumulado o pedido de substituição do defensor nomeado, apresentados à segurança social, no âmbito de um processo de natureza penal, não é aplicável o disposto no nº 4 do art. 24º da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho e, consequentemente, também não é aplicável o disposto no nº 5 do mesmo artigo;
- Compete ao tribunal substituir o defensor nomeado, a solicitação do arguido, com fundamento em causa justa, mantendo-se aquele em funções enquanto não for substituído (art. 66º, nºs 3 e 4, do C. Processo Penal), sem que a apresentação do requerimento do arguido com tal propósito, constitua causa de interrupção de eventual prazo processual que esteja a decorrer, designadamente, o prazo de recurso da sentença, em conformidade com o disposto no nº 19 do art. 39º, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, nos termos do qual, o requerimento para a concessão de apoio judiciário não afecta a marcha do processo;
- O requerente da providência de habeas corpus foi pessoalmente notificado da sentença que o condenou em pena de prisão, no dia 16 de Fevereiro de 2025, pelo que o prazo para dela recorrer terminou a 18 de Março de 2025, sem que neste dia, nem nos três dias úteis subsequentes, tenha sido interposto recurso;
- No decurso do prazo para recorrer da sentença condenatória não ocorreu qualquer causa de interrupção do prazo para a interposição do recurso, designadamente, a prevista no art. 24º, nº 4, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, pelo que aquela transitou em julgado no dia 18 de Março de 2025, tendo, a partir desta data, força executiva em todo o território nacional (art. 467º, nº 1, do C. Processo Penal);
- Assim, a prisão do requerente, ocorrida a 8 de Maio de 2025, para cumprimento da pena de 1 ano e 2 meses de prisão, imposta na sentença, não viola, de forma manifesta e incontestável, qualquer disposição legal.
Não se verificando o fundamento de habeas corpus previsto na alínea b) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, e não se verificando, também, qualquer dos fundamentos previstos nas alíneas a) e c) do mesmo número e artigo, deve ser indeferido o pedido.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo do Supremo Tribunal de Justiça em:
A) Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pelo requerente AA, por falta de fundamento bastante.
B) Condenar o requerente nas custas do processo, fixando em três UC a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).
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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.).
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Lisboa, 15 de Maio de 2025
Vasques Osório (Relator)
José Piedade (1º Adjunto)
Ana Paramés (2ª Adjunta)
Helena Moniz (Presidente da secção)