VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
IRREGULARIDADE
PRAZO DE ARGUIÇÃO
Sumário

I - No âmbito de uma venda por negociação particular, na qual foi prescrito por regulamento que as propostas a apresentar deviam ser acompanhadas de dois cheques (um à ordem da Massa insolvente, no valor de 20% do valor da proposta, e outro, com a comissão da leiloeira, no montante de 10% do valor da proposta, acrescido de IVA), a ausência desses cheques, constitui irregularidade a arguir no prazo de dez dias, a contar da data em que os interessados tiveram conhecimento do relatório de venda e a certidão de encerramento da negociação particular, com a respetiva decisão de adjudicação.
II - Não a tendo eles suscitado nesse prazo, essa irregularidade deve ter-se por sanada.

Texto Integral

Processo n.º 1713/18.6T8VNG-K.P1


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Sumário:

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Relator: João Diogo Rodrigues
Adjuntos: Desembargador, Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira;
Desembargadora, Raquel Lima.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

1- No âmbito do incidente de liquidação que corre por apenso ao processo de insolvência em que figura como Insolvente, AA, depois de outras tentativas sem êxito para a venda de um lote de 247.770 ações do capital social da sociedade, A..., SA, apreendido à ordem da aludida insolvência (242.770 ações apreendidas inicialmente e 5.000 ações entregues ao Administrador da Insolvência, no dia 31/03/2023 – refªs 35267298, 35267301 e 35268626), foi desencadeado o procedimento para a venda dessas ações por negociação particular, a iniciar no dia 07/06/2023 e terminar no dia 21/06/2023, mediante o valor mínimo de 13.400.000,00€.

2- Para esse procedimento foi elaborado e publicitado o seguinte Regulamento:

“1. Os interessados deverão remeter e dirigir as propostas à Leiloeira B....

2. As propostas terão de conter: Identificação do proponente (nome ou denominação social, morada, nº contribuinte, telefone e fax); valor oferecido por extenso.

3. A proposta deverá ser acompanhada de cheque à ordem da Massa insolvente, no valor de 20% do valor da proposta, aceitação e conhecimento das condições de venda constantes na Listagem de venda e cheque da comissão da Leiloeira B... Unip., Ldª, no montante de 10% do valor da proposta, acrescido de Iva à taxa legal em vigor, referente aos serviços prestados na venda dos bens.

4. A adjudicação será feita à proposta de maior valor, acima do mínimo estabelecido e após parecer favorável do Administrador da Insolvência.

5. Desde que exista mais do que um proponente, com propostas válidas, os mesmos serão convidados a comparecer pessoalmente ou representados para licitarem entre si.

6. A venda das acções é efetuada livre de ónus e encargos.

7. É da única e exclusiva responsabilidade dos proponentes a verificação do estado do prédio a adquirir, pelo que, antes de apresentar proposta, deverá verificar se o mesmo corresponde ás suas expectativas e condições. A falta desta verificação por parte dos proponentes, não determina, nos termos legais, a anulação da venda.

8. O pagamento do preço será efectuado do seguinte modo: 20% no acto da adjudicação como sinal e os restantes 80% no acto da escritura/ transmissão.

9. A Transmissão das acções será efetuada no prazo de 60 dias, em data, hora e local determinado pelo Administrador Judicial e a notificar, com 8 dias de antecedência, ao adjudicatário.

10. Ao valor da venda é acrescido a comissão de 10% e respectivo IVA referente aos serviços prestados pela Leiloeira B... e pagos com a adjudicação.

11. Se a adjudicação/venda for anulada, dada sem efeito ou considerada nula por quem de direito, as quantias entregues à Massa Insolvente serão devolvidas em singelo ao licitante/comprador, não podendo este último reclamar daquela qualquer valor a título de compensação ou indemnização.

12. Se a adjudicação/venda for anulada, dada sem efeito ou considerada nula por quem de direito, o direito da LEILOEIRA B... à sua remuneração não será afastado, de acordo com o estabelecido no Regulamento de Venda, salvo se a LEILOEIRA B... tiver responsabilidade e culpa na situação que a causou ou caso tivesse tido conhecimento prévio do motivo em causa.”.

3- No dia 21/06/2023, a sociedade, C... – Holding SGPS, SA, informou a Encarregada da Venda, que pretendia manter a proposta por si apresentada no dia 31/05/2023, para a aquisição do já referido lote de ações, pelo preço de 13.500.000,00€.

4- Posteriormente, no dia 30/06/2023, o Administrador de Insolvência remeteu aos Mandatários dos Credores e Insolvente, bem como aos Proponentes, o “Relatório de Venda e a Certidão de Encerramento da NEGOCIAÇÃO PARTICULAR”, com a respetiva decisão de adjudicação.

5- Todos esses elementos (mencionados em 4) foram juntos aos autos no dia 03/07/2023.

6- Tomando deles conhecimento, o Insolvente, no dia 03/07/2023, requereu a destituição do Administrador de Insolvência (precedida de uma Assembleia de Credores) e arguiu “a nulidade da pretendida adjudicação ao abrigo dos artigos 195º e 839º nºs 1 al. c) e 3 do CPC aplicável por força do artigo 17º nº 1 do CIRE, por manifesta preterição do disposto nos artigos 47º nº 4 al.a) e 164º nºs 1, 2 e 3 do CIRE e com os efeitos que resultam, nomeadamente, dos artigos 280º, 281º e 289º todos do Código Civil”, porquanto, a seu ver, aquela “adjudicação, comunicada no dia 30 de Junho de 2023 (doc.nº 1), é totalmente ruinosa para a Massa Insolvente, para a Credora garantida e para o próprio Insolvente”.

7- Depois de outras vicissitudes que os autos documentam, mas sem interesse para este recurso, a sociedade, D... – Sociedade Imobiliária, SA (habilitada na posição da credora, E..., SA), no dia 05/03/2024, comunicou a este processo que dava a sua concordância à proposta apresentada para homologação da parte do Sr. Administrador de Insolvência, e, ao mesmo tempo, que não subscrevia o pedido da sua substituição.

Requereu, assim, que “seja a proposta apresentada para a aquisição do lote de 242.770 acções rapidamente homologada, com a consequente venda do bem em causa, tal como anunciado nas condições de venda”.

8- Posteriormente, no dia 17/04/2024, o Insolvente veio, “face à insistência do Senhor AI, na adjudicação do lote de 242.770 acções representativas de 49,557% do capital social da A..., pelo valor de € 13.500.000,00, à C...-Holding SA”, expor e requerer, para além do mais, o seguinte:

“1. A proposta apresentada pela C...-Holding SA não veio acompanhada de cheque à ordem da massa insolvente, no valor de 20% da proposta, nem de cheque à ordem da encarregada da venda, no valor de 10% da proposta, acrescido do IVA à taxa legal em vigor, correspondente à comissão.

2. Ora, tendo em conta que o regulamento da venda, no seu ponto 3, expressamente exige que a proposta venha acompanhada dos ditos cheques, não poderia essa proposta ter sido aceite pelo Senhor AI.

3. Especialmente se tivermos em conta que o Senhor AI, ciosamente, invocou, justamente, esse mesmo regulamento, para não aceitar a proposta da A..., mesmo contra o parecer então emitido pela credora garantida.

4. Se é certo que o Senhor AI dispõe, hoje em dia, de amplos poderes na escolha da modalidade da venda, podendo optar entre aquelas que são admitidas em processo executivo ou por outra que entenda mais conveniente, e até, dir-se-ia, por modalidades híbridas,

5. Tal não significa, contudo, que possa actuar discricionariamente, e sem qualquer respeito pelas regras da transparência e da igualdade.

6. E não pode, seguramente, aceitar propostas que não cumprem as regras anunciadas para venda.

7. Até porque outros interessados poderão ter sido dissuadidos de apresentar propostas por não estarem em condições, durante o período da venda, para apresentar esses cheques.

8. De modo que, a proposta em causa, porque desacompanhada dos cheques em questão, não pode ser admitida.

9. Destarte, resultou deserta a venda em causa.

(…)”.

Requereu, assim, que:

“a) Seja declarada sem efeito a projectada venda aqui em causa; ou

Subsidiariamente, a não proceder:

b) Seja sobrestada a venda, e convocada assembleia de credores, para prestação de consentimento ao negócio”.

9- Exercido o contraditório e colhida a posição do Ministério Público sobre esta e as demais questões suscitadas [e depois de nova pronúncia do Insolvente (no dia 27/05/2024), na qual reiterou, entre o mais, a mesma posição sobre a já referida proposta], foi, no dia 19/10/2024, proferido despacho que indeferiu a destituição do Administrador de Insolvência que fora requerida e, quanto à liquidação, nele se exarou o seguinte:

“Na sequência do que já foi referido supra, refere-se que os presentes autos estão em fase de liquidação e a venda da participação social societária de 247.770 ações, apreendidas nos autos e correspondente a 49,557% representativas do capital social da A... SA.

Veio o insolvente impugnar a venda publicitada, entendendo que a mesma não cumpre as regras anunciadas para a venda e tal será susceptível de afastar outros potenciais interessados na compra .

S.m.o., entendemos não existir qualquer razão para que seja anulada a proposta de aquisição actual das acções.

Com efeito, por tudo o que consta dos autos, os procedimentos adoptados pelo A.I. foram corretos face ao valor da proposta inicial da credora E..., SA, inferior ao valor mínimo, e respeitado o regulamento do leilão que teve lugar entre as 15h do dia 07/06/2023 e as 15h do dia 21/06/2023, do conhecimento do referido credor como resulta da informação de 27/03/2023.

Como também resulta dos autos, o valor das comissões proposto pela mesma credora a 08/03/2021 no apenso B foram aceites pelo Ex.mo Administrador, não se podendo agora invocar prejuízo para a massa, tanto mais que a proposta inicial da credora E... foi no valor de € 5.000.000 e o da proposta agora questionada é de € 13.400.000.

No decurso da corrente venda, foi apresentada uma proposta pela empresa C...-HOLDING SA, com o NIF ...76 à Encarregada da Venda, que submetendo-se às condições e ao regulamento de venda anunciados, reiterando a sua Proposta apresentada anterior, propondo-se pagar pelo Lote 1, constituído pelas 247.770 ações correspondentes a 49.557 % do capital social da A..., SA., o valor de € 13.500.000 (Treze Milhões e Quinhentos Mil Euros).

A credora D..., habilitada no lugar da E..., principal credora, veio aos autos dar o seu parecer favorável quanto à venda à Proponente C...-Holding, SA (reqto. 07.05.2024).

Relembre-se que nestes autos apenas existem dois credores – E..., agora D..., e o Banco 1..., sendo que aquele representa 99% dos créditos.

Das vicissitudes da venda o A.I. deu sempre conhecimento aos autos.

Veio ainda o devedor em 17.04.2024 requerer a realização de assembleia de credores para prestação de consentimento da venda.

Dispõe o artº 161º do CIRE que:

“1 - Depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência.

2 – (…).

3 - Constituem, designadamente, actos de especial relevo:

a) (…);

b) (…);

c) (…);

d) (…);

e) (…);

f) (…);

g) A alienação de qualquer bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza.

(…)”.

Dos autos resulta que o maior credor D... – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, SA veio dar a sua concordância à proposta apresentada para homologação da parte do Sr. Administrador de Insolvência, requerendo seja a proposta apresentada para a aquisição do lote de 242.770 acções homologada, com a consequente venda do bem em causa, tal como anunciado nas condições de venda (vd. reqto. de 05.03.2024), mais se opôs à realização da assembleia de credores (vd. reqto. 07.05.2024).

Com efeito, estando em causa um acto de especial relevo, o mesmo depende do consentimento da comissão de credores, ou, não existindo, da assembleia de credores.

In casu, existem apenas dois credores e o maior credor D..., representa 99% dos créditos, tendo vindo expressamente aos autos concordar com a proposta apresentada pelo A.I. e opor-se à realização de assembleia de credores.

Assim, indefere-se à realização da requerida assembleia de credores por não haver interesse na mesma dada a posição do maior credor.

Quanto à proposta de venda apresentada pelo A.I., atenta a posição do maior credor no sentido de concordar com a mesma, e, não havendo, em nosso entendimento, qualquer motivo para anular a mesma, notifique-se o A.I. para proceder em conformidade.

Notifique”.

10- Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Insolvente, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões:

“A) A questão objecto de recurso consiste em saber se é válida ou não a proposta apresentada pela C... – Holding, SA, pelo facto de não ter sido cumprido o disposto no nº 3 do Regulamento da Venda, que foi especificamente colocada pelo Insolvente, ora Requerente, quer no seu requerimento ref.ª 48649947, de 17-04-2024, mencionado no despacho recorrido, quer ainda no seu requerimento ref.ª 49023521, de 27-05-2024 (este nem sequer mencionado no despacho recorrido);

B) Ora o despacho recorrido, neste segmento, limita-se a concluir que o Senhor AI respeitou o regulamento da venda, sem explicar porquê, e a concluir também ser válida a proposta da C...-Holding, também sem explicar porquê; numa palavra, o despacho recorrido não especifica, minimamente, os fundamentos de facto e de direito da decisão.

C) Veja-se que nem se refere à questão que, em concreto, é suscitada pelo Insolvente, ora Recorrente, pois nem sequer refere o despacho o facto de a proposta vir desacompanhada dos cheques, e muito menos fundamenta, de direito, a decisão de a considerar válida.

D) Pelo exposto, o despacho recorrido, no segmento em causa, viola o disposto nos artigos 607º, nºs 3 e 4, e 608º, nº2, do CPC, e é nulo por força do artigo 615º, nº 1, als. b) e d), também CPC, o que deve ser logo declarado no despacho que se venha a pronunciar sobre a admissibilidade deste recurso.

Sem prescindir:

E) O encarregado da venda publicitou uma regulamentação para a venda em causa, regulamentação essa que, no nº 3, obriga o proponente a fazer acompanhar a sua proposta de cheque à ordem da Massa insolvente, no valor de 20% do valor da proposta, e cheque da comissão da Leiloeira B... Unip., Ldª, no montante de 10% do valor da proposta, acrescido de Iva à taxa legal em vigor, referente aos serviços prestados na venda dos bens.

F) De acordo com o Regulamento, o cheque no valor de 20% do valor da proposta não se confunde com um sinal, isto porque, nos termos do seu nº 8, o sinal (que por sinal também corresponde a 20% do preço) será pago no acto da adjudicação da proposta (a de maior valor, conforme nº 4 do Regulamento).

G) Tendo optado pela venda com recurso a encarregado de venda, com a obrigatoriedade de apresentação de um cheque no valor de 20% do valor da proposta e de um cheque no valor de 10% do valor da proposta (acrescido do IVA à taxa legal), o Administrador da Insolvência decidiu misturar elementos típicos de uma venda por negociação particular (em que ocorre o recurso ao encarregado de venda) com uma venda por propostas em carta fechada (na qual se exige, como resulta do artigo 824.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a prestação de caução, por cheque, de parte do valor proposto).

H) Destarte, e embora não o faça por remissão normativa expressa, o certo é que o Regulamento remete para o artigo 824º do CPC, aplicável à venda mediante propostas em carta fechada.

I) De sorte que, e sem margem para qualquer dúvida, ficaram os propoentes da venda em causa sujeitos às obrigações de caucionamento ou de garantia, reguladas no artigo 824º, nº 1 do CPC, tratando-se, pois, tal caucionamento, de uma formalidade legal essencial.

J) Formalidade legal essa que não foi respeitada pela proponente C...-Holding.

K) Assim sendo, impõe-se concluir como se concluiu no esclarecido Acórdão da Relação de Évora, de 10-03-2016, processo 2512/10.9TBSTR-E.E1, in www.dgsi.pt, que assim a sumaria: “1. A obrigação de junção de caução, imposta pelo artº 824º n.º 1 do CPC é uma formalidade não dispensável, de cumprimento obrigatório. 2. Perante o seu não cumprimento, a proposta não deve ser aceite, a não ser que o exequente, executado e credores reclamantes com garantia real, sobre os bens em causa, presentes no ato de abertura das propostas, expressem posição no sentido da sua aceitação, mesmo com a omissão da junção de caução.”, sendo certo que, a posição do Insolvente, ora Recorrente, no sentido da não aceitação da proposta da C...-Holding, não só, mas também, por violação dos aludidos normativos Regulamentares e Legais, está bem expressa nos autos.

L) A não exclusão da proposta da C... Holding determina a nulidade do processo de venda, tendo influência directa no seu desfecho e violando o artigo 824.º n.º 1 do CPC, aplicável por remissão do artigo 164.º n.º 1 do CIRE.

M) De modo que o despacho recorrido, no segmento aqui em causa, viola o disposto no artigo 824º, nº 1, do CPC, aplicável por força da regulamentação publicitada para a venda em causa e do artigo 164.º n.º 1 do CIRE, impondo-se consequentemente que seja declarada não aceite a proposta da C...-Holding, por violação do nº 3 do Regulamento da venda, e do artigo 824º, nº 1, do CPC, e revogado o segmento do despacho em causa que decide em contrário”.

Termina pedindo que se julgue o presente recurso procedente, com todas as consequências legais.

11- A sociedade, D... – Sociedade Imobiliária, SA, respondeu, defendendo que o Apelante carece de legitimidade para a interposição do presente recurso, ao qual deve ser atribuído efeito meramente devolutivo.

De todo o modo, mesmo que assim não se entenda, defende a confirmação do julgado.

12- Recebido o recurso neste Tribunal foi aqui entendido (pelo ora Relator) que o Apelante tinha legitimidade para recorrer, o recurso era o próprio e tinha sido admitido no modo e efeito devidos.

Para além disso, entendeu-se ainda que a irregularidade arguida pelo Apelante deve considerar-se sanada, por não ter sido por ele oportunamente arguida, nem por mais ninguém, o que determina a improcedência deste recurso.

Antes, porém, porque se tratava de uma questão nova, foram as partes ouvidas a esse propósito.

13- Em resposta, o Insolvente veio alegar que dos autos não se retira o seu conhecimento da ausência dos cheques em causa, a acompanhar a proposta da C...-Holding SA.. Isto porque, por um lado, “o relatório e a certidão são omissos quanto à junção, ou não, desses cheques” e, por outro lado, “porque o que Senhor AI declara, no relatório, em mais do que numa passagem, que a proposta da C... Holding cumpre as condições e o regulamento de venda”.

Pelo contrário, alega só ter tomado efetivo conhecimento de que a proposta não foi acompanhada dos cheques previstos no regulamento, quando o Senhor AI, no seu requerimento de 08/05/2024, declara o seu entendimento de não ser exigível a apresentação dos mesmos.

14- Nesta sede e momento, posto que está preparada a deliberação, importa tomá-la.


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II- Mérito do recurso

A- O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas, designadamente, as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)].

Assim, tendo em conta este critério, resume-se este recurso a saber se:

a) A decisão recorrida é nula, pelas razões invocadas pelo Apelante;

b) A não exclusão da proposta de compra do lote de ações já referido determina a nulidade do processo de venda.


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B- Tendo em conta os factos referidos no relatório que antecede – que são os únicos relevantes – vejamos, então, como solucionar estas questões:

Quanto à nulidade da decisão recorrida, a mesma, de facto, ocorre, mas não por falta de fundamentação. Ocorre, sim, por omissão de pronúncia.

Com efeito, no despacho recorrido não se enfrentou especificamente a questão colocada pelo Insolvente, no que concerne à alegada invalidade da proposta apresentada pela sociedade, C... - Holding, SA, derivada da circunstância da mesma não vir acompanhada de cheque à ordem da Massa insolvente, no valor de 20% do valor da proposta, nem cheque para garantir a comissão da Leiloeira B... Unip, Ldª, no montante de 10% do valor da proposta.

Ora, é pacífico e decorre do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (a não ser que essa apreciação esteja prejudicada pela solução dada a outras). E, se o não fizer, a decisão tomada é nula. É o que decorre do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

Por conseguinte, ocorrendo a referida omissão de pronúncia, a decisão recorrida é nula, quanto a este específico aspeto, o que se declara.

Sendo assim, tendo em conta o disposto no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, importa tomar posição sobre o assunto; ou seja, decidir se a referida proposta deve ser considerada inválida, com todas os efeitos daí decorrentes.

Ora, como já se deu conta anteriormente (em despacho do ora Relator, notificado às partes para contraditório prévio), a arguição de tal invalidade é intempestiva.

Como resulta da documentação junta pelo próprio Insolvente/Apelante (no dia 03/07/2023), o mesmo foi notificado (por mensagem de correio eletrónico que lhe foi dirigida no dia 30/06/2023, pelo Administrador de Insolvência) do relatório da venda e da Certidão de Encerramento da Negociação particular que se processou entre os dias 07/06/2023 e 21/06/2023 (na qual foi apresentada e aceite a proposta em causa), e não suscitou a dita invalidade/irregularidade, com tal fundamento; ou seja, por a referenciada proposta não vir acompanhada dos aludidos cheques. No requerimento apresentado naquela data (03/07/2023), além de pedir a destituição do Administrador de Insolvência (precedida de uma Assembleia de Credores), apenas arguiu “a nulidade da pretendida adjudicação ao abrigo dos artigos 195º e 839º nºs 1 al. c) e 3 do CPC aplicável por força do artigo 17º nº 1 do CIRE, por manifesta preterição do disposto nos artigos 47º nº 4 al.a) e 164º nºs 1, 2 e 3 do CIRE e com os efeitos que resultam, nomeadamente, dos artigos 280º, 281º e 289º todos do Código Civil”, porquanto, a seu ver, aquela “adjudicação, comunicada no dia 30 de Junho de 2023 (doc.nº 1), é totalmente ruinosa para a Massa Insolvente, para a Credora garantida e para o próprio Insolvente”.

Só mais tarde, no dia 17/04/2024, é que o Apelante veio, face à alegada “insistência do Senhor AI, na adjudicação do lote de 242.770 acções representativas de 49,557% do capital social da A..., pelo valor de € 13.500.000,00, à C...-Holding SA”, suscitar a questão da proposta desta sociedade não ter sido acompanhada dos aludidos cheques e de, por isso mesmo, não poder ser aceite.

Quando isto sucedeu, porém, há muito que estava precludido o direito para o fazer.

Com efeito, tratando-se de uma alegada irregularidade procedimental cometida num ato em que o Apelante não esteve presente, o prazo para a arguir era de 10 dias, contados da data em que o mesmo dela teve conhecimento. Isto é, do referido dia 30/06/2023. É o que decorre do prescrito nos artigos 149.º, n.º 1 e 199.º, n.ºs 1, ambos do CPC. Aliás, na venda mediante propostas em carta fechada (regime no qual o Apelante também apoia a sua pretensão), as “irregularidades relativas à abertura, licitação, sorteio, apreciação e aceitação das propostas só podem ser arguidas no próprio ato” (artigo 822.º, n.º 1, do CPC). E, não estando presentes, como sucede na situação presente, as mesmas irregularidades só podem ser arguidas até ao limite do prazo em que o podem ser no regime geral, ou seja, até ao décimo dia subsequente ao conhecimento. Isto, com vista a abreviar a conclusão da venda[1].

Por conseguinte, é manifesto que, tendo sido ultrapassado esse prazo, a referida irregularidade está sanada, uma vez que por mais ninguém foi arguida.

É certo que o Apelante assim não entende e defende, ao invés, que dos autos não se retira o seu conhecimento da ausência dos cheques em causa, a acompanhar a proposta da C...-Holding SA.. Isto porque, por um lado, “o relatório e a certidão são omissos quanto à junção, ou não, desses cheques” e, por outro lado, “porque o que Senhor AI declara, no relatório, em mais do que numa passagem, que a proposta da C... Holding cumpre as condições e o regulamento de venda”.

Ora, nem este último entendimento é, ou era, vinculativo para o Apelante, nem o mesmo tinha razões para com ele se conformar (se entendesse que dele devia discordar), face ao teor da documentação que lhe foi enviada no dia 30/06/2023, pelo Administrador de Insolvência. Pelo contrário, se essa documentação era omissa quanto ao aspeto em causa, devia, desde logo, ter suscitado a irregularidade que entendia verificar-se. Não, como sucedeu, num primeiro momento, arguir a nulidade da pretendida adjudicação com outro fundamento (designadamente, por a adjudicação em causa ser “totalmente ruinosa para a Massa Insolvente, para a Credora garantida e para o próprio Insolvente” e, só num segundo momento, mais concretamente, no dia 17/04/2024, depois da insistência do Administrador de Insolvência, na adjudicação, suscitar tal irregularidade.

Com efeito, como já dissemos, nesta última data, estava esgotado o prazo para o fazer.

Consequentemente, a sua pretensão de ver, agora, reconhecida essa irregularidade não pode ser atendida. Ou seja, em resumo, a sua pretensão recursiva deve ser julgada improcedente e confirmada a decisão recorrida, ainda que não exatamente pelos fundamentos nela indicados.


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III- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.


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- Em função deste resultado, as custas do presente recurso serão pagas pela Apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 13/5/2025.

João Diogo Rodrigues

Alberto Taveira

Raquel Correia de Lima

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[1] No mesmo sentido, para a venda em propostas em carta frechada, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 243.