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INSOLVÊNCIA
PESSOA COLECTIVA
ENCERRAMENTO DO PROCESSO
LIQUIDAÇÃO SUPERVENIENTE
Sumário
I - O regime [liquidação superveniente] previsto no art. 241º-A do CIRE para os devedores/insolventes pessoas singulares não é analogicamente aplicável às devedoras/insolventes sociedades comerciais, por tal preceito ter natureza excecional. II - Encerrado o processo de insolvência, restará aos credores da sociedade comercial declarada insolvente [que não obtiveram satisfação integral dos seus créditos] a possibilidade de lançarem mão do que permite a al. c) do nº 1 do art. 233º do CIRE, com referência ao que estabelece o art. 163º nºs 1 e 2 do CSC.
Texto Integral
Proc. 1685/18.7T8STS-J.P1 – 2ª Secção (apelação em separado)
Relator: Des. Pinto dos Santos Adjuntos: Des. Márcia Portela
Des. Anabela Miranda
Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório:
Mais de 5 (cinco) anos depois de declarado o encerramento do processo de insolvência [decisão proferida em 13.06.2019] e de efetuado o registo de tal encerramento, bem como o do cancelamento da matrícula da sociedade insolvente, A..., SA [registo de 22.07.2019, aps. ...7 e ...6], e após ter sido dado conhecimento nos autos que, por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja de 15.02.2024, a Unidade Local de Saúde ..., EPE, foi condenada a pagar à insolvente [requerente no respetivo procedimento de injunção] a quantia de 18.331,92€ (dezoito mil trezentos e trinta e um euros e noventa e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa comercial, vencidos e vincendos até integral pagamento, do que foram notificados os credores para dizerem o que tivessem por conveniente, o tribunal a quo proferiu, em 30.09.2024, o seguinte despacho [na sequência de requerimento do Ministério Público]: «Nos presentes autos de insolvência relativos a A..., S.A., impõe-se apreciar o pedido de reabertura do processo e do apenso de liquidação, formulado pelo Ministério Público em 21-05-2024, na sequência do desfecho posterior ao encerramento do processo, da ação que, sob o n.º 63/13.9BEBJA, correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja (TAF de Beja) e no âmbito da qual a ré Unidade Local de Saúde ..., E.P.E. foi condenada a pagar à autora, ora insolvente, a quantia de € 18.331,92, acrescida de juros de mora, à taxa comercial, vencidos e vincendos até integral pagamento. Notificados os credores, apenas AA, por requerimento de 14-06-2024, invocando a dupla qualidade de credor e último administrador da insolvente, manifestou oposição àquela pretensão, sustentando que a reabertura do presente processo de insolvência e do seu apenso de liquidação não tem na lei, na doutrina e na jurisprudência qualquer suporte.
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Para conhecimento da questão em presença, importa considerar a seguinte matéria que decorre das peças processuais e documentos juntos aos presentes autos, que nenhuma dúvida oferecem quanto à respetiva autenticidade e não foram impugnados: 1. Em 15-05-2018, o Banco 1..., S.A. requereu a insolvência de A..., S.A., a qual foi declarada por sentença proferida em 18-06-2018, transitada em julgado; 2. Por decisão proferida a 08-10-2018 foi determinado que os autos prosseguissem para liquidação do ativo; 3. Concluída a liquidação do ativo e prestadas as contas, foi elaborado o rateio final, na sequência do qual, por decisão de 13-06-2019, foi declarado encerrado o presente processo de insolvência ao abrigo do disposto no artigo 230º, n.º 1, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), com os efeitos a que aludem as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 233º do mesmo Código; 4. Por ofício de 16-02-2024, emanado do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, foi remetida cópia de sentença proferida no Processo n.º 63/13.9BEBJA, instaurado em 2013 pela sociedade entretanto declarada insolvente no âmbito destes autos, contra a Unidade Local de Saúde ..., E.P.E., no âmbito da qual a ré foi condenada a pagar à autora A..., S.A. a quantia de € 18.331,92, acrescida de juros de mora, à taxa comercial, vencidos e vincendos até integral pagamento; 5. Conforme decorre do ofício junto aos presentes autos em 25-03-2024, por requerimento do Sr. Administrador da Insolvência (AI) de 17-07-2023, em resposta a notificação do TAF de Beja, o mesmo informou os autos n.º 63/13.9BEBJA que: “1 - O processo de insolvência da A... foi encerrado em 14.6.2019 pelo que, não existe qualquer interesse no assunto. 2 - O AJ não tem sequer memória de ter passado qualquer procuração. 3 - Quanto a custas deveriam ter sido incluídas na contagem final do processo de insolvência pelo que, agora, nada existe que lhes pudesse fazer face.”; 6. Por ofício de 23-04-2024, o TAF de Beja informou que a referida sentença transitou em julgado no dia 02-04-2024; 7. Em 13-05-2024 foi junta certidão permanente da insolvente, da qual resulta que a mesma tem a sua matrícula cancelada; 8. Foi transferido pelo TAF de Beja para o IBAN indicado pelo ex-administrador da insolvente AA e pertencente ao próprio, a quantia de €34.108.29 paga pela ULS de Beja; 9. Por e-mail de 12-06-2024, dirigido a AA, o AI indicou “o IBAN da massa insolvente da A..., S.A. para onde devem transferir a importância de €34.108.29 recebida da ULS, podendo, naturalmente, deduzir o valor das custas que tenham pago, mas juntando o respetivo comprovativo”; e 10. Em resposta, AA enviou em 14-06-2024 e-mail ao AI, no qual refere que a reabertura deste processo não tem suporte legal, doutrinal ou jurisprudencial, não havendo fundamento para a reabertura do processo, não devendo ser transferido o montante que recebi, até porque, uma vez repartido pelos credores, será inviável a sua recuperação.
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Decidindo. A questão em presença reconduz-se, na sua simplicidade, em aferir da admissibilidade legal da liquidação superveniente do ativo, após a decisão de encerramento do processo de insolvência. Tal decorre da circunstância de, após tal encerramento, ter sobrevindo sentença proferida no Processo n.º 63/13.9BEBJA, instaurado em 2013 pela sociedade entretanto declarada insolvente, no âmbito da qual a ré Unidade Local de Saúde ..., E.P.E. (ULS) foi condenada a pagar à autora A..., S.A., a quantia entretanto liquidada no valor de €34.108.29, a qual foi paga pela ULS, tendo sido transferida pelo TAF de Beja para o IBAN indicado pelo ex-administrador da insolvente AA e pertencente ao próprio. Portanto, o objeto da presente decisão é determinar se é possível a liquidação superveniente do processo de insolvência para o rateio complementar desta quantia, mantendo inalteradas as posições dos credores e os pressupostos definidos no rateio final. É certo que, uma vez proferida sentença ou despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, podendo apenas retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença - art. 613º, n.ºs 1 a 3 do Código de Processo Civil (CPC). Conforme se desenvolve no acórdão do TRG, de 27-06-2024, proferida no processo n.º 4647/20.0T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt, “Este princípio - esgotamento do poder jurisdicional - justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias. Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pág. 174).” Este acórdão oferece um enquadramento particularmente relevante para este caso, ao prever a liquidação superveniente de bens ou ativos não apreendidos durante a fase de liquidação inicial. O acórdão interpreta o artigo 241.º-A do CIRE, admitindo a apreensão e liquidação de bens supervenientes, desde que isso ocorra sem qualquer alteração dos pressupostos já estabelecidos na fase anterior. Aquele Tribunal sublinha que o encerramento do processo de insolvência não impede a apreensão e liquidação de ativos preexistentes ou supervenientes que não foram conhecidos ou apreendidos no momento da liquidação inicial, sendo que a jurisprudência que é adversa à liquidação superveniente recai sobre situações que contendem com a reclamação de créditos, a sua verificação e graduação (cfr. Ac. TRP, de 11-04-2018, Proc. 521/14.8T8OAZ.P, Ac. TRP de 11-04-2018, Proc. 521/14.8T8OAZ.P1 e Ac. TRG, de 15-02-2024, Proc. 309/13.3TBVLN-P.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt). Ora, tal que não é o caso nestes autos, nos quais apenas se coloca a questão de distribuir pelos credores um ativo superveniente, segundo as regras de rateio já definidas processualmente, mantendo-se os créditos reconhecidos, verificados e graduados tal como o foram. E, apesar de não se tratar de uma insolvência de pessoa singular com procedimento de exoneração do passivo restante, no qual a sobredita norma se integra, nem por isso deixa de ser pertinente a aplicação aos presentes autos de pessoa coletiva. Por outro lado, importa relembrar que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores ou pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando este se não se mostre possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores – art. 1º do CIRE. Por sua vez, a fase da liquidação prevista nos arts. 158º e segs. do CIRE destina-se à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores com vista a satisfazer os seus créditos na medida do possível, o que se concretiza, fundamentalmente, através da venda dos bens que integram a massa insolvente; por sua vez a apreensão visa operacionalizar aqueles objetivos, formando a massa insolvente (cfr. ainda o art. 152º, n.º 3 do CIRE). Neste sentido, na ausência de disposição legal no CIRE que expressamente o preveja, o art. 17º, n.º 1 do CIRE permite convocar o art. 850º do Código de Processo Civil que, regulando a renovação da execução extinta, prevê no seu n.º 5 que “o exequente pode ainda requerer a renovação da execução extinta nos termos das alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo anterior, quando indique os concretos bens a penhorar, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no número anterior”. Também por esta via parece-nos admissível a liquidação superveniente de bens, sendo certo – reitera-se – que a mesma é limitada à apreensão e liquidação da quantia mencionada, mantendo-se inalterados os pressupostos do rateio final, sem qualquer modificação dos créditos já reconhecidos, verificados ou graduados no presente processo de insolvência.
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Pelo exposto, determina-se que se proceda à liquidação superveniente da quantia de €34.108,29, que adveio após o encerramento do processo de insolvência, devendo o Sr. Administrador da Insolvência diligenciar no sentido de assegurar que a mesma seja depositada na conta da massa insolvente para rateio entre os credores, sem qualquer alteração do reconhecimento, verificação e graduação dos créditos já efetuada neste processo. Notifique.».
Inconformado com este despacho, o credor AAinterpôs o presente recurso de apelação [que foi admitido com subida imediata, em separado e efeito devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões: «A. O despacho de que ora se recorre incorreu num flagrante erro de direito que, a ser aceite, contrariaria o entendimento que a comunidade jurídica atribui ao rateio final e ao encerramento do processo de insolvência e poria em causa a segurança e estabilidade jurídicas, valores sacramentais do Estado de direito democrático e constitucionalmente protegidos; B. Com efeito, o despacho de que ora se recorre procura reabrir um processo de insolvência encerrado a 13 de Junho de 2019, isto é há mais de 5 anos! C. O Recorrente foi o último administrador e era, à data da respetiva declaração de insolvência, acionista único da A..., S.A., sociedade que, depois de ter estado sujeita a dois processos especiais de revitalização, acabou por ser declarada insolvente a 15 de Maio de 2018; D. A 7 de Dezembro de 2012, a A..., S.A. instaurou uma ação contra a Unidade Local de Saúde ..., E.P.E. por não pagamento por esta última de um conjunto de faturas relativas à prestação de serviços de fiscalização de uma das suas obras; E. Apesar de a ação contra a Unidade Local de Saúde ..., E.P.E. continuar a correr termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, o Administrador da Insolvência promoveu o rateio final da A..., S.A., tendo o Tribunal recorrido decidido encerrar o processo de insolvência a 13 de Junho de 2019; F. Em consequência do encerramento do processo de insolvência, a 22 de Julho de 2019 foi cancelada a matrícula da A..., S.A.; G. Nos termos dos artigos 151.º, n.º 1, e 162.º, nºs 1 e 2, do CSC, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja notificou o ora Recorrente para, querendo, constituir mandatário no âmbito do Processo n.º 63/13.9BEBJA, o que este fez, dando seguimento ao processo, pagando do seu bolso os honorários dos mandatários que nomeou e trabalhando longas horas na reconstituição dos factos e na preparação dos articulados e julgamento; H. Todo esse trabalho e investimento resultaram na condenação da Unidade Local de Saúde ..., E.P.E. a pagar ao ora Recorrente € 18.331,92, acrescidos de juros de mora, por sentença datada de 15 de Fevereiro de 2024; I. Ao ser informado deste desfecho, o Tribunal recorrido notificou o Administrador de Insolvência e os credores para, num prazo de 10 dias, dizerem ou requererem o que tivessem por conveniente quanto à “cobrança do crédito em causa pelo Sr. Administrador de Insolvência e subsequente rateio”; J. Através de requerimento o ora Recorrente alertou o Tribunal recorrido para a circunstância de não existir qualquer suporte na lei, doutrina ou jurisprudência nacionais para uma eventual reabertura do processo de insolvência e do seu apenso de liquidação; K. Tendo o Tribunal recorrido, no entanto, decidido que “que se proceda à liquidação superveniente da quantia de € 34.108,29 […] devendo o Sr. Administrador da Insolvência diligenciar no sentido de assegurar que a mesma seja depositada na conta da massa insolvente para rateio entre os credores, sem qualquer alteração do reconhecimento, verificação e graduação dos créditos já efetuada neste processo”. L. Decisão tanto mais absurda quanto não parece sequer permitir a dedução dos montantes despendidos pelo ora Recorrente com o Processo n.º 63/13.9BEBJA no montante a transferir ao Administrador da Insolvência; M. Esta decisão incorreu num flagrante erro de direito que, como se disse já, contraria o entendimento que a comunidade jurídica tem do rateio final e do encerramento do processo de insolvência e poria em causa a segurança e estabilidade jurídicas N. Conforme é jurisprudência unânime dos nossos tribunais superiores, não se pode reabrir um processo de insolvência já encerrado; O. As formas de revisão dos atos e decisão judiciais estão previstas no CPC, o qual se aplica subsidiariamente aos processos de insolvência nos termos do artigo 17.º do CIRE, não sendo possível, fora desses casos, rever atos e decisões judiciais já transitadas em julgado; P. O artigo 230.º do CIRE estabelece os casos em que o processo de insolvência deve ser encerrado, atribuindo o artigo 233.º do CIRE determinados efeitos a esse encerramento; Q. Em nenhum lugar o CIRE estabelece ou aborda a possibilidade de um processo de insolvência ser reaberto; R. Como bem nota Luís Menezes Leitão in “Direito da Insolvência”, 9.ª Edição, Almedina, pág. 315: “O encerramento do processo de insolvência constitui a fase final do mesmo, pelo que logicamente deverá ocorrer uma vez realizados os fins previstos nesse mesmo processo”; S. No mesmo sentido, pronuncia-se o Tribunal da Relação do Porto que, em acórdão de 18 de Novembro de 2021, proferido no âmbito do Processo n.º 1475/09.8TBPRD-N.P1, disponível em www.dgsi.pt, afirmou que: “Nestes autos a decisão que decretou o encerramento do processo após o rateio transitou em julgado, tendo força de caso julgado formal, e nessa medida os atos de liquidação e rateio e os efeitos do encerramento tornam-se definitivos no âmbito do processo de insolvência. O despacho que decretou o encerramento transitou em julgado dado não ter sido interposto recurso sobre o mesmo e nessa medida, por força do disposto no artigo 613.º, n.ºs 1 e 3 do CPC, proferido este despacho a declarar o encerramento da insolvência, ficou esgotado o poder do juiz relativamente à referida matéria, improcedendo assim o segmento do recurso onde a autora suscita a existência de lapso ou erro e abuso de direito (dado que o tribunal está vinculado ao predito despacho de encerramento transitado em julgado que tem força obrigatória dentro do processo)”; T. E que, em acórdão de 4 de Novembro de 2018, proferido no âmbito do Processo n.º 521/14.8T8OAZ.P1, disponível em www.dgsi.pt, igualmente afirma que: “Todos esses atos processuais foram em devido tempo praticados no processo e sobre ele foram proferidas decisões judiciais que não tendo sido impugnadas transitaram em julgado. A decisão a decretar o encerramento do processo, igualmente transitada em julgado, tornou aqueles atos definitivos para efeitos do processo de insolvência, quaisquer que tenham sido os lapsos ou erros de que os mesmos enfermaram e sem prejuízo da responsabilidade que tais erros ou lapsos possam gerar para quem os praticou (v.g. artigo 59.º, n.º 2)”; U. Pelo que a intenção de reabrir o presente processo de insolvência e o seu apenso de liquidação nas presentes circunstâncias vai contra as normas relevantes do CIRE e CPC e contraria os entendimentos da doutrina e jurisprudência nacionais têm feito das mesmas; V. Perante a falta de suporte legal, doutrinal ou jurisprudencial à sua decisão, no despacho de que ora se recorre o Tribunal recorrido ensaia dois argumentos que, em sua opinião, poderiam justificar a eventual reabertura do processo de insolvência e do seu apenso de liquidação; W. Em primeiro lugar, o Tribunal recorrido invoca o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães a 27 de Junho de 2024, no âmbito do Processo n.º 4647/20.0T8GMR.G1, disponível em www.dgsi.pt, acórdão que trata de uma insolvência de pessoa singular e teve que interpretar o disposto no artigo 241.º-A do CIRE; X. De acordo com o despacho de que ora se recorre, “aquele Tribunal sublinha que o encerramento do processo de insolvência não impede a apreensão e liquidação de ativos preexistentes ou supervenientes que não foram conhecidos ou apreendidos no momento da liquidação inicial”; Y. Ora, não só não parece haver analogia possível entre o processo de insolvência de pessoa coletiva e o processo de insolvência de pessoa singular por via do período de cessão e da exoneração do passivo restante apenas aplicáveis ao processo de insolvência de pessoa singular, como a interpretação do artigo 241.º-A do CIRE que o Tribunal recorrido imputa ao Tribunal da Relação de Guimarães não corresponde à que consta do referido acórdão; Z. Com efeito, em tal acórdão pode ler-se que “este art.º 241.º-A, n.º 1, do CIRE, reporta-se à liquidação adicional (finda a liquidação) de novos bens, com prévia apreensão feita o abrigo do art.º 149.º, n.º 1, a), do CIRE” e que “o encerramento do processo teve por fundamento o art.º 230º, n.º 1, e), do CIRE, pelo que quanto aos seus efeitos aplica-se o n.º 7 do art.º 233º, […] diz-se por isso que este encerramento é uma ficção legal”; AA. Citando o Juiz de Direito Fernando Tainhas in Revista Julgar, n.º 48, “Liquidação (Velhos e Novos Problemas)”, págs. 69 e 70, quando este afirma que a liquidação superveniente surge como “mecanismo excecional de liquidação ordenado à atribuição do fiduciário de competência liquidatária para os bens ou direitos com conteúdo patrimonial que o devedor adquira após o encerramento da fase de liquidação e do processo de insolvência, durante o período da cessão” (sublinhado nosso); BB. E aludindo à exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3ª em que “se prevê que finda a liquidação do ativo, possa ainda ser possível, durante o período de cessão, o fiduciário apreender e vender bens que ingressem então no património do devedor e, posteriormente, afetar o respetivo produto da venda aos credores, nos mesmos moldes do rendimento disponível, evitando situações de enriquecimento sem causa daquele, e, acrescentamos nós, de fraude à lei” (sublinhado nosso); CC. Isto é, ao contrário do que é afirmado pelo Tribunal recorrido, o Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão referido tem bem presentes os valores da estabilidade e segurança jurídicas e as especificidades do processo de insolvência de pessoa singular; DD. Interpretando o artigo 241.º-A do CIRE no sentido de apenas admitir a apreensão e liquidação de novos bens caso estes ingressem no património do devedor durante o período de cessão, o qual terá tipicamente uma duração de 3 anos, e não a todo o tempo e muito menos 5 anos (!!!) depois de o processo ser encerrado e não ser, de forma alguma, tramitado; EE. O entendimento do artigo 241.º-A do CIRE que o Tribunal recorrido procura imputar ao Tribunal da Relação de Guimarães subverteria e esvaziaria até de sentido o instituto da exoneração do passivo restante e as lógicas de “fresh start” que o legislador nacional tem importado dos Estados Unidos da América, pois o devedor ficaria ‘ad eternum’ sujeito à possível reabertura do processo de insolvência, bastando para tal obter bens que pudessem responder pelos créditos reconhecidos e ainda não satisfeitos; FF. O entendimento do artigo 241.º-A do CIRE que o Tribunal recorrido procura imputar ao Tribunal da Relação de Guimarães não é, por isso, aproveitável no âmbito do processo de insolvência singular e muito menos no processo de insolvência de pessoa coletiva; GG. A fechar, o Tribunal recorrido faz ainda alusão a outra suposta analogia, desta feita com o artigo 850.º do CPC, o qual trata da renovação da execução extinta; HH. O processo executivo pressupõe que o executado, seja pessoa singular ou pessoa coletiva, perdurará na ordem jurídica após o encerramento do processo executivo e pode ainda vir a ter condições de responder pela dívida exequenda; II. Não há, por isso, neste outro lugar paralelo invocado pelo Tribunal semelhanças ou razões que possam justificar a aplicação analógica do artigo 850.º do CPC ao caso dos presentes autos; JJ. Havendo, isso sim e uma vez mais, que concluir que não há na lei, doutrina ou jurisprudência nacionais qualquer suporte a uma eventual reabertura do processo de insolvência e do seu apenso de liquidação; KK. E que a manutenção da decisão recorrida poria em causa a estabilidade e segurança jurídicas e contrariaria aquilo que tem vindo a ser a jurisprudência dos nossos tribunais superiores sobre o significado do rateio final e encerramento do processo de insolvência e sobre as formas de revisão dos atos e decisão judiciais; LL. E mesmo que, por absurdo, assim não se entendesse e se decidisse que o processo de insolvência e o seu apenso de liquidação deviam ser reabertos, sempre haveria que reconhecer o direito do ora Recorrente a deduzir no montante a transferir ao Administrador de Insolvência os montantes razoavelmente gastos com o Processo n.º 63/13.9BEBJA. (…) Assim, concedendo provimento ao presente recurso de apelação, fareis Vossas Excelências, Excelentíssimos Senhores Doutores Juízes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação do Porto, JUSTIÇA.».
O Ministério Públicocontra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção do despacho recorrido.
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2. Questão a apreciar e decidir:
Em atenção à delimitação constante das conclusões das alegações do recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC] –, a única questão a decidir consiste em saber se o processo de insolvência pode ser reaberto, depois de declarado encerrado e de efetuados os registos desse encerramento e do cancelamento da matrícula da sociedade insolvente, para liquidação superveniente de quantia entretanto atribuída à insolvente.
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3. Factualidade relevante:
A factologia a ter em consideração é a que foi dada como provada no despacho recorrido, acima descrita em 1.
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4. Apreciação jurídica:
Antes de apreciarmos a questão decidenda, importa começar, ainda que em breves e lineares pinceladas, por algumas notas relativas às fases de liquidação e de pagamento dos credores, no âmbito do processo de insolvência, e ao encerramento deste e seus efeitos.
Diz o nº 1 do art. 1º do CIRE [diploma a que nos reportaremos na falta de outra indicação] que «[o] processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.».
Fora dos casos previstos na primeira parte deste preceito, como aconteceu no processo de insolvência em apreço em que não houve plano de insolvência aprovado e homologado com vista à recuperação da sociedade insolvente, o processo de insolvência visa a satisfação dos credores mediante a liquidação do património do insolvente e a repartição do produto obtido por aqueles [Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed., 2022, Almedina, pg. 331, define a liquidação do ativo como sendo a fase do processo de insolvência que tem por finalidade “a conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores, havendo, para isso, que proceder à cobrança dos créditos e à venda dos bens da massa insolvente, por forma a obter os respetivos valores (arts. 55.º, n.º 1, al. a), e 158.º)”].
Por isso, nestes casos, a liquidação e a repartição do produto obtido pelos credores constituem, para estes, o efeito essencial da declaração da insolvência.
A liquidação do ativo – que é processada por apenso ao processo de insolvência [art. 170º] – comporta dois núcleos essenciais de atividade: a alienação dos bens e direitos com conteúdo patrimonial apreendidos para a massa insolvente e a cobrança, judicial e/ou extrajudicial, de créditos do devedor sobre terceiros – arts. 156º e segs..
À alienação dos bens e direitos de conteúdo patrimonial apreendidos, segue-se a fase do pagamento aos credores, quer das dívidas da massa [cujo pagamento é precípuo], quer dos créditos sobre a insolvência, e o rateio final – arts. 172º e segs..
Com a realização do rateio e o encerramento da liquidação fica concretizada a finalidade da insolvência proclamada na parte final do nº 1 do art. 1º. Logo após [ou quando não haja lugar à realização do rateio final, por a massa insolvente ter sido consumida pelas respetivas dívidas], o juiz declara o encerramento do processo de insolvência – art. 230º nº 1 als. a) e f) [as demais alíneas não têm aqui relevância].
Este encerramento produz diversos efeitos, dos quais dá conta o art. 233º.
De acordo com as als. a) e b) do nº 1 deste preceito, «[c]essam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte» e «[c]essam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com exceção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência».
Da al. a) resulta que:
- cessam todos os efeitos decorrentes da declaração de insolvência,
- e o devedor recupera o poder de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios,
- sem prejuízo dos efeitos especiais inerentes à qualificação da insolvência como culposa, significando esta exceção que a inibição para a administração de patrimónios de terceiros e a inibição para o exercício do comércio e para a ocupação de certos cargos, decretados na sentença do incidente de qualificação da insolvência como culposa, não são afetadas pelo encerramento do processo [Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 3ª ed., 2025, Almedina, pg. 377]; efeitos estes que aqui não há que considerar porque a insolvência foi declarada fortuita [cfr. sentença de 29.10.2018, proferida no incidente de qualificação].
A segunda asserção, contudo, é apenas plenamente válida quanto às pessoas singulares, pois, no que concerne às sociedades comerciais, vale antes o que consta do art. 234º e, no que para aqui interessa, o que dispõe o seu nº 3, que proclama que «[c]om o registo do encerramento do processo após o rateio final, a sociedade considera-se extinta». Ou seja, no caso da insolvência de uma sociedade comercial, a cessação dos efeitos da declaração de insolvência não acarreta – excetuadas as situações previstas nos nºs 1 e 2 daquele art. 234º, que não estão aqui em causa – a recuperação do poder de disposição de bens nem a livre gestão de negócios, já que tal sociedade se extinguiu com o registo do encerramento do processo.
Por sua vez, da al. b) do nº 1 do referido art. 233º decorre que:
- cessam também as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência,
- exceto as relativas à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência.
Tendo em conta estas duas alíneas e transpondo-as para o caso sub judice temos então que, com a declaração do encerramento do processo de insolvência [decisão de 13.06.2019, que não foi objeto de recurso e transitou em julgado] e o registo de tal encerramento [concretizado em 22.07.2019, data em que também foi registado o cancelamento da matrícula da sociedade insolvente], cessaram todos os efeitos resultantes da declaração de insolvência e a sociedade insolvente extinguiu-se.
Pode acontecer [o que é muito frequente e ocorreu no processo de insolvência em apreço] que os credores não obtenham a satisfação integral dos seus créditos, por não terem sido apreendidos bens e/ou direitos com conteúdo patrimonial suficientes para o efeito.
O encerramento do processo de insolvência não põe [nem poderia], no entanto, nestas situações, um ponto final à possibilidade de os credores obterem o pagamento do que resta dos seus créditos, não já no âmbito do processo de insolvência [que termina com a declaração do encerramento, como se disse], mas num outro processo. Por isso, as als. c) e d) do nº 1 do citado art. 233º estabelecem que «[o]s credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência» e que «[o]s credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos» [quanto a estes últimos credores – os credores da massa –, a norma da al. d) tem “caráter eminentemente prudencial, visto o que se estatui nos arts. 46º nº 1, 172º nºs 1 a 3 e 232º nº 3”, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, Qui Juris, pg. 770, anotação 7].
Quer isto dizer que, depois do termo do processo de insolvência, os credores – particularmente os credores do insolvente –, munidos do título executivo que a al. c) refere, podem exercer os seus direitos de crédito, na parte que não obteve satisfação no âmbito do processo de insolvência, contra o devedor, quando este adquira entretanto bens/património, instaurando as competentes ações executivas, estando apenas condicionados pelo que constar do eventual plano de insolvência e plano de pagamento [quando existam].
Daqui retiram-se então duas conclusões [excluindo os condicionalismos fixados no plano de insolvência ou no plano de pagamento, que aqui não se colocam]:
- A primeira é a de que, caso o devedor adquira bens/património depois do encerramento do processo de insolvência, os credores não poderão, em princípio [adiante falaremos da única exceção a esta regra], requerer neste processo o pagamento do que não conseguiram durante a sua pendência [o pagamento do que lhes ficou em dívida], o que significa que não há lugar à reabertura do processo de insolvência para liquidação e pagamento supervenientes.
- A segunda é a de que tais credores, para conseguirem a satisfação dos seus créditos, terão que instaurar ações executivas contra o devedor, munidos do título executivo que o mencionado normativo lhes faculta.
O que se deixa apontado vale plenamente quando o devedor é uma pessoa singular que, como já se disse, recupera a disponibilidade dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios após o registo do encerramento do processo de insolvência.
Questiona-se então se a possibilidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 233º também é válida quando a devedora é uma sociedade comercial, uma vez que, como já dito, esta se extingue com o registo daquele encerramento.
A extinção da pessoa coletiva importa a perda da personalidade jurídica, mas não faz cessar as relações jurídicas de que era sujeito ativo ou passivo. É o que decorre, desde logo, em termos gerais, do que estabelece o art. 1020º do CCiv. – que seria aplicável às sociedades comerciais ex vi do art. 2º do CSC, se não houvesse norma própria/especial neste CSC a regular o assunto –, que prescreve que «encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação». E é também o que resulta do que dispõe o art. 163º do CSC que, no nº 1, em termos similares, refere que «[e]ncerrada a liquidação e extinta a sociedade [a liquidação a que se refere este preceito é a que está prevista no CSC, mas vale também para a liquidação operada no processo de insolvência, à qual se segue, igualmente, a extinção da sociedade], os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada» e acrescenta no nº 2 que «[a]s ações necessárias para os fins referidos no número anterior podem ser propostas contra a generalidade dos sócios, na pessoa dos liquidatários, que são considerados representantes legais daqueles para este efeito, incluindo a citação» [não podendo estes escusar-se a tais funções/atribuições, como reforça o nº 5 do mesmo preceito], sem prejuízo de «qualquer dos sócios pode(r) intervir como assistente» e a sentença que vier a ser proferida «relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado em relação a cada um deles».
Temos, portanto, que a existência de passivo social não satisfeito faz recair sobre os sócios a responsabilidade do respetivo pagamento, até ao montante do que receberam na partilha, devendo as ações ser intentadas pelos credores sociais contra a generalidade dos sócios, mas na pessoa dos liquidatários, que são, para o efeito, considerados como seus representantes legais.
Por conseguinte e procedendo à devida articulação entre os arts. 163º do CSC e 233º do CIRE, podemos concluir que o mecanismo estabelecido na al. c) do nº 1 deste último preceito vale também para os casos em que a devedora é uma sociedade comercial, como acontece in casu, podendo, igualmente, os credores desta, que não obtiveram a total satisfação dos seus créditos no âmbito do processo de insolvência, instaurar as ações executivas ali previstas, munidos do título executivo, embora não contra a sociedade, que se extinguiu, mas contra a generalidade dos sócios, na pessoa do liquidatário.
Feitas estas breves considerações é então tempo de nos reportarmos à questão que constitui o thema decidendum deste recurso: saber se o tribunal a quo podia ter ordenado a reabertura do processo de insolvência para se proceder «à liquidação superveniente da quantia de €34.108,29, que adveio após o encerramento do processo de insolvência».
Como consta da parte inicial do ponto 1 deste acórdão, o processo de insolvência que declarou a insolvência da sociedade A..., SA foi declarado encerrado por decisão de 13.06.2019, mostrando-se o respetivo registo efetuado em 22.07.2019 [data também do registo do cancelamento da matrícula daquela]. Por sua, vez, o despacho recorrido, que determinou a reabertura do processo para a dita liquidação superveniente foi proferido em 30.09.2024, mais de cinco anos depois daqueles encerramento e registo.
Com o proferimento do despacho de encerramento do processo de insolvência [e seus apensos, incluindo o de liquidação], ficou «imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa» [por efeito do caso julgado formal], ou seja, relativa e decorrente da [declaração de] insolvência daquela sociedade comercial – arts. 613º nº 1 e 620º nº 1 do CPC. Depois disso, só era permitido ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a decisão nos termos previstos nos nºs 2 e 3 daquele preceito e nos arts. 614º a 616º do mesmo corpo de normas [da extinção do poder jurisdicional resultante da prolação da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar - cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª ed., Almedina, pg. 762].
Assim e numa primeira aproximação à solução em querela nos autos, parece vedado ao tribunal a reabertura do processo de insolvência para a aludida liquidação superveniente. Proibição que se torna mais evidente atentando que, além de se terem esgotado os efeitos da declaração de insolvência [já não há bens apreendidos na sequência de tal declaração para liquidar], até a sociedade insolvente já se encontra extinta e cessaram funções a comissão de credores [se a houve] e o administrador da insolvência.
Por isso, só existindo norma expressa a permitir a liquidação superveniente, após o encerramento do processo de insolvência, é que a conclusão poderia ser outra, por derrogação da apontada regra geral.
Mas tal possibilidade está apenas prevista para o devedor pessoa singular e desde que se verifiquem dois pressupostos:
- Que o devedor tenha pedido a exoneração do passivo restante e tal pedido tenha sido liminarmente admitido;
- E que o período de cessão dos rendimentos disponíveis ao fiduciário – que atualmente é de três anos [art. 239º nº 2] – ainda não se tenha esgotado.
É o que resulta do que está estabelecido no nº 1 do art. 241º-A do CIRE [aditado pela Lei nº 9/2022, de 11.01], segundo o qual «[f]inda a liquidação do ativo do devedor e encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, caso ingressem bens ou direitos suscetíveis de alienação no património daquele, o fiduciário deverá, com prontidão, proceder à sua apreensão e venda, sendo para o efeito aplicável o disposto no título VI, com as devidas adaptações» [consta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª – que esteve na origem daquela Lei nº 9/2022 – que se prevê que, finda a liquidação do ativo, possa ainda ser possível “durante o período de cessão, o fiduciário apreender e vender bens que ingressem então no património do devedor e, posteriormente, afetar o respetivo produto da venda aos credores, nos mesmos moldes do rendimento disponível, evitando a criação de situações de enriquecimento sem causa daquele»]. Ou seja, no caso da insolvência relativa a devedor pessoa singular, o encerramento do processo de insolvência não constitui impedimento a uma possível liquidação superveniente, quando àquele se tiver seguido a abertura do incidente de exoneração do passivo restante e, estando-se no período da cessão de rendimentos, ingressarem no património daquele outros bens ou direitos suscetíveis de alienação, passando então o fiduciário a desempenhar as atribuições que antes do dito encerramento cabiam ao administrador da insolvência [e que, repete-se, cessaram com aquele encerramento]. Mas se o ingresso de bens ou direitos suscetíveis de alienação no património do devedor se verificar depois de esgotado o período da cessão e de concedida definitivamente a exoneração [com a prolação da decisão final prevista no art. 244º], a liquidação superveniente, a que se refere o art. 241º-A, já não é possível, restando então aos credores lançarem mão do que estabelece a al. c) do nº 1 do art. 233º, nos termos atrás apontados.
O despacho recorrido, socorrendo-se – incorretamente, adianta-se já – de um acórdão da Relação de Guimarães, considerou tal normativo aplicável às sociedades comerciais, entendendo que também no caso destas é possível proceder-se a liquidação superveniente, reabrindo-se o processo em que foi declarada a sua insolvência.
Esta solução não encontra, porém, acolhimento no aresto em questão [Acórdão da Relação de Guimarães de 27.06.2024, proc. 4647/20.0T8GMR.G1, disponível in www.dgsi.pt/jtrg] nem nos respetivos fundamentos fácticos e jurídicos, na medida em que nele estava em causa um devedor pessoa singular [e não uma sociedade comercial] e esse devedor tinha formulado pedido de exoneração do passivo restante que foi liminarmente deferido, estando ainda a decorrer o período de cessão de rendimentos quando a 1ª instância ordenou que se procedesse à liquidação superveniente, nos termos do citado art. 241º-A [o recurso para aquele tribunal da Relação foi interposto do despacho que determinou a observância deste preceito]. Daqui se afere que em tal aresto se estava no âmbito da expressa previsão do normativo acabado de referenciar, discutindo-se apenas se a liquidação superveniente se aplica apenas a casos em que a aquisição patrimonial [bens ou direitos com conteúdo patrimonial] «seja, de jure et de facto, sobreveniente ao desfecho da liquidação e do processo», ou se abrange também os casos de bens ou direitos do devedor preexistentes mas apenas apurados/conhecidos depois da liquidação e encerramento do processo, tendo-se ali concluído que também inclui estes últimos [que eram os que estavam em questão].
Como tal, o decidido no aresto acabado de citar não respalda nem sustenta o que se determinou no despacho recorrido.
E existem razões de fundo que impedem que o regime previsto no art. 241º-A, que se apresenta como uma norma de natureza excecional, possa valer para as sociedades comerciais [ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, 6ª ed., Coimbra Editora, pg. 76, que as normas legais podem dividir-se em dois grupos: as gerais e as excecionais, acrescentando que “[a]s primeiras são as que correspondem a princípios fundamentais do sistema jurídico e, por isso, constituem o regime geral do tipo de relações que disciplinam”, ao passo que “as segundas são as normas que, regulando um setor restrito de relações com uma configuração especial, consagram para o efeito uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundada em razões especiais, privativas daquele setor de relações”].
Como diz Fernando Taínhas [in Liquidação (velhos e novos problemas), Julgar, nº 48, setembro-dezembro 2022, Almedina, pgs. 69-70], “[a] excecionalidade do mecanismo em apreço manifesta-se, desde logo, no seu âmbito limitado de aplicação. Com efeito, não estamos perante um instituto de cariz geral de reabertura do processo de insolvência, que permita que se reabra todo e qualquer processo de insolvência, caso ocorra uma situação de superveniência de ativo na esfera de um qualquer devedor. De facto, a aplicabilidade do instituto mostra-se duplamente circunscrita: apenas à fase processual e liquidação do património do devedor e aos processos de insolvência de pessoas singulares, nos quais haja sido admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e que se encontre em curso o período da cessão” [diversamente do que acontece em Espanha, em que a Ley Concursal (Real Decreto Legislativo 1/2020, de 5 de mayo) prevê a reabertura dos processos de insolvência de pessoas singulares e de pessoas coletivas mediante a verificação de determinados pressupostos (arts. 503.º a 507.º), como dá notícia o mesmo Autor na nota 51 daquele estudo, pg. 69], acrescentando que “[e]sta interpretação considera: i) a inserção sistemática do preceito no capítulo que disciplina a exoneração do passivo restante (Título XII, Capítulo I do CIRE), ii) o seu elemento literal, que expressamente alude à figura do fiduciário, iii) a referência ao encerramento do processo nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE, bem como iv) o teor da exposição de motivos do diploma que o consagra, (…)” .
Ora, sendo uma norma excecional, o art. 241º-A não admite aplicação analógica [analogia juris], como prescreve o art. 11º do CCiv. [Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, Coimbra Editora, pg. 327, depois de afirmar que este art. 11º permite a «analogia legis» mas não a «analogia juris», acrescenta que o que é proibido é transformar a exceção em regra, i. e., partir dos casos taxativamente enunciados pela lei para induzir deles um princípio geral que, através da analogia «juris» permitiria depois regular outros casos não previstos, por concretização dessa cláusula em princípio geral, mas não já que seja proibido estender analogicamente a hipótese normativa que prevê um tipo particular de casos a outros casos particulares do mesmo tipo e perfeitamente paralelos ou análogos aos casos previstos na sua própria particularidade], não podendo, por isso, valer para os casos em que o devedor [insolvente] é uma sociedade comercial, na medida em que no caso destas não é possível lançarem mão do incidente de exoneração do passivo restante [que só está concebido para o devedor pessoa singular], o que implica que ao encerramento do respetivo processo de insolvência não se segue nunca este incidente e, por isso, não é possível a liquidação superveniente prevista naquele preceito que, como se disse, exige, ainda, que o mesmo se encontre pendente, no período de cessão de rendimentos.
Fazendo uma comparação entre o que decidiu o acórdão da Relação de Guimarães atrás citado e o que se decidiu no despacho recorrido, podemos dizer que ali se levou a cabo uma analogia legis, perfeitamente legal [de acordo com o ensinamento de Baptista Machado, atrás citado], já que, estando em causa um caso particular do mesmo tipo [tratava-se de um devedor pessoa singular a quem havia sido deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e encontrando-se este incidente no período de cessão], estendeu a disciplina do art. 241º-A a uma situação em que os bens ou direitos do devedor eram preexistentes mas foram apurados/conhecidos apenas depois da liquidação e do encerramento do processo de insolvência, não obstante o nº 1 daquele normativo se referir, na sua previsão, unicamente a bens ou direitos suscetíveis de alienação que ingressem no património daquele depois de tais liquidação e encerramento. Já o despacho recorrido, pelo contrário, procede a uma verdadeira analogia juris, que é proibida pelo citado art. 11º, pois quis transpor para o processo de insolvência relativo a uma sociedade comercial, que não contempla o regime da exoneração do passivo restante, o regime particular e peculiar do referido art. 241º-A que está apenas configurado e só faz sentido [pelo menos no nosso CIRE] para os devedores pessoas singulares, como se deixou demonstrado; no fundo, quis transformar em regra geral, valendo quer para a insolvência de pessoas singulares, quer para a de sociedades comerciais, uma norma que o legislador quis estabelecer somente para os primeiros devido à especificidade da respetiva insolvência, que não se verifica na destas.
E passando ao segundo fundamento do despacho recorrido – o paralelo que faz com o disposto no nº 5 do art. 850º do CPC, previsto para a ação executiva –, também não se reconhece razão na sua invocação. Desde logo porque enquanto no processo executivo a possibilidade de renovação da execução extinta está prevista em termos gerais, quer o executado seja pessoa singular ou uma sociedade comercial, no processo de insolvência, como se disse, tal possibilidade, através do instituto da liquidação superveniente [que implica uma verdadeira renovação da instância insolvencial], está restringida à insolvência de pessoas singulares. E, além disso, a renovação prevista naquele art. 850º pressupõe a manutenção do executado na instância executiva, o que não acontece com as sociedades comerciais declaradas insolventes que, como se disse atrás, se extinguem com o registo do encerramento do processo de insolvência [extinção esta que não acontece, como é evidente, com a extinção da ação executiva, em que o executado, seja pessoa singular ou sociedade comercial, não perde a sua personalidade jurídica nem a judiciária].
Impõe-se, assim, concluir que no caso sub judice não é possível reabrir-se o processo de insolvência para que se proceda à liquidação superveniente prevista no art. 241º-A, de nada valendo o argumento enunciado na conclusão 10ª das contra-alegações da Exma. Magistrada do MP, de que «[n]ão é equacionável, do ponto de vista da racionalidade dos atos praticados e a praticar, obrigar 182 credores a instaurar uma ação contra o recorrente» e não lhe assiste razão quando defende que «[o] presente processo de insolvência é o adequado para que os credores da insolvência possam ver reconhecido esse direito e possam exercê-lo, através da decisão de reabertura da liquidação e cobrança do crédito pelo Administrador Judicial».
Como tal, há que julgar o recurso procedente e revogar a decisão recorrida.
Não há lugar a custas, por o Ministério Público [que requereu a reabertura do processo de insolvência e é recorrido no recurso] delas estar isento – art. 2º nº 1 al. a) do RCP.
Pelo exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em julgar o recurso procedente e, por via disso, revogar a decisão recorrida, por não haver lugar à ordenada liquidação superveniente.
Sem custas, por delas estar isento o recorrido [Ministério Público].