RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
REQUISITOS
Sumário

I - A modificação do objecto do litígio, com a dedução da reconvenção, obedece, para ser admissível, a limites objectivos de conexão com a demanda.
II - A admissibilidade do pedido reconvencional baseado no facto jurídico que serve de fundamento à defesa depende do seu efeito útil defensivo, ou seja, implica que os factos concretos alegados pelo réu sejam susceptíveis de impedir, modificar ou extinguir o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (excepções peremptórias).
III - Tendo os autores pedido o reconhecimento do direito de propriedade sobre um terreno, não tem conexão com o objecto da acção, ao contrário da declaração desse mesmo efeito jurídico a seu favor, os pedidos reconvencionais que visam o reconhecimento de uma servidão de vistas e a reparação de prejuízos alegadamente causados no imóvel da ré.

Texto Integral

Processo n.º 11/22.5T8PFR-B.P1



Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunta: Maria Eiró
Adjunto: Rui Moreira


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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto




I—RELATÓRIO



AA e mulher BB, residentes na Rua ..., ..., ..., ..., e CC e mulher DD, residentes na Rua ..., ..., ..., ..., intentaram a presente acção declarativa condenatória, com processo comum, contra EE, residente Rua ..., ..., ..., ..., FF, residente na Rua ..., ..., ..., ..., GG, casado, residente na Rua ..., ..., ..., ..., HH, casada, residente na Rua ..., ..., ..., ..., II, casado, residente na Rua ..., ..., ..., ..., JJ, residente na Estrada ..., ... ..., ... (...), KK, residente na Rua ..., ... ..., LL, residente na Rua ..., ..., ..., ..., MM, residente na Av. ..., ... ... (...), pedindo:
a) a declaração dos AA. como donos, legítimos possuidores e proprietários dos caminhos que dão acesso aos prédios identificados no artigo 1.º e 3.º deste articulado, condenando os RR. a reconhecer aos AA. o direito de propriedade sobre os prédios identificados em 1 e 3 desta PI.
b) a condenação dos RR. a não mais utilizar, por qualquer forma, quer a pé, quer de carro, os leitos dos caminhos de acesso aos prédios dos AA., pelo que devem os RR. ser impedidos de os utilizarem e lá estacionar viaturas ou de ocupar por qualquer modo, de forma direta e indireta.
c) Bem como a condenação dos RR. no pagamento de uma indemnização, a título de danos causados pela ocupação indevida da propriedade dos AA., a liquidar em execução de sentença, nos termos peticionados em 52 deste articulado,
d) a condenação dos RR. numa sanção pecuniária compulsória, não inferior a 150,00€ diários, por cada dia de incumprimento da decisão que vier a ser proferida e também por cada infração.
Para tanto, e em resumo, alegaram que são donos dos prédios urbanos identificados na petição e de um caminho privado com piso em paralelo (construído pelos AA., no seu próprio terreno, na proporção de metade para cada um dos AA.), cujo leito dá acesso às habitações dos AA.. Os prédios que os Réus utilizam confrontam com o dito caminho e têm invadido o mesmo, fazendo manobras, estacionando viaturas, fazendo dos prédios dos AA. um verdadeiro parque de estacionamento e abandonando naquele local diversas viaturas, ocupando propriedade alheia, obstruindo o dito caminho, bem como a passagem dos AA. para as suas habitações e entrada nas mesmas com os seus veículos.
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Os Réus contestaram alegando que o terreno do prédio, hoje pertencente aos Autores, fazia parte de um conjunto de prédios rústicos, que integravam a herança de NN e mulher, OO, a cuja partilha se procedeu através do processo de inventário. Neste inventário, além de outros bens, foi partilhado um conjunto de prédios rústicos denominado “Cerrado ...”, que constituía a verba nº 18 da respetiva descrição de bens. E, para facilitar a sua partilha, dado que os prédios que compunham o conjunto predial que os herdeiros pretendiam dividir não tinham acesso direto à via pública, foi traçado e aberto, previamente à partilha, por acordo entre todos os interessados, através do terreno da herança, um caminho com 5 metros de largura, a que chamaram de “caminho de servidão”, que se iniciava a sul, no limite sul do terreno que pertencia ao mencionado “Cerrado ...”, então dividido, e se desenvolvia para norte, em linha sensivelmente reta. Na sequência da abertura do dito caminho, aqueles herdeiros dividiram o conjunto predial da herança em lotes, de modo a que todos, através do caminho então aberto, ficassem com acesso à via pública, e os prédios correspondentes a esses lotes foram adjudicados aos vários herdeiros, alguns dos quais venderam posteriormente a terceiros alguns dos prédios que lhes tinham ficado a pertencer. E os diversos proprietários desses novos prédios passaram, naturalmente, a utilizar o dito caminho (bem como o terreno referido no antecedente artº. 7º que o ligava à estrada, a sul), para acesso aos respetivos prédios, sem qualquer oposição, nomeadamente dos pais da dita Ré FF, nem desta. Ao abrirem o caminho no terreno que fazia parte do conjunto predial da herança, os herdeiros demarcaram-no por “cabritas” colocadas nos limites dos prédios correspondentes aos lotes em que o “Cerrado” foi dividido, os quais ficaram assim a confrontar com o caminho, dito “de servidão”, então aberto com a largura referida, o qual ficou, pois, fora dos limites de cada lote, pelo que a faixa de terreno, com a largura atrás referida, que passou a constituir o referido caminho, ficou excluída das partilhas e manteve-se por isso indivisa, na titularidade comum de todos os herdeiros. Ficando sobre ela constituído um direito de passagem, correspondente a uma servidão constituída por destinação do antigo proprietário, nos termos do art. 1548º. do CCivil, visto que ficou afeta à passagem, a pé ou por veículos, para acesso aos vários prédios que resultaram da divisão daquele “Cerrado ...”, conforme destinado pelos seus proprietários, para os quais criaram as respetivas entradas. O A. AA, que não era herdeiro, veio a comprar dois dos terrenos correspondentes a lotes resultantes daquela divisão que no mencionado inventário haviam sido adjudicados a dois herdeiros, compras essas realizadas pelas escrituras celebradas em 11.08.1982 e 19.09.1984, tendo o mesmo Autor, posteriormente, construído uma casa de habitação no terreno comprado sito mais a sul. No ano de 1990 o ora Autor AA começou a afirmar-se dono do caminho que havia sido aberto pelos herdeiros e a tentar apoderar-se do mesmo, chegando a colocar duas colunas em cimento no leito do caminho, no seu limite sul, e fez desaparecer as cabritas que o demarcavam dos terrenos marginais que haviam comprado, tendo lavrado e semeado o seu leito na zona que confrontava com esses seus terrenos contíguos.
Contra tais atitudes abusivas reagiram os proprietários dos outros lotes que eram também titulares do direito de passagem sobre o caminho em questão, aos quais, na sequência de procedimento cautelar que então instauraram contra ele no Tribunal de Paços de Ferreira, foi provisoriamente restituída a posse do caminho, e de seguida instauraram a respetiva ação definitiva (proc. nº 111/90, que correu termos pela 1ª secção do Tribunal Judicial da extinta comarca de Paços de Ferreira), que os Réus contestaram, tendo a respetiva sentença julgado a ação inteiramente procedente e condenado os aí Réus(e aqui Autores) à “restituição da posse aos(ali) Autores sobre o caminho com 5 metros de largura que, partindo da estrada distrital, no lugar da ..., freguesia ..., ..., margina pelo poente os prédios pertencentes aos Réus e dá acesso aos terrenos dos Autores, condenando os Réus a retirar do leito do caminho tudo quanto nele colocaram, designadamente areia, colunas e plantações, repondo-o em condições de os Autores por ele transitarem em toda a sua largura conforme configuração assente por provada”, confirmada pela Relação do Porto.
O espaço situado entre o limite sul do caminho que foi aberto pelos herdeiros em terreno que pertencia à dita herança, e a embocadura da estrada, a sul, ou seja, entre a casa hoje pertencente à Ré FF, a nascente, e o prédio pertencente a PP, a poente, não pertence, nem nunca pertenceu àquela herança, nem – obviamente - aos Autores. Trata-se do espaço, referido nos arts.6º e 7º antecedentes, que era antigamente coberto pela ramada que os ditos Réus e seus antecessores cultivavam e de que cuidavam, colhendo e aproveitando as respetivas uvas, cujas videiras se encontravam implantadas no terreno imediatamente contíguo à parede poente da casa deles e se estendia, apoiada em bancas de ferros e arames, desde a parede da casa até ao muro então existente no prédio fronteiro do dito vizinho PP, ramada que. do lado da casa, a nascente, era suportada na própria parede desta, e do lado contrário, a poente, por esteios de granito e ferros junto ao muro do prédio do dito PP. A Ré FF, aqui reconvinte, é legítima proprietária do prédio urbano, sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho ..., composto por casa de habitação de rés do chão e andar e terreno de logradouro junto, inscrito na respetiva matriz urbana daquela freguesia no art. ...81.
Deduziram reconvenção pedindo que seja:
a)- declarado que os Autores não são proprietários do terreno identificado nos arts. 36º. e 37º. deste articulado[1];
b)-declarado que a Ré–Reconvinte, FF, é proprietária do prédio identificado no art.72º. antecedente[2];
c)- declarado que a mesma Ré-Reconvinte tem o direito de manter as janelas abertas na parede traseira da sua casa, que integra o prédio referido na alínea anterior, voltadas para o prédio do Réu AA, situado a norte, por se encontrar constituída a seu favor a respetiva servidão de vistas, nos termos do art. 1362 nº 1 do CC:
d)-declarada a condenação dos Autores a retirar a armação em ferro e as placas por ela suportadas, que colocaram defronte das janelas da parede traseira da casa daquela Ré;
e)-declarada a condenação dos Autores a retirar toda a vegetação que plantaram numa faixa de terreno com cerca de cinquenta centímetros de largura, encostada à parede norte da casa da Ré-Reconvinte, que se situa dentro do limite desse prédio, e a reparar os estragos causados, exterior e interiormente, nessa parede, por virtude das infiltrações de humidade causadas por essas plantas;
f)- condenar-se os Autores a pagar á Ré-Reconvinte a indemnização, a liquidar em incidente posterior à sentença, correspondente aos prejuízos que lhe têm causado com a deterioração das condições sanitárias e de conforto da casa em consequência da tapagem das janelas atrás referidas e da plantação das espécies vegetais referidas encostadas à parede norte da casa, tanto no que se refere a prejuízos materiais, com as obras que forem necessárias para fazer cessar as consequências das infiltrações, bem como com medicamentos e tratamentos que sejam necessários, como por danos não patrimoniais, nomeadamente o sofrimento moral, a inquietação e a intranquilidade com que a mesma Ré e seus familiares passaram a viver, danos que, em qualquer dessas vertentes, somente cessarão quando a situação danosa for corrigida, e por isso só ulteriormente se poderão liquidar.
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O tribunal não admitiu a reconvenção nos seguintes termos:
“Não se admite a reconvenção, porquanto a mesma é uma contra-acção, não se verificando nenhum dos pressupostos de admissibilidade previstos no art. 266º, n.º 2 do CPC.”
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Inconformados com a decisão, os Réus interpuseram recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
1. O Tribunal a quo proferiu despacho saneador em audiência prévia pelo qual não admitiu a reconvenção proposta pelos reconvintes, ora Recorrentes;
2. Salvo o devido respeito por opinião diversa, o referido despacho não pode, naquela parte, ser aceite, resultando este de uma errada interpretação do direito, sendo, tal como está formulado, nulo por falta de fundamentação;
3. Recorrentes e Recorridos são vizinhos, tendo aqueles proposto a presente ação pedindo que o Tribunal declare que são proprietários de um terreno que serve de caminho para as suas casas, e que os Recorridos fossem condenados a não utilizar o referido caminho por qualquer meio, direto ou indireto, bem como a prestar-lhes uma indemnização, e uma sanção pecuniária compulsória;
4. Os Recorrentes apresentaram a sua contestação, clarificando a questão, apresentando os factos segundo os quais os Recorridos não poderiam ser proprietários do terreno identificado, pedindo que a ação fosse julgada totalmente improcedente;
5. Os Recorrentes deduziram ainda diversos pedidos reconvencionais, nomeadamente, i) que o Tribunal declarasse que os Autores não são proprietários do terreno identificado nos artigos 36.º e 37.º da contestação ii) que o Tribunal declarasse que a Recorrentes FF é proprietária de parte do caminho que os Autores reclamam (conforme identificado no artigo 72.º da contestação), iii) que o Tribunal declarasse a existência de uma servidão de vistas a favor desta Ré sobre o prédio do Autor AA, bem como, iv) que os Autores fossem condenados a retirar as armações de ferro que instalaram à frente destas janelas, v) que os Autores fossem condenados a retirar a vegetação que plantaram numa faixa de terreno com cerca de cinquenta centímetros de largura, encostada à parede norte da casa da Ré, vi) e que os Autores fossem condenados a pagar à Ré uma indemnização a liquidar em incidente posterior à sentença;
6. Sendo certo que os pedidos reconvencionais formulados estão fundamentados no articulado em causa, emergindo do facto jurídico que fundamenta a contestação, pelo que devem ser admitidos conforme prevê o artigo 266.º n.º 2 a) do CPC;
7. O Tribunal a quo não admitiu a reconvenção, absolvendo os Recorridos dos seis pedidos contra estes formulados, mediante uma única frase: “Não se admite a reconvenção, porquanto a mesma é uma contra-acção, não se verificando nenhum dos pressupostos de admissibilidade previstos no art. 266º, n.º 2 do CPC.” sendo este despacho é nulo nos termos dos artigos 615.º n.º 1 b) e 613.º n.º 3 do CPC, na medida em que não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
8. O douto Tribunal “a quo”, certamente por lapso, simplificado a questão, não se debruçou devidamente sobre os pedidos, produzindo assim uma decisão contrária à lei, sendo certo que os pedidos reconvencionais emergem do facto jurídico que serve de fundamento à defesa e estão intimamente conexionados com a ação principal;
9. Os Recorrentes alegaram todos os factos pelos quais consideram que os Recorridos não poderão ser proprietários do caminho conforme é descrito na PI, referindo ainda os atos de violação de direitos reais que os Recorridos têm perpetrado contra a Recorrente reconvinte ao longo dos anos;
10.A ação que foi contestada e deu origem ao pedido reconvencional é mais uma tentativa de violar os direitos reais de que é titular a Ré reconvinte, conforme explanam os recorrentes nos artigos 3.º a 8.º da contestação, os Recorridos não se podem arrogar proprietários do terreno “cuja extensão correspondia praticamente ao comprimento da casa adjacente a nascente, ao tempo pertencente a QQ e mulher (pais e antecessores da Ré FF, atual proprietária desse prédio…” (artigo 7.º da contestação);
11.Os prédios dos recorridos não têm a configuração que estes afirmam ter, desde logo porque não confrontam a sul – nem em qualquer outro lado – com a Estrada Nacional, sendo que os prédios de que são hoje proprietários pertencia anteriormente a um conjunto de prédios rústicos que integravam a herança de NN e mulher, OO, resultando também destes factos os pedidos reconvencionais;
12. A faixa de terreno que os recorridos reivindicam confronta a sul com a estrada nacional e nunca fez parte do conjunto predial, nem da herança, nunca tendo pertencido aos recorridos, ou aos seus antecessores;
13.O Recorrido AA quando adquiriu dois terrenos pertencentes ao conjunto predial nunca poderia ter adquirido aquela parte do caminho, valendo o princípio nemo plus iuris, ninguém pode transferir um direito que não tem, pois como alegam os Recorrentes, aquele local sempre fez parte do prédio que é propriedade da Recorrente FF;
14.Os Recorrentes alegam ainda, nos artigos 36.º a 48.º da contestação, que exercem essa posse sobre a faixa do terreno há mais de trinta anos de forma pública, sem oposição de ninguém e na fundada convicção de que o terreno é parte integrante do seu prédio pelo que os recorrentes sempre teriam adquirido o direito de propriedade por usucapião – artigo 48.º contestação;
15.Na sua reconvenção os Recorrentes dão por reproduzido tudo o que foi alegado em sede de contestação – artigo 71.º nomeadamente, a parte da contestação em que é alegado que o terreno que se situa a poente de todo o comprimento da casa da recorrente que confronta a sul com a estrada nacional sempre pertenceu à Recorrente FF e aos seus antecessores, pelo que não pode ser propriedade dos recorridos, e que o seu prédio sempre teve janelas que algumas delas deitam diretamente para o prédio dos recorridos AA e mulher e que estes têm praticado atos que impedem as vistas, realizado obras e plantações encostadas ao prédio, para lhe causar danos;
16.A defesa dos Recorrentes funda-se essencialmente nesses factos – a Ré FF ser proprietária de parte do terreno do qual os Autores pretendem ver a propriedade declarada a seu favor e nas violações que os Autores fazem dos direitos reais consolidados de que essa ré reconvinte é titular;
17.Pelo que é legítimo que os recorrentes peticionem nesta ação que o Tribunal declare que os Autores não são proprietários do prédio que é descrito na contestação e que declare o direito de propriedade a favor da reconvinte FF, o que só o podem fazer a titulo reconvencional;
18.Mesmo que a ação dos Recorrentes improceda – o que se espera – tal não consubstanciará uma declaração inequívoca deste Tribunal de que a Recorrente FF é proprietária do prédio tal como os Recorridos o descrevem, declaração que se afigura necessária para evitar que os Recorridos mantenham as violações do direito de propriedade da Recorrente sobre aquela faixa de terreno;
19.Sendo inequívoco que estamos perante uma situação em que é possível realizar um pedido reconvencional, nomeadamente o previsto na segunda parte da alínea a) do artigo 266 n.º 2 do CPC: “A reconvenção é admissível nos seguintes casos: a) Quando o pedido do Réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa.”, o que é aqui o caso;
20.Os factos alegados pelos Recorrentes contrariam a versão dos Recorridos, extinguindo, ou, pelo menos, alterando, o direito que os Recorridos afirmam ser titulares e cuja titularidade pretendem ver declarada através da presente ação, verificando-se assim a conexão legitimadora dos pedidos reconvencionais dos Recorrentes, que devem ser admitidos, de modo a respeitar os interesses de economia processual e de meios, impedindo que a questão controvertida persista e evitando que a Recorrente veja a defesa do seu direito de propriedade nesta ação limitado;
21.O que deve ocorrer relativamente a todos os pedidos reconvencionais formulados uma vez que os Recorridos descrevem na PI uma relação de vizinhança conturbada com os Recorrentes, afirmando que estes ocupam o referido terreno sem o seu consentimento, o que entendem constituir uma utilização abusiva do terreno;
22.Os Recorrentes pretendem em reconvenção demonstrar que não realizam qualquer utilização indevida da propriedade dos recorridos, e fazendo referência à referida relação de vizinhança, os recorrentes relatam nos artigos 65.º a 67.º da contestação, bem como nos artigos 75.º a 84.º da reconvenção factos demonstrativos do comportamento abusivo dos Recorridos e que lesam propositadamente direitos dos recorrentes e provocam diversos prejuízos ao prédio e à Recorrente FF, os quais, pela sua gravidade, devem ser tutelados pelo direito;
23.Dos factos alegados pelos Recorrentes e do que é a causa de pedir da ação decorre a admissibilidade dos pedidos reconvencionais dos recorrentes, ao abrigo do mesmo artigo 266.º n.º 2 a) do CPC, pois se o Tribunal a quo irá aferir se em razão da conduta dos Recorrentes com os seus vizinhos “os AA estão impedidos de usar fruir e dispor da plenitude dos seus prédios” (tema de prova n.º 28), e se “a conduta dos RR. causa incómodos aos AA” (tema de prova n.º 34), e tendo os recorrentes impugnado tais reclamações, referindo que essa mesma relação de vizinhança é marcada pelos constantes abusos dos recorridos, e que são estes que lhes causam prejuízos;
24.Deverá ser este mesmo Tribunal a definir “os direitos” que assistem a cada prédio, colocando termo a todos os diferendos que existem naquela relação de vizinhança e não se crendo que a mera improcedência dos pedidos dos recorridos seja suficiente para alcançar estes objetivos;
25.Sendo de admitir os pedidos reconvencionais dos Recorrentes relativos a todos os pedidos reconvencionais que foram formulados, tendo a douta decisão que se recorre violado por erro de interpretação e fundamentação, além do mais, o vertido no nº. 2 al) a. do artº. 266 do Cód. de Proc. Civil devendo ser revogada e ser substituída por outra que admita a reconvenção deduzida, assim cumprindo e fazendo por V. Excias. a tão costumada, Justiça.

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II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em reapreciar a admissibilidade dos pedidos deduzidos pelos Réus, em reconvenção.
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III—FUNDAMENTAÇÃO (dão-se por reproduzidos os actos acima descritos)
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IV-DIREITO

A questão suscitada no recurso consiste apenas em saber se os pedidos deduzidos pelos Réus, na reconvenção, são admissíveis, uma vez que a decisão proferida sobre essa matéria não lhes foi favorável.
Arguiram, em primeira linha, a nulidade da decisão, por falta de fundamentação. Sustentam que se limitou a declarar que, sendo a reconvenção uma contra-acção, não se verificava “nenhum dos pressupostos de admissibilidade previstos no art. 266º, n.º 2 do CPC.”
Devemos reconhecer que a decisão não enunciou e/ou explicou os motivos nos quais alicerçou o entendimento de que a reconvenção in casu não se enquadra nos requisitos elencados no artigo 266.º, n.º 2 do C.P.Civil.
Todavia, não podemos declarar que se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, única hipótese em que a decisão seria nula à luz do art. 615.º, n.º 1, al. b) do CPCivil.
Assim, cumpre-nos analisar os pedidos deduzidos por via reconvencional por forma a determinar se a decisão deve ser mantida ou não, sanando, nesta sede, a irregularidade que resulta da manifesta insuficiente fundamentação.
A instância inicia-se com a propositura da acção e após a citação do réu, deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei-cfr. os arts. 259.º, n.º 1 e 260.º (princípio da estabilidade da instância) do CPCivil.
Uma dessas possibilidade de modificação do objecto da acção é justamente a reconvenção que consiste na via pela qual o réu pode deduzir pedidos contra o autor (cfr. art. 266.º, n.º 1 do CPC).
Relativamente a esta matéria, A. dos Reis[3] explicava que, neste caso, havia uma modificação no objecto da acção pois em vez de ficar circunscrita ao pedido formulado pelo autor, passava a ter também por objecto um pedido formulado pelo réu. E, na sua perspectiva, o verdadeiro significado da reconvenção é uma acção proposta pelo réu contra o autor, a qual se enxerta na que o autor propusera contra o réu.
Todavia, não é qualquer pretensão do réu deduzida contra o autor que pode ser admitida na medida em que está sujeita, para além dos pressupostos processuais, a limites objectivos,[4] expressamente declarados no n.º 2 do citado art. 266.º do C.P.Civil que traduzam uma “certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor.”[5]
Todos os pedidos reconvencionais, acrescenta aquele autor[6], “devem ser conexos com o pedido do autor, por que seria inadmissível que ao réu fosse lícito enxertar na acção pendente uma outra que com ela não tivesse conexão alguma.”
A hipótese que o caso em apreço demanda é a prevista no n.º 2, al. a) do art. 266.º: quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa.
Sobre o nexo ou o elemento de conexão que a lei exige entre o pedido do réu e o facto jurídico no qual se baseia a acção ou a defesa, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7] observam:
“Em primeiro lugar, pela alínea a), o pedido reconvencional pode fundar-se na mesma causa de pedir - ou em parte da mesma causa de pedir - que o pedido do autor; (…).
Em segundo lugar, pela mesma alínea a), o pedido reconvencional pode fundar-se nos mesmos factos - ou parcialmente os mesmos factos - em que o próprio réu funda uma excepção peremptória ou com os quais indirectamente impugna os alegados na petição inicial.”
A jurisprudência, no que respeita à interpretação da segunda parte da norma (quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa), tem preconizado que a conexão entre ambas as acções (do autor e do réu) exige que o facto jurídico invocado pelo réu é susceptível de ser enquadrado na disciplina das excepções peremptórias, que visam reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelo autor.
O Acórdão da Relação de Coimbra, de 17/03/2020[8], citando Mariana Gouveia[9], esclarece que na noção de causa de pedir para efeitos de reconvenção, é necessário identidade, ainda que parcial, de factos essenciais ou principais, isto é, os que constam da norma como constitutivos do direito, para concluir que “ a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra-pretensões.”
Os Autores, arrogando-se donos de um determinado terreno que serve de caminho de acesso aos seus prédios urbanos, pretendem o reconhecimento do direito de propriedade e consequentemente, que os Réus sejam impedidos de o ocuparem, directa ou indirectamente, bem como a sua condenação no pagamento de uma indemnização, a título de danos causados pela ocupação indevida da propriedade.
Os Réus, por seu turno, alegaram que o Autor AA quando adquiriu dois terrenos, pertencentes ao conjunto predial que fez parte de uma herança antes da partilha pelos herdeiros, nunca poderia ter adquirido aquela parte do caminho, o qual sempre fez parte do prédio que é propriedade da Ré FF.
Acrescentaram que esse prédio sempre teve janelas, algumas das quais deitam diretamente para o prédio dos Autores AA e mulher e que estes têm praticado atos que impedem as vistas, realizado obras e plantações encostadas ao prédio, para lhe causar danos.
Em suma, defendem a admissibilidade dos pedidos reconvencionais por entenderem que, mesmo na hipótese da improcedência da acção não fica definido que os Autores não são os donos do caminho e que as relações de vizinhança, perturbadas por actos dos Autores, carecem de resolução judicial.
Cumpre analisar, com rigor, os pedidos formulados pelos Réus, em reconvenção.
Os Réus peticionam, em primeira linha, que seja declarado que os Autores não são proprietários do terreno identificado nos arts. 36º. e 37º. deste articulado:
36.º-O espaço situado entre o limite sul do caminho que foi aberto pelos herdeiros em terreno que pertencia à dita herança, e a embocadura da estrada, a sul, ou seja, entre a casa hoje pertencente à Ré FF, a nascente, e o prédio pertencente a PP, a poente, não pertence, nem nunca pertenceu àquela herança, nem – obviamente - aos Autores.
37º. Trata-se do espaço, referido nos arts. 6º e 7º antecedentes, que era antigamente coberto pela ramada que os ditos Réus e seus antecessores cultivavam e de que cuidavam, colhendo e aproveitando as respetivas uvas, cujas videiras se encontravam implantadas no terreno imediatamente contíguo à parede poente da casa deles e se estendia, apoiada em bancas de ferros e arames, desde a parede da casa até ao muro então existente no prédio fronteiro do dito vizinho PP, ramada que. do lado da casa, a nascente, era suportada na própria parede desta, e do lado contrário, a poente, por esteios de granito e ferros junto ao muro do prédio do dito PP.
Trata-se de uma pretensão de mera declaração negativa,[10] sendo o contraponto do pedido dos Autores, ou seja, a negação do direito de titularidade por estes invocado sobre a parcela utilizada como caminho.
Pese embora não ter utilidade a não ser nas acções de simples apreciação negativa destinadas a resolver uma situação de incerteza, poderá ser qualificado como o antecedente lógico do pedido subsequente: ser reconhecido que a proprietária do dito terreno, concretamente o terreno de logradouro referido no art. 72.º, com a configuração descrita na contestação, é a Ré FF (al. b)).
Por conseguinte, afigura-se-nos que existe uma nítida conexão destes dois pedidos com o fundamento da acção, estribado no direito de propriedade do terreno que serve de via de acesso aos prédios, e na consequente abstenção dos Réus de o ocuparem.
Estamos perante a situação que José Lebre de Freitas[11] configura como impugnação indirecta baseada numa causa de pedir diversa da invocada pelo autor mas destinada a obter o mesmo efeito jurídico: a declaração de propriedade sobre o mesmo bem.
Ao invés, todos os demais pedidos formulados pelos Réus não traduzem uma defesa com utilidade, pois não visam reduzir, modificar ou extinguir o direito de propriedade invocado pelos Autores sobre a faixa de terreno em discussão.
Na verdade, referem-se à constituição, a favor do prédio da Ré FF, de uma servidão de vistas (al.c)-a Ré-Reconvinte tem o direito de manter as janelas abertas na parede traseira da sua casa, que integra o prédio referido na alínea anterior, voltadas para o prédio do Réu AA, situado a norte, por se encontrar constituída a seu favor a respetiva servidão de vistas, nos termos do art. 1362 nº 1 do CC e consequentemente, a condenação dos Autores a retirar a armação em ferro e as placas por ela suportadas, que colocaram defronte das janelas da parede traseira da casa daquela Ré bem como a vegetação numa faixa de terreno de 50 cms de largura, a reparar os estragos causados pelas infiltrações de humidade e a pagar uma indemnização dos prejuízos causados com a tapagem das janelas e plantação e danos não patrimoniais- als. d), e) e f).
Nesta parte concordamos com a decisão, já que os pedidos de constituição da servidão de vistas e de reparação dos prejuízos decorrentes das alegadas limitações e actuações no prédio da Ré, não têm qualquer nexo jurídico com o objecto da acção nem com a defesa.
Efectivamente não basta alegar factos na contestação para ser admissível deduzir pedidos contra o autor, com base nessa fundamentação.
Na esteira da posição uniforme na jurisprudência e na doutrina, o facto jurídico que a norma do art. 266.º, n.º 2, al. a), segunda parte do CPC contempla, consiste no quadro factual concreto invocado na reconvenção como fundamento da contra-acção desencadeada pelo réu, desde que seja subsumível à noção de excepções peremptórias consagrada no art. 576.º, n.º 3 do CPCivil.
Numa palavra, os factos descritos na reconvenção devem ter um efeito útil defensivo, obstando ao reconhecimento do efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, o qual, neste caso concreto, é o direito de propriedade sobre o mencionado terreno.
Ora, a pretendida constituição de uma servidão de vistas e as situações descritas pelos Réus fundamentam-se em causas de pedir totalmente distintas do objecto da acção, e, por conseguinte, nenhum relevo delas emerge para que seja possível ao tribunal, com base nas mesmas, operar uma acção redutora, modificativa ou extintiva do direito de propriedade sobre o dito caminho, que constitui, verdadeiramente, o cerne da acção.
Não basta a invocação de uma relação de vizinhança para que seja admissível peticionar, em sede reconvencional, efeitos jurídicos que não consubstanciam factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito dos Autores.
Nestes termos, deverá ser dado parcial provimento ao recurso.


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V-DECISÃO



Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso, admitindo apenas os pedidos formulados nas alíneas a) e b) da reconvenção, mantendo o mais decidido.


Custas do recurso a cargo dos Autores e dos Réus na proporção de 1/3 e 2/3 respectivamente.

Notifique.








Porto, 13/5/2025.

Anabela Miranda

Maria Eiró

Rui Moreira

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[1] 36º.O espaço situado entre o limite sul do caminho que foi aberto pelos herdeiros em terreno que pertencia à dita herança, e a embocadura da estrada, a sul, ou seja, entre a casa hoje pertencente à Ré FF, a nascente, e o prédio pertencente a PP, a poente, não pertence, nem nunca pertenceu àquela herança, nem – obviamente - aos Autores.
37º. Trata-se do espaço, referido nos arts.6º e 7º antecedentes,que era antigamente coberto pela ramada que os ditos Réus e seus antecessores cultivavam e de que cuidavam, colhendo e aproveitando as respetivas uvas, cujas videiras se encontravam implantadas no terreno imediatamente contíguo à parede poente da casa deles e se estendia, apoiada em bancas de ferros e arames, desde a parede da casa até ao muro então existente no prédio fronteiro do dito vizinho PP, ramada que. do lado da casa, a nascente, era suportada na própria parede desta, e do lado contrário, a poente, por esteios de granito e ferros junto ao muro do prédio do dito PP.
[2] 72.º-A Ré FF, aqui reconvinte, é legítima proprietária do prédio urbano, sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho ..., composto por casa de habitação de rés do chão e andar e terreno de logradouro junto, inscrito na respetiva matriz urbana daquela freguesia no art. ...81.
[3] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, Coimbra Editora, pág. 96 e segs.
[4] Ob. cit. pág. 98.
[5] Ob. cit., pág. 98.
[6] Ob. cit., pág. 99.
[7] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.º edição, Coimbra Editora, pág. 517 e segs.
[8] Rel. Jorge Arcanjo, disponível em www.dgsi.pt.
[9] A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pág. 270.
[10] A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.º edição, Coibra Editora, pág. 68.
[11] Introdução ao Processo Civil, 3.º edição, págs. 214 e 215.