DECISÃO DE FACTO
ALTERAÇÃO OFICIOSA
INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
DESPESAS DE EDUCAÇÃO
PAGAMENTO POR TERCEIRO
Sumário

O Tribunal da Relação não está impedido de alterar oficiosamente outros pontos da matéria de facto, desde que essa alteração tenha por objectivo evitar contradição entre a factualidade que se pretenda alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento.

Texto Integral

Apelação 3895/24.9T8MAI.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.

AA deduziu incidente de incumprimento da regulação do exercício das responsabilidades parentais contra BB, relativamente à menor sua filha, CC, nascida a 21.11.2014.

Pede, além do mais, que se reconheça o invocado incumprimento e em consequência seja o requerido condenado a liquidar a quantia em atraso no montante de € 13.609,23 e as prestações entretanto vencidas.

Para o efeito alega[1] que o requerido, por conta da prestação de alimentos fixada a favor da menor CC, nascida em 21.11.2014, foi fazendo pagamentos, mas nunca na data acordada, sendo que faltou ao pagamento por diversos meses, compensando com valores superiores nuns meses para compensar os atrasados, e nunca atualizou o valor da pensão de alimentos, encontrando-se em dívida, na data da propositura do incidente, a quantia de 940,91€.

A este valor acresce a quantia referente à comparticipação em 50% por parte do requerido referente às despesas de educação e formação e médicas da menor, assim discriminadas:

- despesas de saúde: 1.702,00€, cabendo ao requerido a quantia de 851,00€.

- despesas com a natação: 351,54€, cabendo ao requerido a quantia de 175,77€.

- despesas com ballet (vestuário): 769,50€, cabendo ao requerido o valor de 384,75€.

-despesas escolares: 22.513,61€, cabendo ao requerido ao valor de 11.256,81€.


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O requerido foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 41º, nº 3, in fine, do R.G.P.T.C..

Reconhece que os valores de pensão de alimentos em atraso possam ascender à quantia de € 940,91.

Alega ainda que nunca faltou com o pagamento de despesas médicas, medicamentosas, de educação da menor e outras e que a requerente não informou o Requerido da intenção de inscrever a filha de ambos em atividades extracurriculares e qual a despesa associada a essas atividades.

Por outro lado, só em janeiro de 2024 teve conhecimento que seriam os progenitores a suportar a mensalidade e a inscrição da menor em escola privada, isto porque durante a vigência do casamento, os Progenitores aceitaram que a avó materna suportasse as despesas escolares da Menor, referentes à inscrição e mensalidade, em escola privada.

Supondo que a avó materna tenha deixado de intervir nas despesas escolares da neta, a requerente deveria ter comunicado com o Requerido essa situação, para que ambos pudessem decidir sobre o futuro escolar da menor, isto é, se continuaria em escola privada ou se frequentaria escola pública.


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Foi realizada a conferência a que alude o art.º 41º, n.º 3 do RGPTC, no decurso da qual foi possível alcançar um acordo parcial quanto ao objeto do processo (cfr. a ata da conferência de 20.12.2024), no âmbito do qual o requerido reconheceu ser devedor à requerente da quantia de € 2.353,43 (dois mil trezentos e cinquenta e três euros e quarenta e três cêntimos), a título de despesas de saúde e educação com a menor e, bem assim, do valor descrito no artigo 3º do requerimento inicial, devidos até à data da propositura do incidente.

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Juntas as alegações nos termos do artigo 39.º, n.º 4 do RGPT (ex vi 41.º, n.º7), igualmente tendo-se pronunciado o MP, foi designado dia e hora de audiência de julgamento, na sequência do qual se decidiu a final:

«- julgar parcialmente procedente o presente incidente, nos termos descritos e, em consequência,

- verificar o incumprimento por parte do/a requerido/a quanto ao pagamento da quantia de 11.256,81€, relativa às despesas descritas na al. E) da presente decisão, condenando-o no pagamento de tal quantia, acrescida de juros vincendos desde a notificação.

- julgar, quanto ao mais, improcedente o incidente.»

Inconformado com a referida sentença, o requerido/progenitor interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

I. Estão em causa os factos para os quais se produziu prova e que foram dados como não provados e não foram tidos em consideração, mas que são absolutamente essenciais à boa decisão da causa.

II. Salvo o devido respeito, foi produzida prova quer testemunhal, quer documental, para que os factos não provados com interesse para a decisão a proferir, sejam dados como provados, nomeadamente:

- foi a avó materna da menor quem, durante o casamento de requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado por parte da menor.

III. Pois, além deste facto ter ficado provado no depoimento prestado por ambas as partes, acresce que foi confessado no douto requerimento da Requerente com a Ref. 50833825, designadamente no ponto VI - Do Apoio da Avó Materna:

A participação financeira da avó materna apenas se tornou necessária devido ao incumprimento do pai relativamente às suas responsabilidades financeiras. Este apoio visa suprir as necessidades da menor, que deveriam ser garantidas pelo progenitor”.

IV. Tal facto também resulta do e-mail junto na contestação do Requerido como documento nº 6.1, datado de 20 de Junho 2024:

“Em relação às facturas da mensalidade da escola, disse te, digo te e volto te a dizer, que o pai não tem nem nunca teve possibilidades de pagar mesmo quando estávamos casados. Tudo sempre suportado pela avó materna, mas se já não existe mais possibilidade de suportar esta despesas,

Conversamos acertamos como se deve fazer em todos os assuntos que até agora não tem sido feito da tua parte, assunto estes relacionados com a nossa filha para o bem estar dela e arranjamos uma solução”.

V. Resulta ainda do requerimento do apoio judiciário pedido e deferido à Requerente, pois com o salário mínimo como único rendimento é absolutamente inviável à mesma pagar propinas de cerca de 500€/mês, a que acrescem as demais despesas mensais com a filha e as despesas correntes mensais da própria Requerente.

VI. Acresce que até 2024 a Requerida nunca notificou o Requerido para o pagamento das propinas do colégio privado que a menor frequenta, prova que competia à Requerente fazer e que não foi feita.

VII. Logo resulta amplamente provado que foi a avó materna da menor quem, durante o casamento de requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado por parte da menor, pelo que este facto tem que ser dado como provado.

VIII - Assim, sendo a avó quem financia o pagamento das propinas à neta, esta não é uma divida do Requerido à Requerente, mas uma divida de ambos à avó materna, pois “credor é aquele no interesse do qual deve ser efetuada a prestação e que pode exigir o seu cumprimento” (Galvão Telles, Direito das Obrigações).

IX. Logo estes autos não são o processo próprio para reconhecimento e pagamento destes créditos, tanto mais que a avó materna não é parte.

X. Razão pela qual a sentença, enferma de erro de julgamento, pelo que deve ser revogada e substituída por decisão que julgue que os créditos advenientes do pagamento das propinas do estabelecimento de ensino privado não são devidos à Requerente.

XI. Tanto mais que foi mal aplicado o direito, designadamente o estipulado nos artigos 30º, nº 1 e 33º CPC.

Remata:

«Nestes termos e nos mais de Direito, deve ser dado provimento à presente apelação e, consequentemente, a Douta Sentença recorrida deve ser substituída, por decisão que declare que os créditos advenientes do pagamento das propinas não são devidos à Requerente.»


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A requerente/progenitora contra-alegou concluindo:

Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos, com todas as consequências legais.


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Também o M.P. contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:

I. No artº 640º do Cód. Proc. Civil. o legislador faz recair rigorosos ónus sobre o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto.

II. Impondo, nomeadamente, que nas conclusões das respetivas alegações de recurso – artº 639º nº 1 do Cód. Proc. Civil., indique, além do mais, quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados – alínea a) do nº 1 do artº 640º do Cód. Proc. Civil. - e o sentido da decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – al. c) do referido nº 1 do artº 640º do Cód. Proc. Civil.

III. No caso do recurso em apreciação, o recorrente limita-se a fazer referência à factualidade tida como não provada na sentença recorrida, pretendendo que deverá ser tida como provada.

IV. Não faz qualquer referência – não a impugnando à factualidade de sentido contrário tida como provada na sentença recorrida, -alínea e) da “FACTUALIDADE PROVADA”.

V. Assim, subsistindo como provado - porque não impugnado – que desde que foi regulado o exercício das responsabilidades parentais até à data da propositura do incidente, foi a progenitora requerente quem suportou as despesas escolares da menor, incluindo, as propinas e matrículas do colégio frequentado pela mesma, não pode acolher-se a pretensão do recorrente de ver dado como provada factualidade de sentido contrário.


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II.

A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a. CC nasceu em 21.11.2014 e é filha de requerente e requerido;

b. Por decisão de 08.11.2019, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º ..., na CRCivil da Maia, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais relativas à menor CC, no que agora interessa, nos seguintes termos:

1- (…) O exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente da menor cabe à mãe, com a qual fica a residir habitualmente (…)

2- O pai contribuirá, a título de alimentos para a menor, com a quantia mensal de 140€ (…) actualizada anualmente (…)

10- As despesas de saúde, não cobertas pelas Segurança Social, serão suportadas em montantes iguais por ambos os progenitores.

11- O pai e a mãe suportarão ainda, combinado com os dois, metade das despesas escolares mediante a apresentação do comprovativo, bem como despesas de vestuário e propinas escolares.”.

c. Requerente e requerido divorciaram-se em 08.11.2019;

d. A menor frequenta estabelecimento de ensino privado desde setembro de 2017;

e. Desde que foi regulado o exercício das responsabilidades parentais até à data da propositura do incidente, a requerente suportou o montante total de 22.513,61€ com despesas escolares da menor (manuais e material escolar, propinas e matrículas) descritas no documento 6 junto com o requerimento inicial;

f. O requerido não pagou metade de tais despesas.


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E deu como não provada a seguinte factualidade:

- o requerido não respeita os dias e horários previstos na regulação do exercício das responsabilidades parentais para contactar a menor;

- foi a avó materna da menor quem, durante o casamento de requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado por parte da menor;

- só em janeiro de 2024 o requerido teve conhecimento que seriam os Progenitores a suportar a mensalidade e a inscrição da menor em escola privada;

- durante a vigência do casamento, os Progenitores aceitaram que a avó materna suportasse as despesas escolares da Menor, referentes à inscrição e mensalidade, em escola privada.

III.

É consabido que resulta dos artº635º, n.ºs 3 a 5 e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações[2], sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.

Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar as seguintes questões:

a. Impugnação da matéria de facto e por forma a que se considere provado que: «- foi a avó materna da menor quem, durante o casamento de requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado por parte da menor.»

b. Consequência quanto à responsabilidade do recorrente no pagamento dos valores referentes a despesas de educação emergentes da frequência pela CC de ensino particular a proceder a pretendida alteração.


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a. Impugnação da matéria de facto e por forma a que se considere provado que: «- foi a avó materna da menor quem, durante o casamento de requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado por parte da menor.»

Acompanhando o que se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 5.12.24 e proferido no processo 245/22.2T8PRD-C.P1[3], diremos:

«O presente recurso versa sobre o sentido da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.

Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.

De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) determintar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1º instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.

Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.

Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.

Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.

Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).

A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.

O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).

Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.

Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);

.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b);

.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).

Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.

O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).

Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.

Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

Sublinhe-se, ainda, que com a impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados.

Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa.

A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte, como referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma” (Acórdão proferido no processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no local já antes citado).

O seu fim último é, assim, como também referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012, naquele citado, “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”.

Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (sublinhado nosso).»

Vejamos então por estar o recurso em condições de ser conhecido.

Pretende-se remetido para os factos provados o seguinte: «foi a avó materna da menor quem, durante o casamento de requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado por parte da menor.»

Este facto mostra-se em oposição com o constante da al.e), ou seja, um facto não impugnado e dado pro assente: «Desde que foi regulado o exercício das responsabilidades parentais até à data da propositura do incidente, a requerente suportou o montante total de 22.513,61€ com despesas escolares da menor (manuais e material escolar, propinas e matrículas) descritas no documento 6 junto com o requerimento inicial.»

Defende o MP que existe um obstáculo de ordem formal que impede desde logo a procedência da pretensão do recorrente, qual seja a circunstância do recorrente se limitar a impugnar factualidade tida como não provada na sentença recorrida, não se impugnado o que consta da citada al.e), ou seja, facto provado que se opõe ao que se deseja assente.

Não lhe assiste razão.

Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa «[t]endo a Relação reapreciado os meios de prova indicados relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretenda alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento (STJ 29-4-21, 648/17, STJ 8-4-21, 453/14, STJ 7-11-19, 2929/17)[4]

Impõe-se, pois, conhecer do facto que se impugnou e, em função do que se concluir, tirar-se-á as devidas consequências, concretamente se resultar provado o facto que se impugnou remetendo para os não provados aqueloutro que lhe está em oposição, sem prejuízo de outros necessários ajustes.

Alega o recorrente que o facto que se deseja provado resulta vertido do depoimento prestado por ambas as partes, acrescendo que foi confessado no douto requerimento da Requerente com a Ref. 50833825, designadamente no ponto “VI - Do Apoio da Avó Materna: A participação financeira da avó materna apenas se tornou necessária devido ao incumprimento do pai relativamente às suas responsabilidades financeiras. Este apoio visa suprir as necessidades da menor, que deveriam ser garantidas pelo progenitor”.

Entende também que tal facto também resulta do e-mail junto na contestação como documento nº 6.1, datado de 20 de Junho 2024: “Em relação às facturas da mensalidade da escola, disse te, digo te e volto te a dizer, que o pai não tem nem nunca teve possibilidades de pagar mesmo quando estávamos casados. Tudo sempre suportado pela avó materna, mas se já não existe mais possibilidade de suportar esta despesas. Conversamos acertamos como se deve fazer em todos os assuntos que até agora não tem sido feito da tua parte, assunto estes relacionados com a nossa filha para o bem estar dela e arranjamos uma solução”.

Apoia-se ainda no apoio judiciário concedido à requerente, na medida que com ele se atesta a incapacidade da recorrida de suportar os custos em causa.

Nem o MP nem a recorrida, em rigor, invocam qualquer argumento que retire consistência aos meios de prova convocados pelo requerido, sequer invocam qualquer meio de prova que contrarie a pretensão recursória.

Do requerimento de 19.12.24 (Ref. 50833825), produzido pela recorrida resulta de facto que se admite a ajuda da avó materna: «VI - Do Apoio da Avó Materna: 6º A participação financeira da avó materna apenas se tornou necessária devido ao incumprimento do pai relativamente às suas responsabilidades financeiras. Este apoio visa suprir as necessidades da menor, que deveriam ser garantidas pelo progenitor.»

Do documento 6.1. junto com a contestação também se retira adjuvante no sentido de que as despesas em causa eram suportadas pela avó materna, como do que resulta da concessão do apoio judiciário à recorrida.

O depoimento do recorrente vai no sentido do que se defende no recurso, sendo consistente com os elementos que se retiram dos documentos atrás referidos, depoimento esse que surge reforçado na sua credibilidade pelo deposto pela sua irmã, DD: afirmando que o irmão lhe afirmara que seria a avó materna a suportar as despesas do colégio.

Esta versão é infirmada[5] pelo depoimento da recorrida, não justificando no entanto a fonte dos montantes para pagar a ensino privado à CC, apenas que seriam pagos com montantes depositados em conta por si titulada.

Na conjugação de todos os elementos, relevando igualmente o tempo de reacção da requerente e quanto às despesas em causa, só em 2024 exigidas, apontam com consistente grau de certeza que a versão defendida pelo recorrente corresponde à verdade.

Nessa medida deve ser remetido para os provados o facto em causa[6] dado como não provado, outrossim remetendo para os não provados o que consta da al.e)[7] dos assentes.

Com vista a evitar qualquer contradição terá de ser também remetido para os assentes, porque provado, o seguinte facto: «durante a vigência do casamento, os Progenitores aceitaram que a avó materna suportasse as despesas escolares da Menor, referentes à inscrição e mensalidade, em escola privada» e ajustado o facto constante da al.f) nos seguinte termos: «f. O requerido não pagou metade do valor de 22.513,61€ relativo a despesas escolares da menor.»

Procede, nesta parte, o recurso.


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Em face disto são os seguintes os factos:

- provados:

a. CC nasceu em 21.11.2014 e é filha de requerente e requerido;

b. Por decisão de 08.11.2019, proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º ..., na CRCivil da Maia, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais relativas à menor CC, no que agora interessa, nos seguintes termos:

1- (…) O exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente da menor cabe à mãe, com a qual fica a residir habitualmente (…)

2- O pai contribuirá, a título de alimentos para a menor, com a quantia mensal de 140€ (…) actualizada anualmente (…)

10- As despesas de saúde, não cobertas pelas Segurança Social, serão suportadas em montantes iguais por ambos os progenitores.

11- O pai e a mãe suportarão ainda, combinado com os dois, metade das despesas escolares mediante a apresentação do comprovativo, bem como despesas de vestuário e propinas escolares.”.

c. Requerente e requerido divorciaram-se em 08.11.2019;

d. A menor frequenta estabelecimento de ensino privado desde setembro de 2017;

- foi a avó materna da menor quem, durante o casamento da requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado por parte da menor;

- durante a vigência do casamento, os progenitores aceitaram que a avó materna suportasse as despesas escolares da Menor, referentes à inscrição e mensalidade, em escola privada.

f. O requerido não pagou metade do valor de 22.513,61€ relativo a despesas escolares da menor.


*

- não provados

(e)- desde que foi regulado o exercício das responsabilidades parentais até à data da propositura do incidente, a requerente suportou o montante total de 22.513,61€ com despesas escolares da menor (manuais e material escolar, propinas e matrículas) descritas no documento 6 junto com o requerimento inicial;

- o requerido não respeita os dias e horários previstos na regulação do exercício das responsabilidades parentais para contactar a menor;

- só em janeiro de 2024 o requerido teve conhecimento que seriam os Progenitores a suportar a mensalidade e a inscrição da menor em escola privada.


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b. Consequência quanto à responsabilidade do recorrente no pagamento dos valores referentes a despesas de educação emergentes da frequência pela CC de ensino particular a proceder a pretendida alteração.

O Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08.9, regula o processo aplicável às providências tutelares cíveis e respetivos incidentes (art.º 1º).

Constituem providências tutelares cíveis, nomeadamente, a regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes (art.º 3º, alínea c)).

Relativamente ao processo especial da regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas, se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos (art.º 41º, n.º 1 do RGPTC, sob a epígrafe “incumprimento”).

Como se refere no ac. TRL Proc. 6036/18.8T8LSB-B.L1, de 11-07-2024 «[a]quilo que está em causa no incidente de incumprimento a que respeita o art.º 41º do RGPTC não é o pedido de alteração de um regime de responsabilidades parentais em vigor, nem sequer a resolução de diferendo sobre uma questão de particular importância quanto ao exercício das responsabilidades parentais, mas o reconhecimento da falta de cumprimento das obrigações emergentes do regime em vigor, com a determinação das diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do devedor em multa (se requerido).»

No caso a decisão tem o seguinte conteúdo:

«- julgar parcialmente procedente o presente incidente, nos termos descritos e, em consequência,

- verificar o incumprimento por parte do/a requerido/a quanto ao pagamento da quantia de 11.256,81€, relativa às despesas descritas na al. E) da presente decisão, condenando-o no pagamento de tal quantia, acrescida de juros vincendos desde a notificação.

- julgar, quanto ao mais, improcedente o incidente.»

Ou seja, «ao fim ao resto», reconhecendo-se o incumprimento quanto ao pagamento da quantia assinalada, nenhuma diligência coerciva se determinou.

Como quer que seja, em face do conteúdo da decisão, comportando segmento declarativo/condenatório em rigor afastado do típico num incidente de incumprimento, importa aferir se os valores em causa são devidos pelo requerido/recorrente à requerente/recorrida por, sendo relativos a alimentos devidos à menor, foram por ela pessoalmente eram suportados.

Resulta da alteração factual operada que quem suportou as despesas de educação da CC, as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado, foi a sua avó materna, foi a sua avó quem, durante o casamento da requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou[8].

Por conseguinte a eventual credora (eventual porque se antolha tratar-se de uma liberalidade em homenagem ao interesse da neta) será a avó materna da menor e não a sua mãe, ou seja, a requerente/recorrida.

Desta matéria de facto emerge cristalinamente a falta de legitimidade substantiva[9] para que a recorrida reclame do requerido/recorrente metade dos valores que foram despendidos no pagamento de despesas com o ensino em instituição privada frequentada pela menor.

É, pois, acertada, não obstante a errada referencia que faz ao art.30.º1, e 33 do CPC, a afirmação do recorrente quando refere que «[a]ssim, sendo a avó quem financia o pagamento das propinas à neta, esta não é uma divida do Requerido à Requerente, mas uma divida de ambos à avó materna, pois “credor é aquele no interesse do qual deve ser efetuada prestação e que pode exigir o seu cumprimento - (Galvão Telles, Direito das Obrigações)».

Quem deverá reclamar tais valores, ao requerido e à requerente, será a avó materna da menor, perspectivado que sejam tais valores tidos como um empréstimo à requerente.

Procede o recurso.


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IV.

Pelo exposto, dando-se procedência ao recurso, revoga-se a decisão na parte em que reconheceu verificado o incumprimento por parte do requerido/recorrente quanto ao pagamento da quantia de 11.256,81€ à requerente/recorrida, condenando-o no pagamento de tal quantia, acrescida de juros vincendos desde a notificação, assim disso se absolvendo o mesmo.

Custas pela recorrida sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.


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Sumário:

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Porto, 22/5/2025
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho
António Paulo Vasconcelos
Álvaro Monteiro
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[1] Segue-se relatório da sentença.
[2] Cfr. a citação da doutrina a propósito no Ac. do STJ de 6.6.2018 proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: (a) António Santos Abrantes Geraldes - «[a]s conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147. / (b) Fenando Amâncio Ferreira - «[n]o momento de elaborar as conclusões da alegação pode o recorrente confrontar-se com a impossibilidade de atacar algumas das decisões desfavoráveis. Tal verificar-se-á em dois casos; por preclusão ocorrida aquando da apresentação do requerimento de interposição do recurso, ou por preclusão derivada da omissão de referência no corpo da alegação. Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.» - in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108 / (c) José Augusto Pais do Amaral - «[o] recorrente que tenha restringido o âmbito do recurso no requerimento de interposição, pode ainda fazer maior restrição nas conclusões da alegação. Basta que não inclua nas conclusões da alegação do recurso alguma ou algumas questões, visto que o Tribunal ad quem só conhecerá das que constem dessas conclusões.» - Direito Processual Civil, 2013, 11ª edição, Almedina, páginas 417/418.
[3] Do qual fomos adjunto.
[4] CPC anotado, V.I, 3º ed., p.858.
[5] Admitindo-se no entanto que a mãe a colocou à vontade em determinada altura e a propósito das despesas em causa.
[6] «foi a avó materna da menor quem, durante o casamento de requerente e requerido e após o divórcio se prontificou a suportar e suportou as despesas com a frequência de estabelecimento de ensino privado por parte da menor.»
[7] «e. Desde que foi regulado o exercício das responsabilidades parentais até à data da propositura do incidente, a requerente suportou o montante total de 22.513,61€ com despesas escolares da menor (manuais e material escolar, propinas e matrículas) descritas no documento 6 junto com o requerimento inicial.»
[8] Resultando não provado que: «(e)- desde que foi regulado o exercício das responsabilidades parentais até à data da propositura do incidente, a requerente suportou o montante total de 22.513,61€ com despesas escolares da menor (manuais e material escolar, propinas e matrículas) descritas no documento 6 junto com o requerimento inicial.»
[9] Legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa e não à forma, pressuposto, como alegado pelo recorrente quando refere que se violou o artigo 30.º, n.º1 e 33.º do CPC